Percepção de pacientes sobre a privacidade no hospital
INTRODUÇÃO
O hospital é um ambiente hostil à natureza humana por potencializar fragilidade
física e vulnerabilidade emocional ante o processo saúde-doença. Ao confrontar
a doença e o tratamento, os pacientes se deparam com circunstâncias que
interferem no seu estilo de vida, somando-se a convivência com pessoas que não
fazem parte da sua estrutura social. Consequentemente, a hospitalização requer
aceitação, adaptação, submissão e resignação.
Neste cenário, geralmente o paciente compartilha o mesmo espaço com outros
pacientes e com os profissionais. Equipe de enfermagem, nutricionistas,
fisioterapeutas, médicos, psicólogos, assistentes sociais, profissionais dos
serviços de exames complementares e dos serviços de apoio (manutenção, limpeza,
recepção, etc.) circulam livremente no ambiente hospitalar e tem acesso direto
e contínuo aos pacientes, sem contar a presença alternativa e intermitente de
estudantes universitários e pesquisadores. De tal modo, a ausência de
privacidade é uma realidade constante.
É reconhecível que o paciente tem sua privacidade comprometida ao dar entrada
no hospital, o que se acentua conforme a gravidade da doença e o grau de
dependência dos cuidados. Ainda, a estrutura física e administrativa, somando-
se as limitações práticas, pode dificultar o resguardo da privacidade dos
pacientes, cuja responsabilidade é da equipe de saúde, sobretudo da enfermagem.
Por outro lado, como exercer a prática assistencial sem infringir a privacidade
do paciente? Sabe-se que, inevitavelmente, essa será afetada, mas pergunta-se:
em que medida? de que maneira? O que se observa é que os pacientes se sentem
desconfortáveis em fornecer tantos dados sobre si, desde o serviço de recepção
e admissão do hospital até sua acomodação no leito hospitalar, como também por
ter seu corpo submetido e exposto às várias atividades assistenciais e que se
repetem nos dias subsequentes. Em adição, a maioria da população brasileira não
tem acesso a quartos individuais, dividindo enfermarias com pessoas
desconhecidas, situação que se complica quando necessário desnudar e tocar o
corpo, além de trocar informações.
De certa forma, quando as pessoas procuram um serviço de saúde estão preparadas
para esse tipo de invasão, mas não estão preparadas para lidar com a forma como
isso, muitas vezes, acontece. O hospital é uma instituição de caráter social e
público e, portanto, envolve expectativas de como as pessoas deveriam interagir
umas com as outras. Nesse caso, o relacionamento profissional-paciente é de
extrema importância, especialmente com a enfermagem, pois quando estabelece
confiança com o profissional o paciente fica mais à vontade para se expor,
emocional e fisicamente, para dar informações pessoais e até sobre as
pretensões quanto à privacidade.
Privacidade não é somente excluir-se ou o artifício de deixar aproximar-se,
envolve estar em contato ou sem contato com os outros. O desejo por interação
social ou não altera-se com o tempo e as circunstâncias(1), pois privacidade
consiste no afastamento temporário e voluntário de uma pessoa, da sociedade em
geral, por meios físicos ou psicológicos(2) e incide em ter o controle seletivo
do acesso a si próprio, ou melhor, em um processo dinâmico de regulação da
fronteira interpessoal, por meio do qual os indivíduos ou grupos podem
controlar ou regular a interação(1).
Infelizmente, nos serviços de saúde a doença monopoliza a atenção dos
profissionais, priorizando-se as medidas para conter a enfermidade, ficando o
respeito, a individualidade, a dignidade, os direitos do paciente, suas
preferências, valores, crenças, costumes e sentimentos em segundo plano. Isso
reflete na assistência como impessoalidade, insensibilidade e mecanização,
embora a racionalização, a técnica e conhecimento científico sejam
imprescindíveis nesse contexto.
