Cuidadores de idosos dependentes no domicílio: mudanças nas relações familiares
INTRODUÇÃO
O envelhecimento populacional, e as limitações que este pode trazer ao
indivíduo, sejam pelo aparecimento de doenças crônicas não transmissíveis e
suas consequências, ou pelas perdas cognitivas e funcionais do avançar da
idade, vem demandando cuidados domiciliares e mudanças no cotidiano de muitas
famílias.
Autores apontam que a doença aparece para a família, como uma grande ameaça à
sua integridade e equilíbrio. É um período marcado por sensação de peso,
mobilizando sentimentos como: medo da perda, da dependência e do despreparo
para o cuidado(1), sendo, geralmente, uma tarefa árdua, que pode acarretar
consequências para o cuidador e família(2).
Um estudo mostrou melhor adaptação da família, quando a situação geradora de
dependência ocorreu de forma lenta e gradual, como na demência, do que quando
ocorreu de forma súbita, como no acidente vascular cerebral (AVC)(3).
A incapacidade funcional engloba as deficiências, limitações da capacidade ou
restrições no desempenho de atividades(4), e o Brasil, em relação a América
Latina e Caribe, possui maior número de idosos com dificuldades em atividades
da vida diária - AVDs e atividades instrumentais da vida diária ' AIVDs(5).
Nessa condição de saúde, muitos idosos necessitam da ajuda de um cuidador,
geralmente esposas e filhas, do sexo feminino, de idade avançada, e sem
trabalho fixo, segundo perfil traçado em vários estudos nacionais e
internacionais(1-2,6-7).
A temática cuidador, cuidados domiciliares a idosos e o idoso com dependência
no domicílio, é uma discussão emergente no Brasil, principalmente a partir da
década de 80. Contudo, a Política Nacional do Idoso pouco se refere à população
portadora de dependência, sendo precário o sistema de suporte formal a esses
idosos e suas famílias(8).
Em consequência disso, o suporte informal a essas pessoas, tendo a frente à
família, se constitui em principal núcleo de apoio social. Em 2008, o
Ministério da Saúde lançou o Guia Prático do Cuidador, que orienta estes sobre
a prestação de cuidados a idosos dependentes no domicílio, tornando a família
cada vez mais responsável pelo cuidado(9).
Ao se cuidar de idosos dependentes e seus cuidadores, é importante observar
aspectos como: acesso ao apoio formal e informal, fatores sócio demográficos,
situação econômica, condições de moradia e estrutura familiar, considerando-se
aqui também o perfil do cuidador. A literatura aponta que famílias bem
assistidas, estruturadas econômica e emocionalmente, podem reagir de forma
diferente ao lidar com um idoso dependente, em relação à outra que possui
mecanismos de enfrentamento emocional e de suporte financeiro deficientes, e
não são assistidas adequadamente(10).
Além disso, observar como e em que medida a dinâmica familiar pode se alterar
com a situação de dependência é imprescindível para que, famílias vulneráveis,
sejam identificadas e melhor assistidas nesse sentido(2).
A relevância de pesquisas sobre as mudanças na dinâmica familiar foi
demonstrada em uma revisão sistemática objetivando identificar o estado da arte
sobre idosos com incapacidade funcional e AVC, a qual verificou que temas como
sobrecarga do cuidador e mudanças nas relações familiares pós AVC estavam
presentes em muitas publicações científicas, dissertações e teses, revelando
assim o interesse em compreender melhor essa temática(11).
Dessa forma, esse estudo traz como objetivos: identificar, na ótica do
cuidador, as mudanças ocorridas nas relações familiares após um evento gerador
de dependência no idoso, e os possíveis fatores que as causaram.
METODOLOGIA
Estudo qualitativo, vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Idoso
(NESPI), recorte de um projeto de iniciação científica (PIBIC) intitulado:
"Como vivem os idosos com dependência no domicílio e seus cuidadores",
realizado em 2009.
O lócus foi o domicílio dos idosos, visitados a partir de um Programa de
Assistência Domiciliar situado em Salvador, vinculado a Universidade Federal da
Bahia (UFBA). As visitas foram feitas junto à equipe do programa, aos
domicílios cujos cuidadores aceitaram fazer parte da pesquisa.
