A utilização da técnica de videogravação em investigação de enfermagem em saúde
da criança
PESQUISA
A utilização da técnica de videogravação em investigação de enfermagem em saúde
da criança
The use of video recording technique in nursing research on children's health
Utilización de la técnica de videograbación en investigación de enfermería
sobre salud del niño
Débora Falleiros de MelloI; Glória Lúcia Alves FigueiredoII;Lucila Castanheira
NascimentoI
IProfessora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto ' USP
IIEnfermeira e Mestre em Enfermagem em Saúde Pública
1 Introdução
A observação sistemática é considerada um dos componentes centrais do processo
de produção do conhecimento científico e em algumas situações ela pode ser
obtida pela repetição do fenômeno focalizado(1).
As estratégias observacionais foram sendo desenvolvidas ao longo dos anos e os
trabalhos iniciais datam das duas primeiras décadas do século XX, em que se
destacam o registro cursivo e a amostragem de tempo, estudos esses mais
voltados para o comportamento da criança em idade escolar. No Brasil, o uso de
estratégias observacionais despontou na década de 70, com a implantação dos
primeiros cursos de pós-graduação em psicologia. A partir da década de 80,
houve aumento no uso das técnicas de observação no país, sobretudo nas
pesquisas relativas ao comportamento humano, sendo o registro contínuo a
estratégia mais empregada(2).
Os tipos de estratégias observacionais, de acordo com seus objetivos ou
funções, podem ser especificados em três métodos principais: narrativo,
amostragem e classificação. O método narrativo descreve os eventos
comportamentais tal como eles ocorrem, preservando suas seqüências temporais e
proporcionando informações numerosas e detalhadas, englobando as descrições
diárias (diários), os registros anedóticos e os registros cursivos. O de
amostragem visa obter uma amostra de aspectos selecionados e definidos dos
comportamentos do sujeito, incluindo amostragem de tempo, de evento e
checklists. O método de classificação quantifica os julgamentos do observador
em relação a dimensões específicas dos comportamentos em estudo(2).
Alguns estudos, na área de enfermagem em saúde da criança, têm utilizado a
observação para apreender o cuidado à criança, as relações que se estabelecem
entre as mães e os profissionais de saúde, como são as práticas cotidianas nos
serviços de saúde, entre outros aspectos(3-6). No presente estudo, o objetivo é
descrever o percurso realizado na construção de uma pesquisa sobre o
atendimento de enfermagem em unidade básica de saúde, discutindo aspectos
metodológicos referentes a utilização de videogravação.
2 Videogravação: a observação e o registro
O ato de observar é antigo e sempre que são colocadas algumas considerações
sobre o tema surgem reflexões sobre o uso de instrumentos auxiliares de
trabalho. Independente de sua natureza ou função, seja o telescópio,
microscópio, ultrassonografia, áudio ou videogravação, não substituem o
pesquisador, o que pode ocorrer é uma extensão ou ampliação. A videogravação
reduz a informação sensorial, ao transformar em imagens bidimensionais uma
realidade tridimensional, além de adiar o processamento de informação. Sua
contribuição para a observação sistematizada e a construção do conhecimento
está na repetição da observação(1).
A videogravação contribui para melhorar a precisão ou coerência com que o
observador apreende o fenômeno, uma vez que permite a exposição repetida do
observador à mesma ocorrência do observado, assim como amplia a possibilidade
de o observador repensar o observado, ou seja, amplifica sua capacidade de
análise. Ao preservar o fenômeno no tempo, mesmo com redução de informação
sensorial, a videogravação economiza tempo de coleta de dados e propicia mais
tempo de reflexão(1,2).
Na realização do registro videogravado, o observador já é guiado por seu
pensamento e pelos objetivos decorrentes dele. O registro envolve um
planejamento prévio, definindo se a câmera será fixa ou móvel, se o operador
ficará visível ou escondido, qual a freqüência e distribuição temporal das
amostras, o tipo de amostragem (focal, de varredura, de episódios, ou
situacional), todos esses aspectos devem ser resumidos em onde e quando focar a
câmera. Esses aspectos estão ligados ao recorte do fenômeno focalizado e à
pergunta colocada pelo pesquisador.
