A contribuição da saúde mental para o desenvolvimento do PSF
PESQUISA/RESEARCH/INVESTIGACIÓN
A contribuição da saúde mental para o desenvolvimento do PSF
The contribution of mental health for the development of the FHP
La contribución de la salud mental para el desarrollo del PSF
Walisete de Almeida Godinho RosaI; Renata Curi LabateII
IMestre em Enfermagem Psiquiátrica pelo Programa de Pós Graduação da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto/USP e Enfermeira do IPSEMG/Família de Passos/MG,
E-mail: walisete@terra.com.br_
IIOrientadora, Profa. Doutora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e
Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP
1 Introdução
A estratégia do Programa Saúde da Família (PSF) propõe uma nova dinâmica para a
estruturação dos serviços de saúde, bem como para a sua relação com a
comunidade e entre os diversos níveis de complexidade assistencial. Assume o
compromisso de prestar assistência universal, com justiça natural e
igualitária, contínua e, acima de tudo, resolutiva à população, na unidade de
saúde e no domicílio, sempre de acordo com as suas reais necessidades,
identificando os fatores de risco aos quais ela está exposta e neles intervindo
de forma apropriada(1).
Assim, a saúde da família e da coletividade poderá desenvolver-se de forma mais
plena caso seja compreendida não como um programa para a saúde restrito a
procedimentos organizacionais e financeiros, mas como projeto concreto, provido
de interesses, diversidade, desejos e intencionalidades, com o objetivo de
formular políticas que promovam os movimentos de rever-se e dispor-se a mudar
(2). Esse modelo de assistência domiciliar volta a inserir o doente e a doença
num contexto mais abrangente, priorizando o ser humano enquanto cidadão,
através da universalidade da atenção, descentralização de decisões e definição
de bases territoriais para atuação.
O PSF tem como uma de suas propostas humanizar as práticas de saúde, buscando a
satisfação do usuário através do estreito relacionamento dos profissionais com
a comunidade e estimulando-a ao reconhecimento da saúde como um direito de
cidadania e, portanto, expressão de qualidade de vida (1) . O PSF parece
possuir, ainda, a característica propícia para o atendimento às famílias por
oferecer um espaço muito favorável para promover saúde mental(3). A doença
mental, é reconhecida pelo movimento da Reforma Psiquiátrica, como fruto do
processo de marginalização e exclusão social, e sua luta é fundamentada na
construção da cidadania dos indivíduos em sofrimento psíquico e na promoção da
saúde mental. Vislumbra transformar as práticas, a respeito da psiquiatria e da
loucura, através de novos conceitos, numa perspectiva que vai além da noção de
doença, sintomas e assistência, tentando alcançar não só usuários e
profissionais, mas a sociedade em geral(4) .
Por atuar com a lógica da desinstitucionalização com maior ênfase no vínculo, o
PSF se constitui numa estratégia adequada para trabalhar a saúde mental na
atenção básica, estando suas equipes engajadas no dia-a-dia da comunidade,
incorporando ações de promoção e educação para a saúde na perspectiva da
melhoria das condições de vida da população. Assim, é dada ao PSF, a missão de
mudar o modelo assistencial para a saúde, mudança que deve se caracterizar
quando tiver um modelo que seja usuário/centrado (5). Portanto, faz-se
necessário que todos os profissionais de saúde, não apenas os médicos , nem
apenas os que trabalham diretamente na assistência, mas todos os que lidam na
produção de serviços de saúde, reaprendam o trabalho a partir de dinâmicas
relacionais, somando entre si os diversos conhecimentos e reciclando a forma de
produzir o cuidado em saúde(6). Deste modo, faz-se necessário, também, que o
profissional enfermeiro disponha de conhecimentos e informações que lhe
permitam assumir múltiplos papéis: de educador, prestador de cuidados,
consultor, para atender às constantes mudanças no seu espaço de trabalho junto
ao PSF.
2 Objetivos
O objetivo da presente pesquisa foi conhecer a percepção dos enfermeiros sobre
PSF; Identificar as dificuldades encontradas por eles no desempenho de suas
funções, pertinentes a promoção da Saúde Mental em sua prática assistencial e
identificar ainda suas opiniões sobre a contribuição que a enfermagem
psiquiátrica pode oferecer à sua prática assistencial dentro do PSF.
