Construindo um conhecimento sensível em saúde mental
DIRETRIZES CURRICULARES - IMPLEMENTAÇÃO E AVALIAÇÃO - RELATOS DE EXPERIÊNCIA
DAS DCN
Construindo um conhecimento sensível em saúde mental
Building sensitive knowledge in mental health
La construcción de un conocimiento sensible en salud mental
Ruth Mylius RochaI; Célia Caldeira F. KestenbergII; Elias Barbosa de
OliveiraIII; Alexandre Vicente da SilvaIV; Márcia Batista Gil NunesV
IEnfermeira, Doutora em Saúde Coletiva (UERJ), Professora Adjunta da Faculdade
de Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro
IIEnfermeira, Psicóloga, Mestre em Enfermagem (UNIRIO), Professora-Assistente
da Faculdade de Enfermagem UERJ
IIIEnfermeiro, Mestre em Enfermagem (UNIRIO). Professor Assistente da Faculdade
de Enfermagem UERJ
IVEnfermeiro, Psicólogo, Mestrando em Enfermagem (UNIRIO), Professor Auxiliar
da Faculdade de Enfermagem UERJ
VEnfermeira, Mestre em Enfermagem (UERJ), Professora Assistente da Faculdade de
Enfermagem UERJ, E-mail: facenf@uerj.br
1 Considerações iniciais
O currículo integrado da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, construído coletivamente e implantado em 1996, fundamenta-se na
Teoria Crítica da Educação e utiliza uma pedagogia problematizadora.
Composto de áreas e subáreas que se articulam ao longo dos nove períodos do
curso, propõe um processo ensino / aprendizagem que integre os vários saberes
sobre o homem e sua saúde e que valorize o aluno como sujeito, portador de
saberes que devem ser respeitados e superados a partir do desenvolvimento da
curiosidade epistemilógica(1).
Este trabalho relata nossa trajetória na subárea Promovendo e Recuperando a
Saúde Mental (a partir de agora designada, neste texto, como Saúde Mental), que
no currículo integrado foi inicialmente oferecida em quatro períodos passando
depois a ser trabalhada em oito do total de nove períodos da Graduação, não só
conectando internamente seus vários temas, mas, em cada período, integrando-se
com os temas trabalhados nas demais subáreas.
Vale ressaltar que, anteriormente à implementação do currículo integrado, já
vínhamos caminhando nesse sentido: até a década de 80, oferecíamos as
disciplinas Psicologia aplicada à Enfermagem, em um período, ministrada por
psicólogo, e Enfermagem Psiquiátrica, em dois períodos (um de ensino teórico-
prático e outro de estágio supervisionado). Na década de 80, além das duas
disciplinas, iniciamos o ensino da Saúde Mental, voltado para o indivíduo sadio
com suas dificuldades e crises (também ensino teórico-prático em um período e
estágio em outro); o estágio dessa disciplina integrava os conteúdos da saúde
mental às atividades desenvolvidas no hospital geral. Em 1993, optamos por
extinguir a disciplina Psicologia aplicada à Enfermagem, cujos conteúdos foram
assimilados pela Saúde Mental, e começamos a usar uma nova metodologia,
utilizando dinâmicas de grupo e valorizando os saberes da experiência de vida
dos estudantes.
2 Construindo o conhecimento a partir das próprias referências
Na implementação do novo currículo, em 1996, duas de nós já desenvolviam, há
cerca de 6 anos, o projeto Vivendo Vivências (projeto de extensão realizado com
alunos do Internato), cujo objetivo é sensibilizar o aluno para a compreensão
do outro a partir dos seus referenciais internos, visando a construção de um
modo cuidadoso de ser enfermeiro. Nesse projeto, desenvolvíamos ainda a
integração com a área de enfermagem fundamental, realizando dinâmicas sobre
banho, alimentação e comunicação, entre outras. E desenvolvíamos também, há
três anos, uma nova metodologia no ensino da Saúde Mental, com a utilização de
dinâmicas, vivências de sensibilização, exercícios corporais e grafismo, cujo
objetivo principal era a ampliação do auto-conhecimento, somente após sendo
introduzidas a bibliografia e as explicações teóricas. Essa experiência nos
alicerçou por ocasião da implementação do currículo integrado.
