Associação Brasileira de Enfermagem no contexto da reforma educacional de 1996
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objeto as estratégias de luta de porta-vozes da enfermagem
frente às diretrizes emanadas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB nº 9.394/1996) para a educação superior de enfermagem. A LDB/96 foi
promulgada no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), em
complementação à Constituição Federal Brasileira (CFB), atendendo à orientação
neoliberal vigente no país.
O Estado, visando à implantação da reforma educacional, e tendo como porta-voz
o Ministério da Educação (antigo MEC), o qual concentra diversos tipos de
capital investiu em seu capital jurídico (capital simbólico objetivado e
codificado) e elaborou um arcabouço legal constituído de leis, decretos,
portarias e resoluções. Dentre estes, destacamos o Plano Nacional de Educação-
Lei nº 10.172/2001 (PNE/2001) que objetivou operacionalizar as mudanças e
regulamentar a legislação em termos de traduzir a política educacional em
estratégias de cumprimento da lei.
Os instrumentos legais expressavam princípios como expansão, flexibilidade,
diversificação, avaliação e modernização(1) e determinavam como diretrizes:
estabelecer um conjunto diversificado de instituições que atendam a diferentes
demandas e funções; expansão com qualidade que ressaltasse a importância do
setor privado; ampliação da margem de liberdade das instituições não-
universitárias; permanente avaliação dos currículos; expansão de vagas no
período noturno; e institucionalização de um amplo sistema de avaliação(2).
A implantação da nova política educacional acarretou mudanças estruturais no
campo da educação superior de enfermagem. Dentre estas, citamos: extinção do
currículo mínimo e adoção de diretrizes curriculares; definição de carga
horária mínima de duração do curso; grande aumento do número de cursos de
enfermagem, principalmente no setor privado; criação de cursos de enfermagem em
centros universitários e faculdades isoladas; ampliação do ingresso de
estudantes tanto pela adoção de diversas formas de processo seletivo como pelas
políticas de acesso, tais como: Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Programa
Universidade para Todos (PROUNI); oferta de cursos no horário noturno;
avaliação do aluno e das condições de oferta do curso.
Todo campo é constituído por diferentes agentes os quais assumem posições
distintas de acordo com o volume global de capital de que dispõem, e estão
constantemente em luta para obterem uma melhor posição no mesmo(3). Uma vez que
o campo da educação superior de enfermagem também segue esta dinâmica, seus
agentes estabeleceram estratégias de luta visando enfrentar o poderio do MEC,
no sentido de continuarem a manter suas posições de poder e de prestígio e
assim poder enunciar em discurso autorizado frente à nova ordem que se impôs.
Para tanto, os agentes que ocupavam diversas posições no campo da educação
superior de enfermagem organizaram-se em torno da Associação Brasileira de
Enfermagem (ABEn) para discutir questões pertinentes à formação do enfermeiro.
E isto porque, reconheceram que o quantum de capital social desta instituição
lhe conferia a distinção de assumir a legítima posição de porta-voz legítimo da
categoria.
Assim, traçamos os seguintes objetivos para este estudo: analisar a posição da
ABEn no campo da educação superior de enfermagem; discutir estratégias de luta
empreendidas por porta-vozes da educação superior de enfermagem frente às
diretrizes da LDB/96.
ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
Estudo de cunho histórico-social, com abordagem qualitativa. As fontes
primárias foram constituídas de depoimentos de agentes sociais que ocupavam os
seguintes cargos: Diretoria de Educação da ABEn nacional e responsáveis por
cursos superiores de enfermagem - e de documentos escritos - leis, decretos,
pareceres, portarias, regimentos, manual de avaliação de cursos, censo da
educação superior, relatórios e anais dos Seminários Nacionais de Educação de
Enfermagem (SENADEn's), documentos pertencentes aos arquivos da ABEn nacional e
regionais e ao Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa Anísio Teixeira/MEC.
As fontes secundárias incluíram literatura de história da educação e da
enfermagem, principalmente as relacionada ás políticas públicas de educação.
A análise e a discussão dos achados foram orientadas pela ordenação cronológica
e temática das fontes primárias, pelas fontes secundárias e pelos conceitos de
Pierre Bourdieu, tais como: campo, capital, habitus, poder e violência
simbólica.
