Saúde mental: reconstruindo saberes em enfermagem
ENSAIO
Saúde mental: reconstruindo saberes em enfermagem
Mental health : rebuilding the knowledge in nursing
Salud mental: reconstruyendo saberes en enfermería
Francisca Bezerra de OliveiraI; Maria Lucinete FortunatoII
IEnfermeira, Professora Doutora e Assessora de Pós Graduação e Pesquisa do
Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG), E-mail: oliveirafb@uol.com.br
IIHistoriadora, Professora Doutora do Centro de Formação de Professores da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e Pró-Reitora de Extensão da UFCG
1 Introdução
Entrar no campo da psiquiatria e tentar compreendê-lo, em uma perspectiva
histórica, é de um lado, penetrar em uma área polêmica, onde há questões não
resolvidas, onde o debate tem sido perene e não conclusivo e, por certo,
demanda estudos mais profundos para sua melhor compreensão. De outro lado, é
reconhecer, como um dos princípios fundamentais, que as práticas psiquiátricas,
a doença mental e o saber que a reconhece são contraditórios e estão
relacionados ao contexto político, econômico e social de cada sociedade, e que
ninguém tem a verdade do conhecimento sobre a loucura, uma vez que sua
determinação está ligada a múltiplos fenômenos.
Essas idéias são reforçadas por Foucault (1), que ao escrever a História da
loucura, mostrou que ela deve ser entendida como evento político, econômico,
social e cultural. Para o autor, o surgimento da instituição psiquiátrica, da
doença mental e da psiquiatria são acontecimentos recentes na história da
humanidade, datados no início do século XIX. A constituição da psiquiatria como
"ciência" médica foi produto da ruptura entre loucura e razão.
Este trabalho procura, a partir de uma perspectiva histórica, contribuir para o
debate acerca da reforma psiquiátrica brasileira, da desinstitucionalização e
dos saberes e práticas de enfermagem em saúde mental.
2 A constituição do saber psiquiátrico e da doença mental
A história da psiquiatria é uma condição fundamental para se pensar os saberes
e as práticas no campo da saúde mental.
No Renascimento, a loucura foi simbolicamente representada como enunciadora de
verdade. Nesse período, o louco vivia solto, fazia parte das paisagens da
cidade. A loucura era, para cada um, uma experiência que se procurava mais
exaltar do que dominar. Havia uma certa hospitalidade a essa forma de
experiência (1,2) .
Mas a partir da Idade Clássica (século VII), traçou-se uma linha divisória que
tornou impossível aquela experiência tão familiar à Renascença, de uma razão
irrazoável, de um razoável desatino. A loucura foi inscrita no universo da
desrazão, estabelecendo articulações com o universo da marginalidade social e
preparando historicamente as práticas e os saberes psiquiátricos do século XIX
(1) .
A loucura ao ser inscrita no universo simbólico da desrazão implicou na
distinção entre loucura e razão. Essa distinção entre loucura e razão vão-se
sobrepor, no século XVII e seguintes, outras distinções, tais como:
conhecimento e virtude, saber científico e saber do senso comum, ciência e
arte, ciência e filosofia, sujeito e objeto. Inaugurou-se assim, o processo de
secularização da consciência, caucionando o lugar do sujeito não apenas como
interioridade, como também constituinte do mundo e de seus objetos (3) .
O louco, na Idade Clássica, por ter sido agrupado juntamente com vagabundos,
libertinos e criminosos estabeleceu um parentesco com as culpas morais e
sociais, que parece longe de ser rompido, contribuindo para o processo de sua
estigmatização. Portanto, o século XVII marca um tempo de silêncio da loucura,
do qual não conseguiu sair por um longo período.
Assim, o louco passou a ter o estigma de periculosidade social, herdeiro
natural do internamento, devido a sua incapacidade para o trabalho e a
impossibilidade para o tratamento em domicílio, o que veio significar no início
do século XIX, um novo statusda loucura, com o surgimento do asilo e a
transformação da loucura em doença mental. Com a "tecnologia pineliana", o
isolamento passou a ser absolutamente necessário, o momento primeiro e
fundamental no tratamento do alienado. Essa trajetória prática e discursiva tem
na instituição da doença mental o objeto fundador da prática e do saber
psiquiátrico. A loucura codificada em doença mental diz respeito à verdade
científica, à verdade do olhar psiquiátrico. Para Foucault, a linguagem da
psiquiatria tornou-se, no século XIX, "monólogo da razão sobre a loucura"(1).