3 Metodologia
3.1 Sujeitos
Foram sujeitos da presente pesquisa as enfermeiras que atuam nas cinco equipes
em funcionamento do Programa de Saúde da Família (PSF) da Prefeitura da cidade
de Passos - MG.
3.2 Instrumentos e Procedimentos
Após consentimento formal do Comitê de Ética em Pesquisa da EERP/USP convidamos
as enfermeiras atuantes nas 05 equipes do PSF para participarem desta pesquisa
onde foram explicados os objetivos da pesquisa e, posteriormente, assinados os
termos de consentimento. Foram utilizados pseudônimos para as entrevistadas,
com a intenção de lhes assegurar privacidade e sigilo quanto à sua identidade.
Foram realizadas cinco (05) entrevistas semi-estruturadas, com um roteiro
composto de oito (08) questões norteadoras, abordando como o enfermeiro percebe
o PSF, suas atividades e dificuldades, bem como sua participação na equipe,
além de investigar como compreende a humanização da assistência no PSF e a
inclusão da saúde mental neste contexto. As entrevistas foram realizadas no
período de maio a junho de 2001, no local de referência de cada equipe. Todas
as entrevistas foram gravadas, após o consentimento prévio das enfermeiras e
transcritas na íntegra, posteriormente, pela pesquisadora. Para a análise dos
dados utilizamos a análise de conteúdo (7).
4 Resultados e discussão
Após a realização da análise de conteúdo, os temas emergentes foram agrupados
em três categorias: I- Percepções sobre o PSF; II- Dificuldades Sentidas e III-
Saúde Mental no PSF.
4.1 Percepções sobre PSF
Na percepção das enfermeiras, o Programa Saúde da Família favorece o
atendimento domiciliar, propiciando uma assistência mais humanizada. De acordo
com as entrevistadas, a pessoa é vista pelos profissionais do PSF como um todo,
no contexto familiar. Isso possibilita a promoção da saúde e redução das
internações, contrapondo-se ao trabalho desenvolvido em hospitais e em outras
instituições de saúde voltadas para atividades técnicas. Percebem também que o
trabalho do enfermeiro no PSF é fundamental na equipe. A análise dessa
categoria permitiu-nos dividi-la em duas subcategorias:
4.1.1 Humanização/Atendimento Domiciliar no PSF
Todas as enfermeiras entrevistadas consideram o PSF muito importante no
atendimento às famílias. O trabalho é realizado principalmente no domicílio,
onde é feito o acompanhamento das famílias, visando não apenas à doença, mas ao
indivíduo em contato com seu ambiente e familiares. Acreditam que através do
atendimento oferecido pelo PSF é possível diminuir até mesmo a internação. As
entrevistadas percebem, ainda, que existe além do atendimento domiciliar, uma
assistência humanizada, contudo essa humanização parece estar relacionada com a
visita ao domicílio. Relatam também o estabelecimento de vínculos entre os
profissionais do PSF e o paciente. Acreditam que a humanização da assistência
pode contribuir para a formação de laços de confiança e promoção à saúde, uma
vez que é sempre a mesma equipe que atende, acolhe e escuta o paciente e seus
familiares, facilitando o conhecimento dos problemas enfrentados pelas
famílias, além de quebrar estigmas relacionados ao conceito de saúde/doença.
Assim, as entrevistadas percebem o paciente como um todo, inserido no grupo
familiar, mas não fazem referência ao todo mente/corpo quando se referem à
humanização. Exemplos:
[...]. Eu acho que o PSF é muito importante [...] O fato de você
poder prestar assistência ao paciente na sua casa, com seus
familiares [...] já é uma maneira de estar humanizando o serviço
[...] até um vínculo de amizade mesmo com esse paciente [...] (S3).
[...] é um programa muito bom [...] porque a gente procura também
[...] o que o paciente está precisando [...] indo na casa dele [...]
ajuda esse paciente caminhar. Então... eu acho que o Programa
humaniza muito a assistência. O paciente sente essa confiança [...]
(S4).
De acordo com as falas das entrevistadas parece que o PSF é visto como um
Programa de atendimento domiciliar que por oferecer uma assistência em casa é
considerado humanizado, embora as entrevistadas não definam com clareza o que é
humanização. Percebemos assim, que as enfermeiras em suas narrativas, parecem
estar de acordo com as propostas do Ministério da Saúde (8) de que o PSF é uma
estratégia que visa atender ao indivíduo e à família que é eleita juntamente
com seu espaço social, como núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde.