Vale esclarecer que os entrevistados autorizaram a utilização de seus
depoimentos neste estudo e que, além disto, doaram os mesmos para o Centro de
Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. O projeto que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da EEAN/UFRJ, em 29 de abril de 2008.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A ABEn e o campo da educação superior de enfermagem
A ABEn, fundada em 1926, é uma entidade de classe de cunho associativo,
detentora de considerável volume de capital social. Ao longo de sua trajetória
seu estatuto passou por várias reformas visando atender às legislações
brasileiras e também para enfrentar os desafios que se apresentavam à
profissão. Um deles se refere às questões educacionais, pois as mesmas sempre
estiveram na sua agenda de trabalho e continuam demandando muito empenho e
dedicação de seus membros.
Em 1939, foi organizada a primeira Comissão de Educação da ABEn, com o objetivo
de auxiliar a diretoria nas atividades de elaboração e acompanhamento dos
projetos de criação de novas escolas. Em 1945, esta Comissão passou a ser
denominada Divisão de Ensino de Enfermagem, posteriormente Divisão de Educação
e em 1955, passou a chamar-se Comissão de Educação(4). Permaneceu com esta
denominação até a década de 1980, quando se tornou Comissão Permanente de
Educação. Em meados da década de 1990, no contexto de uma reforma global do
estatuto da ABEn, adquiriu o status de Diretoria de Educação. Esta Diretoria
administra os três níveis de ensino mediante as seguintes Comissões
Permanentes: Habilitação de Técnico de Enfermagem, de Graduação e de Pós-
Graduação(5).
A Diretoria de Educação tem status e predicados, ou seja, volume global de
capital para estar no jogo e impor os objetivos que mais interessam à educação
em enfermagem no campo da educação brasileira. Desde a sua criação vem tendo
importante participação nas atividades relacionadas às diretrizes para a
formação do enfermeiro, por meio de amplo e permanente debate, em eventos
regionais e nacionais, acerca do ensino de enfermagem e da definição de
políticas de formação. No que se refere ao objeto desta pesquisa, em 1991, a
ABEn apresentou à Secretaria de Ensino Superior (SESU/MEC) o documento:
Proposta de Novo Currículo Mínimo para o Ensino Superior de Enfermagem. No
âmbito do MEC, este documento sofreu alterações e deu origem à Portaria/MEC nº
1.721, de 15 de dezembro de 1994, homologada pelo Parecer nº 314/94 do Conselho
Federal de Educação (CFE).
As modificações feitas pelo CFE no documento encaminhado pela ABEn não
corresponderam ao esperado pela categoria, o que motivou a continuidade da
mobilização nacional e impulsionou a estruturação dos Fóruns Estaduais de
Escolas de Enfermagem vinculados às ABEns regionais, assim como a criação de um
espaço exclusivo para as discussões das questões educacionais, a partir de
1994: os SENADEn's(6). Estes seminários consistem numa articulação da ABEn com
as escolas de enfermagem, o que dá suporte à sua representação junto aos órgãos
oficiais de educação e de saúde, já com um novo arranjo institucional para
ampliar a sua capacidade de gestão Assim, a ABEn fortaleceu o seu papel de
porta-voz autorizada da enfermagem(3,7).
Ressalta-se que dos SENADEn's de 2002, 2003, 2004 e 2005 a ABEn teve como
produto as seguintes Cartas: de Teresina, de Brasília, de Vitória e de Natal.
Esses documentos expressam a preocupação dos participantes com as mudanças que
estavam ocorrendo no campo da educação superior de enfermagem, advindas dos
desdobramentos da LDB/96.
A dinâmica do campo da educação em enfermagem constituía-se em um movimento
processual, em espaço de aglutinação dos agentes em torno da ABEn para lutar
pelo poder de organizar o ensino da enfermagem, de modo a reatualizar o habitus
de classe.
Estratégias de luta de porta-vozes da enfermagem frente à LDB/96
As estratégias de luta colocadas em prática pelos agentes da enfermagem e pela
sua porta-voz - a ABEn, aconteceram a partir de diretrizes político-
expansionistas, político-jurídicas, e político-organizacionais, as quais
estavam articuladas aos princípios que nortearam a reforma educacional, e que
concorreram para a reconfiguração do campo da educação superior de enfermagem.
Tais estratégias visavam assegurar as condições necessárias para a atualização
do habitus profissional, afiançar maior capital cultural aos agentes envolvidos
no processo e minimizar o impacto das legislações no campo.
