Conversa: um cuidado fundamental de enfermagem na perspectiva do cliente
hospitalizado
PESQUISA/RESEARCH/INVESTIGACIÓN
Conversa: um cuidado fundamental de enfermagem na perspectiva do cliente
hospitalizado
Conversation: a fundamental nursing care from the hospitalized patient's
perspective
Conversación: un cuidado fundamental de enfermería en la perspectiva del
cliente hospitalizado
Luisa Maria da Silva de BarcelosI; Neide Aparecida Titonelli AlvimII
IEnfermeira aposentada do Ministério da Saúde, Mestranda da Escola de
Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro/Núcleo de Pesquisa
de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem (EEAN/UFRJ/NUCLEARTE), Professora da
Universidade Estácio de Sá, E-mail: luisabarcelos@uol.com.br_
IIEnfermeira, Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem Fundamental da
EEAN/UFRJ, membro da diretoria colegiada do NUCLEARTE, coordenadora de pesquisa
da EEAN
1 Introdução
Este estudo integra a linha de pesquisa "Prática dialógica no cuidado de
enfermagem", que vem sendo desenvolvida pelo Núcleo de Pesquisa de Fundamentos
do Cuidado de Enfermagem (NUCLEARTE), cujo enfoque é o diálogo como fundamental
na relação do cuidado.
O objeto desta pesquisa foi a conversa como cuidado integrador da enfermagem
hospitalar. Teve como objetivo analisar a conversa como etapa essencial do
diálogo entre o cliente e a equipe de enfermagem, no espaço do cuidado. Foi
discutida com base nos conceitos extraídos de Jean Watson(1), segundo os quais
a enfermagem é caracterizada como uma ciência do cuidado que orienta sua
prática na abordagem humanista, tomando o cuidado como objeto desta prática.
Isso sugere que o mesmo se estabelece na relação interpessoal cliente - sujeito
do cuidado, e o profissional - agente da ação, ambos dotados de emoções e
sentimentos inerentes à condição de seres humanos que se expressam
intersubjetivamente em todo o processo de cuidar; logo, o cuidado é relacional
e recíproco. Nesta direção, Watson(1) classifica as atividades de enfermagem em
instrumental e expressiva. A primeira refere-se ao atendimento das necessidades
mais voltadas ao aspecto físico, biológico, do cliente, como a higiene
corporal, a medicação e alguns procedimentos técnicos. Já nas atividades
expressivas, se considera em primeiro plano os aspectos psico-sociais. Vale
ressaltar que entendemos a conversa como um cuidado expressivo da enfermagem.
Em Freire(2,3), buscamos respaldo para sustentar que a relação de cuidado deve
se estabelecer horizontalmente, ou seja, recusamos o princípio da relação
vertical cuja ação é carregada de uma prática e de um diálogo autoritário,
"conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos"(2:27). E é somente como sujeito
que o cliente pode realmente conhecer, questionar, criticar e transformar a
realidade que se lhe apresenta. Nesse sentido, entendemos diálogo como palavra
circunscrita em duas dimensões: ação e reflexão. Assim, "não há palavra
verdadeira que não seja na práxis"(2:77). Logo, se e na práxis que a palavra se
impõe, ela não é dita para os outros, mas com a palavra dos outros.
Vindo ao encontro das concepções deste autor, o cuidado humanizado, preconiza
atitudes como habilidade e a sensibilidade na comunicação verbal e não verbal.
Saber ouvir, o que e quando falar, compartilhar idéias e decisões, são
ingredientes fundamentais para o estabelecimento horizontal de cuidado. Assim,
o cuidado não pressupõe a individualidade, mas uma transação pessoa a pessoa,
onde o enfermeiro não atua no cliente, mas com o cliente(1).
2 Dados Metodológicos da Pesquisa
Optamos pela pesquisa qualitativa por entendê-la adequada às questões que
envolvem o relacionamento interpessoal, na medida em que conta com uma
variedade de métodos e técnicas que possibilitam o desvendar dos problemas
emergentes do cotidiano dessas relações.
Os sujeitos foram cinco clientes adultos, de ambos os sexos, vivendo com AIDS.