Considerando as atividades assistenciais e a suposição que os pacientes se
importam com a invasão da privacidade, acredita-se que conhecer suas
preferências relativas à privacidade, identificar os aspectos intervenientes e
as implicações decorrentes da violação da privacidade, contribuirá para a
adoção de condutas e medidas que assegurem sua proteção no hospital. Diante do
exposto e que o conceito de privacidade é complexo e envolve diferentes
perspectivas e dimensões culturais, tanto que não há consenso universal sobre
sua concepção(3), o presente estudo teve por objetivo descrever a percepção de
privacidade do paciente no contexto hospitalar.
METODOLOGIA
Este artigo é parte da tese de doutorado intitulada "Satisfação do paciente
hospitalizado com sua privacidade física: construção e validação de um
instrumento de medida", cuja pesquisa foi desenvolvida após aprovação de Comitê
de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (Parecer 084/2007), concordância
e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos sujeitos do
estudo (Resolução nº 196/96). Embora o foco principal da pesquisa seja a
privacidade física referente à exposição e manipulação corporal durante a
assistência, a concepção sobre privacidade em geral emitida pelos pacientes
internados merece ser discutida separadamente, optando-se nesse manuscrito por
abordar tal enfoque.
Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem metodológica qualitativa usando
a análise de conteúdo(4), modalidade temática, para se identificar nas falas
dos sujeitos os caracteres comuns, cuja presença e/ou frequência tivesse
significado para o objetivo analítico visado. Dessa forma buscou-se identificar
o sentido dos conteúdos emitidos nas mensagens (núcleos de sentido), a fim de
se extrair as categorias temáticas, cujos significados expressam a percepção
dos pacientes sobre a privacidade.
Para tanto, após leituras repetidas das entrevistas obtidas, procedeu-se com o
isolamento e classificação dos elementos, ordenando-os e agrupando-os conforme
a similaridade, no intuito inicial de obter "uma representatividade
simplificada dos dados brutos"(4). Em seguida, procedeu-se com os recortes das
mensagens em nível semântico (unidades de registro), as quais foram codificadas
com um número (indicando o sujeito) e uma letra maiúscula (indicando a fala).
Os dados correspondentes foram compilados em categorias temáticas segundo a
similaridade, presença e frequência, e norteadas por Teorias da Privacidade(1-
2), referencial teórico adotado para o estudo.
A coleta de dados prosseguiu até a saturação das informações, no período de 15
de abril a 25 de maio de 2007, com pacientes hospitalizados por no mínimo 3
dias nas diversas unidades de internação de 6 hospitais do município de
Maringá-PR (2 públicos, 3 privados e 1 filantrópico). Participaram 34 pacientes
com idade igual ou superior a 18 anos, de ambos os sexos, conscientes e
orientados, caracterizados quanto à faixa etária, sexo, religião, cor da pele,
estado civil, renda familiar, nível de escolaridade, e quanto ao número de
hospitalizações, tempo da internação atual e nível de dependência(5).
Os pacientes foram contatados e entrevistados no período de internação. O nível
de dependência foi avaliado quanto à natureza em total ou parcial, e quanto "à
extensão qualitativa em Total-Fazer e Parcial-Ajudar, Orientar, Supervisionar e
Encaminhar" (FAOSE). Tal classificação dimensiona quantitativamente a
dependência em graus, cujos valores atribuídos neste estudo foram baixa
dependência (1), média dependência (2), alta dependência (3) e totalmente
dependente (4)(5).
Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, orientada pela
questão aberto-fechada: "O que é para o (a) senhor (a) privacidade dentro do
hospital?".As entrevistas foram registradas por escrito pela pesquisadora e, ao
término de cada encontro, transcritas e codificadas. A pergunta foi lida para o
sujeito e as dúvidas esclarecidas, orientando no sentido de explorar
profundamente o tema para se conseguir o máximo de informações a partir da
questão norteadora, sem induzir a resposta. Ao final, as anotações foram lidas
para possíveis complementações, retificações e confirmação das informações.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A caracterização sócio-demográfica dos 34 sujeitos (Tabela_1) mostra predomínio
de pacientes casados (58,8%), católicos (70,6%) e de cor branca (67,6%). A
maioria tem baixo nível de escolaridade e renda familiar inferior a cinco
salários mínimos, observando-se equivalência em relação ao sexo e à faixa
etária.
