Relações assimétricas: sexualidade, saúde e poder em militares
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Relações assimétricas: sexualidade, saúde e poder em militares
Asymmetrical relationships: sexuality, health, and power in the military
Relaciones asimétricas: sexualidad, salud y poder en militares
Edilma de Oliveira CostaI; Raimunda Medeiros GermanoII
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Professora do Departamento de Enfermagem da
UFRN. E-mail do autor: edilma.costa@bol.com.br
IIEnfermeira. Doutora em Educação. Professora do Departamento de Enfermagem da
UFRN (Orientadora)
1 Introdução
As doenças sexualmente transmissíveis(DSTs) presentes em toda a história do
homem, na atualidade, consistem em uma das causas mais comuns de procura aos
serviços de assistência médica, nos países em desenvolvimento. De grande
repercussão social e econômica, em nível individual e coletivo, têm atraído a
atenção de cientistas, de outros profissionais e da população em geral.
Apesar da terapêutica seguramente eficaz, as DSTs são consideradas de alta
morbidade e trazem conseqüências como infertilidade, doenças neonatais e
infantis, gravidez ectópicas, câncer e até mesmo a morte, além de serem forte
fator predisponente a uma contaminação pelo HIV(vírus da imunodeficiência
humana).
Conforme dados do Ministério da Saúde, 237.588 casos de AIDS foram registrados
no Brasil até março de 2002(1). No Rio Grande do Norte, no período de 1983 a
2002, de acordo com estatísticas da Secretaria de Saúde Pública, foram
notificados 1.297 casos de AIDS em adultos(2).
Quanto ao perfil epidemiológico, é importante ressaltar que, na década de 80, o
grupo atingido era predominantemente homo/ bissexual masculino. Na atualidade,
os índices registram um aumento significativo de casos em mulheres e crianças
por via perinatal. No Brasil, no ano de 1985, a relação de casos entre homens e
mulheres era de 30: 1, hoje estima-se que seja de 2,7:1(1). Esses dados
evidenciam a vulnerabilidade ao HIV de qualquer pessoa exposta ao vírus
independente de cor, sexo, idade, estado civil, preferência sexual e condição
sócioeconômica(3).
Os homens foram considerados desde o início como responsáveis pela doença e,
assim, a AIDS pode ser denominada como o fenômeno masculino. Sua origem,
relacionada ao homossexualismo masculino, proporcionou posteriormente a
disseminação através de relacionamentos bi - heterossexuais.
Dentre os grupos de maior preocupação, pesquisa realizada em 1996, pelos
serviços de saúde do Exército, da Marinha e Aeronáutica, revela uma incidência
de AIDS entre os militares brasileiros. Assim, enquanto entre estes ocorre um
caso para cada 716 pessoas, no restante da população, ocorre 1 caso para cada
2000 habitantes(4).
Isso nos motivou a realizar este estudo, tendo como população alvo os homens
que fazem parte da Polícia Militar do RN. Trata-se de uma corporação cujas
atividades envolvem o uso do poder, intensa exposição aos relacionamentos
sexuais, por lidar com um grande público, o que pode conduzir mais facilmente
as DST/AIDS.
Ao assumir uma identidade masculina padronizada pela sociedade, os homens são
envolvidos em sua afetividade e intimidade, apesar de aparentemente terem uma
sexualidade liberada, eles não escolhem suas práticas, são desprovidos de
direitos sexuais e não procuram conquistá-los. Nesse sentido, o homem precisa
ser estudado no contexto de gênero ou da AIDS(5).
Neste sentido, em nossa dissertação de Mestrado entitulada: DST/AIDS: a
percepção dos policiais militares masculinos, procuramos identificar as
informações dos policiais militares sobre o tema; descrever a percepção destes
quanto ao risco de contaminação e as principais situações de risco nesse grupo;
e identificar a interferência das relações sociais de poder na percepção e
exposição ao risco de contaminação em DST/AIDS.