A conseqüência prático-teórica da tradição pineliana foi de dirigir a atenção
para os sinais e sintomas da loucura; a racionalidade assim conquistada
consistia em agrupar, segundo sua ordem natural, as manifestações da doença, ou
seja, este tipo de racionalidade se esgota em constituir nosografias. O
isolamento do louco passou a ser a condição necessária para a restituição da
liberdade da qual a loucura o privou.
A partir da segunda metade do século XIX, a psiquiatria elaborou uma nova
explicação para a loucura ancorada no modelo biológico de matriz positivista.
Para este modelo, a loucura é um efeito de perturbações no psiquismo produzidas
no registro do organismo. A psiquiatria, pautando-se neste modelo, buscou
constituir-se como saber científico, com a pretensão de neutralidade,
objetividade e descoberta dos distúrbios mentais, mediante relações de
causalidade.
De acordo com essa perspectiva, o isolamento, teoricamente embasado, afastava o
louco de tudo aquilo que podia provocar alienação: a família, os amigos, a
sociedade. O asilo continuou a ser por excelência o lugar do tratamento moral;
era antes de tudo, a ordem da moralidade reduzida a esquemas de leis,
obrigações e constrições. Não se tratava mais de uma instituição indiferenciada
da promiscuidade e dos contágios, mas de um espaço ordenado cujos caminhos
balizados levariam à cura do alienado. "A partir desse princípio, o paradigma
da internação irá dominar, por um século e meio, toda a medicina mental" (4:
86) .
A partir do final do século XIX, começou a delinear-se um novo saber no campo
da psiquiatria - o discurso freudiano, o qual determina uma ruptura com a
abordagem organicista e propõe noutros termos a problemática da loucura. A
loucura se fundaria na história, na subjetividade do sujeito, não sendo,
portanto, um efeito de perturbações no psiquismo produzidas no registro do
corpo biológico. Contudo, até meados do século XX, o internamento tornou-se a
única e necessária resposta ao questionamento da loucura. O alienado passou a
ser tutelado, administrado e submetido ao tratamento moral.
Ainda no final do século XIX, a função puramente disciplinar do asilo e o
abandono de suas funções terapêuticas passaram a ser denunciadas em alguns
países da Europa Ocidental. Mas, essas denúncias só encontraram ressonância,
após a II Guerra mundial, quando novos problemas foram colocados para o
conjunto da sociedade. Foi no contexto de profícuo debate sobre a redefinição
da política, da economia, da organização institucional e ética que a questão
psiquiátrica passou a ser um dos temas privilegiados da sociedade nesses
países.
A partir do questionamento da eficácia das instituições manicomiais, surgiram
diversos movimentos psiquiátricos: comunidades terapêuticas, psicoterapia
institucional, psiquiatria de setor, psiquiatria comunitária, antipsiquiatria e
psiquiatria democrática ou de desinstitucionalização, os quais têm reflexos no
processo de reforma psiquiátrica no Brasil.
3 Saúde mental no Brasil: processo de desconstrução e construção
No Brasil, como nos países europeus, a internação dos loucos em espaços
específicos - manicômios, ocorreu no século XIX, mais precisamente, na metade
do século. Antes, os loucos faziam parte das paisagens da cidade, viviam
soltos, ou eram recolhidos às prisões por vagabundagem ou perturbações da ordem
pública; outros eram colocados em celas especiais dos hospitais gerais das
Santas Casas de Misericórdia(5,6) .
Nessa perspectiva, foi criado, em 1852, no Rio de Janeiro, o primeiro hospício
chamado Pedro II, constituindo o marco institucional da assistência
psiquiátrica brasileira. Esse hospício pretendia dignificar o tratamento aos
loucos elevando-os à categoria de objeto do saber alienista. Do século XIX até
meados do século XX, a idéia preponderante era a de que o louco devia ser
isolado no asilo.
Podemos afirmar que a despeito de algumas propostas e tentativas isoladas como
a de Ulisses Pernambucano - que na década de 30, preconizava em Recife a
psiquiatria extra-hospitalar, com ambulatórios, hospitais abertos, atenção ao
egresso, diagnóstico precoce, adaptação do doente à família, ao trabalho e à
sociedade -, e a de Dra. Nise da Silveira - que a partir 1946, desenvolveu
atividades na área da saúde mental, com ênfase na arte, na tentativa de
compreender o processo inconsciente do paciente -, o quadro da assistência
psiquiátrica no país, até os anos 50, era lamentável, sendo exercida quase
exclusivamente no interior dos manicômios. Isto seria reforçado pelo advento do
eletrochoque, na década de 40 e dos psicofármacos, nos anos 50.
