(Re)significando os projetos cuidativos da Enfermagem à luz das necessidades em
saúde da população
INTRODUÇÃO
Em 1994, a Estratégia Saúde da Família foi instituída como modelo de atenção à
saúde pelo Ministério da Saúde com o objetivo de reorganizar a Atenção Básica
no País e, principalmente, garantir os princípios do Sistema Único de Saúde -
SUS(1). Inicialmente recebeu o nome de Programa Saúde da Família, porém, em sua
fase de consolidação, foi renomeada Estratégia Saúde da Família - ESF.
O contexto no qual a ESF foi proposta era (e ainda é) caracterizado por
práticas assistenciais centradas na doença, em que a principal porta de entrada
para os serviços de saúde eram (e ainda são) os hospitais. Os serviços da
Atenção Básica eram considerados pouco qualificados e despreparados para o
atendimento das necessidades de saúde das coletividades e pouca ênfase era dada
às ações de prevenção de doenças e promoção da saúde(2).
A ESF surgiu da necessidade de transformar o modelo de atenção a saúde vigente,
com foco nos princípios do SUS. Suas ações são consideradas como a principal
forma de reorganização do modelo assistencial, sendo este o motivo pelo qual
houve a troca do termo "Programa" para "Estratégia"(3).
A ESF assumiu a responsabilidade de fomentar o estabelecimento de vínculos e
compromissos entre profissionais da saúde e população, a fim de reorganizar o
modelo de atenção à saúde. Para tanto, foi necessário mudar a forma de atuação,
a organização geral dos serviços e o objeto de atenção à saúde(4).
Dentre as atribuições da ESF há ações relacionadas à promoção da saúde,
atendimento da demanda espontânea e programada, prevenção do adoecimento,
manutenção da saúde e atenção às fases específicas do ciclo vital(3). Essas
atribuições remetem à integralidade como princípio organizador das práticas de
atenção à saúde, orientadas para as necessidades em saúde das famílias. Na ESF,
a família é o foco da atenção e o espaço geossocial é o substrato para o
trabalho em saúde(4).
Redirecionar a atenção à saúde para a integralidade e a equidade implica
reorganizar as práticas das equipes da ESF, de modo que tenham como objeto de
atenção as famílias em um dado território geossocial e considerem as
necessidades em saúde dessas famílias como necessidades de reprodução social.
A centralidade do conceito de necessidades na prática de enfermagem
O conceito de necessidades é central para o trabalho de Enfermagem. No Brasil,
Wanda de Aguiar Horta formulou uma teoria para explicar a natureza da
Enfermagem, definir seu campo de ação e a metodologia científica para embasar
sua prática. Fundamentou-se na Teoria da Motivação Humana de Maslow, de quem
adotou o conceito de necessidades humanas básicas.
Abraham Harold Maslow (1908-1970), psicólogo norteamericano de visão humanista,
pesquisador do comportamento humano, considerava que os seres humanos têm
necessidades comuns que motivam seu comportamento. Para ele, a motivação humana
é uma tentativa de satisfação das necessidades e dos desejos das pessoas. Com
base nesses princípios, propôs uma hierarquia de necessidades, organizando-as
sob a forma de uma pirâmide, em cuja base estariam as necessidades
fisiológicas, seguidas pelas de segurança, amor/relacionamento, estima e, no
topo, as de realização pessoal. As necessidades superiores somente se
manifestariam quando fossem atendidas as de ordem imediatamente inferiores.
Horta foi a primeira brasileira a formular uma teoria de Enfermagem, cujo
conceito assim definiu:
é a ciência e a arte de assistir o ser humano no atendimento de suas
necessidades básicas, de torná-lo independente dessa assistência,
quando possível, pelo ensino do autocuidado; de recuperar, manter e
promover a saúde, em colaboração com outros profissionais(5).
Para Horta, "assistir em Enfermagem é fazer pelo ser humano aquilo que ele não
pode fazer por si mesmo; ajudar ou auxiliar quando parcialmente impossibilitado
de se autocuidar; orientar ou ensinar, supervisionar e encaminhar a outros
profissionais"(5).
O conceito de necessidades utilizado por Horta influenciou gerações de
enfermeiras brasileiras e, possivelmente, ainda é o mais presente no ensino e
na prática de Enfermagem atualmente. Entretanto, há outras possibilidades de
conceituar necessidades em saúde, como a apresentada a seguir.
As necessidades na perspectiva Helleriana
Em seus estudos, Campos e Mishima(6) identificaram na literatura duas
abordagens referentes ao conceito de necessidades em saúde: uma primeira, mais
abstrata, presente nos trabalhos de Heller e Mendes-Gonçalves, e outra,
concreto-operacional, presente nos textos de Stotz.