Neste artigo pretendemos apresentar um excerto do estudo realizado,
ressaltando, sobretudo, as relações de poder, identificando a interferência
dessas relações sociais no exercício da sexualidade e, conseqüentemente, na
percepção e exposição ao risco de contaminação em DST/AIDS. Procuramos, ainda,
focalizar as características do comportamento sexual masculino e feminino na
visão dos policiais militares, onde podemos reconhecer a sexualidade como marco
das desigualdades entre os sexos.
2 Marco teórico
Para o estudo do tema DST/AIDS, com enfoque na percepção dos pesquisados acerca
do risco de contaminação, torna-se necessário um aprofundamento sobre a
sexualidade humana, prática social e historicamente construída, desenvolvida
através de uma relação de poder.
A busca da compreensão a respeito da relação entre SEXO e PODER deve-se ao
reconhecimento de que, em nossa sociedade, as relações, entre os sexos,
reforçam uma desigualdade entre homens e mulheres, e isso tem contribuído com a
vulnerabilidade, a exposição ao risco de contaminação e conseqüentemente a
incidência e prevalência de DST/AIDS.
Através da educação, potencialidades são reforçadas ou reprimidas de acordo com
o sexo biológico. A caracterização social de homens e mulheres marca
profundamente a coletividade e acentua no homem pensamentos de imunidade contra
doenças e capacidade de enfrentar todos os perigos; na sua concepção, ele
raramente adoece e, quando acontece, na maioria das vezes, não precisa de
ajuda. A fragilidade da mulher é motivo para buscar assistência, embora não
tenha poder de decisão necessário a sua proteção.
Foucault(6), na obra História da sexualidade, faz uma análise histórica da
questão do poder, considerando um elemento capaz de explicar a produção e
reprodução de conhecimentos.
O autor identifica uma dicotomia entre poderes central e periférico (macro/
micro) como forças associadas. Existe uma articulação entre eles, de forma que
uma mudança em nível central se expande por toda a sociedade, assumindo formas
regionais e concretas, atingindo os indivíduos, penetrando em sua vida
cotidiana (micropoder).
A microfísica do poder trata de uma investigação de procedimentos técnicos de
poder que realizam um controle meticuloso do corpo, moldando as relações
sociais através de gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos,
incorporando, em nível individual, princípios filosóficos e conhecimentos
científicos(7).
Esses aspectos tornam-se relevantes ao nosso estudo, tendo, de certa forma,
direcionado a escolha da população a ser estudada - policiais militares do sexo
masculino. Trata-se de um grupo que provavelmente assume diferentes posições na
escala de poder, no quartel (subordinado) e no lar (dirigentes), comprovando
que o poder não está localizado em um ponto específico da estrutura social.
Esse pensamento pode ser relacionado ao que defende Goffman(8), em seu estudo a
respeito das Instituições totais, onde uma delas é a organização militar. As
normas nessas instituições são fortemente preestabelecidas a partir da formação
de novos integrantes, sendo enfatizados principalmente o respeito à hierarquia
e uma relação de poder, destinando aos dirigentes, a superioridade, e, aos
dirigidos, a submissão, acima de tudo. No novo ambiente, através de incentivo
ou punição, os conhecimentos e práticas são reformulados, afetando
provavelmente o relacionamento dentro e fora do ambiente militar(8).
Através dos estudos de Foucault(6,7) e de Goffman(8), fica claro que as
técnicas de exercício de poder não são apenas repressivas, discordando, assim,
da hipótese repressiva do poder. São feitas concessões com o intuito de
penetrar e controlar o prazer.
O relato histórico de Foucault refere-se às DSTs como um poder disciplinar,
estigmatizando como um erro moral, orientando uma modificação no comportamento
social, reconhecendo, ainda, que a propagação dessas doenças foi uma
conseqüência das concessões dadas, objetivando controlar o sexo, através do
domínio do discurso, com o intuito de conhecer e conter o comportamento
individual.