Os critérios de inclusão na pesquisa foram ser clientes que já se submeteram à
internação hospitalar em decorrência da doença e que estavam sob acompanhamento
ambulatorial num hospital municipal do Rio de Janeiro. A opção pelos sujeitos
se justifica pela nossa experiência profissional de vinte anos no âmbito
hospitalar convivendo com clientes com AIDS.
Na produção de dados, trabalhamos com a triangulação de técnicas, conjugando a
técnica de criatividade e sensibilidade "Almanaque"1, com a entrevista semi-
estruturada e a observação participante. Vale destacar que, com o uso da
criatividade e da sensibilidade na produção de dados da pesquisa, o imaginário
transcendeu a racionalidade e a diversidade das experiências e vivências dos
sujeitos emergiu da expressão criativa e sensível e serviu de motivadora para o
diálogo entre nós, pesquisadoras, e os participantes do estudo. Durante toda a
produção de dados, foram registradas as expressões verbais e não verbais dos
sujeitos. Cada encontro durou, em média, de 30 a 60 minutos. Os dados foram
analisados à luz da análise de discurso(4,5).
Cabe ainda ressaltar que foram respeitados os aspectos éticos da pesquisa
dispostos na Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde/MS, que regula as
Normas de Pesquisa envolvendo Seres Humanos. Assim, além da autorização da
Comissão de Ética em Pesquisa da Instituição, cenário do estudo, os
participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Ainda em
observância à mencionada Resolução, mantivemos o anonimato dos sujeitos por
meio de nomes próprios fictícios por eles escolhidos, a saber: João, Maria,
Pedro, Margui e Jorge.
3 Resultados da Pesquisa
Ao anunciar a posição que ocupavam no cuidado de enfermagem hospitalar e a
maneira pela qual participavam deste, os sujeitos do estudo situaram a conversa
como eixo integrador do cuidado. Ou seja, quando relataram suas experiências
positivas de cuidado da enfermagem no contexto hospitalar, a conversa emergiu
como um cuidado fundamental.
Vale lembrar que a conversa expressa por meio da palavra, é uma das etapas do
diálogo, um canal importante de comunicação através da qual se pode promover a
integração, a interação e o encorajamento para enfrentar as crises impostas,
tanto pelo processo de internação, quanto pela doença em si. Ela inclui, entre
outras coisas, a capacidade de não somente falar, mas de saber ouvir e de
trocar informações; além da linguagem corporal acessível à comunicação, através
do tom de voz, do toque, do olhar, da expressão facial e outras características
essenciais no cuidado.
Em releitura dos escritos acerca da interação dialógica, se destaca que "o eu
só existe a partir do diálogo com os outros eus. [...] posso ver o que o outro
não pode ver e o outro vê o que não posso ver [...]"(6:319).
Nessa linha de pensamento, o outro é fundamental e indispensável em todo o
processo dialógico, pois somente assim o homem, na relação com o outro, forma
sua própria consciência e se constitui como sujeito. Através das palavras do
outro, o homem se transforma dialogicamente. Para tanto, não se trata da
palavra morta, mas, da palavra viva(2).
Reportando esse movimento de construção do sujeito dialógico para o espaço do
cuidado de enfermagem hospitalar, reforçamos que ao observar essa interação
dialógica, o aluno (cliente) não é mais um agente passivo e receptivo, mas um
sujeito que age e, pelo seu discurso, se faz ouvir, recriando-se no seio de
outras vozes. A ação compartilhada, permeando o espaço pedagógico, humaniza o
processo educacional(6).
Nesse sentido, a fala de `João' é elucidativa. Quando questionado sobre o tipo
de participação que manteve durante o cuidado de enfermagem hospitalar, ele
relatou: [...] Elas me ouviam, me deixavam falar, pediam para eu orar a Jesus
[...] Muito bom! [...].
Deste modo, pensamos que a equipe de enfermagem precisa exercitar a
sensibilidade na interação com o cliente. Para nós, esse exercício advém do
diálogo, do respeito às diferenças entre nós e os clientes, da disponibilidade
em deixar desvelar aquilo que não sabemos ou pouco sabemos, ao tempo em que nos
abrimos para saber melhor o que acreditamos que já sabemos e conhecermos do
outro aquilo que possamos fechar o caminho a conhecer. Portanto, "o sujeito que
se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que
se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente
movimento na História"(2:154).