No final dos anos 70, paralelamente à luta pela redemocratização e
reorganização da sociedade civil brasileira, intensificaram-se no país os
debates e as reflexões sobre a assistência à saúde mental. Nesse contexto,
surgiram diversos movimentos sociais, entre os quais o Movimento de
Trabalhadores em Saúde Mental que passou a ser o ator privilegiado na
formulação das críticas ao paradigma psiquiátrico dominante, e na construção da
reforma psiquiátrica brasileira.
A reforma psiquiátrica, entendida como um movimento social, está articulada a
um conjunto de iniciativas operado nos campos legislativo, jurídico,
administrativo, cultural e no saber médico-psiquiátrico que visam transformar a
relação entre sociedade e loucura. A desinstitucionalização é o conceito chave
no processo da reforma psiquiátrica, representa uma crítica teórico-prática,
que reorienta instituições, saberes, estratégias e formas de lidar com a
loucura, em direção a outro objeto, a existência-sofrimento do sujeito e não à
doença mental, transformando sujeitos objetivados em sujeitos de direitos.
Em 1987, com a realização do II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde
Mental, em Bauru-SP, firmou-se uma nova ordem na relação da loucura com a
sociedade e uma mudança nas práticas profissionais. Nesse evento, estabeleceu-
se o dia 18 de maio como o dia nacional de Luta Antimanicomial. A partir daí, o
Movimento Antimanicomial, constituído por diversos atores sociais
(profissionais, usuários, familiares, intelectuais), assumiu efetivamente a
utopia por uma sociedade sem manicômios.
Entre as experiências de construção da reforma psiquiátrica brasileira, nos
anos 80, destacam-se: a criação do Centro de Atenção Psicossocial de São Paulo
(1987) e a criação de Núcleos de Atenção Psicossocial na cidade de Santos - SP
(1989).
Articulado com a reforma psiquiátrica, no campo legislativo, em 1989 foi
apresentado o Projeto de Lei 3.657/89, de autoria do Deputado Paulo Delgado (PT
- Minas Gerais), que dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios; propõe
sua substituição por novas modalidades de atendimento, tais como: Hospitais-
dia, lares protegidos, Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS, NAPS) e
regulamenta também a internação compulsória. Somente em 2001, depois da pressão
de vários segmentos da sociedade, este projeto de lei foi aprovado pelo
Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República.
O movimento de reforma psiquiátrica no Brasil, ora identificado como movimento
de luta antimanicomial, ora como movimento em saúde mental, é o ator
privilegiado na desconstrução de práticas psiquiátricas manicomiais e na
construção de projetos voltados para a criação de novas formas de atenção, de
espaços de não exclusão, de movimento/criação e, principalmente, de espaços de
ancoragem que possibilitem a constituição da singularidade e da subjetividade
do usuário. Mas, apesar da criação de inúmeros projetos ancorados na reforma,
desde o Sertão do Nordeste até a região Sul, ainda é hegemônico, no Brasil, o
modelo manicomial.
Os tempos atuais de crise paradigmática, de refluxo dos movimentos sociais, de
deterioração do sistema de saúde e de extrema desigualdade social, exigem
práticas que expressem novas utopias. A utopiapor uma sociedade sem manicômios,
engendrada pelo movimento de luta antimanicomial, é algo que vem sendo
construído no cotidiano por diversos segmentos sociais e profissionais, dentre
estes, os de enfermagem.
4 A enfermagem no contexto da reforma psiquiátrica
Historicamente a Enfermagem Psiquiátrica surgiu nos asilos, não para atender a
um investimento na melhoria da assistência ao "louco", mas para vigiar e
controlar seus atos, em outras palavras, para viabilizar dentro do manicômio, o
modelo clássico de Psiquiatria. O grande equívoco da enfermagem foi acreditar
que a administração do hospital e o controle de papéis institucionais fariam
das enfermeiras profissionais imprescindíveis no cuidado dos pacientes (7) .
Convém lembrar que, até o início dos anos 60, a enfermagem brasileira tinha
como principal fundamento o modelo médico-biológico que tem como objeto de
trabalho a doença e o quadro clínico do doente mental. Essa abordagem limita-se
à tentativa de explicar a loucura a partir de uma ordem de causalidade inscrita
no organismo.