Deste modo, os profissionais devem humanizar as práticas de saúde através do
estabelecimento de vínculos com a população, reorganizando a prática
assistencial, centrada no hospital, passando a enfocar a família em seu
ambiente físico e social. Contudo, o que seria humanizar? Será que só o fato de
atender uma família em casa pode ser considerado humanização? Será que apenas a
criação de vínculos, como elas mencionam, é suficiente para dizer que há
humanização?
Assim, ter atitudes compreensivas não é o bastante para definir um modelo de
assistência de enfermagem, nem tão pouco de humanização, pois, o modelo
humanista promove transformações profundas na organização e administração da
assistência, exigindo do enfermeiro uma nova postura. No caso do PSF em
questão, as falas das entrevistadas indicam que a formação de vínculos de
amizade, pode ser considerada como uma humanização. No entanto, o fato de se
referirem às visitas domiciliares com o intuito de conhecer a família, sua
moradia, seus problemas recaem, ao nosso ver, sob um olhar técnico, uma vez que
não têm nenhum critério pré-estabelecido para as visitas.
As visitas domiciliares não devem ser vistas como exclusivas do PSF, porque é
um recurso que quando necessário, deve ser usado por qualquer estabelecimento
de saúde. Sendo assim, parece que as visitas domiciliares do PSF em questão,
funcionam como uma visita compulsória, ou seja, aquela em que os profissionais
vão ao domicílio, sem que haja uma indicação explícita e pode ser pouco
eficiente e até causar um distanciamento entre o profissional e as famílias
atendidas, a partir do momento em que se sintam invadidas na sua privacidade e
liberdade (6). Assim, verificamos que a assistência humanizada e o atendimento
domiciliar, enfatizado pelas enfermeiras, podem ser entendidos apenas como ir à
casa de, num sentido recreativo, executar atividades pré-estabelecidas, sem
relações vinculares mais amplas, como por exemplo, uma interação maior com a
família e comunidade, verificando o que é importante para a família através de
uma maior aproximação com seu cotidiano e não apenas verificar necessidades
emergenciais.
Nesse caso, verificamos que ainda não há uma discussão aprofundada entre os
profissionais e a população local, pois, o PSF "ao não ter clara a distinção
entre o que deve ser abordado no nível do indivíduo, da família ou dos
diferentes grupos comunitários, o termo família perde a especificidade"(9:174).
Assim, executar tarefas pré-estabelecidas, parece não garantir uma assistência
humanizada, porque o enfermeiro centraliza suas ações e atenções exclusivamente
na doença e não no processo de adoecer e de viver.
Portanto, a partir do momento em que os profissionais estiverem trabalhando num
processo interativo equipe/comunidade/família, poderemos conseguir uma
assistência humanizada, caso haja um comprometimento real por parte dos
envolvidos (10), pois, a humanização da assistência ocorre quando a atenção é
centrada nas reais necessidades do paciente (11).
4.1.2 O Papel do Enfermeiro no PSF
A utilização de práticas curativas, preventivas e administrativas que ainda
norteiam a profissão de enfermagem parecem estar relacionadas, também, com as
atividades desenvolvidas pelas enfermeiras no Programa Saúde da Família (PSF).
Entretanto, verificamos nos relatos das enfermeiras que o desenvolvimento de
práticas preventivas se sobressai como atividade básica, junto ao PSF, onde
todas consideram a participação do enfermeiro valorizada e essencial. Essas
atividades são planejadas de acordo com o diagnóstico de saúde da área a ser
atendida, embora exista uma preocupação em desenvolver Programas pré-
estabelecidos, como o do hipertenso, diabético, gestante, vacinação,
utilizando, inclusive palestras como estratégia de prevenção. Exemplos:
[...] fazer um levantamento dos dados, um diagnóstico da situação de
saúde, bem como propor as ações e implementá-las [...] Eu acho que o
enfermeiro é a mola mestra do PSF. [...] o papel do enfermeiro é
fundamental [...] é o de maior importância [...] (S1).
[...] reuniões educativas [...] reuniões com hipertenso [...] com
diabético [...] a questão de vacinação [...] a participação da
enfermeira é importantíssima [...] não dá para ter um programa desses
sem você ter o enfermeiro(S3).