Vejamos a enunciação dialógica a seguir:
[...] Eu conversava muito com elas (a equipe de enfermagem), depois
que comecei a aceitar minha doença [...].(João)
O que você pensa sobre o diálogo entre você e a enfermagem?
(Pesquisadoras)
Importante. Desejo que a enfermagem continue assim [...] Maravilhosa!
Prestando a solidariedade a todos que se internam num hospital.(João)
Seguindo esse raciocínio, pensamos que, na relação dialógica entre a equipe de
enfermagem e o cliente vivendo com AIDS, o processo educativo pode ser
terapêutico, pois favorece um relacionamento de reciprocidade através da
comunicação. Desta forma, acredito ser possível minimizar as sensações de medo
e angústia manifestadas entre a equipe de enfermagem e o cliente e assim
favorecer o processo de aceitação na reabilitação e tratamento da doença,
atendendo não somente às suas necessidades humanas básicas, do ponto de vista
biológico, mas mantendo a visão holística do ser humano e o cuidado a ele
prestado.
Reforçando a importância da conversa no cuidado, o discurso de `Maria'
complementa o de `João':
[...] Fiquei internada um mês e três dias, sem andar, sem mexer os
braços, mas arranjei uma amigona, a Enfermeira M. Ela fazia tudo para
mim [...] Ela gostava de mim, tinha paciência e a gente conversava
muito. Conversar é bom, quando alguém escuta a gente. Ela me
escutava, rezava comigo... Conversar é muito bom [...].(Maria)
Assim, "cuidado em sentido amplo, é uma forma de expressão, de relacionamento
com o outro ser e com o mundo, enfim, como forma de viver plenamente"(1:17).
Como é notório, a AIDS proporciona tanto um desequilíbrio no cliente, família e
coletividade, quanto um sentimento de medo e insegurança na equipe de
enfermagem. E para cuidar de tão complexo ser, que ora chora pela dor de ir
(morte), e ora chora pela dor do vir (vida), o profissional precisa desenvolver
a habilidade da escuta sensível no processo dialógico.
[...] não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como
se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais,
que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com
eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com
ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele(3:128).
Nessa perspectiva, entendemos que a maneira pela qual o cuidado é prestado
contribui para uma ação terapêutica das mais eficazes, capaz de não só curar o
corpo, mas de trazer também o conforto ao espírito. O cuidado que traz no seu
contexto a objetividade da técnica e a subjetividade da criação incentiva à
equipe de enfermagem a refletir e a olhar de forma genuína a vida, melhorando a
qualidade para aqueles que física ou emocionalmente dependem dela. É no
cotidiano do cuidar que a relação dialógica enfermagem - cliente pode resultar
em apoio, equilíbrio e bem-estar.
É necessário considerar, contudo, a posição do sujeito no diálogo. `Maria', por
exemplo, é uma cliente que aparentou nervosismo, irritação, apesar da mãe estar
sempre junto, como permaneceu durante todo o nosso encontro na produção de
dados. Segundo relatou, a dependência foi criada a partir do comprometimento
físico advindo da doença. `Maria' precisa de ajuda para andar, comer, banhar-
se... Esta sua condição a faz manter-se sempre acuada, associado,
evidentemente, ao fato de viver isolada socialmente. Durante nosso encontro,
demonstrou um grande receio de submeter-se à nova internação e não encontrar o
único referencial de experiência positiva no cuidado de enfermagem hospitalar,
ou seja, a auxiliar de enfermagem.
Isso nos faz refletir sobre o fato de que, ao tempo em que a conversa demonstra
uma faceta importante do cuidado expressivo, por outro lado, há de considerar
no discurso de `Maria', uma relação de dependência que pode prejudicar a sua
autonomia. Salientamos que:
O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu
antidiálogo, que, impondo ao homem mutismo e passividade, não lhe
oferece condições especiais para o desenvolvimento ou a `abertura' de
usar a consciência que, nas democracias autênticas, há de ser cada
vez mais crítica [...]. Daí as relações do assistencialismo com a
massificação, de que é a um tempo efeito e causa[...](7:57).