As estratégias relacionadas às diretrizes político-expansionistas abrangeram
aspectos como o modo de acesso e a proposta de cursos seqüenciais e de
tecnólogos. Entre as mudanças ocasionadas pela LDB/96 a expansão é o elemento
principal da condução das políticas de educação no país. Os agentes da
enfermagem atentam para esta questão no 2º SENADEn e propõem que na esfera
federal a Comissão de Especialistas de Enfermagem acompanhe os processos de
criação de cursos de enfermagem; e que na esfera estadual, seja realizado o
controle social pela categoria quanto à criação de novos cursos através das
ABEns regionais e dos Fóruns de Escolas(8).
No 3º SENADEn (1998) foi reconhecida a importância da expansão do número de
cursos de enfermagem na rede pública de ensino superior. Porém, o que se
verifica é que o número de cursos aumentou na rede privada. Tanto que, em 1996,
ano da promulgação da LDB existiam 111 cursos sendo 66 públicos e 45 privados
no ano de 2001 constatou-se a existência de 215 cursos, sendo 75 públicos e 140
privados.
Assim é que frente a este contexto de expansão de cursos superiores de
enfermagem a estratégia adotada pelos agentes da enfermagem foi fazer aliança
com a Comissão de Especialistas de Ensino de Enfermagem (CEEEnf) instituída
pela Portaria SESu/MEC nº1.518/2000 para realizar uma Oficina de Trabalho com
as diretorias de educação das ABEns regionais. Esta oficina foi realizada em
2001, logo após o 5º SENADEn(9) e teve como finalidade discutir critérios de
autorização e avaliação dos cursos de enfermagem.
A preocupação dos enfermeiros com a abertura indiscriminada de cursos
superiores de enfermagem continuou em 2002, na Carta de Teresina, elaborada no
6º SENADEn, que tratou da qualidade dos cursos de enfermagem presenciais.
O aumento do número de cursos superiores de enfermagem também era alvo de
preocupação dos agentes sociais responsáveis por cursos de graduação. Quanto à
qualidade e à determinação de critérios para sua abertura, assim expressou sua
opinião uma das depoentes:
Eu acho que estão abrindo cursos com muita facilidade, com
professores horistas, sem carreira em magistério. Eu vejo este
aumento com muita preocupação (D3).
Com o número de cursos vinculados ao setor privado se multiplicando, outra
matéria a ser examinada era o modo de acesso aos mesmos. O ingresso no curso
superior de enfermagem vinha de uma realidade, anterior à LDB/96, de
vestibulares rigorosos, como ainda hoje pode ser observado nas instituições de
ensino superior público.
No caso da enfermagem, o processo seletivo diversificado favoreceu a entrada de
grande número de alunos, principalmente de candidatos com formação de auxiliar
e/ou técnico de enfermagem, os quais viram neste contexto de flexibilização a
oportunidade de ascensão social através da profissão, pela busca do capital
institucionalizado que o irá legitimar a exercer o cargo de enfermeiro.
A entrada destes agentes no jogo demandou estratégias para corrigir as
deficiências na formação escolar anterior, pois que não possuíam capital
cultural apropriado para acompanhar o jogo. Então, o que resta é sair do jogo,
daí a evasão escolar; ou permanecer no jogo, mas tendo que se submeter às suas
regras. De acordo com a experiência de uma das autoras deste trabalho, como
coordenadora de curso de enfermagem, a estratégia foi a criação do programa de
nivelamento % que consistia na inclusão de matérias como: Leitura,
interpretação e produção de texto, Raciocínio Lógico e Formação para a
cidadania como parte da matriz curricular além do oferecimento de cursos de
extensão de língua portuguesa e matemática.
A escola, em Bourdieu, realiza uma "operação de triagem" na medida em que
mantém a ordem pré-existente, separando alunos em diferentes graus de capital
cultural. A classificação escolar é um ato de ordenação, no sentido de
diferença social, em que os eleitos são marcados como pertencentes a esta ordem
e os demais são excluídos do sistema(10).
Quanto aos cursos seqüenciais observa-se, nos documentos analisados, um
movimento de questionamento por parte de instituições de ensino e de órgãos de
classe das categorias profissionais quanto à sua implantação, uma vez que o
entendimento sobre esta questão não ficou claro, carecendo de definição dos
seus propósitos e características, por parte do MEC.
