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BrBRCVHe0034-71672003000400003

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variedadeBr
ano2003
fonteScielo

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Acerca de diretrizes curriculares e projetos pedagógicos: um início de reflexão - comentários ao texto

O que vou apresentar neste breve texto são algumas idéias motivadas pela leitura do artigo de Dagmar E. Meyer e Maria Henriqueta L. Kruse. A exemplo da honestidade do artigo em questão, que se propõe e efetivamente se mostra numa perspectiva de problematização e não de prescrição, também tentarei apenas escolher, entre tantas, algumas provocações oportunamente oferecidas pelas autoras para, a partir delas (ou com elas), aportar novas questões e desdobramentos ao tema. Antes é preciso salientar a contribuição trazida pelo artigo, leitura utilíssima para todos nós professores de enfermagem.

A partir do panorama traçado pelas autoras muitas são as possibilidades de discussão e aprofundamento, tantas quantas forem as eleições e destaques do olhar atento de cada leitor. Para que se entenda os limites de minha eleição, começo esboçando o roteiro de minha leitura e exploração.

Numa primeira etapa, me despertou um imprescindível fundamento de todo o texto: o reconhecimento e ênfase na relação (as vezes esquecida) entre as indagações que se faz ( a busca por respostas) com o sujeito que indaga e com o processo histórico que constitui tal sujeito e tal possibilidade de perguntar isso e não outra coisa qualquer. Assim mergulhado na história e no vivido destes sujeitos, o texto pode se lançar numa composição de elementos visíveis e não totalmente "domados" por nossas interpretações, como por exemplo: - a relação trabalho, tecnologia e formação do trabalhador; - o contexto de emergência de um discurso (no sentido de expressão de um desejo de ser e fazer) da enfermagem que tem como sentido o compromisso social e a defesa da oferta de serviços de atenção à saúde com qualidade e eqüidade; - a especificidade de um momento histórico no cenário da educação brasileira, pós-inúmeras reformas, pós- LDB e pós Diretrizes Curriculares Nacionais, mas prévio a um "destino", ainda vago e inseguro, ou até mesmo, prévio a um certo amadurecimento de nossas próprias compreensões e expectativas e; finalmente, - a experiência particular da enfermagem neste terreno de embate político que caracteriza a proposição e implantação de diretrizes curriculares, ou de currículos nacionais, como bem nos lembram as autoras.

Numa segunda etapa de minha leitura, quando o artigo se aproxima do foco específico das Diretrizes Curriculares para o Curso de Enfermagem são aportadas importantes questões, envolvendo: - os conceitos de currículo; - a noção de formação generalista; - as noções de integração e interdisciplinaridade; - o conceito e sentidos do termo competências; - os princípios da autonomia, flexibilidade e pluralidade; - a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Desta leitura, extraio como foco para os desdobramentos que quero trazer, a idéia de interdisciplina, a idéia do currículo como produto e produtor de cultura e identidade e a emergência da idéia de competência.

A noção de interdisciplina não pode ser desvinculada da noção de disciplina e, por este vínculo, os saberes ditos científicos e as profissões reconhecidas se defrontam com o dilema de consolidar-se, ou manter-se consolidado, como legítimo campo de conhecimento e ou prática, sem fechar-se para o diálogo com outros campos e saberes. Significa dizer, manter-se íntegro, sólido, sem tornar-se excessivamente rígido e fechado; ou ainda, abrir-se, dialogar e flexibilizar-se enquanto busca permanente, sem perder uma identidade e legitimidade na exclusividade do manejo de suas próprias ferramentas. A enfermagem, como poucas profissões, vive ao extremo este conflito, pois ainda jovem como profissão possui uma história de arraigados comportamentos coorporativos e de defesa de sua diferenciação em relação às demais profissões da saúde (até mesmo como prática defensiva num campo competitivo de poder e de hegemonia médica), assim como de um forte empenho por se fortalecer como disciplina científica. Paralelo a este movimento ("para dentro") se coloca num outro movimento ("para fora"), quando se apresenta como profissão "mais afeita" ao diálogo com conhecimentos de diferentes áreas, numa "vocação" para o "holo", o "trans", o "inter" e o "multi" (focal, dimensional, profissional, entre outros).