Conforme podemos verificar nas falas, as enfermeiras sentem seu trabalho
valorizado através do desenvolvimento de práticas preventivas. Verificamos
também, uma certa preocupação de traçar estratégias com base na visão de saúde
do profissional, pois, conforme os relatos, a enfermeira é quem determina todas
asatividades, faz toda a programação, sugerindo, assim, um trabalho
individualizado, sem um comprometimento com a comunidade e com os demais
profissionais. Dessa forma, parece que elas desempenham tarefas pré-
estabelecidas sentindo-se extremamente importante para o Programa. Essa
prepotência pode ser verificada quando todas dizem que é um Programa que não
pode ser desenvolvido sem a enfermeira, o que pode levar a um descrédito dos
demais profissionais envolvidos, não caracterizando um trabalho em equipe.
Os relatos ainda sugerem que o desempenho de tarefas pré- estabelecidas
descaracterizam o que pode ser considerado por humanização, pois, se por um
lado os procedimentos facilitam a expansão do Programa, por outro simplificam e
empobrecem o seu alcance por não considerar as manifestações locais dos
problemas de saúde e não trabalhar com ela (9). Portanto, podemos verificar que
parece haver uma contradição entre o que os enfermeiros consideram humanização
nas atividades desenvolvidas no PSF. Que humanização é essa que não leva em
consideração a participação da população? Será que o fato de desenvolver
atividades pré-estabelecidas quer dizer que há humanização? Será que realmente
esta deve ser a direção de um trabalho humanizado? E como fica a participação
da comunidade nesse contexto?
Assim, parece que essa humanização da assistência está relacionada com
atividades técnicas, sem um comprometimento sócio-afetivo e de ações que
interferem na promoção à saúde. Se o PSF é importante para a família/
comunidade, por que o atendimento domiciliar, humanizado que as enfermeiras
relatam que há, não cria um espaço para as relações de vínculo entre o
profissional e comunidade/família?
A análise dos relatos das enfermeiras indica que o foco central de atuação
continua sendo o paciente, indivíduo sem levar em consideração a família como
um todo, ou seja, é como se o PSF estivesse tratando o sujeito como ele só, não
como parte do contexto, não contemplando, também, características específicas
da família/comunidade (12). Percebemos, assim, que parece ocorrer uma
aproximação individualizada da família, já que as pessoas da família ou
comunidade são vistas como sujeitos isolados do contexto em que estão
inseridos.
Cumpre destacar, também, que a participação popular e dos profissionais de
saúde é imprescindível para impulsionar as mudanças necessárias e solucionar os
problemas de saúde. Segue-se, assim em direção à eqüidade e integrados por
intermédio do diálogo, uma vez que a população tem conhecimentos e maneiras de
resolver seus próprios problemas (9). Essa maneira interativa entre
profissional e família para enfrentar os problemas da saúde na comunidade
parece não ocorrer com o PSF aqui analisado, o que pode sugerir a reprodução do
modelo biomédico.
Os relatos parecem indicar, ainda, que a humanização está associada com o fato
dos pacientes e familiares serem atendidos em casa. Nesse caso, será que o
atendimento domiciliar propicia essa humanização? Que diferenças há entre
hospital, Unidade Básica de Saúde e PSF nessas circunstâncias? Se as práticas
desenvolvidas entre essas instituições são as mesmas, ou sejam, aquelas
direcionadas ao modelo biomédico tradicional, centrado na atenção à doença,
muda-se apenas o local de atuação e não se instrumentalizam dispositivos para
otimização da capacidade de resolver os problemas de saúde. Da forma como é
colocada a questão do diagnóstico de saúde e o planejamento das ações a serem
desenvolvidas pelas enfermeiras no PSF, parece que estamos mudando o discurso,
mas na prática, estamos repetindo os mesmos "erros".
Pelo exposto, o PSF parece não diferenciar do modelo higienista (13), pois,
conforme os relatos analisados, podemos verificar que o trabalho desenvolvido
pelas enfermeiras visa ao controle sobre as famílias, através de campanhas de
moralização e higiene da coletividade ao declararem, assertivamente, que em sua
atuação incluem palestras, orientação quanto à medicação, alimentação, reuniões
educativas etc. Os relatos dessa subcategoria em questão, corroboram a idéia de
que o PSF, enquanto estratégia de mudança do modelo assistencial, esteja mais
voltado para ações de natureza higienistas do que as de cunho sanitaristas(6),
pois no modelo higienista as ações se concentram na moralização da família, nos
cuidados higiênicos e no controle do processo saúde/doença dentro dos preceitos
biomédicos(13).