A estratégia dos agentes da enfermagem neste caso foi participar dos vários
espaços onde se discutia cursos seqüenciais assim como fazer alianças com
outras instituições de ensino, representantes de diferentes categorias
profissionais, como a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
e a participação no Encontro Nacional do Fórum de Pró-Reitores de Graduação em
1999. Nesses encontros a discussão acerca desse assunto era acalorada e
expressiva do posicionamento contrário dos agentes da saúde. Segundo uma
depoente:
Discutimos muito [...] inclusive eu sei qual era a posição do Fórum
de Escolas do Rio de Janeiro [contrária] em relação aos cursos
seqüenciais, que era uma extensão para o tecnólogo. Lembro que, na
época, a pró-reitora de graduação [da UNIRIO], ex-diretora da Escola
de Enfermagem Alfredo Pinto e posteriormente do INEP fez grande
discussão e explicou o significado do curso seqüencial. Acredito que
não só a área de saúde vetou, mas outras também (D4).
Entre os profissionais da enfermagem, os cursos seqüenciais causaram polêmica,
tendo em vista que a profissão já comportava diferentes tipos de exercentes
como: auxiliar de enfermagem, técnico de enfermagem e enfermeiro. Uma agente
entrevistada assim se expressou:
Os cursos seqüenciais e tecnólogos não dariam um profissional de
nível superior. Eu não vejo o curso seqüencial e tecnólogo como
melhoria para a saúde da comunidade. Seria uma pessoa a mais para
dividir, não para somar... (D5).
Depreende-se dos depoimentos que os porta-vozes autorizados dos cursos de
enfermagem não aprovaram a criação de mais uma categoria na enfermagem. Cada
agente estava preocupado em preservar a posição do enfermeiro como o único
detentor de nível superior no campo da educação de enfermagem, pois
consideraram que a inserção de outras categorias poderia contribuir para a
redução do status profissional.
No 4º SENADEn, realizado em 2000, foi debatido o tema Cursos Seqüenciais:
implicações para a prática de enfermagem, apresentado pelas professoras Iara de
Moraes Xavier (à época Coordenadora da CEEEnf) e Maria Henriqueta Luce Kruse (à
época Vice-Presidente da Câmara de Graduação e Membro do Conselho de Ensino,
Pesquisa e Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Esta última
ressaltou que, diante de assunto tão polêmico, a enfermagem brasileira deveria
assumir uma atitude responsável e desaconselhar a criação destes cursos, pois
implicaria a criação de mais uma categoria profissional na enfermagem(9).
A questão dos cursos tecnólogos surgiu mais uma vez em 2002, quando o Conselho
Nacional de Educação (CNE) propôs a discussão, em audiências públicas, de uma
proposta de Resolução sobre Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Profissional de Nível Tecnológico, com o objetivo de criar tais cursos
inclusive para área da saúde e, conseqüentemente, para a enfermagem.
A ABEn participou ativamente das audiências públicas organizadas pelo CNE, e
parece ter influenciado para firmar o posicionamento contrário da categoria
quanto à criação de cursos seqüenciais e tecnológicos na área da enfermagem.
Tanto que, até o momento, os mesmos não foram implantados no campo da educação
superior de enfermagem.
As diretrizes político-jurídicas envolveram aspectos legais relacionados
principalmente aos documentos oficiais que normatizavam e regulavam o processo
avaliativo e a supervisão do sistema federal de ensino.
Para enfretamento das questões advindas da LDB/96 uma das principais
estratégias de luta empreendida pela ABEn foi a tomada de decisão visando a
realização anual do SENADEn. Para isso seus agentes envidaram um quantum de
força, pois entendiam que as mudanças deviam ser discutidas, em âmbito
nacional, e pelo maior número de agentes envolvidos na situação.
Outra estratégia da ABEn foi estabelecer parcerias com instituições formadoras
e com instâncias do MEC responsáveis pela regulamentação e avaliação da
formação de profissionais da área da saúde. Neste sentido, a ABEn levou o
assunto da avaliação para o 5º SENADEn, realizado em 2001, em São Paulo, que
teve como tema central A Avaliação no Contexto das Diretrizes Curriculares para
a Educação em Enfermagem: prioridades, implicações e desafios. A discussão
levou em consideração os diferentes aspectos que compõem a avaliação
educacional, a saber: avaliação institucional relacionada ao corpo docente e ao
projeto pedagógico, incluindo-se a autoavaliação como estratégia de seu
reconhecimento(11).
