Parteiras-enfermeiras e Enfermeiras-parteiras: a interface de profissões afins,
porém distintas
REFLEXÃO
Parteiras-enfermeiras e Enfermeiras-parteiras: a interface de profissões afins,
porém distintas
Midwive-nurses and nurse-midwives: the interface of professionals sharing
affinity, but differents
Parteras-enfermeras y enfermeras-parteras: la interface entre dos profesiones
afines, pero distintas
Ruth Hitomi OsawaI;Maria Luiza Gonzales RiescoII; Maria Alice TsunechiroIII
IEnfermeira obstétrica. Professora Doutora do Curso de Obstetrícia da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo - Campus Leste, São
Paulo, SP. rosava@usp.br_
IIProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e
Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo,
SP.riesco@usp.br
IIIEnfermeira Obstétrica. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem
Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São
Paulo, SP.tamnami@usp.br
1. INTRODUÇÃO
Em 2005, foi criada a primeira turma do Curso de Obstetrícia da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, campus Leste. Além
de se tratar de um novo curso, este se constituiu dentro de uma nova Escola,
concebida com vistas à formação profissional pautada nas propostas de
interdisciplinaridade, transversalidade e não-segmentação dos diversos campos
do conhecimento humano. A discussão sobre a formação de profissionais não-
médicos para a assistência à mulher no ciclo reprodutivo vem se aprofundando,
sobretudo, baseada na maior visibilidade dada às mazelas do atual modelo de
assistência ao parto e nascimento, profano, de argumentação técnica
questionável e claramente atrelado a interesses econômicos.
Com o Curso de Obstetrícia, pretende-se influir no processo de formação de
profissionais não-médicos que atuem dentro de uma visão de parto e nascimento
como eventos saudáveis e multifacetados, no qual o biológico seja tão somente
uma de suas dimensões. A introdução de um novo curso no campo minado da
assistência obstétrica em centros urbanos reacendeu as discussões em torno dos
espaços de atuação de enfermeiras e parteiras (obstetrizes) e da relação da
nova profissional com a medicina. O objetivo do presente estudo é aprofundar a
compreensão do significado da retomada do curso de graduação em Obstetrícia,
tanto no contexto mais amplo da história humana, como no momento atual da
assistência ao parto e nascimento no Brasil.
2. MÉDICOS, PARTEIRAS E ENFERMEIRAS NA HISTÓRIA
A disputa pela hegemonia no campo da assistência ao parto foi marcada por dois
episódios envolvendo parteiras, com grande repercussão nos atuais modelos
ocidentais de atenção ao parto. Um deles, ocorrido na Inglaterra, culminou com
a incorporação do trabalho delas ao sistema de saúde oficial: a aprovação da
lei das parteiras, o "Midwives' Act", de 1902(1). O outro, nos Estados Unidos
da América, conduziu à transformação do trabalho de parteiras em prática fora
da lei, com base na estratégia de responsabilizá-las pelas elevadas taxas de
mortalidade materna e perinatal do início do século XX sendo conhecido como
"midwife problem"(2).
À época do surgimento da enfermagem profissional, bastante vinculada à
publicidade feita em torno dos trabalhos de Florence Nigthingale na Guerra da
Criméia (1854-1856), a profissão de parteira encontrava-se em franco declínio.
A profissão de enfermeira, ao contrário, ganhava respeitabilidade no interior
da classe média inglesa. Nos Estados Unidos da América, a emergente corporação
médica fundada em bases classistas - uma profissão masculina, branca e de
classe média - iniciava uma vigorosa campanha contra os chamados "charlatães",
incluindo-se aí as parteiras.
É razoável supor que a ação da parteira comportasse riscos reais à mãe e ao
bebê, mas estes não eram maiores do que os oferecidos pelos médicos. Em 1878,
estimou-se que a mulher inglesa aumentava em seis vezes as suas chances de
morrer ao dar entrada nas maternidades daquele país(1). Mais acessível às
mulheres das classes populares, a parteira tradicional envolvia-se com as
tarefas domésticas, substituindo ou auxiliando a mulher por um mês ou mais,
após o parto. Os jovens médicos provinciais que disputavam sua clientela, não
aceitariam trabalhar nas mesmas bases de remuneração(3). As parteiras tinham
como seus defensores os médicos clínicos. Clínicos e cirurgiões não
compartilhavam as mesmas opiniões sobre quem deveria prestar assistência ao
parto. Para os cirurgiões, existia um perigo potencial em toda gravidez e
parto, o que justificaria a presença de um médico em todos os partos; já os
clínicos consideravam a participação masculina no parto um intolerável atentado
ao pudor(4).