Segundo Heller(7), as necessidades em saúde podem ser conceituadas como "desejo
consciente, aspiração, intenção dirigida em todo momento para um certo objeto
que motiva uma ação como tal. O objeto em questão é um produto social,
independente do fardo de que se trate de mercadoria, de um modo de vida ou de
outro homem"(7).
Duas categorias de necessidades são identificadas por Heller(7): necessidades
naturais e necessidades socialmente determinadas. A primeira refere-se às
necessidades físicas, do campo biológico, que ela denomina necessidades
necessárias. A segunda diz respeito às necessidades relacionadas a desejos
conscientes, aspirações, intenções dirigidas a um objeto (proporcionado por uma
objetivação social) que motiva uma ação, existindo uma correlação entre
necessidades pessoais e sociais(7).
As necessidades necessárias são necessidades naturais, próprias da espécie.
Estão relacionadas ao instinto de autoconservação e inclui as necessidades de
alimentação, proteção, abrigo, segurança e reprodução. Como afirma a autora,
são naturalmente necessárias, pois, sem elas, os seres humanos não poderiam se
manter como seres naturais.
Entretanto, Heller destaca que mesmo as necessidades naturais são necessidades
sociais, pois, embora relativas à conservação e à reprodução da vida, condição
para a existência humana, as formas para sua satisfação variam histórica e
socialmente e elementos culturais, costumes e valores são decisivos para sua
satisfação(7).
Heller estabelece uma distinção entre as necessidades naturais ou existenciais
e as necessidades propriamente humanas. Para ela, as necessidades naturais são
"ontologicamente primárias, desde o momento em que estão baseadas no instinto
de autoconservação"(7). Compreendem a necessidade de alimentação, a necessidade
sexual, de contato social e de cooperação e a necessidade de atividades. Ainda
assim, não podem ser consideradas estritamente naturais, pois estão sujeitas a
interpretações em um contexto social determinado.
Já as necessidades propriamente humanas não se limitam à garantia da
sobrevivência. Compreendem o descanso superior ao necessário para a reprodução
da força de trabalho, a atividade cultural, a reflexão, a amizade e a atividade
moral.
Heller(7)faz referência ainda às necessidades alienadas, que designam as
necessidades criadas pelo capitalismo, relacionadas à acumulação de riquezas.
Esse grupo de necessidades apresenta uma característica quantitativa,
relacionada à acumulação de capital, diferentemente das não alienadas, que têm
um caráter qualitativo. A busca da satisfação das necessidades alienadas tende
ao infinito e, portanto, dificilmente é alcançado um nível de saturação, pois
só podem ser superadas e interrompidas por um processo de desenvolvimento das
necessidades de caráter qualitativo.
Mendes-Gonçalves(8) considerava que as necessidades alienadas só poderiam ser
superadas por mudanças nas estruturas de poder que as geram. Aplicava, assim, o
conceito de necessidades radicais, cuja satisfação requer a remoção de
obstáculos sócio-históricos. São dirigidas para as transformações da estrutura
das necessidades, "não são um tipo-ideal, mas um tipo empírico, idêntico à
existência de seus portadores, que necessitam 'necessariamente' a remoção dos
obstáculos sócio-históricos para sua satisfação"(8). Como não são determinadas
social e historicamente, com base nos modos de produção, as necessidades
radicais não são necessidades de reprodução social - estão relacionadas aos
processos de criatividade e liberdade que nos tornam propriamente humanos.
Segundo Mendes-Gonçalves(8), o ser humano é, a um só tempo, um ser natural e
social, parte de uma totalidade social historicamente determinada. Possui
carecimentos e potencialidades, passíveis de modificações e desenvolvimento. A
partir do momento que, tanto os carecimentos como as potencialidades são formas
de objetivação que se modificam e se desenvolvem, abandona-se qualquer ideia
relacionada à fixidez "naturalista" de necessidades em saúde.
Para Mendes-Gonçalves(8), o ser humano diferencia-se dos outros seres naturais
justamente pela capacidade de satisfação de seus carecimentos a partir da
utilização de seus poderes. Ou seja, quando lança mão de artifícios, como o
pensamento ou a utilização de instrumentos para a satisfação de seus
carecimentos, esses assumem um caráter social e histórico e não apenas de
sobrevivência.