Neste sentido, parece nos faltar ainda uma mais clara posição frente a esta encruzilhada, frente a qual cabe perguntar: Qual o significado e a direcionalidade das incorporações que fazemos destes diferentes conhecimentos? Quais os limites nos quais se desenvolvem o conhecimento e a ação de enfermagem, que irão também moldar estes novos conhecimentos (que não entram, simplesmente, como por uma porta totalmente aberta e sem restrições, desvios, senhas, lacres e vigílias).

No contexto desta discussão podemos utilizar um pouco da epistemologia de Fleck (1), muito especificamente no que se refere a natureza coletiva e cooperativa da produção do conhecimento e às fronteiras contingentes e negociáveis desta produção. Para Fleck, nenhum conhecimento pode ser concebido fora do grupo de pessoas que o criam e o possuem. Pessoas estas que, num processo de socialização dos próprios modos sociais e culturais do conhecer, se estabilizam em comunidades e estilos de pensamento. A circulação e o consumo desta produção, entre diferentes grupos, promovem interações, traduções e fontes de inovação entre os mesmos, em enriquecimentos dos estilos de pensamento particulares. O dilema apontado anteriormente, na linguagem de Fleck, pode ser considerado como contradição entre a inovação e a estabilização de um estilo de pensar, uma vez que esta última propicia a autonomia e prestígio, o controle sobre o acesso ao conhecimento útil para competir com a incerteza e a segurança de que seus métodos e habilidades não sejam reduzidos a rotinas (de fácil domínio por "estranhos")(2). Nesta balança entra também o que costumamos discutir como a relação entre o generalista e o especialista, compreendido como a permanente busca por esta margem intermediária que abrigue, simultaneamente, os códigos, padrões e corpo de práticas/ferramentas básicas que estabilizam uma comunidade de pensamento e o que surge como conhecimento individualizado ou especializado(2).

Num entendimento mais realista e crítico desta insuperável contradição entre disciplina e interdisciplina, talvez possamos melhor situar nossos projetos de interdisciplinaridade na formação do enfermeiro para além de belos e ilusórios conceitos em nossos projetos políticos pedagógicos. E, talvez, ainda nos perguntarmos se cabe falar de um enfermeiro desvinculado de uma concreta inserção numa disciplina científica ou profissional, ou se ainda cabe desconhecer o espaço de formação universitária caracterizado por "jurisdições" tradicionais, ou seja, forte organização e estruturação disciplinar. No entanto, tal reconhecimento não implica no abandono da interdisciplinaridade como perspectiva necessária a abordagem de objetos complexos e saberes para uma realidade complexa, que implica no desenvolvimento de "zonas de interesse" ou "zonas francas" para as traduções, inovações e compartilhamento de modos de conhecer(2). Voltando a Fleck(1), talvez tenhamos que pensar nas fronteiras contingentes e negociáveis do conhecimento, mais ainda, de objetos e ferramentas "fronteiriças", como "caixas translúcidas ou cinzentas" que, ao contrário de caixas pretas lacradas e inacessíveis, promovem interações heterogêneas entre mundos sociais, estilos e comunidades de pensamento distintas. Poderíamos entender "objeto fronteira como conceitos, técnicas, materiais de domínio de uma área (ou de um coletivo de pensamento) que possui compatibilidade com outros coletivos. Ou, uma área de domínio comum, que sofre cooperação de mais coletivos de pensamento, para a sua compreensão"(3-33). Então, "um objeto fronteiriço pode ser construído a partir de um núcleo rígido - uma zona de acordo entre os profissionais que interagem - e partir de uma periferia difusa, indistinta, que é diferente para cada grupo"(2-47).