A Tabela_2 apresenta a caracterização referente ao período de internação e
evidencia que a maioria esteve hospitalizada por menos de seis dias (61,8%),
não vivenciava a primeira internação e era pouco dependente (53%). Observou-se
que tanto os pacientes com várias experiências em internamento como os que
vivenciam a primeira ou segunda internação manifestaram apreensões e
expectativas similares com relação à privacidade. O mesmo também foi percebido
com referência à idade, ao estado civil, à religião, ao nível de escolaridade e
condições socioeconômicas. Todavia, nota-se que, na medida em que se prolongam
os dias de internamento, e quanto mais dependente dos cuidados, os pacientes
são mais enfáticos a respeito das transgressões contra sua privacidade,
provavelmente por estarem mais sujeitos às ações dos profissionais e às
circunstâncias que os predispõem a isso.
Estas observações podem ser constatadas na apresentação e discussão dos
resultados, cuja análise das informações obtidas nas entrevistas permitiu
identificar três categorias temáticas, fundamentadas no referencial teórico,
oriundas da visão dos pacientes sobre a privacidade em geral no contexto
hospitalar, sendo dignidade e respeito, autonomia e espaço pessoal e
territorial.
A. Dignidade e respeito
As falas que originaram essa categoria reportam-se à imagem que os pacientes
têm de um cuidado de qualidade, ao respeito e à moralidade que devem estar
presentes nas várias situações vivenciadas, no sentido de preservar sua
privacidade contra a intrusão indesejada. Para os sujeitos, tal percepção
parece estar vinculada à necessidade de ser visto como pessoa, ser humano, e
não como objeto. Ao mesmo tempo, entende-se que seus sentimentos e reações
devem ser observados e valorizados, pois a falta de privacidade provavelmente
acarretará desconforto e insatisfação com o cuidado.
Isso pode ser evidenciado quando vários pacientes relacionam o fato de ser bem
cuidado, bem tratado e atendido, além de destacarem a educação e atenção dos
profissionais, como fatores que influenciam as medidas para a proteção e
manutenção da privacidade.
[...] somos respeitados nos nossos desejos na medida do possível,
atendem bem, são educados. (8A)
[...] é respeitar o outro, é cuidar bem. (15A, 32A)
É quando respeitam a gente, dão atenção. (16A)
A privacidade é muito boa, cuidam bem. (26A, 27A, 29A)
Estudos sobre satisfação com os cuidados evidenciaram que receber atenção e ser
bem atendido, incluindo manter a privacidade, melhora a percepção dos pacientes
sobre o cuidado e, por conseguinte, sua dignidade(6). Dignidade e privacidade
conferem qualidade à assistência, sendo essas de responsabilidade dos
profissionais ao realizar as atividades de cuidado, bem como manter a
individualidade e o respeito à privacidade são aspectos considerados essenciais
à promoção do conforto no hospital(7-8).
Em concordância, um estudo descreveu que na concepção de pacientes a dignidade
está relacionada ao tratamento que recebem dos cuidadores, pois a forma como
são tratados pode comprometer o sentido de dignidade, como ser visto como
pessoa, digno de confiança e de respeito, e que essa envolve aspectos da
privacidade(9). Os pacientes reforçam essa visão quando alegam que a
privacidade consiste em respeitar suas preferências com relação à privacidade,
respeitá-lo como indivíduo e considerar seus limites.
Privacidade é respeitar o outro, as nossas vontades. Se não quero
tomar banho, tem que respeitar. (12A)
É ser respeitado aqui dentro. (31A)
É o limite até onde o paciente pode e é respeitado. (34A)
Tais colocações deixam claro que gostariam que suas preferências fossem
observadas e supridas pelos profissionais, segundo suas crenças e valores
pessoais. Para tal, faz-se imprescindível a sensibilidade, a solidariedade e o
respeito dos que cuidam para com quem é cuidado, sobretudo com aqueles sem
condições de cuidar de si. Concepções similares foram emitidas por outro grupo
de pacientes, para os quais dignidade é uma característica inerente ao ser
humano, que pode ser subjetivamente expressada como um atributo do self e por
comportamentos que demonstram respeito por si e pelos outros(7).