As necessidades humanas são, ao mesmo tempo, naturais e sociais, pois, para
continuar a existir, o ser humano, como ser natural, deve relacionar-se com a
natureza, por meio do trabalho. Por isso não é possível chamar de naturais
quaisquer necessidades humanas, mesmo aquelas relacionadas à sobrevivência,
pois, mesmo essas, para serem satisfeitas, exigem a aplicação de poderes que
fazem do ser humano um ser sócio-histórico. Por essa razão, Heller(7) passou a
designá-las necessidades "necessárias".
Mesmo as necessidades "necessárias" não são fixas; modificam-se, diversificam-
se e ampliam-se a cada vez que são satisfeitas. Necessidades são, portanto,
produtos históricos, uma vez que, ao serem satisfeitas, permitem ao ser humano
reproduzir-se como tal e carregam consigo características das primeiras
necessidades satisfeitas.
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves foi responsável pela transposição da perspectiva
helleriana de necessidades para a saúde. Para ele, a satisfação de uma
necessidade é o produto de um processo de trabalho. O trabalho resulta da
aplicação da ação dos seres humanos sobre um objeto determinado, em resposta a
uma necessidade que, ao ser reiterada ou ampliada, dá origem a outro processo
de trabalho, caracterizando dessa forma a circularidade existente entre
necessidades e processos de trabalho. Em suas próprias palavras: "a sócio-
historicidade dos processos de trabalho cria os objetos para as necessidades e
as novas necessidades criam os sujeitos para os novos processos de trabalho"
(8).
Para Stotz(9), as necessidades em saúde são individuais, biológicas, social e
historicamente determinadas e satisfazê-las socialmente é um sinal do seu
reconhecimento. Destaca que, embora as necessidades em saúde sejam sentidas
individualmente, o sistema social de atenção procura considerá-las por meio de
questões abstratas, baseadas em indicadores, por exemplo. Ao considerar apenas
alguns indicadores, acaba por descontextualizar as pessoas dos determinantes de
seu processo saúde-doença, privilegiando determinadas condições de saúde e
ocultando ou reprimindo outras necessidades de saúde.
Cecílio(10), tal como Stotz(9), considera que as necessidades em saúde só podem
ser captadas no âmbito individual. Advoga que, adotar as necessidades como eixo
norteador das práticas em saúde, exige a construção de novos saberes para
reorganizar o processo de trabalho, gestão e planejamento em saúde, na luta
pela equidade e pela integralidade. Para isso, destaca a necessidade de
conceituar necessidades em saúde de forma que os trabalhadores da área possam
se apropriar do conceito e implementá-lo no cotidiano do trabalho em saúde.
Propõe uma taxonomia de necessidades em saúde, agrupando-as em quatro grandes
grupos: boas condições de vida, acesso às tecnologias, criação de vínculos e
autonomia.
O primeiro grupo, boas condições de vida, está relacionado tanto aos aspectos
mais funcionalistas, enfatizados por fatores ambientais e externos (higiene e
urbanização, por exemplo), quanto pelas diferentes posições ocupadas pelos
indivíduos no modo de produção das sociedades, que melhor explicam o processo
saúde-doença.
O segundo grupo relaciona-se ao acesso e consumo das tecnologias de saúde
utilizadas para melhorar e prolongar a vida. O autor parte do conceito de
tecnologias leve, leve-dura e dura, proposto por Merhy, ressaltando que não tem
a pretensão de hierarquizá-las. Porém, destaca que o poder de uso de cada
tecnologia deve estar relacionado às necessidades de cada pessoa.
O terceiro grupo diz respeito à criação de vínculos entre usuários e
profissionais de saúde, objetivando o desenvolvimento de uma relação de
confiança. O vínculo é entendido como mais que uma formalidade, pois implica um
encontro de subjetividades, uma relação de confiança contínua, pessoal e
intransferível.
E, por fim, o quarto grupo, que diz respeito à necessidade que cada pessoa
apresenta em relação à autonomia para andar a vida e que implica mais que
informação e educação, pois exige dos sujeitos a reconstrução dos sentidos de
sua vida, tendo essa ressignificação um peso efetivo em seu modo de viver, bem
como na satisfação de suas necessidades de forma ampliada.
A organização dos serviços de saúde em resposta às necessidades dos usuários
Campos e Bataiero(11) destacaram a complexidade que o tema das necessidades
assume no âmbito dos serviços de saúde. Segundo os autores, as necessidades em
saúde vêm sendo abordadas sob a perspectiva operacional, ou seja, aquela em que
o objeto da atenção em saúde é conformado pela oferta dos serviços de saúde.
Essa organização traz como consequência a associação das necessidades em saúde
com o consumo dos serviços, geralmente sob a forma de consultas médicas.