Carrara(9) apresenta, entre outros fatos, o reconhecimento dos médicos e
cientistas, desde o início do século XIX, de que a representação social das
doenças venéreas,especialmente a sífilis, é uma das maiores barreiras para a
resolução do perigo venéreo.
Assim sendo, sua contribuição torna-se imprescindível à direção que daremos ao
nosso estudo que busca a relação de poder em nível dos indivíduos (micropoder),
especificamente na interferência nas práticas sexuais, na percepção de risco e
na adoção de medidas preventivas(7).
3 Procedimentos metodológicos
Trata-se de um estudo de caso com base em uma abordagem qualitativa, a partir
dos discursos dos policiais militares, no que se refere ao exercício da
sexualidade. A particularidade de um grupo tem especial significado quando se
trata de questões discursivamente estruturadas, historicamente contextualizadas
e socialmente produzidas, reproduzidas e transmitidas(10).
A pesquisa foi realizada na corporação da Polícia Militar, na cidade de Natal -
RN, sendo os participantes policiais militares do sexo masculino (soldado,
cabo, sargento). Os dados foram coletados principalmente através de discussões
em grupos focais. Consideramos a entrevista de grupo focal como a reunião de um
grupo de pessoas, a respeito de um tema específico, com a finalidade de obter
dados em um contexto social, em que os participantes podem situar suas crenças
e valores do ponto de vista de seus semelhantes, reconhecendo a influência
histórico - social de sua prática(11).
Os grupos focais foram realizados em quatro unidades da Corporação da Polícia
Militar, em Natal - RN, sendo elas: Complexo Policial Norte (batalhão de
choque), 1ª Companhia de Trânsito, 5° Batalhão e Banda de Música, no período de
março a junho de 1998, perfazendo um total de 12 encontros com um total de 142
participantes.
Garantimos o direito de recusa (participação voluntária), o anonimato e ainda
assegurávamos que as informações só seriam utilizadas para o estudo.
Solicitamos o consentimento por escrito e a permissão para registrar e gravar a
reunião. Não houve recusas nesse sentido.
As reuniões foram orientadas por um roteiro do grupo focal, composto por
subtemas abordando as informações sobre DST/AIDS; os papéis do homem e da
mulher no lar e na sociedade; e ainda sobre as pessoas, comportamentos ou
situações, consideradas pelos participantes como de risco para contaminação em
DST/AIDS.
Para a análise dos dados, identificamos os pontos convergentes em cada grupo
focal, buscando a representatividade dos participantes e os elementos
significativos ao tema. Dessa forma, definimos três categorias de análise:
transmissão, prevenção e tratamento; percepção de risco; e relações de poder.
Neste artigo destacamos apenas a terceira categoria, ou seja, as relações de
poder.
4 Cartografia das falas: o dizer dos policiais militares
Para melhor identificá-los, colhemos dados referentes à idade, nível de
escolaridade, situação marital, categoria profissional (patente) e tempo de
serviço na polícia militar.
4.1 Quem são os participantes
Para melhor identificá-los, colhemos dados referentes à idade, nível de
escolaridade, situação marital, categoria profissional (patente) e tempo de
serviço na polícia militar.
Trata-se de uma maioria formada por soldados (69,8%), predominando a faixa
etária de 20 a 30 anos (76,1%), com escolaridade de 2º grau completo (76,05%),
e (54,2%) em união conjugal. Em relação ao tempo de serviço, o percentual mais
expressivo corresponde a um ano (37,3%) e até 5 anos(57,8%).
4.2 Relação de poder / sexualidade
Pretendemos, a partir de então, identificar a interferência das relações
sociais de poder no exercício da sexualidade e, conseqüentemente, na percepção
e exposição ao risco de contaminação em DST/AIDS. Procuramos, ainda, focalizar
as características do comportamento sexual masculino e feminino na visão dos
policiais militares, onde podemos reconhecer a sexualidade como marco das
desigualdades entre os sexos.
