Como os enfermeiros percebem a sua atuação nos conselhos de saúde?
1 Introdução
A participação da população foi incorporada como diretriz do Sistema Nacional
de Saúde na Constituição Federal, no inciso III do artigo 198, Seção II(1),
como resultado de muitas lutas e pressões conduzidas pelo movimento sanitário
brasileiro, a partir de meados da década de 1970.
Essas lutas, protagonizadas por amplos movimentos sociais, expressam a
tentativa de ampliar esferas públicas, conquistas e direitos, e tiveram um
papel fundamental na construção do Estado e da sociedade brasileira a partir de
1980, início do período de transição para a democratização no país.
Essa nova visão da participação, que aqui se denomina de participação
social, ao pretender dar conta das relações entre o conjunto dos
segmentos sociais e o Estado, não se apresenta propriamente como
proposta de um sujeito social específico, mas vai ganhando o status
de um modelo geral/ideal de relação Estado-sociedade(2:25).
A Lei Orgânica da Saúde, lei federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, no
Capítulo II, art. 7º, inciso VII(3), explicita mais detalhadamente o que está
disposto na Carta Magna a respeito da participação da comunidade, e a lei
federal nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, dispõe sobre essa participação no
Sistema Único de Saúde (SUS)(4).
A lei n. 8.142/90, em seu artigo 1°, determina a participação da comunidade no
setor da saúde por meio de duas instâncias colegiadas, a Conferência de Saúde e
o Conselho de Saúde. Presentes nas três esferas do governo, essas instâncias
conformam o que, na atualidade, denominamos de mecanismos de controle social na
saúde.
Em Goiânia, tem-se observado que a participação dos enfermeiros nos Conselhos e
nas Conferências de Saúde tem avançado a partir de 1995. O processo da
municipalização, descentralizando as ações de saúde, tem alavancado a criação
dos Conselhos Locais, e os enfermeiros têm contribuído nesse processo.
Pode-se observar que existem enfermeiros participando como membros dos
Conselhos Municipais e do Estadual e outros coordenando os Conselhos Locais de
Saúde. Verifica-se que a presença desses profissionais nas Conferências de
Saúde demonstra que eles estão preocupados em dar sua contribuição.
Esse artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada A Participação dos
Enfermeiros nos Conselhos de Saúde em Goiânia, Goiás. Uma das motivações para a
escolha desse objeto de estudo deve-se à implicação dos investigadores com
movimentos de organização política no setor da saúde e na enfermagem, pois,
como presidente da Associação Brasileira de Enfermagem da Seção Goiás na gestão
1998-2001, tivemos a oportunidade de representar a entidade no Conselho
Municipal de Saúde (CMS) de Goiânia como Conselheiro Titular e como Conselheiro
Suplente representando o Sindicato dos Enfermeiros do Estado de Goiás, no
Conselho Estadual de Saúde; ainda continuamos no Conselho Municipal de Saúde,
no momento representando a Universidade Católica de Goiás.
Como membros da Comissão de Acompanhamento e Assessoria aos Conselhos Locais de
Saúde de Goiânia, acompanhamos a participação dos enfermeiros tanto nesses
Conselhos e no CMS quanto em outras instâncias de controle social, como o
Conselho Estadual de Saúde, ou como delegados, no Orçamento Participativo do
município de Goiânia.
Pudemos observar que, no dia-a-dia, até enfermeiros aposentados davam a sua
contribuição. Isso nos levou a indagar pelos motivos que levam esses
enfermeiros a esse agir, quais as suas concepções e os seus propósitos e que
dificuldades são por eles enfrentadas, bem como a forma que percebem a sua
atuação nesses fóruns, sendo apenas essa última abordagem tratada no presente
artigo.