No tocante ao recorte do registro para a análise, o primeiro momento envolve
algum grau de rastreamento do registro para a tomada de decisões a respeito de
seu recorte em unidades significativas para o objeto de estudo. No fluxo dos
eventos registrados, para perceber os momentos que são informativos e que podem
ser categorizados, podem ser utilizados recursos de congelamento, reversão,
câmera lenta e rápida, contribuindo para garantir a identificação consistente
de ocorrências das categorias, permitindo, ainda, que o observador atribua
sentido às seqüências de ações(1).
O registro preservado pode, eventualmente, ser utilizado para a análise de
questões novas, não previstas no planejamento original. No entanto, essa
utilização torna-se limitada, pelo delineamento da observação, como pode também
acontecer em registros que não recorrem à gravação. Por outro lado, podem ser
apontadas algumas limitações decorrentes, principalmente, das características
dos equipamentos utilizados. Uma dessas refere-se ao fato da câmera ter foco
limitado, o que obriga o pesquisador a fazer opções de amostragem e de
amplitude do campo registrado. A utilização de equipamentos mais sofisticados,
com capacidade de permitir transcrições exatas de verbalizações e de integrar
registros simultâneos, traz ampliações para a análise.
Para identificar as seqüências de ações, a evolução de interações, focalizando
um número maior de indivíduos e uma situação menos estruturada, a primeira
pista para o recorte é a percepção, pelo observador, de configurações espaciais
criadas pela proximidade entre os indivíduos. Essas relações delimitam, no
fluxo de eventos, episódios, que são transcritos em detalhe e analisados em
termos da dinâmica das trocas sociais que os compõem(1,7).
3 O desenvolvimento do trabalho de campo
A partir da escolha da utilização de videogravação, iniciamos a exploração do
trabalho de campo, a fim de delimitar os locais de observação.
Nessa fase exploratória da pesquisa, primeiramente entramos em contato com a
Secretaria Municipal de Saúde de Franca ' SP, através das enfermeiras
responsáveis pelo Serviço de Enfermagem, fazendo a exposição dos objetivos da
pesquisa e solicitando autorização para iniciarmos visitas às Unidades Básicas
de Saúde (UBS) do município. Essas visitas foram realizadas com a finalidade de
conhecer aspectos gerais do atendimento à criança, averiguando quais práticas
de saúde estavam sendo realizadas. Ao mesmo tempo, encaminhamos o projeto de
pesquisa à Comissão de Normas Éticas em Pesquisa da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, obtendo parecer favorável. Assim
sendo, após esse primeiro contato, selecionamos duas UBS com base nos seguintes
critérios de inclusão: ter enfermeiro, auxiliar e técnico de enfermagem;
utilizar o sistema de agendamento; ter setor de vacinação; realizar coleta para
o teste do pezinho; ter grande demanda de clientes na área de pediatria e
possibilitar a utilização de equipamento de filmagem. Compreendemos que esses
aspectos conformam um conjunto de situações empíricas com amplas possibilidades
de observação referentes ao tema do atendimento de enfermagem no acompanhamento
do crescimento e desenvolvimento da criança em UBS.
A abordagem inicial com as mães foi realizada na área física destinada para
sala de espera na unidade de saúde, onde foram explicados, individualmente, os
objetivos da pesquisa, dando liberdade para participação e solicitando seu
consentimento através de autorização por escrito, tanto das mães como dos
membros da equipe de enfermagem.