Reconhecemos que a sexualidade é variante e que sofre influência de mecanismos
repressores presentes na sociedade. A cultura modela a sexualidade individual
por meio de regras de comportamento, contribuindo para a reprodução das normas
na sociedade(6).
Assim, a repressão não é o elemento fundamental; o poder penetra e controla o
prazer cotidiano, através de técnicas polimorfas de poder. Estas técnicas vão
estabelecer o que se chama de microfísica do poder. O corpo, sendo alvo de
poder, caracteriza uma submissão real, onde o indivíduo garante um controle
sobre si mesmo(6).
Direcionando esses princípios para os relacionamentos sexuais, podemos
identificar, nos discursos dos policiais militares, o grupo masculino sendo
condicionado a não controlar seus instintos; são incentivados a se desviar dos
comportamentos socialmente recomendados, contrariando o próprio instinto de
preservação, como mostram os depoimentos dos Policiais Militares: O homem só
faz o que quer, como podemos controlar o ser humano? Às vezes está informado,
mas não se contém. Cada um de nós tem um instinto de preservação [...] o
instinto de preservação faz com que a gente estude, leia um livro, passe para o
filho o que é certo e o que é errado [...].
Como podemos observar, o poder não está localizado em um ponto específico. O
homem, considerado dominante no exercício da sexualidade, na verdade não decide
sobre o seu comportamento; caracterizado como forte e combativo, não lhe é dado
o direito de fugir de situações de risco mesmo que custe a própria vida. As
mulheres, sendo parte da cadeia social, reforçam e reproduzem a posição
masculina. Os comportamentos femininos e masculinos podem ser compreendidos
através de uma perspectiva hierárquica, mantendo-se a superioridade do homem em
relação à mulher.
As características atribuídas ao homem estão relacionadas à superioridade,
fortaleza e domínio. Quanto à mulher, sua força está em manter a fragilidade,
feminilidade, o casamento e o controle de seus instintos, por ser mais
conformada. Essa diferença pode ser constatada nos depoimentos dos policiais
militares, conforme seguem:
[...] mas o homem tem que ser machista mesmo. Esse é meu ponto de
vista.Ela se orgulha, outra coisa, a mulher tem que ter o
conhecimento tem que saber que o homem é o cabeça mesmo do lar, de
tudo [...] em qualquer coisa que seja, do lar, do ambiente de
trabalho. Vivemos numa sociedade machista, o homem é mais ostensivo e
a mulher é mais calma [...].
Se cada época e lugar produzem dispositivos específicos para garantir o poder e
que as relações desiguais entre os sexos seriam um aspecto necessário ao
controle sobre o sexo(7). Em um convívio harmonioso entre homens e mulheres,
onde não houvesse dominação entre eles, certamente o respeito às diferenças
biológicas favoreceriam a melhoria na qualidade de vida dos indivíduos, em
detrimento de interesses políticos e econômicos.
Partimos do princípio de que todo saber tem origem em relações de poder. As
relações sexuais determinam e são influenciadas pelas informações absorvidas em
nível individual e coletivo. Portanto, não é a atividade do sujeito de
conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder -
saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que
determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento(12).
Os sistemas governamentais, visando seus interesses na construção desse saber,
utilizam uma filosofia que fortalece normas de conduta, mais pessoais, por
considerar mais consistentes na manutenção da autoridade pública (política,
social), construindo, portanto, uma moral mais rigorosa. Um dos instrumentos
empregados para essa finalidade é o Serviço de Saúde que, em nossa realidade,
tem se omitido a fornecer aos usuários informações sobre seu corpo e a doença,
impossibilitando uma relação científica e reflexiva com o corpo e o processo
saúde/doença(13).
Quanto à religião, a grande maioria, em seus ensinamentos, discorre acerca do
comportamento sexual de seus seguidores, procurando determinar e difundir entre
eles as práticas permitidas ou proibidas.