Embora o enfoque social da profissão, como o compromisso social, ético e
político, venha sendo tratado por diversos autores, entendemos que ainda seja
pouco tratado na literatura de enfermagem. Por isso, propomo-nos fazer um
estudo sobre esse tema, levando em conta, num primeiro momento, apenas os
enfermeiros, pela posição de coordenadores que ocupam em relação à equipe de
enfermagem.
Como trabalhadores do SUS, os enfermeiros atuam em centros de saúde, hospitais,
prontos-socorros, Programas de Saúde da Família, postos de saúde e unidades de
pronto atendimento exercendo funções relacionadas à gerência, ao cuidado, à
educação permanente, promoção da saúde, pesquisa e assessoria(5).
Tanto os campos de atuação como as funções citadas permitem um contato direto
com as demandas e necessidades de saúde das coletividades, conferindo ao
enfermeiro um conhecimento da problemática de saúde da sua região, o que é
fundamental para o controle social no setor da saúde.
É importante o compartilhamento entre enfermeiro e clientela nos processos e
mecanismos de luta popular como Conselhos de Saúde, Conferências e Orçamento
Participativo entre outros:
É constatável que o trabalho compartilhado entre profissional de
saúde e clientela traz imenso benefício para o processo da luta
popular pela garantia de direitos e para a visibilidade do
profissional de enfermagem como aquele que está ao lado das pessoas e
coletividades, na qualidade de trabalhador de saúde e atuante cidadão
defensor das políticas de bem-estar social(6:12).
Ao se pensar claramente sobre a quem os enfermeiros estão servindo, será
possível identificar quais as alianças e os pactos assumidos na prática
cotidiana, pois é esta que delineia a imagem pública do profissional "e não o
discurso acadêmico idealizado"(6:13). E completa:
Na visualização de espaços vazios ou pouco trabalhados, carentes de
atuação política, duradoura e aberta a inovações, a enfermagem deve
ser capaz de reconhecer onde sua força de trabalho tem mais
significado para as pessoas e coletividades(6:14).
Este estudo tem como objetivo analisar como as enfermeiras que participam dos
Conselhos de Saúde em Goiânia percebem a sua atuação nesses fóruns.
2 Metodologia
No intuito de captar informações que comumente não são apreensíveis por
metodologias preocupadas com a generalização, optou-se por uma abordagem
qualitativa pois esta
incorpora a questão do significado e da intencionalidade como
inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas
últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação,
como construções humanas significativas(7:10).
Do cenário do estudo fizeram parte o Conselho Municipal de Saúde de Goiânia,
Goiás, o Conselho Estadual de Saúde, sediado em Goiânia, e os Conselhos Locais
de Saúde localizados nas Unidades de Saúde do município, coordenados pelo
Conselho Municipal.
Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos entre os enfermeiros que atuam ou
atuaram nos Conselhos Estadual, Municipal ou Locais de Saúde a partir de 1995 e
que aceitaram participar do estudo. Esse período foi escolhido por duas razões:
os Conselhos de Saúde já se encontravam mais consolidados nessa época e foi
nesse período que a Associação Brasileira de Enfermagem - Seção Goiás deu
início à sua representatividade nos Conselhos.
Outro critério utilizado para a escolha dos sujeitos foi o de região do
município, de modo que contemplasse a atuação dos enfermeiros conselheiros nas
diversas regiões.
As informações foram colhidas por meio de entrevista não estruturada,
reconhecendo-a como uma situação de interação pesquisador/pesquisado(7).
O encerramento do número de entrevistas deu-se quando foram entrevistadas as
representantes de todos os segmentos que compõem o sistema paritário de
representatividade nos Conselhos de Saúde do município de Goiânia em diferentes
regiões. Foram analisadas 14 entrevistas com enfermeiras conselheiras.
O anonimato foi preservado(8). Foram feitos os esclarecimentos necessários,
explicação detalhada do estudo e colhida a assinatura no Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
Todas as entrevistadas são mulheres, 14,2% com idade entre 20 e 30 anos; 42,9%,
entre 31 e 50 anos, e 42,9%, acima de 51 anos. Existe um pequeno número de
enfermeiras formadas há pouco tempo, nos Conselhos de Saúde. A maioria formou-
se antes da criação dos Conselhos de Saúde em Goiânia, isto é, antes de 1991.