A busca dos sujeitos foi através dos prontuários dos idosos inscritos e
acompanhados pelo programa escolhido para o estudo, seguindo os critérios de
inclusão: cuidadores de idosos com dependência de cuidados familiares,
identificados como responsável principal, vinculados ao programa escolhido para
coleta, que podiam responder ao formulário e que aceitassem fazer parte da
pesquisa.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da UFBA em
22/03/2010, sob o Protocolo nº 50/2009 seguindo as normas estabelecidas pela
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Após orientação sobre os
objetivos, desenvolvimento da pesquisa, e direitos enquanto participantes, foi
solicitada aos sujeitos do estudo a assinatura do Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido.
A coleta de dados foi realizada através de entrevista com questões norteadoras
referentes às mudanças ocorridas nas relações familiares após evento gerador de
dependência, e os fatores que as causaram. Foi utilizado também diário de
campo, em que se procurou observar aspectos relacionados ao domicílio, e a
relação entre o idoso e o cuidador. A dependência do idoso foi avaliada através
da escala de Barthel para atividades de vida diária (AVDs) e utilizou-se
informações do cuidador para avaliação das atividades instrumentais de vida
diária (AIVDs).
Após transcritas, as entrevistas foram lidas para formação de categorias de
análise, seguindo-se os passos descritos por Bardin(12), e analisadas
qualitativamente de acordo com referências sobre o tema disponíveis na
literatura.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram entrevistados oito cuidadores de idosos, todos do sexo feminino. Das
cuidadoras, quatro estavam representadas por filhas, três por cônjuges e uma
por neta. Quanto à idade, a mínima foi 35 anos e a máxima 83, sendo que a
maioria estava acima de 59 anos. Cinco cuidadoras eram aposentadas, uma estava
economicamente ativa, uma estava desempregada no momento e uma trabalhava no
lar.
Sobre o estado civil, quatro eram solteiras, uma divorciada e três casadas,
sendo que nesses casos eram cuidadoras dos seus respectivos maridos. A maior
parte delas possuía filhos adultos. Quanto à escolaridade, uma cursou até o
curso primário, duas concluíram até o ensino fundamental, três estudaram até o
ensino médio, e duas concluíram ou estavam concluindo o ensino superior.
Todas as cuidadoras residiam no mesmo domicílio que o idoso, sendo que seis
delas estavam no seu domicílio, casos em que o idoso foi acolhido por seus
familiares. Apenas duas estavam em casas que pertenciam ao idoso.
Em relação ao grau de dependência dos idosos cuidados, todos apresentavam algum
nível de dependência quanto às AIVDs, principalmente nas tarefas que demandavam
saída do domicílio, como ir ao banco, por exemplo. Quanto às AVDs, três
cuidadoras conviviam com idosos com dependência severa, duas cuidadoras com
idosos de dependência total, duas cuidadoras com idosos de dependência moderada
e apenas uma cuidadora convivia com idoso de dependência leve.
Houve relato de mudanças na relação familiar, por todas as cuidadoras
entrevistadas. De acordo com estas, duas situações foram geradas: melhora na
relação familiar e piora na relação familiar, com vários fatores envolvidos em
cada uma das situações. Desse modo, elaborou-se duas categorias de análise:
Apoio e união familiar; e Sobrecarga do cuidador familiar, com suas
subcategorias, a saber, ausência de suporte informal com sobrecarga de um
cuidador único, isolamento social e idoso cuidador de idoso.
A. Apoio e união familiar
Quase todas as famílias referiram algum tipo de apoio e união familiar. Mesmo
aqueles cuidadores que apontaram mudanças negativas, relataram possuir apoio
familiar, sempre que necessário. Os cuidadores trouxeram a união familiar como
algo que já estava presente na família e permaneceu após a dependência do
idoso, não havendo alterações nos relacionamentos ou havendo de forma positiva.
Além disso, observou-se que essa união não se relacionou ao grau de dependência
do idoso em AVDs ou AIVDs, como mostra também outro estudo(2), mesmo que a
elevada dependência demandasse maior sobrecarga para o cuidador(13). Os
discursos abaixo tratam de cuidadores de idosos com dependência severa.