O acontecimento que precipitou a aprovação da primeira lei das parteiras na
Inglaterra ocorreu na localidade de Kent e envolveu uma parteira e três médicos
provinciais. Na ocasião, ela solicitou ao esposo de sua cliente que fosse em
busca de auxílio de um dos médicos locais, já que detectara complicações no
trabalho de parto. A despeito dos apelos do homem, todos os três médicos
recusaram-se a atender à mulher. A mãe e o bebê morreram e o caso chegou à
grande imprensa e aos tribunais. Perante o juiz, os três médicos reiteraram
suas posições, declarando que não davam cobertura a clientes previamente
atendidas por parteiras, procedimento, segundo eles, largamente adotado por
seus colegas(2).
A divulgação tornou pública a guerra fria travada por médicos provinciais e
parteiras tradicionais e expôs o tratamento desigual recebido por mulheres
ricas e pobres. O projeto de lei que regulamentava o trabalho das parteiras
estava parado no Parlamento há mais de uma década, ganhou prioridade e, em
1902, foi aprovado, com a inclusão de uma cláusula que proibia o exercício de
parteiras não registradas. A lei das parteiras criou um órgão regulador,
oCentral Midwives Board, com a função de elaborar as regras para o exercício da
profissional. Uma das mais importantes recomendava que solicitassem um médico
em todas as situações consideradas anômalas, cabendo a ele atendê-las(1). A
regra não incluía nenhuma previsão orçamentária em relação ao pagamento dos
médicos e a questão foi resolvida somente em 1918, à custa de uma sistemática
pressão da corporação para que se tornasse obrigatório o pagamento de seus
honorários pelo Estado(5).
No início do século XX, no episódio conhecido como "midwife problem", a
mortalidade materna nos Estados Unidos era alarmante, a terceira mais alta
entre os países que faziam tais registros, sendo a maior concentração desses
eventos entre as clientes da parteira tradicional(2). Exclusivamente mulheres,
boa parte imigrante e ou negra, a maioria das parteiras tradicionais norte-
americanas dispunha de pouca base educacional e baixo poder de organização.
Enquanto isso, o conceito de que o nascimento seguro só era possível, mediante
a presença e a intervenção de médicos já começava a ganhar larga aceitação
entre as mulheres das classes elevadas.
A parteira tradicional norte-americana atendia a cerca de 50% de todos os
nascimentos em 1910(2). Era uma situação intolerável para a emergente
especialidade obstétrica, pois na lógica da corporação médica, cada mulher
pobre atendida pela parteira era um caso a menos para o ensino e pesquisa
acadêmica. Os vastos recursos proporcionados pelas classes populares, como
"material de ensino" à obstetrícia, estavam sendo desperdiçados pelas
ignorantes parteiras. Além disso, as mulheres pobres gastavam cerca de cinco
milhões de dólares anuais com parteiras que poderiam estar dirigidos aos
verdadeiros "profissionais"(6).
Recorrendo-se a metáforas inspiradas na teoria dos germes, os médicos
comparavam as parteiras a uma espécie de micrococus, estranho ao tecido social
% sublinhando sua condição de imigrante % disseminando a doença e a morte com
suas unhas sujas(6). As parteiras foram responsabilizadas pela febre puerperal
e pela oftalmia neonatal. Ambas as condições mórbidas seriam facilmente
prevenidas por técnicas que a maioria dos profissionais poderia aprender: a
lavagem das mãos e a instilação de colírio. Foi o que aconteceu na Inglaterra,
Alemanha e maioria dos países europeus: a parteira foi melhorada por meio de
treinamento, tornando-se uma profissão estabelecida e independente.
Os médicos americanos não estavam interessados em melhorar a assistência
prestada pelas parteiras e talvez nem pudessem: uma enquête entre eles
demonstrou que os clínicos gerais eram tão negligentes quanto as parteiras e
igualmente responsáveis pela má qualidade da assistência obstétrica(7).
Entretanto, o ponto central é que a corporação médica tinha poder e as
parteiras, não. Os obstetras estavam, eles mesmos, lutando contra a concepção
de insignificância de seu campo de atuação. Defendiam, sobre qualquer evidência
em contrário, que a gestação e o parto normais eram exceções e considerá-los
como eventos normais seria uma falácia(2).