Sob este prisma, a conversa não seria uma qualidade positiva do cuidado em que
pese a sua capacidade integradora. Por outro lado, não podemos deixar de
considerar que a conversa, enquanto exercício dialógico entre o cliente e a
equipe de enfermagem, facilita a interação e a negociação do cuidado, conforme
ilustra a fala a seguir: [...] Seria muito bom se todos conversassem, porque aí
a gente podia dizer: `faz depois', `esquenta a água do banho', `está doendo',
`estou com sono' [...].(Maria)
O discurso de `Maria' revela várias solicitações de cuidado que no plano
dialógico entre a equipe de enfermagem e o cliente, podem ser negociadas sem
prejuízos para ambos; ao contrário, os ganhos no processo de cuidar podem ser
imensuráveis.
Vale destacar que o espaço intersubjetivo do cuidado permite a comunicação
entre os envolvidos na relação. Ele deve servir não somente para o cumprimento
de um procedimento técnico, mas como um ambiente de participação, de interação,
em que clientes e equipe de enfermagem envolvidos possam dialogar, trocar
experiências, fazer reivindicações, expressarem, enfim, seus desejos e
necessidades. Afinal, "o encontro entre quem cuida e quem é cuidado se
estabelece no cuidar e é permeado pela objetividade técnica do cuidado, pelo
conhecimento e pela subjetividade dos sujeitos envolvidos na relação"(8:189).
Neste contexto, ressaltamos que a equipe de enfermagem, quando realiza um
cuidado meramente técnico, deixa de valorizar os aspectos subjetivos que
perpassam o cuidar, como o zelo, o carinho, a paciência, a preocupação... Não
obstante, vale lembrar que o foco de atenção do cuidado de enfermagem é o
cliente, sujeito partícipe deste cuidado, com o qual precisamos interagir,
sensivelmente, para prestar os cuidados técnicos necessários. Nessa direção, é
mister referir que um dos pressupostos da teoria de enfermagem de Watson(1)
destaca a interação pessoal como indispensável ao cuidado. E a conversa
empática permite a compreensão das necessidades e desejos dos clientes, através
da palavra enquanto signo dialógico.
Nesse sentido,
A partir da intersubjetividade originária poderíamos dizer que a
palavra, mais do que instrumento é origem da comunicação - a palavra
é essencialmente diálogo. A palavra abre a consciência para o mundo
comum das consciências, em diálogo, portanto. [...] A palavra, porque
lugar de encontro e do reconhecimento das consciências, também o é do
reencontro e reconhecimento de si mesmo(2:19).
Nessa linha de raciocínio, nos colocamos diante da palavra criadora de
consciência, não aquela repetida, alienante, pois essa é
"monólogo das consciências que perderam sua identidade, isoladas,
imersas na multidão anônima e submissas a um destino que lhes é
imposto e que não são capazes de superar, com a decisão de um
projeto"(2:19).
A palavra que vem ao encontro de nossa concepção neste estudo, é a `palavra
viva e dinâmica'. Esta sim é dialógica e transformadora, na medida em que
reconhece o outro e a si mesmo, no outro. "Não há consciências vazias; por isto
os homens não se humanizam, senão humanizando o mundo"(2:20).
Neste contexto, é preciso que haja a superação da opressão, que só é possível
na medida em que opressores e oprimidos se reconheçam como sujeitos no mundo.
Como ressaltamos "a conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos
dialógicos, não a de um pelo outro"(2:79). Mas é necessário que os cuidadores
reconheçam nos clientes sua capacidade criadora que, na condição de sujeitos,
exercitam a dialogicidade. Nesse sentido, é bom que se reflita sobre
[...]Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo
sempre no centro, nunca em mim? Como posso dialogar, se me admito
como um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros,
meros isto', em quem não reconheço outros eu? Como posso dialogar, se
me sinto participante de um gueto de homens puros, donos da verdade e
do saber, para quem todos os que estão fora são `essa gente', ou são
`nativos inferiores'?[...](2:80)
Pensamos que no cenário do cuidado de enfermagem hospitalar baseado no diálogo,
entendido como uma das ferramentas do cuidado humano, todos os sentimentos que
afloram na/da relação cliente-equipe de enfermagem, são redimensionados, pois o
ato da comunicação e a interação com o outro, são capazes de gerar, por um
lado, novas possibilidades de enfrentamento da doença pelo cliente; e, por
outro, da difícil tarefa da equipe de enfermagem cuidar com sensibilidade, ou
seja, com afeto, compaixão, responsabilidade, cumplicidade... Instrumentos
importantes do cuidado humano.