A questão do Exame Nacional de Curso (ENC) também conhecido como provão, foi
discutida em diversos espaços sociais e com diferentes agentes, tendo como
principal opositor a União Nacional de Estudantes (UNE) e o Fórum Nacional em
defesa da Escola Pública:
No SENADEn de 2002, no Piauí, houve discussão dos alunos, da
Executiva Nacional para boicote ao Provão; principalmente os alunos
pernambucanos e baianos. Mas no Rio de Janeiro, nós não tivemos
boicote. Para nós, o [provão], desde o primeiro momento, foi muito
importante... (D7).
Na prática, o que se percebeu foi que o ENC funcionou como um instrumento
isolado de avaliação, voltado apenas para um de seus aspectos: o desempenho dos
estudantes - sendo amplamente divulgados os seus resultados na midia, como um
ranking de classificação das melhores e piores instituições, objetivando
estimular a concorrência, já que as instituições utilizavam os resultados para
se promoverem. O Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) substituiu
o ENC, mas ainda assim houve resistência por parte dos alunos, que insistiam em
não querer participar do processo. Pela obrigatoriedade do exame, os dirigentes
dos cursos superiores tinham que persuadi-los:
Eu chamei os alunos e disse para eles: - vocês têm o direito de fazer
o que quiserem, mas se a instituição tirar nota baixa, um ano depois
se recupera; agora, no diploma de vocês vai ter um conceito o resto
das suas vidas. Todos fizeram a prova (D2).
A Carta de Natal, elaborada em 2005, por ocasião do 9º SENADEn, apresentou
diversas propostas, entre elas o "estabelecimento de estratégias para a
regulação da qualidade do ensino e para abertura de novos cursos de graduação,
bacharelado..."(12). O depoimento a seguir evidencia a inadequação dos
critérios existentes para a abertura de cursos de enfermagem em Instituição de
Ensino Superior (IES) principalmente em universidades e centros universitários
independente de sua categoria administrativa.
O reitor da instituição autorizava a criação de cursos e o MEC só
comparecia para o momento do reconhecimento. [...] de uma forma
extremamente ousada organizaram o processo de vestibular, teve
procura de aproximadamente quarenta e cinco alunos para a primeira
turma. Só depois que começaram a contatar pretensos coordenadores
para o curso. Eu até identifiquei isso como sendo uma conduta
irresponsável. A instituição não tinha nem o projeto do curso (D6).
Revelando a posição da enfermagem sobre o processo de avaliação da educação
superior, para além de instrumentos legais e regulatórios, o 9º SENADEn teve
como tema A Qualidade da Educação: um compromisso social da enfermagem, cujo
objetivo foi refletir sobre a qualidade da educação brasileira, focando
criticamente a articulação do ensino, do trabalho e da pesquisa, como um dos
fatores determinantes de qualificação na formação profissional na perspectiva
do seu compromisso social(12).
As estratégias de luta relativas às diretrizes político-organizacionais
demonstraram a preocupação dos agentes sociais organizados em torno da ABEn com
os projetos pedagógicos dos cursos no que diz respeito principalmente aos
cursos noturnos, às diretrizes curriculares e à carga horária para conclusão do
curso.
Quanto ao funcionamento dos cursos superiores de enfermagem no período da noite
a maioria dos agentes da enfermagem entendia que esta situação ainda carecia de
muitos debates e nem mesmo existiam documentos legais que normatizassem seu
funcionamento. Porém, a existência de cursos noturnos era uma realidade que não
poderia ser desconsiderada. Tanto assim que, no 8º SENADEn, em 2004, na Carta
de Vitória, este assunto veio à pauta e nela está expresso que o ensino noturno
deveria ser compreendido como um espaço que refletisse a especificidade do
trabalho em enfermagem; deveria estar articulado com as legislações
trabalhistas e que deveriam existir diretrizes específicas para os cursos
noturnos (13). Um agente desta pesquisa assim se pronunciou acerca do
oferecimento de cursos noturnos:
A coordenação do curso até o semestre passado foi contrária à criação
do curso noturno, mas infelizmente fugiu das nossas mãos e foi aberto
sem consulta porque era um desejo da universidade. Fomos chamadas
depois para atender as diretrizes em relação à carga horária que deve
ser majoritariamente diurna (D1).