No final dos anos 60 e início dos anos 70, a enfermagem psiquiátrica passou a
privilegiar a concepção psicológica, com ênfase nos aspectos comportamentais
das relações humanas, incorporando um discurso humanitário. São idéias
ancoradas na perspectiva da psicologia americana, corrente conhecida por
Psicologia Humanística, e no discurso freudiano.
No Brasil, essas discussões teóricas começaram a fazer parte dos currículos dos
cursos de Enfermagem no final da década de 70. Alguns estudos ancorados na
perspectiva do referencial das relações humanas vêm sendo desenvolvidos por
pesquisadoras. O tratamento centrado no modelo humanista visa a oferecer
vivências enriquecedoras que promovam maior capacidade para o indivíduo
enfrentar os desafios da vida. Portanto, o foco está nos recursos do terapeuta
e na potencialidade que existe no próprio ser humano. A partir dessa
compreensão, ajudar as pessoas a explicitar, a comunicar seus sentimentos é
capacitá-las para uma vida melhor. A empatia é fundamental na relação
terapeuta-paciente porque ambos são afetados e se transformam. Portanto,
humanizar a administração dessa assistência deve ser nossa preocupação como
enfermeiros(8).
Na nossa concepção, a importância do referencial humanístico para a enfermagem
é possibilitar o resgate da subjetividade do sujeito, isto é, a mudança de um
olhar clínico para um olhar compreensivo, tendo como princípio o humanismo
ético o que implica em interação e diálogo enfermeira-paciente. Além disso,
esse referencial trouxe para a arena das discussões os aspectos da relação
familiar e noções de dinâmica de grupo. Ao contrário do que parece, devemos
estar atentos para a multidimensionalidade dos fatores que envolvem as relações
interpessoais.
Não se trata de recusar o humanismo. É necessário, como veremos,
`hominiza' o `humanismo', e, portanto enriquecê-lo, baseando-o na
realidade viva do "Homo complex". Há que se substituir o mito
abstracto do homem sobrenatural pelo antimito complexo do homem bio-
cultural (9:398) .
Estamos em tempo de repensar os saberes e as práticas de enfermagem. Devemos
fazê-los em uma perspectiva humanística, criativa, reflexiva, imaginativa, e
não baseada apenas em diagnósticos médicos ou de enfermagem. A categoria
central da enfermagem é o cuidar compreendido como processo dinâmico, mutável e
inovador, que implica o reconhecimento da singularidade e da subjetividade do
usuário.
É necessário fecundar a idéia de que as teorias são importantes e devem
dialogar entre si, mas em saúde mental o problema mais importante é a "pessoa
que sofre". Quando se tem essa compreensão pode-se, então, usar várias
linguagens, inventar novos vocabulários, criar novas práticas subjetivas e
compreender o usuário em um sentido multidimensional como sujeito plural,
histórico, social e dotado de linguagem.
Assim, as questões mais aparentes do relacionamento interpessoal dirão respeito
também a problemáticas pouco exploradas no tocante à relação enfermeira-
paciente, como também à relação paciente-serviço e seu contexto social como
espaços legítimos de exercício de cidadania. É importante fecundar a idéia de
que a cidadania não implica apenas em reconhecimento de direitos, mas um
processo ativo de ampliação da capacidade de autonomia e liberdade, de modo que
a loucura não signifique limitações e incapacidades.
Sabemos que a enfermeira precisa estar preparada para cuidar da "pessoa que
sofre" fora da instituição manicomial. A convivência com um cenário em
constante transformação coloca este profissional frente a novos e importantes
desafios, permitindo que faça uma análise crítica dos saberes que fundamentam
sua prática.
A luta pela reforma psiquiátrica e pelo processo de desinstitucionalização em
construção no Brasil busca construir espaços de produção de encontro,
solidariedade, afetividade, enfim, espaços de atenção psicossocial. Portanto,
exige de todos os profissionais, no caso específico da enfermeira, a
necessidade de rever conceitos, métodos e formas de lidar com o sofrimento
psíquico.
Assim, é indispensável refletir criticamente sobre a essência da prática da
enfermagem que é o cuidar. Urge que se pense a prática de enfermagem, não só
nos modelos tradicionais de assistência, ainda hegemônicos, mas, sobretudo, em
serviços ancorados na reforma psiquiátrica, em espaços de reinvenção de saúde,
em projetos inovadores construídos nos municípios brasileiros, como é o caso
dos CAPS, NAPS e Hospitais - dia.