O cristianismo, predominante na cultura brasileira, defende a castidade ou o
matrimônio monogâmico e, dessa forma, o sexo e a reprodução exclusivamente no
casamento como adequados à vida cristã. Como foi relatado nos grupos focais,
parece não ser essa a prática dos policiais militares, conforme evidenciam seus
depoimentos:
Sabemos o que é certo ou errado, o que é pecado, mas o homem não
consegue se conter. [...] a infidelidade separa os casais, aquilo que
Deus uniu o próprio homem separa [...] deixa a esposa por outras
mulheres [...] lá (na igreja) tem oração, fala sobre a palavra de
Deus [...] ensinam que o homem deve possuir só uma mulher, ser
honesto [...] as mulheres da minha igreja já são fiéis [...] eles
falam mais para os homens porque eles podem perder o controle.
Sendo uma instituição intencionada a controlar a sexualidade, as diferentes
religiões cristãs, especialmente a católica, lançam mão de mecanismos
disciplinares, repressivos, mais evidentes; associados a artifícios que possam
intensificar e garantir nos indivíduos o autocontrole. Nos depoimentos, fica
evidente uma divergência entre o padrão social aconselhado pela igreja e as
práticas sexuais dos policiais militares.
Quanto aos serviços voltados à atenção à saúde e educação, seu desenvolvimento
científico tem procurado colocar as duas instâncias como autônomas. Sua
execução prática está na dependência de mudanças de ordem cultural, social e
econômica; no que diz respeito aos direitos e deveres sexuais e reprodutivos,
mantêm-se, em nossa sociedade, fatores que impedem seu desenvolvimento, como,
por exemplo, a desigualdade entre homens e mulheres.
Relacionando as desigualdades entre os sexos com a percepção de risco de
contaminação e prevenção de DST/AIDS, podemos constatar que, na divisão de
papéis, ao homem é dado o direito e responsabilidade de tomar iniciativas nas
práticas sexuais; no entanto, cabe à mulher a função de prevenir e tratar as
doenças.
É difícil ensinar prevenção a um vasto grupo de mulheres
heterossexuais que não têm noção do risco, exatamente porque não têm
idéia das práticas de seus parceiros e, se tiverem, não têm o poder
de mudar essa prática(14:153).
Os estudos costumam responsabilizar as diferenças anatômicas, econômicas e
sociais entre homens e mulheres pela falta de segurança nos relacionamentos
sexuais. Assim sendo, os instintos sexuais masculinos são considerados como
incontroláveis. Quanto à mulher, ainda predomina a idéia de que ela é mais
capaz de controlar seus desejos.
[...] quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso,
retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar
espontaneamente sobre si mesmo; [...] torna-se o princípio de sua
própria sujeição(12).
Assim, as normas e regras sociais sobre o exercício da sexualidade são
diferentes para homens e mulheres; o desejo masculino se sobrepõe à moralidade
social; e estar em uma posição superior nos relacionamentos conjugais funciona
como um poder intermediário. Isso seria uma sujeição real, já que, obtendo o
prazer, o homem muitas vezes não consegue se contrapor. Vejamos o que expressam
dois participantes:
[...] parece que não dá tempo [...] Uns quando vêem que estão
agitados pára, volta um pouquinho e se previne e outros não, vão usar
a palavra: não deu tempo. [...] aqueles cinco minutos que a pessoa
tem fora de si [...] por mais que a pessoa tenha todos os meios em
mãos [...].(PM)
O perigo, mesmo quando reconhecido, nem sempre é revertido em prevenção e o
confronto entre conhecimentos adquiridos sobre DST/AIDS e seus comportamentos
sexuais foram considerados nos grupos como totalmente contraditórios.
Como podemos controlar o ser humano?(Policial Militar).
As DST/AIDS, decorrentes dos excessos sexuais, práticas estimuladas
principalmente aos homens, passariam a ameaçar os padrões sociais vigentes, no
momento em que podem significar um despertar para uma mudança nas relações
entre os sexos.