Outra questão relaciona-se às Diretrizes Curriculares (DCs). O MEC, através do
Edital nº 4, de 1997, convidou agentes de diferentes profissões para elaborarem
as diretrizes curriculares referentes às suas áreas de conhecimento. Em atenção
a este chamamento, a ABEn, estrategicamente promoveu o 3º SENADEn, em 1998, que
teve como tema central Diretrizes para a educação em enfermagem no contexto da
LDB/96 (14). As discussões continuaram no ano seguinte, durante o 51º Congresso
Brasileiro de Enfermagem realizado em Florianópolis, que foi o espaço social de
construção coletiva e de deliberação do documento final das diretrizes
curriculares para os cursos de enfermagem(1-6).
Vale lembrar que o documento intitulado Enquadramento das Diretrizes
Curriculares, gerou repercussão negativa no campo da educação superior de
enfermagem. Seu conteúdo resgatava as antigas habilitações e criava cursos
seqüenciais, questões estas discordantes do que o grupo organizado em torno da
ABEn apresentou. Desse modo, os agentes empreenderam estratégias de luta
visando reverter a situação. Os membros da CEEEnf, nomeada em 2000, em aliança
com os porta-vozes do campo da educação em enfermagem, elaboraram um outro
documento que deu origem à Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara da
Educação Superior (CNE/CES), nº 3, de 7 de novembro de 2001 a qual instituiu as
DCs para os cursos de Graduação em Enfermagem.
Aprovadas as DCs, a etapa seguinte foi elaborar estratégias para a sua
implantação pelos cursos superiores de enfermagem. As mudanças foram discutidas
no 6º, 7º e 8º SENADEn's realizados em 2002, 2003 e 2004, respectivamente. A
Carta de Brasília (2003) relata o trabalho das oficinas que abordaram a análise
crítica das experiências de implantação das DCs nos cursos superiores de
enfermagem(11).
Uma depoente relata a sua estratégia de implantação das DCs:
Foi exercício de explicar, fazer muitas oficinas para resguardar que
ninguém se sentisse alijado do processo. Eu nunca vou me esquecer, o
projeto pedagógico da Escola foi aprovado em colegiado de curso, com
presença maciça (D4).
Em relação à carga horária do curso de enfermagem, os participantes do 3º e do
4º SENADEn's propuseram que o curso superior de enfermagem fosse ministrado em
no mínimo 3.500 horas(6), mas entendiam que era necessário definir um parâmetro
de referência nacional. Assim, através da Carta de Teresina, elaborada no 6º
SENADEn (2002) tomaram a iniciativa de propor para o curso de enfermagem a
duração mínima de 4.000 horas, com um tempo de integralização de, no mínimo,
oito semestres ou quatro anos letivos.
A questão da carga horária dos cursos foi retomada por meio do Parecer CES/CNE
nº 108/2003, de 7 de maio de 2003, que tratava da duração de cursos presenciais
de bacharelado, indicando que o CNE promoverá nos próximos seis meses,
audiências com a sociedade, ensejando a discussão e avaliação da duração e
integralização dos cursos de bacharelado e que ao final desse processo,
aprovará Parecer e Resolução dispondo sobre a matéria. Este Parecer definiu a
duração mínima dos cursos de graduação em três anos com integralização mínima
de 2.400 horas, exceto para os cursos de medicina, direito e engenharia. Isto
resultou em manifestações contrárias por parte de diversos órgãos de classe do
campo da saúde. Tanto que a ABEn Nacional encaminhou para o Presidente da CNE,
professor Efrém de Aguiar Maranhão, o documento Considerações da ABEn à Minuta
do Parecer nº 108/2003 que consistia na argumentação da definição da carga
horária de 4.000 horas para integralização do curso superior de enfermagem como
subsídio às discussões da Audiência Pública promovida pela CES do CNS, a ser
realizada em 16 de dezembro de 2003, em Brasília. Através deste, a ABEn fez
considerações contundentes sobre o referido Parecer e seu teor demonstrou
enfaticamente a posição da enfermagem em relação a tal assunto, ali
representada pela sua entidade de classe.
As considerações apresentadas reúnem um conjunto de reflexões realizadas pelos
profissionais de enfermagem aos quais a ABEn representa, ao delegá-la a
interlocução com o CNS/CES, partícipes dos Fóruns de Escolas de Enfermagem,
Seminários de Diretrizes para a Educação em Enfermagem, Plenárias de Escolas e
Diretores de Educação das Seções e Regionais existentes nos estados da
federação. [...] neste momento do seu desenvolvimento histórico, a formação
superior em Enfermagem deverá ter como carga horária mínima 4.000 horas,
integralizadas em quatro anos, para que possa vivenciar as mudanças na formação
destes profissionais, possibilitadas pelas DCNs, e avaliá-las de forma
sistemática e consistente, visando definir "o tempo útil" que expressará o
aproveitamento e o compromisso social desta formação(16).