Na verdade, dignidade está presente quando um indivíduo é capaz de controlar
seu comportamento, o meio ambiente e o modo como é tratado pelos outros, ou
mesmo a habilidade para sentir-se valorizado em relação aos outros, pois a
dignidade humana incorpora muitas características da privacidade(10). Isto é
visível quando os pacientes advertem que a privacidade engloba respeito ao seu
espaço, ao seu corpo, bem como a não divulgação dos dados pessoais.
Privacidade é respeitar o paciente quando entram no quarto e vem
examinar a gente. (13A)
O hospital respeita minha privacidade não divulgando minha patologia.
(19A)
O sentido de dignidade e respeito emitido pelos pacientes envolve aspectos como
acreditar em si mesmo, poder confiar na interação com os profissionais e que
isso será recíproco, além do que se a equipe for sensível a seus sentimentos se
preocupará com sua privacidade. De fato, os significados atribuídos mostram que
o desrespeito à privacidade, ou ausência dela, afeta o bem-estar, e, portanto,
a dignidade. Vale lembrar que a idéia central do componente comportamental de
dignidade está relacionada à ação que mostra respeito, assim, a dignidade pode
ser afetada pelo tratamento que se recebe dos outros(7).
É visível que o respeito emerge como fator indispensável para o processo de
cuidar em saúde e está diretamente vinculado à proteção e manutenção da
privacidade(11-12). Desse modo, entende-se o respeito como um dos fundamentos
da moralidade e da ética, necessário no relacionamento interpessoal e imperioso
no exercício profissional.
Por outro lado, surpreende que apenas um sujeito tenha se referido à
privacidade informacional, visto que o sigilo sobre o diagnóstico e a discrição
quanto ao tratamento são preocupações comuns entre os pacientes, principalmente
naqueles alocados em enfermarias. A suposta importância à confidencialidade dos
dados não foi manifestada por esse grupo de pacientes, talvez por estarem mais
incomodados com os demais fatores associados à privacidade e que no seu
entender merecem maior atenção. Acredita-se que os pacientes apontaram aqueles
que geram mais inquietação, desconforto e inconveniência.
Na mesma vertente, o respeito à integridade do paciente é visto como condição
de totalidade, no qual os desejos e valores individuais de cada pessoa,
evoluídos a partir da experiência com a doença e suas consequências, devem ser
sempre considerados. Desse modo, o respeito à autodeterminação do paciente
implica no direito dele de tomar suas próprias decisões e agir conforme seus
valores e anseios pessoais, mantendo sua dignidade, desde que não interfira com
o direito de outra pessoa(8).
B. Autonomia
Essa categoria incluiu as falas que denotam ter controle sobre sua própria
pessoa e sobre a situação, bem como sobre os aspectos ou fatores que interferem
na manutenção da sua privacidade. Um teorista define privacidade como controle
seletivo, ou regulação, do acesso a si por outras pessoas(1); e outro como
afastamento das outras pessoas determinando em que medida se está acessível,
sendo que a autonomia pessoal caracteriza-se como uma das funções da
privacidade(2).
De fato, alguns pacientes indicam que solicitar para manipular seu corpo, para
examinar ou outro cuidado/procedimento, demonstra consideração e atenção,
fazendo com que se sintam valorizados e no comando da situação. Talvez isso
minimize os efeitos da invasão e a sensação de ser visto como objeto.
Privacidade é pedir autorização na hora de mexer com a gente. (15B)
[...] é não ser incomodado. (1B, 15D)
[...] é ter silêncio. (14A)
Privacidade é não mudar os hábitos de casa. (20A)
[...] é deixar você fazer suas coisas em paz, não ficar no seu pé
toda hora. (31B)
O alerta quanto a pedir permissão para abordá-los mostra que tal conduta faz
com que se sintam valorizados como um indivíduo único, com suas peculiaridades,
e que a situação está sob seu domínio. Essa atitude, assim como o respeito,
confere dignidade na visão dos pacientes quando se trata da privacidade. Em
contrapartida, essas observações também sugerem negligência por parte do
profissional com relação à sua preferência por privacidade em certos eventos e
falta de consideração por parte de outros. Quando citam o fato de pedir
autorização para tocar o seu corpo advertem que são donos de si e responsáveis
por seu próprio corpo, mesmo que fragilizados pela doença. Nesse sentido, a
dignidade configura respeito e preservação da própria identidade moral e da
autonomia, e quando se refere à privacidade entende-se que com a permissão da
pessoa não há violação, e, portanto, não há perda da dignidade(13).