Muitas questões podem surgir apenas desta discussão inicial: Com que práticas e saberes estabelecemos interações? Sob que bases e em que tipos de relações? Como temos traduzido conhecimentos ao nosso estilo de pensar ? Conhecemos o trajeto de nossas traduções ? Como nossos instrumentos têm moldado e difundido nosso conhecimento? Compartilhamos instrumentos ou elementos comuns entre instrumentos? Quais ? Com quem ? Para quê? Nossa desatenção a este debate pode significar que o simples discurso da interdisciplinaridade, ou mesmo horas dedicadas a diversos conteúdos (filosofia, sociologia, antropologia, psicologia, etc.), não irá sustentar uma compreensão e uma ação mais criticamente fundada sobre o processo humano de viver. Do mesmo modo, nem todo o conteúdo sobre o "bio" (nas disciplinas básicas de anatomia, fisiologia, patologia, etc, ou toda uma série de novas composições que tentam integrar tais conteúdos) terá sentido àquele cenário de formação que não se apropriou de suas próprias ferramentas e a elas deu o sentido de seu agir concreto na sociedade.

Interdisciplinaridade, "constitui-se num sistema de coordenação e cooperação entre as disciplinas [...] É intercâmbio intersubjetivo que orienta ações flexíveis e sensíveis na apreensão e construção de objetos, problemáticas e formas de atuação. Caracteriza-se como necessidade_e_problema que desafia os limites do sujeito do conhecimento, pois o instiga a superar a complexidade histórica de sua própria produção no_plano_do_movimento_do_real_e_da_razão.

Funda-se no caráter articulado do conhecimento, sem negar-lhe a especificidade ou impor-lhe atributos de generalização e redução à unicidade ou a domínios instrumentais"2.

Como conseqüência desta questão da interdisciplinaridade, quero agora entrar no meu segundo foco, o da identidade profissional (também bastante vinculado a idéia Fleckneriana de comunidade de pensamento) e do nosso conhecimento sobre tal identidade. Como nos colocam as autoras, o currículo é produção social e cultural e é, ele próprio, produtor de identidades - ou transmissor de "habitus"(8).

Quando reconhecemos isto nos colocamos preocupadas(os) com nossa responsabilidade e passamos muito tempo em nossas escolas discutindo a identidade do enfermeiro que queremos ser, o perfil deste profissional e, salvo melhor juízo, mergulhamos em nossas opiniões parciais, impressões locais e muito pouco conhecimento sobre o enfermeiro e seu trabalho, ou sobre o incessante processo de construção da identidade profissional, que se dentro e fora da escola, em campos e especificidades do trabalho insuficientemente dimensionadas. Falamos de perspectiva de futuro, mas carecemos de perspectivas do presente, essenciais para novos projetos.

Em estudo que pretendeu situar o processo de construção da identidade do enfermeiro, enquanto objeto de estudo na produção científica da enfermagem, encontraram(9) os seguintes focos ou eixos de interpretação: 1 - A teorização sobre o saber da enfermagem - a construção de uma ciência e o ensino em enfermagem enquanto formadores da identidade da profissão; 2 - A profissão da enfermagem - a identidade constituída no esforço de definição da enfermagem enquanto profissão e ciência, na inter_relação teoria e prática; 3 - A identidade percebida- por meio de imagens, representações, autoconceitos, significados ou percepções da enfermagem; 4 - A história da enfermagem - a identidade relacionada às suas estruturas historicamente estabelecidas; 5 - A identidade que se produz nas relações de poder nos espaços institucionais; 6 - A enfermagem, a arte e a ética - uma construção de identidade numa visão de autonomia individual; 7 - A questão de gênero e a enfermagem - a condição da mulher no mundo como constituinte da identidade de mulher/enfermeira; 8 - Na relação identidade e trabalho/força de trabalho da enfermagem, considerando a enfermagem como trabalho - prática social e histórica e analisando seus condicionantes concretos no conjunto do trabalho em saúde; 9 - Referindo-se diretamente à questão de identidade, estudando a formação da identidade profissional da enfermeira a partir de uma abordagem sócio-histórica, procurando a reconstrução compreensiva dos significados dessa identidade.