Quanto ao local de trabalho, 78,6% trabalham na Secretaria Municipal de Saúde;
14,3%, em universidades, como professores, e 7,1% são aposentadas. A maioria
revela que atuou ou ainda atua em outras frentes de movimentos comunitários.
Das entrevistadas, 85,8% possuem especialização, que são, em sua maioria (57%),
em Saúde Pública, e 50% fizeram o Curso de Capacitação para Conselheiros
promovido pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria Estadual de Saúde em abril
de 2003. Esse foi o primeiro curso mais sistematizado oferecido aos
conselheiros do município de Goiânia.
Para o tempo de participação nos Conselhos, observamos que 71,6% dos
enfermeiros situam-se entre dois e quatro anos, tempo, a nosso ver, suficiente
para adquirir uma razoável experiência.
Quanto à representatividade desses profissionais, pode-se perceber que as
enfermeiras estão fazendo parte de todos os segmentos que compõem o sistema
paritário dos Conselhos de Saúde, pois 43% são representantes dos gestores,
14,2% representam os usuários, 35,7%, os trabalhadores em saúde e 7,1%, os
prestadores de serviços de saúde.
Para a análise das informações, foi considerado o quadro epistemológico da
proposta de Análise do Discurso(7), a qual trabalha a linguagem como unidade
significativa e pragmática, expressando o contexto situacional pelo sentido.
3 A percepção da própria atuação pelas enfermeiras
Existem diferenças significativas nos modos como as enfermeiras conselheiras
percebem a sua atuação. As formas de percepção relacionam-se ao contexto e à
subjetividade de cada uma delas.
As conselheiras representantes dos usuários dizem:
Eu tenho muito interesse em estar participando das reuniões,
refletindo com o grupo, discutindo os problemas, analisando a
situação e a gente tentando dar resolutividade aos problemas que são
abordados, destacados [...](E7).
Ela diz ainda:
[...] porque fui escolhida pela comunidade como representante dos
usuários, houve uma eleição toda é... criteriosa, as pessoas escolhem
a gente, então é um privilégio estar representando(E7).
A fala traduz uma postura de respeito com o usuário e de reverência com o cargo
que ocupa, considerando um privilégio a representação.
Eu analiso a minha participação como boa... boa. Sou assídua, não
falto às reuniões, tento, realmente, levar alguma contribuição nas
nossas reuniões mensais, depois a gente tenta repassar para a
comunidade(E2).
Essas falas traduzem o pensamento de que a sua participação no Conselho é
importante, por isso, há o interesse para uma efetiva contribuição.
Ser assíduo, refletir com o grupo, discutir problemas, analisar situações,
resolver problemas são, como se sabe, um trabalho árduo e longo, pois envolve
tanto a autoprodução como a produção de outros sujeitos coletivos para a
autonomia e apreensão de responsabilidades sociais.
Uma representante dos gestores diz:
Eu cheguei no Conselho nua e crua; eu acredito que aprendi muito, eu
mais aprendi com eles do que passei, e estou vendo a minha
participação como um crescente aprendizado em relação ao controle
social, à minha profissão e ao sistema de saúde (E10).
Essa entrevistada é gestora, mas se coloca na posição de aprendiz no Conselho,
na busca de crescimento. Outra expressão dela em relação a sua atuação é:
Eu me sinto bem; eu me sinto bem em estar junto com a população,
junto com esses conselheiros, porque nosso Conselho é aberto à
população e a população que não é conselheira também participa
ativamente desse Conselho (E10).
Percebe-se um entusiasmo na fala de E2, motivado, certamente, pela participação
de todos no Conselho, o que coincide com a fala de outras entrevistadas quando
afirmam que o envolvimento da comunidade é estimulador para elas.