Portanto, acreditamos que para ocorrer uma mudança no modelo vigente e
ultrapassar o tecnicismo do enfermeiro, o caminho ideal e necessário é a
assistência mais humanizada, que leve em consideração as reais necessidades da
população num processo interativo indivíduo/família/sociedade, pois, o homem,
essencialmente manifesta sua original grandeza através de sua participação em
tudo que pode enriquecê-lo na natureza e na história (14).
4.2 Dificuldades encontradas pelo enfermeiro
A falta de qualificação e treinamento para trabalhar especificamente com
famílias, além da escassez de infra-estrutura para o adequado desempenho
profissional nessas comunidades, aparecem nos relatos das enfermeiras como as
principais dificuldades no início do trabalho no PSF. As entrevistadas revelam,
também, a falta de qualificação para trabalhar com pacientes psiquiátricos e na
promoção da saúde mental. Relatam a necessidade de incluir na equipe outros
profissionais para cuidarem destas questões. A análise dessa categoria
permitiu-nos subdividi-la em três (03) subcategorias:
4.2.1 Qualificação Profissional
Observamos que a falta de qualificação, relacionada a uma formação insuficiente
e, eventualmente, à falta de treinamento específico, foi um assunto bastante
mencionado pelas entrevistadas. Pelo fato de o PSF ser um programa novo e ainda
em expansão, algumas enfermeiras relatam que se sentiram perdidas, sem saber
como seria o seu trabalho. Para algumas entrevistadas a formação profissional
não proporcionou conhecimento suficiente e o trabalho se desenvolveu a partir
do momento em que se aproximaram de outros profissionais e fizeram a
capacitação em PSF, ou ainda através da leitura de apostilas. Somente após a
capacitação, puderam entender melhor sua função na equipe e desenvolver seu
trabalho, conforme as seguintes falas:
[...] eu não passei por nenhum treinamento [...] porque quando eu
entrei [...] não tivemos treinamento [...](S2).
[...] porque eu não fiz capacitação [...] então no começo eu fiquei
meio perdida assim [...] qual seria a minha função ali dentro [...]
(S3).
De acordo com as falas das entrevistadas, podemos perceber que as enfermeiras,
quando iniciaram o trabalho no PSF, não foram capacitadas previamente,
caracterizando um "descaso" na implantação das equipes do PSF em questão, tendo
como possível conseqüência um tratamento inadequado da população e dos próprios
profissionais, uma vez que a equipe destinada a cuidar dessa população, nem
sabia como fazê-lo adequadamente. Assim, perguntamos: há humanização nessas
circunstâncias? Será que o curso de graduação em enfermagem qualifica esses
profissionais para trabalhar nesse novo modelo de assistência?
As dificuldades enfrentadas pelas enfermeiras, sem uma qualificação prévia, são
compreensíveis a partir do momento em que sabemos que sua formação não foi
adequada ao novo modelo assistencial. Deste modo, os conhecimentos precisam ser
ampliados para se ter a família como cliente, pois, há famílias dos mais
variados tipos e trabalhar com elas significa mergulhar no seu mundo e conhecer
suas interações intra e extra-familiares contextualizando-as(15).
Entendemos que, para as enfermeiras que tiveram uma formação hospitalocêntrica,
tecnicista e individualista, essa nova forma de atuar na saúde, necessita de
qualificação para adequar ao modelo assistencialista, social e humanista, que
visa não somente à doença, mas, acima de tudo à pessoa que precisa de ajuda. A
falta de qualificação dos profissionais pode ser compreendida,ainda, a partir
do momento em que o enfermeiro sofreu influências do grande crescimento
tecnológico, aumento das subespecialidades e do crescimento da medicina
biológica(11), tornando a enfermagem bastante eficiente, porém, menos humana
atendendo a uma ideologia de cura(16). Portanto, o enfermeiro além de sua
formação técnica e profissional, necessita de formação humanista(17), ficando
assim, mais próximo das propostas do PSF que visa não somente ao indivíduo, mas
ao seu contexto sócio-familiar e psicológico.