Embora bastante diversificada tal produção é ainda recente (a partir da década de 80 mais destacadamente na década de 90), e mostra a grande dificuldade de articulação entre as dimensões objetivas e subjetivas do processo de construção da identidade do enfermeiro, a deficiente abordagem do cotidiano do trabalho da enfermagem como instância construtora e reveladora da identidade deste profissional e, a necessidade de maiores estudos sobre este objeto, com bases teóricas adequadas a uma re-apropriação e inter-relação dos conceitos de cultura, identidade, trabalho e trabalho em enfermagem(9).

A finalidade de citar este estudo foi de alertar para os limites que enfrentamos quando nos dispomos a pensar perfil e competências do enfermeiro quando pouco tem sido estudado, ou consumido, sobre o as bases imprescindíveis para tal projeto. A exemplo do tema da identidade e as diversas categorias que ele engendra, a emergência da linha de pesquisa sobre "processo de trabalho na enfermagem", significativa em termos de avanços políticos e científicos que vem trazendo a profissão, ainda exige contínuos aprofundamentos e abordagem de novas problemáticas. Embora tenhamos uma produção razoável de estudos sobre os micro-espaços concretos da realidade da prática, na vertente teórico metodológica do processo de trabalho precisamos compreender a enfermagem não como prática estruturada, como um conhecimento também estruturado, mas como uma prática de relações, como um trabalho que vai se constituindo através de um processo dinâmico, de interação entre os sujeitos nos espaços/tempos/finalidades onde estão inseridos, lançando mão de tecnologias disponíveis de modo a engravidar o real com virtualidades desconhecidas...(10-273) Finalmente, e muito brevemente, vou retomar os importantes questionamentos colocados pelas autoras no que se refere ao modo como o discurso sobre competências atravessa a discussão sobre formação profissional desde a LDB e em nossas atuais diretrizes. Então talvez caiba perguntar: Mas afinal, consenso em torno da pedagogia por competências? Não existem críticas? Embora tenhamos uma vasta literatura disponível sobre o tema "competências" e estejamos vivendo a implantação das mesmas em nossos currículos, algumas precauções são apresentadas(11): Seria a "pedagogia por competências" uma ressignificação da linguagem educativa e das práticas curriculares, o prolongamento da "pedagogia por objetivos"? Estaria ligada a uma noção meramente instrumental de currículo, vinculada ao culto da eficiência, à lógica empresarial da qualidade, ao desempenho e à mobilização de recursos? O conceito de Competência seria uma ferramenta política ligada à justificação de currículos nacionais? Ou seja, em estrita relação a uma burocracia paralela, guiada pela cultura administrativa da eficiência, do menor custo e pela comparação com parâmetros internacionais.Estaríamos, ao contextualizarmos o conhecimento em comportamentos esperados, propósitos e repertórios de saber- fazer, mudando nossos currículos de declarativos para "performativos"? Talvez possamos concluir pela necessidade de assumirmos o risco, em qualquer proposta, do Currículo ser tomado como construção cultural e ou processo administrativo. Não podemos negar que a aprendizagem será codificada disciplinarmente e curricularmente, será organizada no tempo e no espaço e se tornará base cultural para uma área de conhecimento. Frente a isto, não podemos perder o sentido de um amplo e simultâneo movimento, que nos desafia com instâncias cada vez mais diversificadas do fenômeno da globalização, com novas formas de acessar e sistematizar o conhecimento, com a emergência do aprendizado em contexto, em redes sociais e em múltiplas fontes de experiência (11). Novamente, voltamos circularmente ao dilema da generalidade X especialidade, da inovação X estabilização.

Neste contexto de questionamentos e de emergência de tantos requerimentos, nos moldes de competências, antes de mais nada nos voltemos a nós mesmos, para definirmos que "competências" precisamos conquistar, como professores, para responder aos requerimentos dessa prática pedagógica?(12) Lembrando do importante mote do texto - a ênfase no sujeito histórico - que possamos seguir na reflexão aberta e instigada por este texto e, desejemos, por outros tantos que estejam por vir.


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