Quando falamos da tarefa de cuidar, sensivelmente, como uma atividade difícil,
reportamos-nos à nossa vivência profissional trabalhando com clientes vivendo
com AIDS no ambiente hospitalar. O que observávamos é que o sofrimento entre a
vida e a morte do cliente, associado às contingências do dia-a-dia hospitalar,
provocavam múltiplos sentimentos e reações em ambos - clientes e equipe de
enfermagem. Esta, por sua vez, tentava manter o equilíbrio emocional frente à
realidade posta. O convívio com o doente vivendo com AIDS, assim como ocorre na
interação com alguns outros casos de doentes crônicos, deixam marcas profundas
na equipe de enfermagem. Vale salientar que, o fato de a equipe estar
"instrumentalizada" para o ato de cuidar, não lhe garante o preparo necessário
para lidar com as diferentes dimensões que envolvem o cuidado.
Isto porque, entendemos que a mera aquisição do saber técnico não é suficiente
para engendrar atitudes e ações que dêem conta da multiplicidade de fatores que
envolvem o cuidado humano. Assim, "[...] o cuidar passou de um comportamento de
apenas sobreviver a ações, e hoje é considerado uma forma de ser, de se
relacionar e constituir a essência da enfermagem [...]"(9:75).
Neste novo milênio, observamos um cenário voltado para uma preocupação
crescente em dar lugar a novos paradigmas aplicados à saúde que considerem e
valorizem o ser humano em sua totalidade, os quais têm reflexos diretos no
processo de cuidar da enfermagem. De modo que "[...] Se nos interessa analisar
o compromisso do profissional com a sociedade, teremos que reconhecer que ele,
antes de ser profissional, é homem. Deve ser comprometido por si mesmo [...]"
(2:19). Nessa perspectiva, vale salientar que, a equipe de enfermagem possui
valores sociais, culturais, conhecimentos e atitudes; pensar a pessoa a partir
de tais considerações é considerar a influência desta trajetória no contexto da
ação do cuidado.
O diálogo é o encontro amoroso dos homens que mediatizados pelo mundo, o
`pronunciam', isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a
humanização de todos(2). Nesse sentido, pensamos ser importante priorizar o
diálogo na relação que se estabelece com o cliente no espaço do cuidado de
enfermagem hospitalar, pois a comunicação favorece intencionalmente um contato
horizontal capaz de não somente compreender as necessidades e desejos do
cliente, mas na medida do possível, tornar o ambiente propício no atendimento
dos mesmos.
Deste modo, é possível que o cliente possa minimizar sua angústia e sofrimento,
através da dialogicidade.
Quando o homem compreende sua realidade, pode levantar hipótese sobre
o desafio dessa realidade e procurar solução. Assim, pode transformá-
la e com seu trabalho pode criar um mundo próprio: seu eu e suas
circunstâncias(2:30).
E é assim que `Pedro' entendeu sua participação no cuidado de enfermagem,
motivo pelo qual o qualificou como positivo: [...] nós conversávamos muito
sobre o preparo, dia e hora da cirurgia [...].
Não obstante, é necessário salientar que o modelo pedagógico de transmissão de
informações é vertical, monológico e não contribui para a consciência crítica
do porquê fazer determinadas ações ou procedimentos, porque depositadas,
armazenadas, e não apreendidas. Assim, cabe lembrar que, por um lado, o fato de
o cliente verbalizar suas necessidades e desejos de cuidado, ou, por outro
lado, a enfermeira falar acerca do procedimento que realiza, essa ação, por si
só, não garante a transformação do espaço do cuidado em um ambiente de
participação e dialogicidade. Para que na verdade assim seja considerado, faz-
se necessária que a atitude de ambos conduza ao atendimento dos princípios que
regem uma relação dialógica.