Essas doenças vieram revelar fatos, pensamentos, sentimentos, valores e
práticas sexuais antes omitidas, sendo dessa forma ao mesmo tempo efeito e
instrumento, incorporadas ao corpo e na mente dos indivíduos, sobrepõem ao
avanço tecnológico da saúde e seus efeitos patológicos. Os sintomas externos
funcionam como revelação de problemas sociais e individuais de dimensão mais
profunda, sendo, portanto, uma oportunidade de perceber sua existência e buscar
resolução.
4.3 Formação militar e a interferência no relacionamento conjugal
As instituições militares são locais com a capacidade de mudar as pessoas,
através de um desculturamento( ).A formação militar interfere no comportamento
das pessoas? De que maneira? Vejamos o que dizem nossos informantes.
É, acredito que sim, a diferença é a responsabilidade, a gente
trabalha com hierarquia e é mais rígido o sistema. Na iniciativa
privada existe um diálogo diferente. A gente não pode se igualar. É
mais exigido, tanto na corporação como na sociedade.(PM)
Os comportamentos das pessoas são construídos com base na disciplina e
hierarquia interferindo na vida pessoal(12), como nos disse um participante do
5° batalhão:
[...] tem serviço aqui que a gente passa 24 horas sem ir em casa
[...] a gente fica detido até mais de oito dias sem ver a esposa, a
família. Qual é a esposa que vai querer vê seu marido preso, na rua
rolando a madrugada, arriscando a vida?(PM).
O militar é induzido a sentir-se sempre vigiado e controlado; os policiais
militares, discutindo sobre essa questão, passam a admitir provável
interferência da formação militar no comportamento das pessoas, principalmente
pela rigidez, disciplina e hierarquia, mas não conseguem identificar possíveis
mudanças nos seus relacionamentos conjugais e práticas sexuais.
Quanto à exposição ao risco de contaminação em DST/AIDS, todos os participantes
concordam que, para o militar, é mais fácil a conquista de parceiras sexuais.
Um trabalho que implica contato direto com as pessoas, realizado em todos os
ambientes públicos e em uma posição deautoridade, facilita o acesso aos lugares
e pessoas como mostram os depoimentos:
O policial é fácil de se envolver com outras mulheres, isso é verdade
[...] Por ser conhecedor de todos esses problemas, o policial militar
está mais preparado, ele é mais inteligente em captar as informações
até porque esse é o trabalho dele, é o dia dia, ele é profissional
para aquilo [...]. (PM)
Como podemos observar nas falas dos policiais militares, trabalhar
constantemente com pessoas em situações conflituosas com problemas desenvolve
neles a capacidade de entendê-las, ele é mais inteligente em captar as
informações, facilitando aproximações. Associado à forma de trabalho, os
participantes afirmam que freqüentemente são assediados pelas mulheres. Eis
seus depoimentos:
Elas não querem saber se é gordo, magro, feio ou bonito(Risos,
risos). O militarismo, ele reflete assim: quando ele passa a ser
militar, eu não sei nem porque existe um certo assédio das mulheres
[...] Porque geralmente elas pensam que o homem quando está usando
uma farda, ele se torna mais homem que uma pessoa normal.(PM)
Emm 1873, um ministro da Guerra do Império, o médico João José de Oliveira
Junqueira, reconhecia a sífilis como a doença mais comum entre os soldados. Em
1883, ele garantia não existir nenhum soldado que não tivesse tido mais de um
internamento por doença venérea. No 1º Congresso Sul-americano de Dermatologia
e sifilografia, em 1918, o médico militar Júlio Porto Carrero atenta para o
crescimento da incidência de doenças venéreas nas forças armadas(9).
A posição social conferida aos policiais militares coloca-os em uma situação de
destaque, sendo simbolizada pela farda. Seria para as mulheres um exemplo de
masculinidade e fortaleza, portanto, de homem ideal.