Em 2004, foi aprovado o Parecer nº 329/2004, relacionado ainda à definição da
carga horária mínima para todos os cursos de graduação. Em 2006, foi aprovado o
Parecer nº 184 do CNE/CES, que tratou da retificação do Parecer CNE nº 329/
2004, referente à carga horária dos cursos, nele foi definido carga horária
para vários cursos, porém a enfermagem não estava incluída(16).
O fato é que a enfermagem, representada pela sua porta-voz, a ABEn Nacional,
não se sentiu contemplada em seu pleito de fazer valer a posição defendida e
discutida ao longo do tempo. Esta, por sua vez, solicitou que as ABEns
regionais se manifestassem sobre o Parecer nº 329/2004, no que foi atendida. A
Presidente da ABEn, Francisca Valda da Silva, enviou o ofício/ABEn nº 36/2005
ao então Presidente do CNE, Roberto Cláudio Frota Bezerra, e anexou a ele o
documento Considerações da ABEn à Minuta do Parecer nº 108/2003.
Exemplificando a luta dos agentes da enfermagem pela definição da carga horária
apresentamos a fala que se segue:
O grupo discutia exaustivamente a carga horária porque o MEC queria
reduzir, e qualquer hora nós seríamos técnicos (D2).
A não-aceitação por parte do CNE da carga horária proposta pelo grupo de
agentes da enfermagem teve repercussão de tal monta que a luta pela sua
definição se estendeu de1997 até o ano de 2008, quando foi aprovado o Parecer
CNE/CES nº 213/2008, homologado em 11/03/2009, pelo Ministro da Educação
Fernando Haddad, definindo que a carga horária mínima dos cursos superiores de
enfermagem seria de 4.000 horas.
Assim é que, a luta conjunta dos responsáveis por cursos superiores de
enfermagem, dos membros da CEEEnf do MEC e dos membros das diretorias da ABEn
foram eficazes para fazer valer as 4.000h consideradas como adequadas para a
formação do habitus profissional do enfermeiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As estratégias de luta estabelecidas e empreendidas por agentes da enfermagem,
em consonância com a ABEn, se deram a partir de diretrizes político-
expansionistas, político-jurídicas, e político-organizacionais, que estavam
articuladas aos princípios de expansão, flexibilidade, diversificação,
avaliação e modernização, os quais ao nortearem a reforma educacional
brasileira, concorreram para a reconfiguração do campo da educação superior de
enfermagem. Para esses agentes foi necessário dar a conhecer e fazer reconhecer
que as repercussões advindas da implantação das diretrizes da LDB/96 eram
problemas legítimos, publicáveis, públicos, oficiais, e produzidos pelas
circunstâncias sócio-políticas e econômicas. Assim, através de reuniões,
comissões, manifestações, eventos, petições, requerimentos, tomadas de posição,
os enfermeiros os tornaram problemas sociais, demandando um trabalho coletivo
de construção para uma nova realidade que se aplicasse à reconfiguração dos
cursos superiores de enfermagem.
Objetivando a discussão coletiva sobre as questões do campo da educação em
enfermagem, os SENADEn's se firmaram como espaços de discussão e elaboração de
estratégias de luta para subverter a nova ordem estabelecida pela LDB/96 e seus
desdobramentos, para o campo da educação superior, colocados como a única
verdade pelos agentes do MEC.
Destacamos que a ABEn, desde os seus primórdios, se constituiu em locus de
definição das posições e disposições no campo da educação superior de
enfermagem, visando a enunciação de um discurso autorizado sobre a formação do
enfermeiro(17).
Concluímos que a ABEn se destacou como porta-voz atuante e competente na
condução das questões inerentes ao campo da educação superior de enfermagem, e
também que a força da sua autoridade científica proveniente do grande volume
dos diversos tipos de capital acumulados ao longo de sua trajetória,
possibilitou que os enfermeiros obtivessem êxito nas principais questões
decorrentes da LDB/96. Por isso mesmo, seus porta-vozes possuem a capacidade de
falar e de agir legitimamente, isto é, de maneira autorizada e com autoridade,
a qual é socialmente outorgada a agentes determinados.