Também é oportuno ressaltar que a participação no cuidado, segundo o eixo
teórico que norteia este estudo, implica integração. Logo, participar de
cuidados de enfermagem numa instituição hospitalar, assim como em qualquer
outro cenário de cuidar, requer, necessariamente, a interação dos sujeitos
envolvidos que imprimem no espaço do cuidado as relações políticas, estéticas e
éticas inerentes a qualquer relacionamento pessoa-pessoa. Isto quer dizer que o
cliente deva ser capaz de posicionar-se criticamente no contexto do cuidado,
sob pena de tornar-se inoperante, acomodado, reduzido a mero objeto do cuidado.
Portanto, entendemos que o cuidado de enfermagem deve possibilitar ao
profissional o desenvolvimento de suas habilidades tanto sensíveis, quanto
técnicas. Para cuidar do outro é importante aplicar o saber técnico que se
dispõe, além do relacionamento interpessoal, sustentado na dialogicidade entre
a equipe de enfermagem e o cliente.
É mister esclarecer que não negamos a importância do cuidado técnico, pois ele
se faz necessário no atendimento às necessidades biológicas do sujeito,
contudo, a sua ênfase em detrimento do expressivo, leva a um distanciamento da
compreensão dos desejos do cliente. Logo, há de se encontrar um ponto de
convergência em que o cuidado técnico e o expressivo sejam considerados e
valorizados na sua justa medida, tendo em vista a integralidade do sujeito no
seu contexto social, cultural, econômico, ético, estético, político,
espiritual...
Oliveira(10) mostrou que essa interação entre o cuidado instrumental e o
expressivo é possível. Ao realizar um estudo sobre a dialética do cuidado
humano e o tecnológico com enfermeiras que atuam num centro de terapia
intensiva na cidade do Rio de Janeiro, constatou que, mesmo diante de um
cenário sofisticado, equipado com tecnologia de ponta, e que presta cuidados a
uma clientela muitas vezes impedida de se expressar verbalmente, a Enfermagem
pode e realiza, além do cuidado instrumental, o expressivo. Nesse contexto, a
autora (2002, p. 45) ressalta que o cuidado técnico para ser considerado como
cuidado humano é preciso que haja um encontro entre ambos. Segundo ela, "o
cuidado que ocorre somente em sua vertente instrumental ou técnica não pode ser
considerado humano, pois não imprime expressividade"(10:45).
A esse respeito,
[...] O cuidado de enfermagem antes de ser somente uma expressão
técnica voltada eminentemente para objetivos médico-higiênicos é,
principalmente, no plano do meu entendimento, um ato político que,
como tal, não pode estar desvinculado do contexto institucional o
qual se insere, do contexto sócio-cultural e do contexto individual
do sujeito que o experimenta [...](8:73).
Seguindo essa linha de raciocínio, apesar de `Pedro' atribuir maior ênfase à
vertente técnica ou instrumental do cuidado de enfermagem hospitalar no qual
experimentou e qualificou como positivo, houve um encontro entre esta vertente
do cuidado e a do tipo expressivo: Vejamos o diálogo que se segue:
De que maneira você participava desse cuidado?(Pesquisadoras)
Foi muito bom, com bastante atenção, tudo era conversado comigo [...]
Sempre estávamos conversando, vejo que esta figura diz isso. Tudo que
ia ser feito eu perguntava e a Enfermagem me respondia, inclusive a
Enfermeira E. é muito atenciosa.(Pedro)
Para você, que tipo de diálogo se estabeleceu no espaço do cuidado de
enfermagem?(Pesquisadoras)
Comigo, eu não tenho do que reclamar. Conversar resolve sempre muitos
problemas na vida da gente, dentro e fora do hospital, em qualquer
lugar.(Pedro)
Nesse ínterim, há de se ressaltar que, para alguns sujeitos do estudo, o
cuidado expressivo, produtor de conforto e bem-estar é fundamental. Ele se
expressa num sujeito que é singular e que, portanto, é diferente de outros
sujeitos no plano de suas necessidades e de seus desejos; logo, o cuidado, por
conseqüência, também é diferenciado e depende da singularidade de cada sujeito.
No entanto, se, para alguns, ser `bem cuidado' representa estar presente, ser
atencioso e afetuoso; para outros, o cuidado técnico ou instrumental assume
condição primordial, contudo, não dissociado do expressivo, como bem mostrou o
discurso de `Pedro'.