Outra gestora percebe a sua atuação da seguinte forma:
[...] Eu acho que é motivo de preocupação quando existe
corporativismo. Agora, analisando a minha participação é uma coisa
que me preocupa, é que haja realmente um questionamento, que os
conselheiros tenham aquele senso crítico, de participar, eu tento
sempre me policiar para que isso não aconteça, eu enquanto gestora...
nós não podemos cair nessa tentação de monopolizar... eu tenho me
preocupado com isso, com o crescimento dos conselheiros, que sejam
autônomos, que representem, e que não haja corporativismo (E1).
Essa fala revela preocupação com a ampliação da politização em relação aos
conselheiros.
São duas falas diferenciadas em razão do tempo de participação, uma gestora
participa do Conselho há apenas sete meses (E10) e a outra, há quase quatro
anos (E1). Percebe-se a evolução da politização nas falas, que se traduz no uso
de termos como questionamento, autônomos, monopolizar, corporativismoe que nos
permite visualizar como os sujeitos se autoproduzem no exercício democrático.
Assim, para revolucionar a base da sociedade, é necessário transformar "a
cabeça e o comportamento de cada trabalhador, alterando as normas e
procedimentos de cada e da maioria das instituições e modificando a cultura e a
distribuição de poder em toda a sociedade". Acreditamos nessa possibilidade ou
nos "descabelamos" ou nos "transformamos em neoliberais: que tudo se privatize
e que cada um cuide do seu próprio interesse".(9:46)
As enfermeiras conselheiras gestoras demonstram acreditar nessa possibilidade
de transformação, como vimos, e expressam as contradições do seu contexto
vivencial, como se transformar primeiro em aprendiz, policiar-se para não
monopolizar, preocupar-se com a politização dos usuários e outras.
Outra dimensão notada nas falas é que a existência da busca ou do exercício da
democracia permite a explicitação de conflitos os mais diversos advindos dos
interesses, dos preconceitos, das diferenças e dos egoísmos de cada grupo ou
segmento, os quais devem ser tratados cotidianamente, regularmente. Nesse
ponto, as conselheiras gestoras têm um papel preponderante no encaminhamento
dessas questões, o que preocupa a entrevistada E1, quando se refere aos
corporativismos.
A representante dos prestadores de serviços no Conselho Estadual, no caso a
Universidade, diz: Eu creio que o meu papel fundamental lá é de apoio técnico,
porque é uma das coisas que mais faltam pras pessoas poderem tomar uma decisão
(E13).
A conselheira percebe, como docente, os limites de outros participantes na
capacidade de intervenção política evidenciada pelo despreparo técnico e
posiciona-se como elemento de apoio, como referido. Ela diz sentir-se
Algumas vezes impotente, algumas vezes frustrada, outras vezes
satisfeita, conforme as coisas vão se passando; por exemplo, faz-se
um projeto estabelecendo metas para os municípios, cobertura vacinal,
quanto vai melhorar a mortalidade infantil, quanto que vai ter de
controle de DST etc., que, no final do ano, daria agilidade no
sentido de identificar os problemas e transformar em soluções, em
propostas razoáveis, só que, infelizmente, os municípios não dispõem
de técnicos para elaborar essas propostas então, passou, mas não
passou, passou teoricamente, não funciona e a gente tem que
compreender por quê(E13)
A conselheira expressa um sentimento de impotência resultante da não-
resolutividade dos problemas por despreparo técnico dos recursos humanos nos
municípios, no sentido de elaborar propostas com base em resultados de projetos
estabelecidos com metas para a atenção à saúde.