No início do século XX, numerosos folhetos e livros foram publicados nos
Estados Unidos e Inglaterra, divulgando as vantagens da participação masculina
no parto, enquanto ganhavam destaque os relatos de casos de mulheres que
morreram em razão da demora da parteira em chamar o médico. No período, as
parteiras norte-americanas dispunham apenas de dois jornais, lidos por um
segmento muito pequeno delas. Em sua defesa, dependiam da simpatia de alguns
médicos e enfermeiras de saúde pública(3).
Uma aliança entre parteiras e enfermeiras seria pouco provável; as enfermeiras
preferiram aliar-se aos médicos, no controle e eliminação do "charlatanismo". A
enfermagem recebeu acolhimento e prosperou em sua fase inicial, porque sua
configuração afinava-se com os propósitos do emergente modelo médico,
patriarcal e centralizador(8). Com a aliança das enfermeiras, os médicos
garantiam o controle da prática da enfermagem e recebiam auxílio para eliminar
curandeiros e parteiras.
O declínio da parteira tradicional norte-americana tornou-se irreversível com a
restrição à entrada de imigrantes a partir da década de 20 do século XX. Em
1920, apenas 5% dos partos eram hospitalares naquele país; em 1930, essa taxa
saltou para 25%. Em Washington, a porcentagem de partos assistidos por
parteiras decresceu de 50%, em 1903, para 15%, em 1912, e as taxas de
mortalidade infantil no primeiro dia, na primeira semana e no primeiro mês de
vida aumentaram nesse período de exclusão das parteiras(2).
3. OBSTETRIZES (PARTEIRAS) E ENFERMEIRAS OBSTÉTRICAS
Como em outras partes do mundo, também, no Brasil, os médicos estavam
empenhados em estabelecer sua hegemonia no campo da saúde e disputar a
clientela da parteira. Durante muito tempo, a participação do cirurgião no
parto era vista como algo degradante, e o ofício de parteiro, considerado
desonroso e vil, porque lidava com secreções e odores femininos. Daí a maior
presença de negras e mulatas no ofício de partejar: "se o sangue de uma
parturiente branca era visto com nojo, como não seria o de uma parturiente
negra e escrava, ou mulata e pobre?"(9).
No início da colonização, eram as caboclas, portuguesas e negras velhas que
monopolizavam o exercício dos partos. Além de cuidar do parto, das moléstias de
mulheres, das espinhelas caídas (gastrenterites) e dos quebrantos, as parteiras
tradicionais eram acusadas de praticar feitiçarias, provocar abortos e cometer
infanticídio(10). Poucas foram as parteiras formadas pelas escolas de partos.
No período de 1833 a 1876, não mais de dez alunas concluíram o curso de partos
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; e o da Bahia foi ainda menos
freqüentado(11).
Os requisitos para o ingresso nos cursos de partos eram menores que nos demais
cursos. Além de ser tratada como uma atividade menos letrada que a da medicina,
era o único curso que exigia de suas candidatas o atestado de "bons costumes"
(12). Muitas parteiras estrangeiras revalidaram seus diplomas na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro; de 1856 a 1899, foram revalidados 70 deles.
Documentos e relatos da época mostram que essas parteiras não atendiam apenas
aos partos, mas também tratavam de doenças ginecológicas(13).
Na história da obstetrícia brasileira, destaca-se Madame Marie Josephine
Mathilde Durocher, a primeira parteira diplomada pelo curso de partos da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Francesa de origem, foi formada em
1834, logo após enviuvar-se, mãe de dois filhos. Chegou a assistir cerca de
6.000 nascimentos, em um período em que o Rio de Janeiro contava com 90.000
habitantes(13). Mme. Durocher apresentava um aspecto andrógino, um misto mal
definido de homem e mulher em seus trajes masculinos: calçados de botinas de
homem, usava camisa, punhos, colarinhos, gravata e colete de homem(13). Ela
explicava que usava essas roupas para inspirar respeito: "adotei um vestuário
que não só me pareceu mais cômodo para os trabalhos da minha profissão, como
mais decente e característico para a parteira"(14).
Com a criação das maternidades, as parteiras diplomadas foram aproveitadas
nesses estabelecimentos, passando a atuar de forma subordinada à autoridade
médica. No final do século XIX, associação do trabalho da parteira e da
enfermeira vinha sendo cogitada quando médicos brasileiros passaram a propor a
formação profissional de parteiras que fossem também enfermeiras. Com essa
medida, buscavam limitar sua prática independente, restringindo e controlando
seu espaço na assistência ao parto e impondo a hierarquia estabelecida às
enfermeiras, especialmente, no hospital(15).