Quando os professores de Educação em Enfermagem e Saúde Pública, do 10 período,
solicitaram a colaboração do projeto Vivendo Vivências a fim de desenvolver
temas que favorecessem a compreensão dos alunos em relação aos modos de viver
dos moradores de duas comunidades carentes nas quais desenvolviam atividades,
selecionamos Percepção e Comunicação, visando trabalhar os aspectos subjetivos
a partir das vivências dos alunos.
Percebemos então a necessidade de desenvolver um trabalho mais amplo de
instrumentalização dos estudantes para atuação junto à clientela nos diferentes
campos e sugerimos que a Saúde Mental absorvesse novos temas e percorresse oito
períodos do curso, entendendo que era importante utilizar as estratégias
adotadas pelo projeto Vivendo Vivências, que visam aproximar o estudante do
contato consigo mesmo, valorizando a percepção de seus referenciais internos,
sentimentos, sensações, pensamentos e emoções como etapa inicial para a
construção de um cuidador.
Entendíamos, ainda, que todos os conhecimentos teórico-práticos sobre a
assistência de enfermagem e as patologias trabalhados ao longo da graduação
fossem muito importantes, eram insuficientes para formar um cuidador, um
enfermeiro que pudesse proporcionar um cuidado de qualidade a uma pessoa
singular, percebendo-a como pessoa circunstancialmente adoecida, que fala,
sente, articula pensamento, sentimento e ação, tem uma história de vida marcada
por aspectos objetivos e subjetivos, na qual o adoecimento e o cuidado têm
significado.
O que marca a diferença nessa trajetória é que antes ensinávamos a lidar com o
outro, com a doença do outro. A partir da mudança, passamos a ter como
referência o Eu, entendendo que é uma primeira etapa, fundamental para melhor
compreender esse outro. Perceber os próprios sentimentos, sensações, emoções,
pensamentos implica dar-se conta de que as mazelas do outro também estão em si.
E a partir do contato consigo mesmo, das descobertas de si, de sua
subjetividade, o aluno vai se tornando apto para a escuta e o acolhimento do
outro. Dessa maneira, ele vai construindo o seu conhecimento e não só
absorvendo aquilo que está nos livros e foi construído por outras pessoas.
Trata-se de ampliar a competência emocional dos alunos, sua capacidade de lidar
com as próprias emoções e com as do outro. Vale ressaltar que alguns deles têm
muita habilidade para as relações interpessoais (e em geral são os que mais
aderem às atividades); outros parecem tê-las menos desenvolvidas; de toda
maneira, elas podem ser ampliadas ou aprendidas. Alguns alunos resistem a essa
possibilidade e não os forçamos; outros vão se aproximando, à sua maneira, e,
por vezes, somos surpreendidos com os resultados.
Era incômoda para nós, a idéia do senso comum de que o enfermeiro, no contato
constante com as dores humanas, se torna necessariamente frio a medida que o
tempo passa. Entendíamos que isso ocorre quando a pessoa não se permite fazer
contato com suas sensações, seus sentimentos, suas emoções, contato que vai
auxiliando a discriminar o que é seu e o que é do outro. Assim, propusemo-nos a
auxiliar os alunos a desenvolver contato com seu pedaço ferido (o que constitui
um paradoxo em nossa profissão: as dores das próprias feridas nos sensibilizam
para a vulnerabilidade do outro) a fim de tornarem-se cuidadores caracterizados
como instrumentos refinados na arte de cuidar(2).
Vale ressaltar ainda o investimento que cada um de nós vem fazendo na própria
construção, através de cursos, formações e terapias, em diferentes correntes
(Reichiana, Gestalt, Psicanálise, Bioenergética), a fim de aprofundar o
conhecimento e utilizá-lo para assegurar o suporte no trabalho com o aluno.