Um dos motivos de a Reforma Sanitária não ter avançado mais em relação à
resolutividade está relacionado à ausência da articulação entre instituição de
ensino e serviço. A qualificação dos recursos humanos para a saúde deve partir
de situações concretas e consonantes com a política de saúde(10). Como refere a
mesma entrevistada,
[...] eu acredito que o principal problema hoje é a capacitação dos
profissionais de saúde. Capacitar os profissionais para a sua
realidade, para ter uma maior eficiência no trabalho. Eu acho que
esse é o fundamental. Não só para os profissionais que estão lá na
ponta, mas no nível central(E13).
Uma representante dos trabalhadores no Conselho Municipal diz:
A minha participação poderia ser muito boa, poderia [...] e às vezes,
algum dia, eu possa vir a ser uma boa conselheira [...] eu estou
presente, mas eu não teria capacitação para apresentar propostas que
beneficiasse [...] para a enfermagem e para a população
conseqüentemente; então hoje eu me acho uma conselheira medíocre, mas
estou sabendo escutar(E14).
A enfermeira/conselheira coloca-se numa posição dequase ouvinte porque se
considera despreparada para enfrentar os desafios decorrentes das complexidades
que o papel de conselheiro exige. Ela vai ainda mais longe:
Eu me sinto tímida e me sinto também escanteada, escanteada não por
colegas, eu me escanteio, eu me ponho na reserva, talvez pela minha
insegurança de expor [...](E14).
A problemática da formação para uma qualidade política é expressa nessa fala em
que a conselheira expõe a sua insegurança para a participação no Conselho. Esse
fato dá o que pensar, isto é, refletir criticamente sobre a politicidade
versusinstrucionismo imperante no ensino de Enfermagem.
Com respeito à qualidade política, além da óbvia conveniência do exercício
próprio da cidadania, participar do sindicato, por exemplo, torna-se crucial
aflorar no saber pensar o saber intervir. Sem desvincular artificialmente
qualidade formal e política, precisa potenciar as energias disruptivas da
capacidade de argumentar, fundamentar, pesquisar, elaborar, de tal sorte que o
conhecimento formal compareça como estratégia diretamente conectada com a
possibilidade de intervenção alternativa. Não é assim que, primeiro se faz a
qualidade formal, e somente depois se pensa na qualidade política(11).
Percebe-se que existem diferenças entre a atuação de uma enfermeira conselheira
representante de trabalhadores em âmbito local e de uma outra em âmbito
municipal, pois, nos Conselhos Locais, a percepção da própria atuação é
propositiva, as enfermeiras sentem-se, de forma geral, mais capacitadas em
relação ao seu papel que os demais conselheiros, com exceção das mais novas,
com menos tempo de atuação.
Nesse ponto, é possível questionar as nossas diferentes posturas em relação aos
demais conselheiros quando estamos na ponta dos serviços (nível local) ou num
patamar mais elevado na hierarquia desses serviços ou Conselhos.
Também, pode-se reportar a um aspecto abordado por Gerschman(12) sobre a
necessidade da construção de sujeitos sociais capazes de reproduzirem a
democracia.
Há também expressões de frustração na atuação, como na seguinte fala da
representante dos trabalhadores:
Olha, frustrada, não é? Porque a população não participa [...] então
eu fiquei um pouco assim [...] triste com isso [...] mas ninguém
quer, ninguém se dispõe a trabalhar, passar um sábado numa reunião,
domingo, uma reunião o dia todo, isso me deixa um pouco frustrada
(E6).
Essa fala expressa a frustração e tristeza da entrevistada E6 pelo não-
envolvimento da comunidade.
A questão da participação dos usuários já foi tratada, entretanto, a fala
reporta aos meios que utilizamos e que podem não ter correspondência junto a
população. Não questionamos a esse respeito no momento da entrevista, mas pode-
se pensar no porquê das reuniões serem aos sábados ou domingos e o dia todo.
Como representa os trabalhadores, a fala dessa entrevistada E6, também,
coincide com outras em relação a querer a presença da comunidade nas
reivindicações.