Constata-se que os pacientes manifestam anseio por um pouco de isolamento, de
solidão, de períodos de circunspeção, o que esporadicamente conseguem em seu
lar e que no hospital é praticamente impossível. Alguns transmitem a idéia de
que seu direito à opção e à sua preferência foi tolhido durante a
hospitalização e que a forma como realmente gostariam que fosse não é viável, e
que isso é consequência da mudança de ambiente. O fato de estar no hospital, um
local diferente e que não é de seu domínio, interfere na sua habilidade de
controlar sua privacidade. Tal visão é apoiada pela observação de que ao se
internar o paciente nem sempre é capaz de reter o controle de sua própria
necessidade por privacidade(14).
Definir privacidade como controle relaciona-a ao poder de ter determinadas
escolhas ao invés da opção por meios pelos quais se pode exercer tal poder(3).
Percebe-se que os pacientes expressam suas preferências e ambicionam ter mais
controle em dadas situações, porém se conformam, aparentemente sem buscar
alternativas. Na verdade, é reconhecível que o paciente hospitalizado tem pouca
chance para controlar o ambiente e frequentemente vivencia a perda da
privacidade, o que pode ser observado nas colocações que evidenciam a ausência
de liberdade pessoal e a falta de condições para manter sua privacidade no
hospital.
[...] no hospital não tem privacidade. (4A)
Meu direito de ir e vir foi parcialmente restrito. (21A)
Privacidade não existe de jeito nenhum. (28A)
O respeito à autonomia do paciente significa dar a ele a oportunidade de
escolher, pois a percepção de controle transmite segurança e, portanto, se
sentem menos ameaçados(8-9). Aparentemente, a manutenção da privacidade permite
um sentimento de controle individual e de expressão de autonomia. Outro estudo
sobre privacidade e direitos dos pacientes também identificou a categoria
controle e opção individual, e constatou que a autonomia deles foi
frequentemente corroída pelas atitudes e comportamentos da equipe de saúde,
deflagrando a perda do controle e de escolha(10).
Essa visão corrobora com a colocação de que a autonomia pode ser entendida como
o interesse do indivíduo em tomar decisões significativas sobre sua vida, pois
um estudo no contexto da interação profissional-paciente identificou que a
compreensão conceitual de autonomia em combinação com integridade (envolvendo
dignidade e privacidade), consiste na habilidade e liberdade para tomar
decisões sem coerção ou restrição externa(8). Nesse sentido, admite-se a
relação entre autonomia e a necessidade de privacidade no hospital manifestada
pelos pacientes. A menção à autonomia também é reforçada quando surgem
reivindicações por espaçopessoal e território, terceira categoria identificada.
C. Espaço pessoal e territorial
A última categoria identificada englobou as falas dos sujeitos que revelaram
sua necessidade por um local só seu, próprio, particular, como uma forma de
obter um pouco de reclusão e tranquilidade, na tentativa de preservar-se e
resgatar sua individualidade. O espaço pessoal é um ponto invisível que
circunda o corpo humano, uma área individual que separa uma pessoa de outras
pessoas, um tipo de zona de proteção(3), e território é uma área que um
indivíduo defende como sendo exclusiva(2). Já a territorialidade é um termo
usado para descrever a condição de possessividade, controle, autoridade sobre
uma área do espaço físico(1).
De acordo com os sujeitos, ao reclamarem um local para si, mantendo-se à parte
dos outros pacientes, revelam que gostariam de isolamento e que prefeririam não
compartilhar a mesma enfermaria. É nítido o desconforto de alguns pacientes com
a presença de outros no mesmo quarto, pois isto significa dividir não apenas
espaço, mas também aspectos da esfera pessoal, desde conversas com visitas e
profissionais até o repouso, higiene e outras atividades.
