Saúde da família & saúde, doença, família e criança saudável
RELATO DE EXPERIÊNCIA
ENSINO
Saúde da família & saúde, doença, família e criança saudável1
Claudina Fernandes de SouzaI; Mara Ambrosina VargasII
IEnfermeira. Atua no Programa de Saúde da Família de Porto Alegre. Aluna da
Especialização em Saúde Pública/UFRGS
IIEnfermeira HCPA/UFRGS. Professora da UNISINOS. Aluna do Programa de Pós-
Graduação Educação/UFRGS
SITUANDO O TEMA
Nosso trabalho com a temática Saúde da Família teve início em março de 1997
enquanto estagiárias inseridas em um convênio que a Faculdade de Educação-
UFRGS mantinha com a Secretaria da Saúde e Meio Ambiente de Porto Alegre, cujo
objetivo era desenvolver um Projeto de Educação Continuada com trabalhadoras/es
dos Postos de Saúde do Município e Creches credenciadas com a mesma. Nestes
postos vinha sendo implantado o Programa de Saúde da Família e o público alvo
eram as(os) agentes comunitárias(os) de saúde que ali trabalham.
Na época, ao identificarmos as necessidades e interesses de saber destas/es
agentes, constatamos que: "Saúde, doença, família e criança saudável- suas
concepções e relações", foi um dos assuntos mais solicitados, o que nos
instigou a desenvolver o tema.
Com base nesta necessidade, buscamos ler e discutir temas como saúde, doença,
família, comunidade e suas dinâmicas, relações sociais, econômicas, históricas,
culturais e de gênero. Nesse sentido, por entendermos que existem múltiplos
fatores imbricados na produção de um conceito, consideramos as diversas
vertentes teóricas que as problematizam de modo diferente ou complementarmente.
Procuramos, também, conceitos que contemplassem as características do programa
global (Programa de Saúde da Família) e da realidade social em que as agentes
estavam inseridas.
Atualmente, já como enfermeiras (uma de nós atuando na equipe do PSF de Porto
Alegre) continuamos, cada vez mais, preocupadas em discutir questões que
envolvem as concepções de saúde, doença, família e criança saudável. Tendo
ampliado nosso compromisso pessoal, profissional e político, procuramos
desenvolver um trabalho que busca articular uma possível intervenção no social
com uma reflexão sobre as atividades exercidas- enquanto profissionais da
saúde- neste programa. Dúvida e reflexão para executar qualquer trabalho é que
valida uma experiência. Como dizMeyer(1998) "É a capacidade de duvidar que
possibilita o confronto constante com os esquemas e as verdades estabelecidas e
esse confronto se institui já quando levantamos questões; é essa postura que
faz deste modo de pensar uma atividade ao mesmo tempo produtiva, criativa,
provisória e conflitiva".
Por esta perspectiva, a proposta deste artigo é provocar uma reflexão em torno
das concepções de saúde,doença, família e criança saudável, estabelecendo uma
relação com os programas priorizados pelo SUS dentro do PSF. Para tanto, a
partir de algumas falas enunciadas pelas agentes comunitárias- quando da
realização da "Prática de Ensino"- procuramos analisar esses conceitos tomando
como referência dois pressupostos: 1) lidar com Saúde da Família- na conjuntura
atual do PSF-é lidar, prioritariamente, com Saúde da Mulher (binômio materno-
infantil) e 2) as ações dirigidas à Saúde da Mulher estão imbricadas com a
própria produção dos conceitos saúde, doença, família e criança saudável.
Para se ter saúde, precisamos de infraestrutura mínima. Como tratar diarréia,
sem saneamento básico?
Saúde está relacionada, também, com a capacidade das mulheres compreenderem o
que explicamos.
As agentes comunitárias estabelecem uma relação direta das possíveis conquistas
de uma comunidade com a sua inserção nas atividades políticas e sociais.
Reconhecem as diferentes realidades existentes dentro de um mesmo bairro, ou
seja, famílias com toda a infraestrutura, assim como famílias morando em
favelas e em condições precárias, inclusive, em local de risco no morro.
Ao problematizarmos esse aspecto com elas nos reportamosValia (1994,p.18) que
sinaliza que "Morar em favelas é habitar no espaço de escassez, da resistência.