Pode-se perceber que as políticas de saúde estão sendo construídas, os espaços
de participação, embora incipientes, estão abertos, o corpo teórico relacionado
à participação social em saúde vai-se conformando gradativamente e crescendo em
importância, até com reconhecimento internacional, várias estratégias para
provocar mudanças são utilizadas como laivos reformistas e governos populares.
Entretanto, esses fatores não se traduzem em um salto maior na resolutividade
dos problemas de saúde da população.
Campos(9) julga que um dos motivos dessa situação é que não se tem dado a
importância devida aos processos de produção de sujeitos sociais dotados de
vontade política e de projetos de reformas. Portanto, nada vai acontecer se não
houver a incorporação dos profissionais de saúde ao projeto da Reforma
Sanitária(9).
Campos(9) com base em Gramsci, diz que a existência de sujeitos autônomos e
instituições democráticas podem acontecer no dia
[...] em que descobrirmos que todo homem pode ser um filósofo,
sujeito, gestor do bem estar da civilização. Todos, sem exceção de
renda, raça, credo, escola, partido, religião e nacionalidade. [...]
Todos(9:78).
Nesse sentido, a escola e as organizações produtoras de bens culturais e outros
podem desempenhar um papel importante na formação humana, modificando o papel
de sujeição, de alienação, de 'engessamento' e de mediocridade das pessoas.
De acordo com a representante dos trabalhadores,
[...] por um lado, realizada porque é uma conquista, a gente não pode
negar essa conquista, mas, por outro lado, muito frustrada, porque a
gente vê que ainda não existe muita [...] credibilidade, sabe,
conselheiros ainda são vistos como pessoas que não são bem quistas
pelos gestores de uma forma geral [...](E5).
A conselheira expressa frustração porque percebe-se malvista pelo gestor, ao
ser considerada como fiscal, como diz:
[...] então, essa visão, como você está me fiscalizando, e aí a
cultura, não é? Você está querendo pegar o que eu estou fazendo de
errado e não o que eu estou fazendo de certo [...](E5).
Mas, ao mesmo tempo em que se percebe frustrada, ela pensa que é uma honra:
[...] você ter o prazer, você ter a honra, porque é uma honra você
ser representante, você considerar essa representação como uma
responsabilidade e falar realmente em nome de uma comunidade [...] um
líder, um representante de 100, 200, 300 pessoas [...](E5).
Considera o seu cargo uma honra, um cargo de relevância pública. Finalmente,
pode-se considerar que o pensamento dos enfermeiros conselheiros sobre a sua
atuação expressa-se de diversas formas, dependendo da situação e das
contradições que permeiam a condição real vivenciada com os desejos de
mudanças.
As entrevistadas expressaram suas perspectivas em relação à atuação e aos
Conselhos, algumas demonstraram preocupação relacionada à ingerência de
políticos nos Conselhos, à ausência de infra-estrutura que garanta a
participação e à questão da autonomia.
Entretanto, as perspectivas, de modo geral, são de esperança de mudanças
relacionadas à capacitação de maior número de conselheiros, à possibilidade de
crescimento da conscientização das pessoas para a participação, para a
cidadania e aos resultados já alcançados, apontando para a continuidade de
mudanças e a confiabilidade nas atuais gestões.
A fala que reporta uma perspectiva mais preocupada com o processo de ingerência
política no Conselho diz assim:
[...] a próxima chapa que vai entrar tem alguns interesses
(políticos) dizem; se for, eu não vou participar; eu posso ir até lá
pra brigar, pra falar [...] o gestor pode participar como ouvinte,
(com direito a voz) prefiro ficar de fora(E9).
A fala da entrevistada E9 denota preocupação com corporativismos no seu
Conselho. Ela ressalta que, se houver interesse corporativista, prefere ficar
como ouvinte, mas falar e brigar, se preciso. O de fora, no caso, significa não
ser membro efetivo. A esse respeito, todavia, uma outra conselheira diz:
[...] melhorou essa postura bairrista, corporativista, isso tem sido
assim sistematicamente barrado nas discussões dos Conselhos [...]