3 Como trabalhamos
A metodologia que adotamos, nos quatro primeiros períodos, foram a
Gestalterapia, a abordagem Fenomenológica - existencial e a Pedagogia da
Problematização. O princípio comum às três é a idéia de que a pessoa pode
transformar-se e transformar sua relação com o mundo e, com a vida, a partir do
contato consigo mesmo, do conhecimento de si, da tomada de consciência que a
torna mais responsável e mais livre.
Assim, o tema que abordamos inicialmente, no primeiro período é a percepção.
Levamos o estudante a experimentar o mundo que o cerca, a dar-se conta de que
ele capta o mundo através dos órgãos dos sentidos e o decodifica de acordo com
sua subjetividade. O estudante vai fazendo contato com o seu corpo, seu jeito
de andar, de olhar, de ouvir, de tocar, de degustar; vamos a um parque e lá ele
escuta o silêncio e a natureza, percebe o macrocosmo, o microcosmo, o barulho
das águas, experimenta andar de olhos fechados, depois abertos. A partir daí
vai ficando mais nítida a diferença que existe entre ele e o outro, gerando
diferentes percepções e emoções.
No segundo período, trabalhamos o desenvolvimento humano a partir de fotos que
os alunos são solicitados a trazer e de textos que eles redigem sobre sua
infância, sua adolescência, para somente após desenvolverem leituras sobre
esses temas e discuti-los. Trabalhamos a representação de família dos alunos,
com seus aspectos culturais; eles vão fazendo contato com suas pessoas
significativas e percebem como o cuidado foi / é importante em suas vidas. A
partir da compreensão de que esse suporte externo é fundamental para a
segurança interna, estabelecemos articulação com a maneira como nós,
enfermeiros, nos comunicamos com os clientes.
No terceiro período, momento do início das práticas no hospital, a Saúde Mental
trabalha crises situacionais e relação de ajuda. Partimos das vivências de
crises situacionais dos alunos, como ajudados e/ou ajudadores para, a seguir,
incluir a fundamentação teórica e o desenvolvimento da relação de ajuda com os
clientes (com os quais estão convivendo nas aulas práticas da subárea Saúde,
Trabalho e Meio Ambiente), analisando seus próprios aspectos em jogo, nessas
relações.
No 40 período, trabalhamos estresse e reações psicossomáticas, inicialmente
levantando as experiências dos alunos relacionadas ao surgimento de reações
psicossomáticas. Nosso objetivo é levar o aluno a refletir acerca da pessoa
como unidade corpo/mente, compreendendo suas reações à luz de sua história de
vida, contextualizada, a fim de construir estratégias mais sensíveis de
intervenção de enfermagem.
No 60 período, quando são desenvolvidos conteúdos sobre o cuidado ao paciente
crítico, na subárea Saúde do Adolescente, do Adulto e do Idoso e o Mundo do
Trabalho, a Saúde Mental analisa as questões que envolvem vida, sofrimento e
morte, a dimensão subjetiva e as atitudes e sentimentos diante da morte,
levando em conta aspectos sociais e culturais. A Saúde Mental integra seus
conteúdos, também, neste período, à subárea Saúde da Mulher e da Criança,
trabalhando temas como: a gravidez e sua repercussão na vida do casal e da
família; casal grávido. Acolhimento do bebê nas primeiras horas de vida, recém-
nato com anomalias ou risco de vida, criança hospitalizada, entre outros. São
analisadas situações (trazidas pelo professor e pelos alunos) que coloquem em
cena o tema em pauta, a fim de que o aluno compreenda as possibilidades e
limites das ações de enfermagem em saúde mental, junto ao grupo familiar ou a
um de seus elementos em dificuldade.
Os conteúdos oferecidos no 70 período são os da assistência de enfermagem à
pessoa que apresenta transtorno mental. Valorizamos trabalhar as representações
de loucura dos alunos, os sentimentos despertados à idéia de entrar em contato
com pessoas que apresentam transtorno mental, com o hospital psiquiátrico. E
vamos fazendo sucessivas aproximações com nossos clientes, entremeadas com
aulas teóricas, utilização de filmes e discussões sobre os temas.