É, antes de mais nada, o espaço da conquista diária da vida.". É esta
perspectiva que norteia a política de saúde dentro do Programa de Saúde da
Família ao focalizar a atenção nos pobres, com a chamada "cesta básica" do
Banco Mundial. De fato, os PSFs estão sendo inseridos nos considerados "bolsões
de miséria" de forma a incluir: regiões com indicadores sócio-econômicos
desfavoráveis; áreas em que estão ocorrendo assentamentos; regiões com
indicadores epidemiológicos mais desfavoráveis (dados retirados do PROGRAMA
SAÚDE DA FAMÍLIA EM PORTO ALEGRE - RS, Projeto Conjunto Serviço de Saúde
Comunitária - GHC e SMSS, 1995). Na verdade, isto pode ser entendido como
atividades que objetivam gerar benefícios coletivos com menores custos.
A mulher, por sua vez tem sido "responsabilizada", neste contexto, como capaz
de influenciar o nível de saúde da família. As próprias agentes comunitárias
preconizam este pressuposto ao afirmarem que a capacidade de gerar melhores
condições de saúde está intimamente relacionada ao grau de compreensão destas
mulheres. Neste sentido, para aquelas que desempenham suas funções como mãe,
torna-se prioridade "vital" que gozem de "boa saúde" e estejam menos
vulneráveis a: riscos, lesões físicas, problemas psiquiátricos, transmissão de
DST, AIDS. Além disso, há programas específicos que objetivam torná-las aptas a
gerarem filhos saudáveis. Logo, podemos inferir que a concepção de saúde e
doença tem sido permeada pela classe social, pelo gênero, refletindo, com isso,
laços estruturais entre corpo e sociedade.
Até acho que é possível um casal de homossexuais criar uma criança e constituir
uma família. Está tudo mudado mesmo.
Eu mesma, moro com minha mãe, meu filho de 4 anos, numa casa de 3 peçãs e esta
é a minha família.
Mesmo mobilizando tensões e reflexões, reconhecer família fora do conceito
nuclear (pai/mãe/filhos) não exclui o preconceito; evidencia, sim, a percepção
da mudança social e cultural da sociedade e como podemos/precisamos nos
movimentar dentro dela. Através destas falas, entende-se família como um grupo
de pessoas que interatuam e que se abrem a trocas e mudanças. É um todo de
relações que se sobrepõem e legitimam um espaço social, independente de quem as
originou. Funda-se uma nova ordem. Isto implica uma nova concepção de família.
Embora os Programas de Saúde da Família tenham, de certo modo, explicitado
concepções de famílias, as possíveis discussões em torno desta temática têm
sido fundamentadas predominantemente, em torno da presença da mulher. Ou seja,
mesmo atendendo ao conceito plural de família, os homens têm permanecido à
margem dos programas estabelecidos. Como dito anteriormente, estes programas
priorizam as mulheres em sua função de mães ou de educadoras/provedoras do
núcleo familiar. Além disso, as agentes comunitárias são predominantemente
mulheres que exercem múltiplas funções sociais: agentes de saúde, educadoras,
muitas como mães, esposas e alunas; nesse sentido, torna-se relevante
compreender o que veiculam e como o fazem. O "veicular", aqui, ultrapassa a
órbita do dito, uma vez que essas múltiplas funções, com certeza, envolvem
muito mais do que a concepção linear do orientar descomprometido.
Trabalhar com o envolvimento e com a complexidade das relações que passam a ser
representativas num determinado contexto, pode ser uma das formas de abordar
tal fato. Por este prisma, é interessante pensar que, assim como os arranjos
familiares se modificam e se multiplicam, noções e saúde/doença, na medida em
que também são significadas pela cultura, vêm se alterando com o tempo. Logo,
como não considerar a pluralidade dos sujeitos envolvidos - homens e mulheres
enquanto exercendo influência, podendo, inclusive, estabelecer uma outra
relação com o processo saúde/doença dentro destes diferentes arranjos
familiares?
Tem muita mãe preguiçõsa que não cuida dos filhos, e há aquelas que trabalham
e, mesmo os pais (quando tem) quando ficam em casa, não cuidam. Os irmãos mais
velhos é que cuidam. Criança precisa de carinho. Precisa de pai e mãe
presentes.