A fala de `Jorge' seguiu orientação semelhante a de `Pedro' no que pese a
valorização da conversa na relação cliente-equipe de enfermagem, ora
enfatizando o cuidado expressivo, ora o cuidado técnico: [...] Eu participava
como uma pessoa que precisava de cuidado. Na hora que elas cuidavam, elas me
explicavam sempre [...] As explicações são sempre muito importantes. Um deslize
da parte delas pode ser fatal [...].
A enunciação discursiva de `Jorge' revela contentamento, gratidão e
reconhecimento sobre o trabalho da equipe de enfermagem hospitalar que deve ser
realizado, segundo ele, com competência e atenção. Complementando sua fala,
`Jorge' declarou: [...] a gente conversava muito [...] Na hora que estavam
tratando de mim, me dando remédio, preparando para um exame ou quando eu
precisava chamar para ver alguém que estava passando mal [...].
Já a fala de `Margui' foi mais enfática quanto à importância da participação do
cliente no cuidado de enfermagem hospitalar:
Achei essa figura (referindo-se a produção do Almanaque) bonita, bem
colorida e com muita gente e todo o mundo participando.(Margui)
De que maneira você participava do cuidado?(Pesquisadora)
Como uma pessoa que estava ali para ser tratada e ficar boa, sempre
que quis tive participação.(Margui)
No entanto, seu discurso também fez menção a algumas situações que, segundo
ela, podem interferir na qualidade do cuidado. Vejamos:
Essa figura (produção do Almanaque) mostra um número muito pequeno de
pessoas (referindo-se à equipe de enfermagem) para dar conta de tanta
coisa... (Margui)
Que tipo de diálogo se estabeleceu no espaço do cuidado de
enfermagem?(Pesquisadoras)
O diálogo é muito positivo, mas a enfermagem é sempre em número muito
pequeno para a quantidade de pessoas que precisam de cuidado, que são
dependentes delas.(Margui)
Por que você acha isso?(Pesquisadoras)
Porque elas (as enfermeiras) têm que ter muita atenção e aí não dá
para conversar muito. Sempre conversávamos e todos tinham muita
paciência comigo, mas, às vezes, só falavam o necessário para
responder minhas perguntas.(Margui)
Por um lado, o discurso de satisfação expressa por `Margui' ao fazer
profissional da enfermagem e a relação interpessoal mantida com ela no cuidado,
no nosso modo de apreender suas palavras, pode sugerir acomodação e ajustamento
à realidade experimentada, revelando uma resignação diante do vivido no
contexto hospitalar e serve de justificativa para o agir da equipe de
enfermagem.
Por outro lado, sua fala alerta para uma situação freqüente na estrutura
organizacional dos hospitais e na própria sistematização da profissão da
enfermagem, caracterizada pela crise de identidade da enfermagem. Conforme
sabemos, o quantitativo da categoria de enfermeiro nas instituições
hospitalares, especialmente, as públicas, mormente se apresenta inferior ao
explicitado nos cálculos das necessidades de desenvolvimento do trabalho desta
categoria. Desta feita, na prática, suas atividades acabam por restringir-se,
muitas vezes, àquelas de ordem gerencial no processo do trabalho. Ou seja, o
número reduzido das enfermeiras nas instituições hospitalares passa a
justificar a concentração de suas atribuições nas áreas de administração do
cuidado e de liderança, gerando, um afastamento gradativo das enfermeiras no
cuidado direto junto ao cliente, que passa a ser desempenhado pelas demais
categorias de enfermagem(9).
Por vários anos, tivemos a oportunidade de vivenciar esta situação como
enfermeiras de um hospital público em que a educação à saúde como função
precípua da enfermeira junto ao cliente vivendo com AIDS em diferentes cenários
ou circunstâncias, era quase que anulada pela justificativa do número reduzido
da categoria e a sobrecarga advinda do gerenciamento do serviço. A divisão
técnica do trabalho na Enfermagem, traduz-se por uma prática parcelada em
tarefas, procedimentos e responsabilidades diferentes, cabendo também esta
execução parcelada a diferentes agentes(11).Essa divisão técnica tem suas
raízes na Inglaterra e na América do Norte, no século XIX e no início do século
XX, respectivamente, quando da organização do espaço hospitalar como cenário de
cura dos pacientes, em que os médicos passaram a ocupar um lugar de destaque. À
Enfermagem, que sistematiza o seu saber e o fundamenta através dos princípios
científicos, ao mesmo tempo em que também se desenvolve as técnicas médicas,
coube a criação do ensino formal dos auxiliares de enfermagem. Essa iniciativa
ocorreu para que à categoria dos auxiliares ficasse a responsabilidade da
prestação dos cuidados de enfermagem possibilitando às enfermeiras a ocupação
dos cargos de direção e o controle social do pessoal auxiliar.