No 80 período, os conteúdos de Saúde Mental são integrados ao estágio realizado
no ambulatório (tema desenvolvido em outro trabalho, neste número da revista) e
na unidade de internação de doenças infecto-contagiosas, tendo como proposta
desenvolver no aluno uma escuta diferenciada e uma reflexão sobre a mobilização
dos clientes decorrente da doença e da internação, levando em conta também os
fatores sociais, políticos e culturais envolvidos. É um momento importante de
trabalho com expectativas, percepções e sentimentos dos alunos face à dor e ao
sofrimento dos clientes. É também uma oportunidade de reflexão do aluno sobre
perdas, morte, sexualidade, família, fantasias e temores relacionados ao risco
de exposição ao vírus da AIDS durante o cuidado; muitas vezes ele questiona
seus valores e seus posicionamentos na vida, ao longo do trabalho de elaboração
de suas ansiedades.
Nesse período, como nos demais, trabalhando com o pressuposto do homem como um
ser holístico, contrapomo-nos ao modelo biomédico, ainda hegemônico na área da
saúde.
No 90 período, momento do estágio na instituição psiquiátrica, apesar de toda a
fundamentação anterior, as crenças e representações sobre o louco e a loucura
reaparecem de forma perturbadora, sobretudo quando o aluno percebe como é tênue
o limite entre a sanidade e a loucura. Na busca de respostas, com o
acompanhamento próximo dos professores, vai superando (alguns mais, outros
menos) a angústia e o medo. Entretanto, com a reforma curricular e a introdução
das novas subáreas, de novos campos de estágio, houve grande diminuição da
carga horária destinada a esse estágio, o que tem sido uma dificuldade, na
medida em que o aluno necessita de tempo (que é subjetivo) para estabelecer
contato com suas vivências e poder construir uma relação, uma forma de cuidado
com o cliente.
4 Considerações finais
Entendemos que cabe a nós, educadores, acompanhar a construção do enfermeiro
que está sendo gerado em cada estudante, ajudando-o a se aproximar do seu mundo
subjetivo, o que ampliará sua capacidade de cuidador. No campo da Saúde Mental,
particularmente, as interrogações em relação ao outro (cliente) fazem surgir
questões em relação a si mesmo, portanto o ensino teórico não pode ocorrer
separado da reflexão, do contato consigo mesmo, do desenvolvimento da
sensibilidade.
Quando a enfermagem é [...] indiferente à possibilidade de o sujeito
viver o seu sofrimento, usando a tecnologia disponível para calar a
expressão da sua produção psíquica [...] sem o desdobramento crítico
[...] sem o desenvolvimento de uma tecnologia da sensibilidade, ela
pode não ter força suficiente para evitar a repetição das práticas
historicamente herdadas da vigilância endurecida e do controle
disciplinar(3:194).
Visamos consolidar o trabalho do enfermeiro como prática social, reflexiva,
numa visão que extrapole o modelo biomédico, o trabalho apenas técnico e o
aspecto curativo. Estimulamos os alunos a entender as reações do cliente como
resultado singular de uma gama de fatores, para as quais o enfermeiro não tem,
obrigatoriamente, uma resposta objetiva, uma solução mágica, o que não invalida
a importância do trabalho com os aspectos subjetivos, oferecendo uma acolhida
qualificada, uma escuta diferenciada, um suporte que auxilie o cliente a
analisar a experiência que está vivendo e a encontrar recursos dentro de si
para fazer face á ela.
Não estabelecemos mínimos exigidos em termos do crescimento da competência
emocional do aluno, nem contamos com resultados uniformes. Sabemos que cada
aluno vai até onde pode, alguns apresentando resultados mais visíveis do que
outros.
Ainda que não tenhamos um número de turmas formadas que nos permita apresentar
resultados mais consistentes, temos as avaliações feitas pelos alunos que, em
sua maioria, consideram que este trabalho propiciou uma aproximação consigo
mesmo e com o cliente, sobretudo no que se refere ao desenvolvimento da escuta,
do respeito e da empatia com o sofrimento do outro. Isso significa que estamos
conseguindo aliar o desenvolvimento da competência emocional ao da competência
técnica dos estudantes, tornando-os melhores cuidadores.