No início do século XX, a medicina lutava pela profissionalização, adotando,
como em outras partes do mundo, estratégias corporativistas para domínio do
conhecimento técnico e controle do mercado de trabalho. A interferência na
formação das parteiras (obstetrizes) insere-se nessa lógica. O curso de partos
foi planejado para manter as parteiras dentro dos limites impostos pela
medicina, oferecendo uma formação essencialmente prática(12). A medicina
considerava-se com autoridade para definir o conteúdo dos cursos de partos e
delimitar o espaço para o exercício das diferentes atividades na área da saúde.
Arnaldo de Moraes, médico obstetra e livre-docente da Clínica Obstétrica da
Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, defendia que "a
formação delas (parteiras) não seja feita em uma faculdade ou curso completo,
mas apenas em uma cadeira de obstetrícia para alunas", porque era necessário
"que se cuide do preparo profissional [do médico] de modo a pô-lo a resguardo
da exploração e da concorrência desleal"(16).
De 1832 até 1949, toda a legislação do ensino da parteira estava contida na
legislação da medicina. Em 1931 os cursos de partos foram anexados à cadeira de
clínica obstétrica das faculdades de medicina e deixaram de ser um curso em
paralelo aos de medicina e farmácia, para serem reduzidos a um curso
subordinado a uma área da medicina. Algumas escolas de enfermagem criaram seus
próprios cursos de especialização, mas como não eram oferecidos com
regularidade quase todos foram encerrados(11). O Curso de Enfermagem Obstétrica
da Escola de Enfermeiras do Hospital São Paulo foi uma exceção: em 1939, o
curso de partos foi criado sob a legislação da medicina e após dois anos e meio
de experiência "chegou-se à conclusão de que a pouca base das alunas (curso
primário) não correspondia ao esforço dispendido"(17). Em 1943, passou a exigir
o diploma de enfermeira, convertendo-se, em 1949, em curso de especialização em
Enfermagem Obstétrica, seguindo exclusivamente, a legislação do ensino da
enfermagem, tornando-se paradigma para outros cursos criados no Brasil com a
mesma finalidade.
À época, a hierarquia da Igreja Católica, representada pela Conferência dos
Religiosos no Brasil, vinha pressionando o Executivo para vetar a aprovação do
Projeto de Lei que criava o Curso de Obstetrícia. Em ofício circular de 6 de
dezembro de 1956, enviado a todas as ordens religiosas, os bispos alegavam que
a criação do curso de obstetrizes, "apesar de suas boas aparências, é contrário
aos interesses de ensino da enfermagem e também da verdadeira assistência à
maternidade e à infância"(11). A ingerência da Igreja em assuntos dessa
natureza devia-se a desconfianças de que as obstetrizes praticavam abortos e
distribuíam anticonceptivos.
Em 1958, a intolerância reaparece no I Congresso Nacional da Obstetriz no Rio
de Janeiro. Diversas enfermeiras foram ao Congresso e quatro delas, das quais
três freiras, foram ao jornal O Globo acusar as obstetrizes de fazer propaganda
de anticoncepcionais durante o evento e aproveitaram para atacar os cursos de
partos das escolas médicas, afirmando que a baixa procura por eles tinha menos
a ver com obstáculos na legislação do ensino, e mais com o exercício antiético
da profissão(11). As obstetrizes alegaram que as enfermeiras interpretaram
erroneamente as finalidades do produto (uma ducha vaginal que estava sendo
divulgada no evento); que enfermeiras e obstetrizes desempenhavam funções
nitidamente delimitadas, não se admitindo, portanto, que uma enfermeira
interfira em assuntos ligados às obstetrizes que exercem uma livre profissão
(11).
Em 1957, o Projeto de Lei nº 3082 criando os cursos de Enfermagem e de
Enfermagem Obstétrica foi elaborado em três níveis: elementar, médio e
superior. No início da década de 1970, com a reformulação das universidades
brasileiras, que propunha "vedar a duplicação de meios para fins idênticos ou
equivalentes", coube exclusivamente às escolas de enfermagem a formação
profissional da enfermeira obstétrica ou obstetriz, como única via para a
capacitação formal de não-médicos para assistência ao nascimento e ao parto
normal.