Apesar das transformações na prática da enfermagem advindas do desenvolvimento
das teorias de enfermagem a partir da década de 50 do século passado, no
sentido da humanização da assistência e da busca da identidade profissional, o
trabalho da enfermagem hospitalar ainda hoje sofre grande influência de sua
inserção histórico-social expressas nas contradições de sua prática. Deste
modo, conforme salientamos, uma significativa parcela do trabalho da enfermeira
ainda se destina ao gerenciamento do cuidado, agravando ainda mais sua crise de
identidade profissional.
Retomando o foco da discussão para a contribuição da conversa como cuidado
integrador da enfermagem hospitalar, entendemos que esta "configura-se em um
cuidado de enfermagem, na medida em que terá como função terapêutica minimizar
a solidão sentida por ele (o cliente)"(8:213).
Neste ponto, ressaltamos que a conversa é um caminho para a interação pessoal,
através da qual podemos identificar e intervir mais efetivamente nas
solicitações de cuidado do cliente, conforme comentei anteriormente. Assim, a
conversa, etapa essencial do diálogo, configura-se como um dos instrumentos do
cuidado da enfermagem. No entanto, faz-se necessário que a equipe esteja atenta
às mensagens emitidas pelo cliente. Pensamos que, conversar com o cliente
envolve solidariedade e relação de ajuda-confiança para o enfrentamento das
dificuldades advindas do processo de internação hospitalar, bem como àquelas
que traz consigo do seu ciclo sócio-familiar.
Diante dessas considerações, o cliente, no ambiente hospitalar deve ser sempre
reconhecido como um ser que pensa e age, que tem seus sentimentos aflorados,
lembrando que é sensível, racional e espiritual, e que também, como todo ser
humano em situações adversas e alheias à sua vontade, é passível de sentir
medo, insegurança, solidão, dor e desprezo. É preciso que a equipe de
enfermagem esteja atenta a essas manifestações, buscando entender o componente
subjetivo da realidade do cliente hospitalizado, pois ele se questiona e quer
questionar, tem o direito de expressar seu desejo, de elucidar suas dúvidas e
anseios; e não somente de submeter-se às normas institucionais a ele impostas.
Nesse sentido, num exercício reflexivo sobre essas questões, ao nosso ver, de
extrema relevância para o cuidado de enfermagem hospitalar, especialmente, em
se tratando de um cliente que marca a diferença por ser portador de uma doença
estigmatizante, como é o caso da AIDS, reforçamos que a comunicação proposta
por Freire(7) é a do diálogo e não a da extensão, em que apenas uma pessoa (a
cuidadora) sabe e transmite este saber a outra (o cliente). A dialogicidade,
portanto, permite ao cliente expressar suas idéias e opiniões. Ele estabelece
com a equipe de enfermagem uma relação em que o diálogo implica em uma resposta
humana positiva.
Portanto, os seres humanos "enquanto `seres em situação', encontram-se
submersos em condições espaço-temporais que influem neles e nas quais eles
igualmente influem"(12:33). Assim, quanto mais o homem se posiciona, através de
uma postura crítica e reflexiva sobre sua existência, maiores condições terá de
atuar sobre ela. Sustentamos que, no espaço intersubjetivo do cuidado de
enfermagem hospitalar, isso é possível pelo encontro dialógico em que o cliente
e o cuidador marcam posição enquanto sujeitos em relação, por meio da
integração, pela ação e na ação.
Em síntese, a participação pelo diálogo conduz o cliente a falar, a fazer
reivindicações, a expressar suas necessidades e desejos de cuidado. Ou seja, o
cuidado participativo é humanizante. E no que pese o seu caráter relacional,
lembramos que um dos pressupostos da teoria de Watson diz "que o cuidado pode
ser praticado e demonstrado apenas interpessoalmente"(13:254).