Graças a Deus a gente sempre foi unida. Tenho um irmão que liga duas,
três vezes no dia pra saber como ele tá. (Primavera).
Porque a mudança [...] pra ele ficou melhor ainda, os filhos dele o
paparicam [...]. Ele tem um bocado de babá. (Bem te vi).
A união familiar pré-existente ao evento gerador de dependência é um importante
preditor de alterações positivas na família, bem como de manutenção da harmonia
e equilíbrio. Laços de união são reforçados, contribuindo para que haja apoio
entre os membros. O sentimento de perda e as demandas que surgem com a doença,
levam a estreitamento de laços e reaproximação familiar(1).
O relacionamento familiar, embora certamente modificado pelas imposições da
prestação de cuidados, que requer compromisso e envolve muitos sentimentos,
também leva a família a perceber-se de outra forma, resultando em maior
proximidade e melhora do relacionamento entre seus componentes, que se
preocupam em dividir a responsabilidade do cuidado e em atender ao idoso(14). O
modelo de família restrita também parece contribuir para união dos seus
membros.
A gente foi sempre tudo muito junto, por agente ser pouco, poucas
pessoas. Então, tava todo mundo sempre junto, tudo que fazia era
junto. Se ia passear era junto, se era pra chorar também tava junto.
(Beija flor).
Nesse modelo familiar, mais comum nas camadas de média e alta renda, a reduzida
quantidade de membros, composta quase exclusivamente por pais e filhos,
estreita as relações entre estes, favorecendo mecanismos de apoio mútuo e auto-
sustento. Um estudo mostrou que nos grupos de maior renda, onde se configuravam
famílias restritas, não foi citado apoio de outras pessoas que não pertencessem
ao núcleo familiar, como vizinhos, por exemplo. Isso reforça a noção de família
restrita, com relações mais privadas e vínculos de reciprocidade(14).
No trabalho em tela, um facilitador do processo de adaptação dos cuidadores
familiares à mudança, foi à profissão exercida por algumas cuidadoras antes de
assumirem este papel. Destas, quatro eram técnicas de enfermagem, o que,
segundo elas, foi benéfico por terem algum conhecimento prévio sobre a
prestação dos cuidados, se constituindo em fonte de auxílio e equilíbrio
familiar, como observado em outro estudo(15).
Já tô acostumada, sou cuidadora há muito tempo, sou técnica de
enfermagem. Então, pra gente não é muito. (Canário).
Facilitou pra cuidar dela, porque há muito tempo atrás eu já cuidei
de idoso. (Sabiá).
Percebe-se então, a importância do suporte formal para essas famílias, pois o
conhecimento prévio dos cuidadores sobre aspectos como: cuidar de feridas,
prevenção de úlceras, banho e mobilização no leito, foram facilitadores do
cuidado.
B. Sobrecarga do cuidador familiar
Nessa categoria, foram agregadas três sub-categorias que se relacionaram a
sobrecarga do cuidador familiar: Ausência de suporte informal com sobrecarga de
um cuidador único, Isolamento social e Idoso cuidador de idoso.
Ausência de suporte informal com sobrecarga de um cuidador único
Quanto à ausência do suporte informal, apenas uma cuidadora informou total
falta de apoio dos seus familiares.
A família se afasta, não quer aquele compromisso [...] (Canário).
A maioria dos cuidadores traz o apoio que eles têm de familiares, porém esse
apoio se dá de forma momentânea, configurando ações pontuais nos momentos de
necessidade e emergência, não sendo, portanto, uma divisão da prestação de
cuidados.
Qualquer coisa é só ligar que tá todo mundo junto. Nunca nos foi
negado nada [...] Graças a Deus. (Gaivota).
Nesses casos, o familiar assume várias tarefas, passando a ser o cuidador
principal que, eventualmente, é auxiliado pelos outros familiares em tarefas
menores.
As irmãs dele vão esporadicamente [...]. Mas se precisar dela pra
internamento, pra levar pra médico, ela dá providência do
internamento. A mais velha ajudava financeiramente. (Arara azul).