Com a incorporação dos cursos de obstetrícia às escolas de enfermagem e a fusão
dos currículos, a opção "Obstetrícia" deixou de existir no ingresso à
universidade, sendo postergada para o último ano do curso. Embora o curso
tivesse a denominação legal de Enfermagem e Obstetrícia, poucas escolas
ofereciam essa formação. Em 1994, o currículo mínimo de enfermagem foi
modificado e as habilitações extintas, restando a especialização em enfermagem
como único curso previsto para formação específica de profissionais não-médicos
na área obstétrica(15).
A constatação desanimadora foi que as enfermeiras especialistas não se sentiam
estimuladas a permanecer no campo da assistência ao parto. Estudo realizado com
92 enfermeiras obstétricas, das 202 egressas da Escola de Enfermagem da
Universidade de São Paulo entre 1980 a 1995, constatou que 50% delas não
atuavam na área(18). Em 1983, a enfermeira obstétrica ou obstetriz ocupava
apenas 5% dos cargos de enfermeiros no Estado de São Paulo. Essa foi a maior
taxa de ocupação encontrada em todo o País; nos Estados do Paraná, Santa
Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo, as taxas foram
iguais a zero. Nos Estados das Regiões Nordeste e Norte, 1,6%, e 0,2%,
respectivamente, e no Estado do Rio de Janeiro, 0,3%(19). Em 1997, a atividade
"acompanhamento do trabalho de parto" era realizada por enfermeiras em apenas
7,5% dos serviços públicos de saúde de São Paulo e, por obstetrizes, em 2,2%.
Em 67,7% dos serviços, era o profissional médico quem estava designado para
essa atividade(20).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando Florence Nightingale começou a organizar a enfermagem, precisou
convencer os médicos do Exército que as enfermeiras poderiam ser úteis para
eles, em seus locais de trabalho. As tarefas designadas pelos médicos para
"suas" enfermeiras variavam conforme o profissional médico e estas dependiam da
aprovação dele para se constituírem como enfermeiras(21). Não surpreende,
portanto, a necessidade da enfermeira ser aprovada e apreciada em seu trabalho
pelo profissional médico. Nesse contexto, as relações entre a nascente
profissão de enfermagem e a milenar profissão de parteira não foram nada
amistosas. Parteiras e enfermeiras hostilizavam-se mutuamente, as enfermeiras
vendo as parteiras com desdém, compartilhando a visão que os médicos tinham
delas: "supersticiosas, ignorantes e pouco higiênicas". As parteiras
consideravam as enfermeiras "um pouco mais do que servas da profissão médica"
(1).
Em ocasiões estratégicas, parteiras e enfermeiras desperdiçaram energias e
talento em aspectos errados, incapazes de defender a si mesmas e, acima de
tudo, de identificar as lutas comuns. A formação de um outro profissional não-
médico para a assistência ao parto e nascimento, no momento atual, justifica-se
se for para dotá-lo de um perfil de atuação fundamentado na compreensão do
fenômeno da reprodução como saudável e multidimensional, no qual a mulher seja
o foco central e os processos assistenciais e educativos desenvolvam-se na base
da interação e parceria. A formação da nova obstetriz, condizente com os
princípios que orientam o ensino de enfermeiras e enfermeiras obstétricas
enfatizará os aspectos fisiológicos, emocionais e socioculturais do processo
reprodutivo, buscará a articulação entre observações clínicas, conhecimento
científico, habilidade técnica e julgamento intuitivo na tomada de decisões,
construirá o conhecimento pautado na valorização do saber e da atuação
interdisciplinares e desenvolverá as atribuições pautado na responsabilidade
ético-política e autonomia profissional(22).
A simples especialização de enfermeiras tem sido incapaz de produzir o
necessário e esperado impacto na qualidade e no modelo de assistência ao parto.
As universidades e escolas de enfermagem precisam estabelecer parcerias com
organismos oficiais e serviços de saúde para pesquisar, estabelecer e
desenvolver modalidades de capacitação formal de parteiras nos diferentes
níveis % de graduação de obstetrizes, especialização de enfermeiras,
treinamento de auxiliares de enfermagem e de parteiras tradicionais(22). A
exclusão dos não-médicos do acompanhamento do trabalho de parto deixou um
"nicho" - o de guardiãos da fisiologia - que até o momento não foi plenamente
ocupado pelas profissionais existentes. Nesse contexto de crítica ao modelo
altamente intervencionista de assistência e busca de revitalização das boas
práticas no parto e nascimento, percebemos o ressurgimento do Curso de
Obstetrícia, um curso não mais tutelado pela medicina e tampouco pela
enfermagem. É momento de não desperdiçarmos as lições da história.