(E13).
As falas seguintes traduzem perspectivas de esperanças:
Eu tenho muita esperança de que esses Conselhos vão ter uma atuação
muito melhor e também depende da capacitação dos conselheiros(E11).
Agora, com esse curso de capacitação, eu tenho muita esperança que
isso vai melhorar, vai melhorar [...](E2).
[...] nas três esferas do governo, municipal, estadual, federal, a
gente percebe claramente que há um interesse crescente [...] e
discussões para melhorar ainda mais(E4).
[...] já teve grandes conquistas dentro da nossa Unidade de Saúde
(reforma do CAIS, chequinho), e em relação a outras Unidades (do
bairro), como o frigorífico que já falei [...] outras já foram
encaminhadas pro Conselho e eu espero que sejam atendidas, vamos
estar lutando pra isso(E10).
[...] e a mudança vem com a educação e educação é uma coisa que se
conquista, se constrói, não é? Eu acho que vai ocorrer isso aí, mas
num tempo demorado [...](E7).
As perspectivas dessas conselheiras, portanto, são de esperança, mesmo que
algumas mudanças concretizem-se a longo prazo, como a educação, geradora de
cidadania.
A propósito da educação para a cidadania, surgiu, recentemente, no Brasil
(agosto de 2003), a Articulação Nacional dos Movimentos e Práticas de Educação
Popular em Saúde (Aneps), que teve a sua primeira plenária no VII Congresso da
Abrasco, em Brasília, no início de agosto. Essa articulação conta com o apoio
do Ministério da Saúde e da Fiocruz e, a nosso ver, pode-se tornar um espaço
importante para a enfermagem brasileira, que tem, historicamente, inerente à
sua prática, a educação em saúde. Com esse apoio, as nossas esperanças também
se renovam.
4 Considerações finais
A percepção das enfermeiras quanto a sua atuação nos Conselhos expressa as
contradições entre uma situação real, concreta, e a transformação desejada e se
relaciona ao contexto e às subjetividades de cada enfermeira conselheira.
Assim é que foram considerados, pelas enfermeiras representantes dos usuários,
os aspectos de interesse em participar de reuniões de forma efetiva, assídua, o
refletir junto com o grupo, o conferir resolutividade aos problemas, o respeito
ao usuário, o privilégio de representar e a contribuição que podem dar.
As enfermeiras conselheiras que são gestoras preocupam-se em não monopolizar o
Conselho, em evitar corporativismos, em promover questionamentos e com o
crescimento da politização dos conselheiros.
A conselheira que representa os prestadores, no caso a Universidade, vê sua
atuação como de apoio técnico ao Conselho Estadual e considera muito importante
a sua participação pela contribuição que pode dar.
Em relação aos representantes dos trabalhadores, há que se considerar duas
dimensões: quando essa atuação se dá em âmbito local ou quando acontece em
âmbito municipal.
No âmbito municipal, a enfermeira conselheira pensa que sua atuação deixa a
desejar, pois considera-se despreparada para a função tanto no sentido político
como no técnico.
Nos Conselhos Locais, a atuação das enfermeiras conselheiras representantes dos
trabalhadores é percebida por si mesmas como propositiva, participante, com
maior qualificação para a função. As exceções reportam, naturalmente, às recém-
formadas ou mais novas nos Conselhos.
Expressões de gratificação, satisfação, realização, alegria, honra e privilégio
contrapõem-se às de frustração, impotência, insegurança, timidez, tristeza e
demonstram as contradições da práxis das enfermeiras conselheiras na dialética
entre o real e a utopia possível.
Esperamos que esse estudo possa contribuir para reflexões dos enfermeiros sobre
a nossa participação consciente, crítica e ativa na esfera social e, como
docentes ou não, sobre os processos de formação que possam apontar para a
emancipação cidadã, a politização de estudantes de enfermagem, trabalhadores e
usuários do SUS.