4.2.2 Infraestrutura
Para algumas enfermeiras entrevistadas, além da falta de qualificação
específica para atuar no PSF, a falta de infra-estrutura e locais adequados
para se fazer reuniões com a comunidade, bem como meios de transporte para
locomoção emergencial de pacientes são, também, dificuldades para o
desenvolvimento do trabalho. Exemplos:
[...] a primeira dificuldade que a gente enfrentou foi na questão do
espaço físico. Faltava espaço físico definido para fixar o núcleo
[...](S1).
[... a falta de estrutura que a gente tinha, por exemplo, no caso de
um carro para locomover pacientes no caso de uma emergência [...]
material [...](S5).
A questão da infra-estrutura do PSF nas equipes analisadas, aponta para um
descaso em relação às famílias, alvo da atenção do PSF, pois, se não há
equipamentos suficientes para realizar atividades educativas, bem como meios de
locomoção de pacientes em caso de urgência, como esse Programa pode realmente
ser construído e atender às propostas do Ministério da Saúde? A identificação
do PSF como um sistema de saúde pobre para pobres com utilização de baixa
tecnologia, é um equívoco, pois o programa deve ser entendido como modelo
substitutivo da rede básica tradicional(18).
As equipes de PSF sob a qual nos reportamos para a realização desse trabalho,
estão instaladas em casas alocadas pela Prefeitura Municipal e situam-se
próximas aos ambulatórios de saúde. Essa atitude da Prefeitura Municipal
proporciona, ao nosso ver, gastos desnecessários, pois a verba "investida" nas
locações poderia ser melhor utilizada com a aquisição de materiais necessários
para a implementação do Programa diminuiria dessa forma, o constrangimento
apresentado pelas entrevistadas no que se refere à infra-estrutura. Deste modo,
a política adotada pela Prefeitura Municipal não leva em consideração a ampla
rede ambulatorial presente na cidade e desconsidera as propostas do Ministério
da Saúde, para a instalação das Unidades de Saúde da Família no município.
As unidades de Saúde da Família deverão ser instaladas nos postos de saúde,
centros de saúde ou unidades básicas de saúde já existentes no município ou
naquelas a serem reformadas ou construídas de acordo com a programação
municipal em áreas que não possuem nenhum equipamento de saúde (18:12).
Portanto, acreditamos que, se as equipes de PSF estivessem instaladas em cada
ambulatório de saúde da cidade, como preconiza o Ministério da Saúde, a verba
destinada à alocação de casas poderia ser melhor remanejada e possibilitaria
melhor atendimento junto às famílias e comunidade, além de atenuar o duplo
atendimento PSF/Ambulatório de Saúde.
4.2.3 Equipe Multiprofissional
Outra dificuldade encontrada pelas enfermeiras refere-se à falta de
participação de profissionais de outras áreas como, por exemplo, psicólogos,
assistentes sociais, e terapeutas ocupacionais. Eles poderiam contribuir no
trabalho com o doente mental e favorecer o processo de reintegração desse
paciente na sociedade. Mencionam, também, a necessidade de treinamento da
própria equipe para poder atuar nessa área:
[...] envolve um conhecimento neuropsiquiátrico [...] acompanhamento
psicológico... vai determinar a cura do paciente, inclusive vai ser
responsável pela sua reintegração na sociedade... e esse conhecimento
é necessário [...](S1).
[...] A atuação do enfermeiro acaba ficando limitada [... porque o
paciente psiquiátrico precisa de um suporte psicológico [...] Então
[...] teria que ser uma equipe treinada [...] e [...] com mais
profissionais [...]Porque é muito difícil para o PSF atuar nessa área
[...](S3).
De acordo com as falas das enfermeiras percebemos que existem dificuldades para
trabalhar com pacientes que necessitam de alguma atenção especial. Observa-se
falta de conhecimentos, treinamento e, também, da inclusão de outros
profissionais no PSF, como por exemplo psicólogos, terapeutas ocupacionais,
etc. Os relatos indicam que apenas o médico, o enfermeiro, o auxiliar de
enfermagem e os agentes comunitários de saúde, não suprem a demanda daqueles
pacientes que apresentam possíveis distúrbios psicológicos. A impressão que se
tem, através dos relatos, é que apenas o uso de medicamentos parece não
solucionar problemas de ordem emocional do indivíduo.