Essas novas práticas precisam de conhecimento criativo e reflexivo que
habilitem os profissionais a fazerem intervenções competentes no seu objeto de
trabalho. Competência significa a capacidade inteligente de fazer dialogar
teoria e prática, ou seja, teorizar práticas e praticar teorias, sem que se
reduza uma à outra. Isto leva à capacidade de propor estratégias, inquirir
processos e produtos, participar como sujeito crítico e inventivo. Por ser uma
prática em construção, o percurso da enfermeira não segue um caminho prévio, o
caminho é feito no caminhar(10).
Contudo, essa transformação que deve ser provocada nos sujeitos construtores
das práticas em saúde mental ocorre através de um processo lento, gradual, pois
sabemos que as mudanças de mentalidades obedecem a um ritmo próprio.
Compreendemos que a prática da enfermeira nos serviços substitutivos de saúde
mental deve ser engendrada na relação, no diálogo e no confronto com os atores
sociais da instituição, sendo desconstruída/construída nos cenários dessas
práticas. No entanto, esse processo de desconstrução e de mudanças na prática
de enfermagem psiquiátrica não é fácil, porque historicamente, a psiquiatria
mudou mais em nível dos discursos teóricos do que das práticas, e a enfermagem
tem participado pouco das discussões teóricas atuais sobre o processo de
reforma psiquiátrica (7,11) . Portanto, a criação de novos serviços não quer
dizer de imediato a transformação da lógica de compreender e agir fundada pelo
paradigma psiquiátrico manicomial.
Ao contrário do paradigma manicomial, neste tipo de projeto terapêutico,
precisa-se de profissionais com conhecimento aprofundado que saibam interagir,
dialogar com outros profissionais, com usuários e familiares, favorecendo a
construção de ações que dêem conta da pessoa que sofre, em sua complexidade. Os
profissionais que não procuram o intercâmbio perdem a visão de totalidade e de
contexto.
Alguns estudos corroboram essas reflexões, ao postularem que nos projetos
terapêuticos substitutivos ao manicômio, a enfermeira vai afirmando-se como
profissional na ação compartilhada com outros profissionais, sendo todos
autores e atores de um projeto coletivo. Neste tipo de serviço, a preocupação
maior é a construção de um projeto terapêutico participativo, o que não
significa a perda da identidade profissional, mas a relativização da
competência específica no coletivo(12,13) .
A necessidade do trabalho interdisciplinar decorre do fato de que o adoecer
psíquico não é fenômeno homogêneo, simples, mas complexo. Sendo assim, as
formas de acesso ao sofrimento-existência devem ser levadas a cabo por
diferentes profissionais e seus diferentes olhares.
É desta diversidade que poderemos constituir práticas que ousem
imaginar o ainda não imaginado e o ainda não experimentado. Enfim,
desenvolver formas de cuidados que atendam a globalidade da pessoa em
sofrimento psíquico(11:156).
Mesmo reconhecendo as competências disciplinares, é preciso assegurar o espaço
de interconexão entre saberes e práticas para dar conta, ao mesmo tempo da
singularidade e da complexidade do real.
5 Considerações finais
A enfermeira atual precisa navegar por um conhecimento aberto, complexo que
convide à busca, à reflexão, à intuição, à curiosidade; não à certeza, mas à
possibilidade de múltiplas narrativas competitivas, à polifonia, à
ambivalência. Nenhum instrumento é mais potente e efetivo em termos de mudança
do que o conhecimento. Um conhecimento que veja positividade na experiência da
loucura, que estimule não apenas a aprender, mas a reaprender a aprender.
Para tanto, é preciso ter um projeto definido e ao mesmo tempo se permitir à
experimentação, através do exercício cotidiano e permanente da reflexão crítica
e autocrítica. Também é necessário abrir as nossas mentes, desmontar a forma
hegemônica de racionalidade que ignora os seres, a subjetividade, a
afetividade, a criatividade, a vida, tornando-se uma racionalidade irracional.
Tornar-se consciente disso significa desconstruir o medo de se deparar com o
acaso, a desordem, o imprevisível que emerge na loucura, pois, só assim
poderemos construir práticas ancoradas num cuidar criativo e solidário.
Essa abertura exige de todos: criatividade, ousadia e paixão na construção de
espaços em que convivam iguais e diferentes, singulares e plurais. Devemos
doravante aprender a ser, partilhar, comunicar, a ver que o outro, o louco, é
outro de nós.