Privacidade é a condição de ficar no seu local. (1A)
[...] é estar em um quarto sozinho. (5A)
[...] é ter o meu cantinho. (10A)
[...] é não ter muita gente dormindo perto de você. (11B)
[...] é ficar quietinho no nosso canto. (15C)
Privacidade dentro do hospital é ninguém tomar o espaço da gente.
(18A)
A mesma reivindicação foi observada em outro estudo, no qual os pacientes
igualmente manifestaram querer ficar sozinhos, ter a possibilidade de
privacidade sem outras pessoas em volta(9). Uma investigação sobre a percepção
de privacidade de pacientes em quartos compartilhados, em hospitais na Nova
Zelândia, averiguou que os pacientes determinam a necessidade por uma área
privada para manter o controle sobre as informações pessoais e para evitar a
exposição física, mesmo quando a separação entre os leitos é proporcionada por
cortinas(15).
Infelizmente, apenas uma parcela da população tem o privilégio de se internar
em quarto individual, não só no Brasil como em outras locais. Sabe-se que em
alguns países enfermarias dos serviços de emergência e em UTIs podem ser
mistas, tendo os leitos ou Box separados por cortinas ou divisórias. Assim,
além de dividir o mesmo ambiente os pacientes às vezes também convivem com
pacientes de sexo diferente ao seu(15), situação essa não muito diferente da
brasileira. Privacidade implica territorialidade, a qual está presente em
muitas espécies, incluindo o ser humano, e consiste em proteger um território
contra a intrusão de outros. Para os homens a defesa de uma área, de uma
propriedade, não consiste somente conservar a terra ou espaço, mas também
objetos, ideias, privilégios ou direitos.
Portanto, território é aquela área da vida do indivíduo que ele vivencia como
sua e na qual exerce controle, toma iniciativa, é especialista ou pela qual
aceita responsabilidade(1). Quando a pessoa tem um lugar só seu ela se sente
mais segura e tem a sensação de que assim restringe a circulação de outras
pessoas em volta de si. Alguns sujeitos indicam que o ingresso de pessoas em
seu quarto transgride sua privacidade, percebendo-se nos relatos que muitas
vezes o que mais aborrece é a forma como os profissionais infringem seu espaço
físico.
[...] as pessoas entram e saem a toda hora. (4B)
[...] a pessoa chega a qualquer hora, de madrugada. (11A)
O controle do espaço físico é crucial para o bem-estar físico e psicológico de
todas as pessoas, principalmente no ambiente hospitalar onde o trânsito de
pessoas é constante por se tratar de um local público, mas que implica doença.
Alerta-se que a invasão desnecessária desse espaço pela equipe de saúde, ou
outras pessoas, é inadequada, pois o que pode parecer justificado para alguns,
para outros pode ser visto como violação da privacidade(10). Isso ocorre porque
o comportamento territorial é influenciado por fatores culturais e também
porque as pessoas entendem a invasão do espaço pessoal como inevitável quando
estão doentes, porém não compreendem a necessidade excessiva de ter seu espaço
físico invadido.
No mesmo sentido, uma pesquisa identificou junto a pacientes hospitalizados
seis componentes de invasão do espaço territorial, sendo "desrespeito ao espaço
físico, interrupção do sono e descanso, descontrole do espaço físico, descaso
para com o espaço físico, mudança do espaço físico sem consulta e entrada no
espaço físico sem permissão"(16). O que de fato acontece é que os profissionais
agem como se este território fosse exclusivo da equipe de saúde, aprovado e
legitimado pela sociedade para estar dentre as paredes do hospital. No entanto,
os próprios deveriam respeitar o espaço do paciente e seu direito à
privacidade, embora se reconheça que é impossível realizar o cuidado sem
invasão do território, do espaço e da zona corporal.
A hospitalização submete o paciente à intrusão do espaço pessoal e territorial,
o que gera ameaça à sua dignidade, à sua integridade. Nesse ambiente a
intrusão/invasão pode ser definida como entrada e atividade ou contato não
solicitados, o espaço pessoal como uma área que se estende exteriormente (de
fora para dentro) a uma distância de cerca de 120 cm do corpo da pessoa, e
território como a área do quarto do hospital que é reivindicada pelo paciente
(16).