Nesse sentido, a equipe deve estar apta para atender às necessidades da
população e promover ação intersetorial que, neste caso, caberia uma parceria
PSF/Ambulatório de Saúde Mental, num trabalho entre equipes. A necessidade de
trabalhar em equipe é apontada por alguns autores como uma necessidade
emergente, pois a compreensão do ser humano, passa a adquirir uma abrangência
que ultrapassa o conhecimento individual e especializado de cada profissional,
já que a compreensão do indivíduo e família não se expressam no mundo numa
única dimensão(15-19).
Portanto acreditamos que para ocorrer o atendimento e a promoção em saúde
mental no PSF, tanto o enfermeiro quanto os demais profissionais envolvidos,
necessitam "aprender" a trabalhar em equipe num processo interativo entre
indivíduo/família/sociedade e "quebrar a costumeira divisão do processo de
trabalho em saúde, segundo recorte verticais" (19:153).
4.3 Saúde mental no PSF
A Saúde Mental no PSF é uma temática bastante complexa e pouco desenvolvida
pelas enfermeiras junto às famílias, devido à falta de treinamento e/ou
conhecimento específico sobre o assunto. Os relatos das entrevistadas apontam,
também, para a necessidade de inclusão de uma equipe composta por diferentes
profissionais no sentido de melhorar o atendimento ao doente mental,
contribuindo, dessa forma, para a (re)inserção desse paciente no âmbito
familiar. Os temas agrupados nessa categoria permitiram apresentar as seguintes
subcategorias:
4.3.1 Enfermagem Psiquiátrica
A importância de um conhecimento aprofundado na área de Enfermagem Psiquiátrica
é apontada nos relatos das enfermeiras como imprescindível para atuar no PSF,
uma vez que nas comunidades encontram-se muitos casos de pacientes que
necessitam de uma atenção especial. Quando indagadas sobre a contribuição da
enfermagem psiquiátrica para o desenvolvimento do trabalho no PSF, todas
responderam afirmativamente. Exemplos:
Eu acho extremamente importante. [...] eu acho que os membros da
equipe de PSF, deveriam ser mais treinados para isso [...] para lidar
com esses pacientes [...](S1).
Contribui porque [...] esse conhecimento nessa área é importante
[...] a enfermagem psiquiátrica precisa de uma certa técnica para
estar mexendo com esse paciente psiquiátrico [...] Então [...] teria
que ser uma equipe treinada [...](S3).
Verificamos através dessas falas que as enfermeiras não se sentem capacitadas
para trabalhar a saúde mental no PSF ao se expressarem como se "esses
pacientes" (sic) não fizessem parte da sua clientela. A maneira como é descrito
o atendimento à pessoa em sofrimento psíquico no PSF parece repercutir um certo
distanciamento no envolvimento entre o profissional enfermeiro e o paciente,
num momento em que a humanização da assistência vem sendo a "peça" fundamental
para a mudança do paradigma. A impressão que nos transparece nesses relatos é
que além de não perceberem esses pacientes como parte do cuidado a ser prestado
pela enfermagem, não percebem a importância desse cuidado na promoção da saúde
mental. Isso reflete a falta de qualificação para lidar tanto com as famílias
de um modo geral, como a própria questão da saúde mental na comunidade. Nesse
contexto fica clara a importância da mudança de conceito e atitude quanto à
doença mental. Para que isso ocorra é necessário que os profissionais se
adaptem às novas concepções e assim possam efetivar a assistência pautada em
uma ideologia de cidadania, ética, humanização e uma assistência integral.
Partindo do pressuposto de que "esses pacientes" necessitam de cuidados de
enfermagem e que o PSF preconiza a desinstitucionalização e a assistência
humanizada, através da criação de vínculos, fica evidente, que o PSF se
constitui numa estratégia adequada para trabalhar a saúde mental (5), apesar de
estar vinculado, até o momento, ao modelo médico-centrado de intervenção. Isto
não quer dizer que este modelo não possa ser superado, através da mudança da
formação e da conduta dos profissionais, que necessitam reconhecer a existência
de casos psiquiátricos na comunidade e trabalhar, também, na prevenção.
4.3.2 (Re)inserção Familiar
Algumas enfermeiras entrevistadas relatam que a atuação em saúde mental, dentro
do PSF, é muito limitada, existindo, ainda, uma visão esteriotipada do "doente"
mental por parte dos familiares. Acreditam que o "doente" mental tem condição
de ser (re)inserido no grupo familiar desde que a família esteja preparada para
aceitar esse paciente, que pode receber atendimento domiciliar:
[...] eu acho a atuação muito pequena, é um caso ou outro [...] o
próprio pessoal ainda não tem essa visão de que esse paciente tem que
sair do hospital [...] tem que ser inserido na família [...](S3).