As equipes da ESF possuem conhecimento impreciso sobre as necessidades em saúde
das famílias sob seus cuidados e não dispõem de estratégias para identificar
situações de vulnerabilidade a que tais famílias estão expostas. As ações das
equipes em geral restringem-se à execução de atividades previstas nos programas
verticais de saúde preconizados pelo Ministério da Saúde (MS), como, por
exemplo, os de saúde da mulher, saúde da criança, grupos de hipertensos e
diabéticos, dentre outros.
Tais programas, quando estruturados e executados de forma vertical, não atendem
às necessidades em saúde das coletividades, pois não respondem à complexidade
dos determinantes dos processos saúde-doença, modulados por condicionantes de
ordem biológica, psicológica, cultural, econômica e política(12).
O conceito de necessidade em saúde que subjaz às ações da equipe, focado em
agravos, demandas por serviços especializados e protocolos do Ministério da
Saúde, é fruto de uma concepção de saúde como ausência de doença, resultando em
atividades utilitaristas e reducionistas dos fenômenos do processo saúde-
doença.
Essa realidade traduz uma contradição entre as premissas do Sistema Único de
Saúde (SUS) e as práticas dos serviços. Por um lado, é possível observar que o
processo saúde-doença ainda é compreendido apenas no seu caráter biológico e
que as ações de saúde são realizadas de forma padronizada, vertical e
prescritiva. Por outro, existe uma política que visa redirecionar o sistema
para as necessidades em saúde das coletividades e que busca superar o modelo
médico hegemônico vigente nos serviços de saúde.
Serviços organizados de forma a responder às necessidades em saúde da população
devem adotar uma concepção de saúde e doença capaz de interligar os aspectos
individuais aos coletivos. Os trabalhadores de saúde devem levar em conta que
as necessidades, uma vez satisfeitas, serão reiteradas ou ampliadas, o que
exigirá a instauração de um novo processo de trabalho para continuar a atendê-
las.
Pensar em necessidades em saúde como necessidades de reprodução social implica
adotar, implícita ou explicitamente, a concepção de saúde e de doença que lhe é
correspondente, no caso, a determinação social de processo saúde-doença,
relacionada aos processos de produção e reprodução social(9,13).
As necessidades em saúde diferenciam-se entre si a depender das diferentes
formas de inserção social de indivíduos, famílias e grupos sociais. Estão
relacionadas e expressam diferentes condições de vulnerabilidade e requerem
projetos de intervenção distintos(8,14). Portanto, satisfazê-las exige
compreender as formas de viver de indivíduos e famílias.
SÍNTESE
As necessidades abrangem as múltiplas dimensões da vida (física, psíquica,
afetiva, social, cultural e política). Quando validadas socialmente, são
reconhecidas como demandas ou problemas de saúde e traduzidas por meio da
linguagem pública em leis, normas, políticas, instituições e reinvindicações de
grupos sociais(15).
A qualidade de vida e saúde depende da satisfação tanto das necessidades
necessárias (de sobrevivência e reprodução), quanto das propriamente humanas,
de proteção, afeto, compreensão, acesso a educação e cultura, lazer,
participação, criação, identidade, liberdade, relacionadas à autorrealização,
baseadas na igualdade e no livre e mútuo reconhecimento da condição humana.
Já as necessidades alienadas são criadas em função do capital; referem-se,
sobretudo, a aspectos materiais e ao consumo de mercadorias; reforçam a
insatisfação (pela criação infinita de necessidades), expressa como carecimento
(falta de algo, geralmente material); são inesgotáveis e, no capitalismo, parte
integrante da subjetividade (sentidos, motivações).
O ser humano e suas necessidades definem-se a partir de sua existência
concreta, pois as potencialidades humanas só se efetivam na vida, no processo
produtivo, nas relações. As necessidades relativas à condição humana são
indispensáveis à humanização.
As necessidades em saúde têm tanto valor de uso (intervenções) como valor de
troca (produtos, mercadorias) e são manipuladas socialmente (criadas e
ocultadas). Os serviços de saúde são contextos instauradores de necessidades
(estabelecem demandas e consumo), pois o saber técnico e a ação profissional
reproduzem e instauram necessidades em saúde. Os usuários participam desse
contexto instaurador de necessidades, com suas demandas.
Necessidades não são somente carecimentos (falta de algo). Pensá-las apenas
como carências nega a existência de necessidades que expressam potencialidades
humanas. Mas as carências, traduzidas em demandas, buscam reconhecimento social
e também contribuem para a autodeterminação humana. Portanto, necessidades e
carências devem ser igualmente reconhecidas, pois ambas são legítimas.