Desse modo, o banheiro, elemento para o qual alguns pacientes alertaram, também
faz parte do território, sobretudo quando o estão ocupando. Em geral, os
pacientes são orientados a não trancar a porta do banheiro quando lá estão pela
possibilidade de sentirem-se mal, facilitando o acesso da equipe caso
necessário. Contudo, com frequência são interrompidos e sua privacidade é
infringida.
Privacidade é ter o banheiro com a porta fechada quando precisar ir.
(22A) Privacidade é no banheiro, tendo a porta encostada. (23A)
Outros estudos também revelam que a privacidade no banheiro é essencial para os
pacientes(14,16). Há de se reconhecer o quanto é desagradável abrirem a porta
do banheiro quando o mesmo está sendo usado, dado que esse ambiente envolve
atividades de cunho extremamente pessoal. A intromissão de outros no quarto e
banheiro do paciente é reconhecidamente invasão da privacidade. O que os
pacientes requerem é impedir o trânsito de pessoas nesses momentos, como fechar
a porta e colocar um aviso. A ansiedade do paciente provocada pela
probabilidade de alguém entrar e surpreendê-lo em situação constrangedora é
plausível, ainda mais quando enfatizam os problemas com o banheiro.
Admite-se que a enfermagem repetidamente invade o espaço pessoal e territorial
do paciente por falha em avisar antes de exceder os limites, por sobrecarga de
trabalho ou pela dificuldade em superar os obstáculos e a deficiência de
recursos(15-17). Destaca-se que a territorialidade provê segurança,
privacidade, autonomia e identidade ao indivíduo, logo, é compreensível que o
paciente vislumbre a invasão como uma ameaça à sua integridade física e
emocional.
O que se percebe é que os pacientes demarcam um território imaginário, porém
não expressam sua necessidade e nem definem os limites junto à equipe de saúde.
Gostariam de delimitar seu espaço, mas não o fazem. Parecem aguardar que os
profissionais tomem providência a esse respeito ou se conformam com a situação
por ser temporária e necessária. De certa forma os pacientes advertem para quão
difícil é proteger e manter sua privacidade em um ambiente onde a circulação de
pessoas é constante e que tanto os profissionais como as outras pessoas agem
como se entrar e sair fossem normais. Apesar de corriqueiro para a equipe, os
pacientes demonstram que sua privacidade é importante e que sua transgressão os
afeta em sua dignidade. Implicitamente os pacientes esperam mais empenho dos
profissionais, e aqui se entende que cabe mais à enfermagem adotar medidas que
os preserve da intromissão dos outros.
Em concordância, um estudo recente sobre a privacidade do paciente em terapia
intensiva assinala que na percepção dos profissionais de saúde que ali atuam,
os próprios precisam refletir sobre como preservar a privacidade do paciente,
adotando medidas e atitudes que assegurem a dignidade dos pacientes durante as
ações de cuidado(18).
Por conseguinte, as comissões de ética institucionais, a quem se entende
caberia a orientação e supervisão, não observam e nem recomendam medidas para
minimizar ou prevenir infrações. Entretanto, o significado de privacidade no
contexto da saúde adotado pelo Kennedy Institute of Ethics, sediado em
Washington, e aceito por alguns estudiosos da ética no Brasil, consiste na
"limitação do acesso às informações de uma dada pessoa, ao acesso à própria
pessoa, à sua intimidade, anonimato, segredos, afastamento ou solidão. É a
liberdade que o paciente tem de não ser observado sem autorização"(19).
É compreendida ainda como o direito da pessoa de permanecer sozinha, isolada,
sem nenhuma perturbação externa e de escolher o tratamento conforme a
preferência pessoal, ou seja, é um processo de regulação do acesso a si ou a um
grupo pelos outros, a um tempo em particular e em um certo cenário de
circunstâncias, ou seja, envolve controlar a quantidade e o tipo de contato que
alguém tem com os outros(20). Privacidade não pode ser observada por si, pode-
se observar a violação das normas de privacidade, mas somente quando se
aprendem primeiro quais são as normas de privacidade em um dado contexto(11).