5 Considerações finais
O presente trabalho procurou investigar de que forma os policiais militares
percebem as DST/AIDS, direcionando as discussões acerca da influência
sociocultural no relacionamento entre os pares. Além disso, buscamos
identificar as situações de risco que possibilitam uma contaminação para esse
grupo.
Ficou evidente nos discursos dos policiais militares que as informações
científicas recebidas nem sempre são revertidas em avaliações corretas de
risco. Quando acontecem, não implicam adoção de medidas preventivas.
Avaliar nossos riscos significa admitir fragilidades, limitações,
responsabilidades não assumidas e soluções ainda não encontradas, resultando em
uma mobilização de enfrentamento ou de fuga de uma realidade.
Buscando identificar a influência da formação militar nas práticas sexuais,
declaradas pelos participantes, observamos, nos grupos, situações de
agressividade, sensibilidade, segurança e risco, revelados através de termos
utilizados, gestos ou atitudes. Por exemplo, o 50 Batalhão e a Companhia de
Trânsito que respondem pelo policiamento ostensivo, aproximam o policial do
público, favorecendo exposições ao risco de contaminação em DST/AIDS, seja nas
atividades profissionais, seja no fácil acesso à prática sexual. Comparando as
outras unidades participantes ao 5º Batalhão, neste, exposições ou
contaminações anteriores foram relatadas de forma mais evidente.
Quanto aos participantes do Batalhão de Choque, mostraram ter um maior
entendimento sobre o tema DST/AIDS, mais segurança na avaliação do próprio
risco e na utilização de medidas preventivas. A seleção do efetivo, a formação
profissional destinada a garantir um batalhão de elite e uma atividade
profissional de alta periculosidade, provavelmente tornam o risco mais visível,
deixando-os mais atentos ao perigo, com reflexo na própria vida pessoal.
A pesquisa nos mostrou sinais significativos atinentes às desigualdades
existentes entre homens e mulheres, evidenciando uma nuança das relações
sociais de poder. A sexualidade é retratada, portanto, como um marco dessas
diferenças e é moldada através da reprodução social de regras de comportamento.
Conforme podemos inferir nas falas, no exercício da sexualidade, direitos e
responsabilidades são divididos. O homem responde pelo controle da prática
sexual, cabendo à mulher esperar as decisões do parceiro e a obrigação de
resolver as intercorrências delas decorrentes.
As DST/AIDS, como conseqüências das desigualdades entre parceiros sexuais,
podem ser um instrumento repressivo e, por outro lado, representarem uma ameaça
ao poder sobre o sexo. O desequilíbrio individual e coletivo, revelado pelas
doenças de transmissão sexual, seria, portanto, uma condição oportuna de
resistir e de transpor as determinações sociais.
A prevenção e controle das DST/AIDS estariam então à espera de novas
descobertas científicas?
Do ponto de vista biológico, a ciência fez descobertas conclusivas a respeito
das formas de contaminação, prevenção e tratamento das doenças de transmissão
sexual.
Outras áreas (psicologia, antropologia, sociologia), estudando os aspectos
psicossociais das DST/AIDS, contribuem para a compreensão do problema em um
contexto mais amplo. Em nível individual, nos disse um policial militar: [...]
se previne na teoria, mas na prática... indicando uma lacuna entre o acesso às
informações e o comportamento dos indivíduos.
Seriam as DST/AIDS um fenômeno masculino? Seriam os homens os culpados pela
propagação dessas doenças? E as mulheres são vítimas inocentes? Quem são os
responsáveis pelas DST/AIDS?
Não tivemos o propósito de classificar culpados e inocentes. Os discursos dos
homens proporcionaram uma ocasião oportuna de discutir a responsabilidade
através da informação, percepção de risco e da autonomia na tomada de decisões.
A epidemia HIV/AIDS revela para a saúde pública que somos todos vítimas e
responsáveis pelas doenças estabelecidas pelo comportamento humano, mostrando
que a prática individual é construída socialmente. O controle das DST/AIDS
estaria, portanto, na dependência de uma transformação de normas e valores
sociais.