Mães trabalhando e delegando parcialmente as atividades domésticas, assim como
o cuidado dos filhos pequenos, para os filhos mais velhos, é fato. Não
percebemos atualmente, como alterar esta lógica e nem motivos pelos quais se
deva, simplesmente, alterá-la. Das falas referidas, poderíamos inferir que
somente pais e mães deveriam cuidar dos filhos e, mais ainda, que há ambientes
concebidos, a priori, como adequados para o desenvolvimento da criança. É
preciso considerar que delegar as atividades não significa necessariamente, não
cuidar, mas implica discutir a forma como é possível cuidar. Ou seja, dentro
das famílias numerosas esta passa a ser a forma encontrada a fim de liberar a
mãe para participar ativamente do sustento da família. Isto, quando ela não é a
única a conseguir/poder realizar esta tarefa. Sabemos que mães, por exemplo, da
classe média alta também delegam parcialmente esta atividade. A difierença é
que a infraestrutura que montam para isso está legitimada dentro da sociedade
(creches, empregada doméstica, babá, carro, telefone, etc...).
Outro aspecto a ser levantado é a analogia que se faz quando se afirma que
famílias numerosas não fizeram planejamento familiar. Quem determina quantos
filhos devemos ter são os mesmos que determinam que amamentar é obrigatório,
que temos que levar o filho uma vez por mês ao pediatra, mesmo que seja
considerado "saudável", etc... Amamentar, por exemplo, é importante; o que
questionamos é o contexto idealizado que se cria em torno desta temática. Mesmo
para mães de outras classes sociais, em nossos tempos, a amamentação nos termos
propostos é, muitas vezes complicado.
Acrescentamos a essa problematização, dados do Brasil, apresentados em
documento do BANCO MUNDIAL (1993) onde se discute a questão dos recursos
financeiros administrados diferentemente por homens e mulheres no contexto
familiar. Estes dados informam que as mulheres, quando responsáveis pelo
sustento da família, são capazes de gerar algum efeito sobre a saúde da
família. Por sua vez, quando esta responsabilidade é exclusiva dos homens, não
tem sido observado maior impacto sobre a saúde da família. Principalmente,
quando estes homens são, também, os únicos responsáveis pelo cuidado dos
filhos. Os mesmos dados também informam que mulheres trabalhadoras vêm
dedicando menos horas aos cuidados de seus filhos, e também que a amamentação,
nestes casos, é realizada por um período menor. Argumentam que, ainda assim, há
evidências demonstrando que o fato destas mulheres estarem inseridas no mercado
de trabalho, têm trazido maiores benefícios do que problemas para a saúde de
seus filhos. Perguntamos: Como estes fatos vêm sendo trabalhados no contexto do
Programa de Saúde da Família? O que é ser mãe "preguiçõsa"? Se concordamos, por
exemplo, com a linha sugerida por (Elsen; Hense; Eckert 1992, p.30) ao
colocarem que "Para a criança ser considerada saudável, são levados em conta
sua atuação em diferentes campos, como o estado de espírito, a atividade, a
presença/ausência de queixas, o funcionamento biológico do organismo, entre
outras, e não apenas a ausência da doença." nos sentimos autorizadas a
constatar que a falta de infraestrutura (água, alimentação variada, esgoto,
acesso a escola, vestuário, etc...) seriam os maiores responsáveis pelo
comprometimento da manutenção da saúde destas crianças do que o pouco interesse
de suas mães.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre as atividades exercidas em nosso cotidiano é o que pretendíamos.
Isto não significa solucionar questões. Significa sim, que discutir concepções
de saúde, doença, família e criança saudável dentro dos atuais programas
priorizados pelo SUS no Programa de Saúde da Família, talvez estabeleça
maneiras dos indivíduos também expressarem os diversos componentes que podem/
estão imbricados nestas concepções. Nesse sentido, as ações de saúde poderiam
ser distribuídas conforme a demanda do público, e não apenas em programas que
contemplam parte da família (binômio materno-infantil).
Justamente por esses aspectos, entendemos que as concepções que podem estar
relacionadas à temática Saúde da Família ocorrem na disputa diária, com
sujeitos organizados coletivamente - enquanto homens e mulheres- para legitimar
um processo de discussão - enquanto fato político e capazes de gerar uma
intervenção mais efetiva.