Contudo, algumas cuidadoras que relataram ter apoio dos familiares, revelaram,
em outros momentos, que assumiam o cuidado integralmente, mesmo apresentando
problemas de saúde. Um estudo realizado com esposas cuidadoras de idosos
dependentes mostrou que, muitas vezes, a ajuda que dizem receber, não existe
realmente, e que elas sempre justificam ausência dos parentes e vizinhos com
motivos diversos, como falta de tempo e trabalho(16).
Meu filho já é casado, mas ele não é presente, pelo trabalho que ele
tem né? Porque vive viajando. E no final de semana dele, ele
trabalha. (Beija flor).
Dessa forma, muitos cuidadores mantêm a união familiar sem conflitos, por não
reivindicarem apoio dos demais membros. Afirmam ter colaboração, porém, na
verdade, assumem sozinhos o cuidado do idoso. Certamente, algumas pessoas não
têm disponibilidade diária para colaborarem nas tarefas cotidianas,
principalmente, aquelas que estão inseridas no mercado de trabalho. Levando em
consideração que o grupo entrevistado possui na sua maioria mulheres
aposentadas e que já cuidavam das atividades domésticas, percebe-se que esse
fato as coloca em uma situação quase que imposta. Se os outros membros
trabalham e elas estão no domicílio, logo, a função de cuidadoras lhes é
delegada naturalmente.
Assim, assumir os cuidados ao idoso dependente é, muitas vezes, uma imposição
das circunstâncias, não se configura como opção, um ato pensado e, muito menos,
decidido conjuntamente. Geralmente, o familiar se vê obrigado a assumir o
cuidado por indisponibilidade dos outros membros(6). Dessa forma, acaba sendo
uma decisão solitária, sem discussão sobre a situação, o que pode gerar tensão
familiar.
Minha mãe, quando teve AVC e ficou no hospital, na hora perguntou pra
onde é que ela vai? Eu vi todo mundo parado, aí eu disse: Eu levo pra
minha casa. (Sabiá).
Na maioria dos casos analisados, o fato das cuidadoras estarem aposentadas ou
desempregadas (sete delas), e os outros membros da família no mercado de
trabalho, fez com que elas se sentissem bem assistidas em relação ao aspecto
financeiro. Isso, certamente, ajudou a controlar conflitos familiares, quando
as cuidadoras assumiram uma postura de conformismo, que colaborou para a
manutenção da união, não significando, efetivamente, satisfação.
Não tenho muito o que fazer. Porque a gente conta com o que tem.
(Arara-azul).
A discussão referente à sobrecarga familiar diante da dependência é algo que já
vem acontecendo há algumas décadas, sendo situação comum nos domicílios de
idosos dependentes, principalmente na ausência de apoio(1,13).
Porque somos seis filhos, e quem ficou com toda responsabilidade fui
eu. (Sabiá).
A cuidadora acima pertence a uma família extensa, e a idosa possui dependência
moderada. Na entrevista, ela relatou alterações negativas no relacionamento
familiar, após a dependência de sua mãe. O fato de existirem muitos membros em
uma família, potencializa a possibilidade de mudanças negativas na mesma(14),
pois dentre muitos, apenas um será escolhido para assumir as responsabilidades
do cuidar, podendo causar sentimentos de revolta para com os outros. Nos casos
de famílias nucleares, são poucas as opções, o que provoca certo conformismo do
cuidador, o qual, muitas vezes, já sabia que assumiria tal papel quando fosse
preciso.
Em alguns casos, a sobrecarga se dá pelo fato do cuidador principal se sentir
responsável e assumir todas as tarefas, mesmo que não lhe caiba fazê-las. Mas,
o que se mostrou mais presente nas entrevistas, foi a sobrecarga por falta de
apoio. Apesar da maioria das cuidadoras não se queixar diretamente, durante as
visitas, foi possível perceber sinais de sobrecarga nas faces de cansaço e
desânimo, principalmente naquelas também responsáveis pelas tarefas do lar. Um
estudo aponta que sofrem maior sobrecarga cuidadores do sexo feminino, que
moram com o idoso e cuidam por muitas horas, devido a sobreposição de tarefas
(13). No estudo em questão, todas as cuidadoras desempenhavam trabalho
doméstico e sete delas possuíam filhos.