A observação, através de videogravação, esteve centrada nas atividades de
enfermagem realizadas com as crianças agendadas, nas duas UBS escolhidas, e na
captação das falas entre os trabalhadores de saúde e as mães e familiares das
crianças atendidas. Os setores de observação foram: sala de vacinação, sala de
pré e pós-consulta e sala de realização da coleta do teste do pezinho. A
finalidade dessa observação foi caracterizar e procurar compreender em que se
constitui atualmente o atendimento de enfermagem na atenção básica à saúde da
criança, na tentativa de apreender as especificidades do cuidado de enfermagem
à criança para além de referências técnicas.
No papel de observador, a identidade do pesquisador e os objetivos do estudo
são relatados desde o início e, nessa posição, podemos ter acesso a uma
variedade de informações, contudo aceitamos o controle do grupo sobre o que
será ou não tornado público pela pesquisa(8). A observação, neste estudo, não
foi estruturada a priori, e sim consistiu em uma observação livre, com o
objetivo de captar a realidade empírica, através de filmagens em momentos
individuais e grupais sobre cenas de atendimentos no cotidiano das duas UBS.
Utilizamos uma câmera fixa sob um tripé, sem operador presente, na maioria dos
momentos, em sessões diárias, para registrar o atendimento às crianças menores
de 5 anos de idade. As características do ambiente, do momento do atendimento e
da demanda de crianças definiram os focos da câmera: a maca, a balança, o
armário de medicamentos, a escrivaninha e as cadeiras do trabalhador de saúde e
das mães. O número de dias, períodos, duração, horários e locais das filmagens
foram determinados pela rotina das UBS e pela observação do pesquisador,
assegurando a reincidência de informações e situações empíricas e contemplando
o objeto de estudo. A filmagem era interrompida quando não autorizada. A coleta
de dados empíricos se deu no mês de março de 2000 e teve a duração de dez dias,
subdivididos em dois para a sala de coleta do teste do pezinho, quatro para as
salas de pré e pós-consulta e quatro para a sala de vacinação. O total da
observação através das filmagens foi de quarenta horas.
Para a análise das atividades observadas, utilizamos a transcrição integral do
registro das falas, identificando gestos, comportamentos, habilidades para com
a criança e a mãe ou acompanhante. Também foi possível apreender as seqüências
das ações e a interação entre os trabalhadores de saúde e a clientela. Após o
registro minucioso do vídeo transcrito, foram selecionados, no fluxo de
eventos, os momentos mais significativos para a análise do atendimento de
enfermagem à criança. Nesta investigação, a transcrição detalhada e a inspeção
qualitativa repetida permitiram descrever o ambiente de atendimento, os
indivíduos que prestavam a assistência, os instrumentos de trabalho, a
utilização das salas e, principalmente, o enfoque da comunicação e das relações
estabelecidas, aspectos esses de extrema importância para o estudo e reflexão
da atenção à saúde da criança.
4 Considerações finais
Neste estudo, foi possível exemplificar vários aspectos sobre o registro em
vídeo, enfatizando a característica de preservação do registro no tempo, a
possibilidade de retornar ao material repensando, elaborando e reelaborando
temas que compõem e enriquecem a análise. Por outro lado, podem ser apontadas
algumas limitações, decorrentes, principalmente, das características do
equipamento utilizado, referindo-se ao fato da câmera ter foco limitado, tendo
o pesquisador que fazer opções de amostragem e de amplitude do campo
registrado, ou o equipamento ter reduzida qualidade de registro do som,
impedindo transcrições exatas de verbalizações. Conhecer as relações que se
estabelecem entre a clientela, no caso as mães e crianças, e os serviços de
saúde traz possibilidades para repensar e transformar as práticas de saúde na
perspectiva da atenção integral à criança. Nas diversas estratégias para
utilização de registros em vídeo é importante enfatizar a necessidade de
coerência entre objetivos específicos do estudo e a seleção de procedimentos
adequados de registro, transcrição e análise.
Particularmente, nesta tentativa de apreender as especificidades do atendimento
de enfermagem à criança em Unidade Básica de Saúde, o exame do conjunto das
filmagens permitiu captar o encadeamento das ações, comunicações e episódios de
trocas sociais que compunham a assistência.