A saúde mental não é bem trabalhada. [...]Então eu acho que deveria
[...] trabalhar principalmente a família, para a estar aceitando e
podendo receber esse paciente de novo, que o principal que a gente
esbarra é a família [...] tem jeito dele estar ali fazendo tratamento
em casa [...] mas a família impõe [...] mil dificuldades [...](S4).
De acordo com as falas das enfermeiras entrevistadas, podemos verificar que
elas percebem a importância da família para (re)inserção do paciente e para o
sucesso de seu tratamento. Reconhecem que atuam pouco nessa área, deixando
transparecer mais uma vez, uma falta de conhecimentos específicos para lidar
tanto com os pacientes quanto com seus familiares. O PSF sendo uma estratégia
que visa promover a saúde da família, através da assistência humanizada e da
criação de vínculos com os profissionais, objetivando a melhoria da qualidade
de vida, tem implícita a promoção da saúde mental e acompanhamento de pacientes
e de sua família nas suas ações, pois, não é possível passar os casos, mesmo
quando se indica uma internação, uma cirurgia ou tratamento de maior
complexidade, o paciente continua a ser da equipe, enquanto morar no mesmo
bairro (3).
Assim, a família é muito importante para a (re)inserção do doente mental, pois,
sua principal tarefa que é de apoiar seus membros, torna-se aqui mais
importante do que nunca, pois, não é possível haver (re)inserção social com uma
família desassistida, sendo muito importante ajudá-la para poder contar com sua
colaboração no processo terapêutico (20-21). O PSF torna-se assim, uma
importante estratégia para a (re)inserção do doente mental, a partir do momento
em que os profissionais percebam as famílias como responsáveis pela saúde de
seus membros e não como uma simples cumpridora das determinações dos
profissionais de saúde. Sendo assim, ela precisa ser ouvida em suas dúvidas,
sua opinião deve ser levada em consideração e é fundamental que participe e
seja incentivada em todo o processo de cuidar/curar (15).
5 Considerações finais
O PSF tem uma característica muito propícia para o atendimento às famílias, por
ter o domicílio como espaço terapêutico e a assistência humanizada como
"ferramenta" facilitadora para criação de vínculos e aproximação dos
profissionais com o cotidiano das famílias. Através da assistência humanizada,
a enfermagem poderá enxergar o que está por trás das doenças e dos sintomas
apresentados pelas pessoas, tornando-se assim, um instrumento para a promoção
da saúde mental e acompanhamento dos pacientes com distúrbios mentais no PSF.
Acreditamos no PSF como uma estratégia para a mudança do modelo assistencial,
mas verificamos que se faz necessário conscientizar não somente os
profissionais de saúde e universidades, mas também a população, já que é um
trabalho de "parceria" PSF/Família/Comunidade.
Os profissionais necessitam aprender a trabalhar em equipe e com a família,
levando em consideração as reais necessidades da comunidade através da sua
participação no planejamento das ações e o enfermeiro precisa aprender a fazer
atendimento à família e não vigilância à família o que ocorrerá somente com a
mudança da prática e do ensino. Conscientizar os profissionais de saúde que
atuam no PSF de que todas as pessoas que moram em seu território de atuação,
fazem parte da sua clientela e, neste contexto, estão incluídos os doentes
mentais e os de risco para adoecer. A equipe deve estar atenta, acompanhando
esses pacientes e viabilizando parcerias entre o PSF/Ambulatório de Saúde
Mental/Hospital Psiquiátrico para melhor atender às famílias.
Portanto, podemos concluir que se torna necessário oferecer uma atenção
especial para a implantação das equipes do PSF nos municípios, qualificando os
profissionais para atuarem com base na humanização da assistência, admitindo os
profissionais pelo seu perfil, visando ao atendimento integral das famílias,
mudando não apenas o local de atuação, mas principalmente a conduta dos
profissionais, se é que de fato queremos mudar o modelo de assistência.
Agradecimento: As autoras agradecem a Eurípedes Costa do Nascimento pelas
primeiras leituras críticas deste manuscrito e pelas sugestões apresentadas.