Daí a importância dos comitês e comissões de ética das instituições, dos
direitos e deveres do paciente, dos códigos de ética das profissões, do código
civil, da declaração dos direitos humanos e da constituição, como mecanismos
disponíveis que podem promulgar normas, medidas e até leis direcionadas à
proteção da privacidade do indivíduo hospitalizado(11).
Mesmo que a privacidade seja vastamente reconhecida como um valor importante,
nem filósofos e nem juristas foram bem-sucedidos em converter tal valor a um
padrão de proteção legal, claramente definido(15). Contudo, embora as
fronteiras e limites da privacidade variem de cultura para cultura, a intrusão
injustificada comumente engloba a presença física de pessoa indesejada,
observações inconvenientes de/ou pelas pessoas, divulgação de informação
particular, imprecisa ou ilusória sobre pessoas, e usurpação das decisões
pessoais feitas na própria esfera de alguém(3, 20). Portando, considerando tais
colocações e os resultados encontrados neste estudo, pode-se preservar a
privacidade no ambiente hospitalar mostrando respeito pelos desejos, pelo
espaço e pelos pertences do paciente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo os sujeitos apontaram com mais assiduidade os fatores de caráter
comportamental que podem interferir na sua privacidade pessoal, como as
atitudes de respeito às suas preferências, consideração pela própria autoridade
sobre si e pelo espaço que ocupam no hospital, ainda que tenham que dividi-lo
com outros pacientes, referindo-se também aos aspectos de cunho mais íntimo
(uso do banheiro, ocasião do banho, dormir junto a estranhos, tocar e examinar
seu corpo).
Em contrapartida, um único paciente mencionou a questão da confidencialidade
das informações, preocupação constante de muitos pesquisadores da área da saúde
e estudiosos da ética e bioética. Deduz-se que isso foi pouco citado porque
atualmente os profissionais, conscientizados dessa problemática, tomam cuidado
e evitam fazer comentários desnecessários em público sobre o paciente, uma vez
que isso tem sido amplamente discutido e divulgado por comitês de ética, em
eventos, periódicos científicos e pela mídia. Por outro lado, percebe-se que os
pacientes discorreram sobre as ocorrências que mais os incomodou e sobre as que
sentem que mais infringem sua privacidade, sua intimidade.
Apesar de muito se discutir sobre confidencialidade, pouco se tem avançado com
relação à privacidade do paciente dentro do hospital. O que se observa na
prática é que nos ambientes de assistência à saúde, em especial no hospital, as
transgressões são mais comuns do que as condutas direcionadas à preservação da
privacidade dos pacientes.
Concorda-se com a visão desse grupo de pacientes, de que privacidade está
interligada com dignidade e respeito, depende de espaço pessoal e territorial e
da garantia de autonomia. Em síntese, autonomia, dignidade, respeito, espaço
pessoal e territorial, entre outros, são conceitos inter-relacionados,
inerentes e imprescindíveis à proteção e manutenção da privacidade dos
pacientes não só no hospital como também em todos os outros serviços de
atendimento à saúde.
Reconhece-se que manter a privacidade dos pacientes nos estabelecimentos de
assistência à saúde, principalmente no hospital, não constitui tarefa fácil
para os profissionais e nem para os usuários. Porém, se as questões levantadas
e discutidas forem observadas e consideradas pelos profissionais ao realizarem
as atividades de cuidado, somando-se o discernimento entre o que seria correto
e errado, certamente a sensação de invasão da privacidade será minimizada,
mesmo frente à necessidade de exposição e manipulação corporal e, sobretudo, à
impossibilidade de permanecer internado em quarto individual.
Sugere-se a realização de estudo similar sobre o tema com outros pacientes em
diferentes regiões geográficas e contextos culturais, visto que este estudo
retrata apenas a percepção desse grupo de pacientes. Vale destacar que, quando
se fala sobre a privacidade dos pacientes, geralmente as pessoas envolvidas
lembram primeiramente do sigilo das informações, porém, neste estudo os
sujeitos revelaram não ser essa a sua apreensão mais comum, pois se reportaram
quase que exclusivamente às outras circunstâncias e comportamentos que violam
sua privacidade e geram insatisfação com a qualidade da assistência.