[...] agente cobra dos outros irmãos que não contribuem. Ah, que dia
pode levar minha vó no médico? Aí, minha vó não vai algumas vezes ao
médico porque não tem como carregar. (Canário).
A sobrecarga leva a situações negativas nas relações familiares(13), já que o
cuidador, vendo-se sozinho diante do trabalho exaustivo, recorre à ajuda dos
outros membros da família, que podem negar esse suporte. Na situação acima,
além da idosa ter dependência severa, o domicílio tinha acesso com escadas,
dificultando o deslocamento.
Outra cuidadora aponta mudanças na relação familiar, que podem ocorrer mesmo
quando o idoso não está totalmente dependente, como é o caso de Sabiá, que
cuida da mãe com dependência moderada.
Houve mudança na relação sim, porque eu não sei, acho que eles têm
receio de eu ficar ocupando eles, mas eu não ocupo. (Sabiá).
Todo mundo se afastou um pouco. Visita, de vez em quando. (Sabiá).
O conflito familiar, proveniente da sobrecarga dos cuidadores, muitas vezes, é
algo esperado diante da complexidade do processo, já que no esforço de doar-se
ao doente, divergências podem ocorrer entre os envolvidos(6). A sobrecarga
gerada no cotidiano da família, provoca estresse e diminuição da tolerância do
cuidador que, ao sentir-se limitado em suas atividades sociais e outras, pode
trazer a tona tudo que estava há tempo guardado.
Um modelo desenvolvido para medir as demandas cotidianas do cuidador, revela
que a ajuda em AVDs e AIVDs, o status cognitivo e os comportamentos
apresentados pelo idoso, as relações entre o cuidador e os apoios que dispõem,
são elementos influentes na sobrecarga, e fontes de pressão para o cuidador
(17). Dessa forma, há uma gama de variáveis influentes nesse processo de
sobrecarga.
O conflito familiar surge aqui, não só como consequência da sobrecarga, mas
também como um dos fatores que a predispõe, visto que o cuidador que vive em
ambiente de brigas e discussões, provavelmente terá seu lado emocional
alterado. Torna-se fundamental ressaltar que a sobrecarga do cuidador não está
fundamentada apenas em questões objetivas, decorrentes da ação de cuidar, mas
também de questões subjetivas como conflitos familiares, abdicação do trabalho
ou de momentos de lazer, entre outros.
É importante atentar para as consequências da sobrecarga para todos os atores
envolvidos no processo: cuidador, idoso e familiares, pois, diante de situações
estressoras que se perpetuam dia após dia, sem nenhuma possibilidade de mudança
aparente, os cuidadores, muitas vezes, extrapolam o limite da razão, gerando
maus-tratos configurados em agressões físicas, verbais, descaso e indiferença.
Sobre isso, um estudo mostrou que a existência de um clima de exaustão, pode
desencadear atitudes de violência e negligência com o cuidado(18).
Nos domicílios visitados, onde as cuidadoras não recebiam apoio de outros
membros da família, observou-se rispidez e impaciência no trato com o idoso. Já
nas famílias onde havia apoio de outros membros, o ambiente foi percebido como
tranqüilo e harmonioso.
A Enfermagem pode atuar nas suas visitas atenuando a sobrecarga do cuidador
familiar, adotando medidas de suporte para prestação de cuidados. Quando o
cuidador é orientado sobre como lidar com as necessidades do idoso dependente,
e tem apoio do suporte formal para realizar as atividades cotidianas, sente
maior facilidade para cuidar reduzindo a carga de estresse.
O suporte formal é de fundamental importância, principalmente se considerarmos
o grau de dependência do idoso, um dos fatores percebido como influente na
sobrecarga do cuidador. Entre estes, os que mais referiram sobrecarga foram os
que possuíam idosos com dependência severa. Assim, programas de suporte formal
devem ser incentivados, priorizando famílias cujos idosos têm maior
dependência, a fim de auxiliar cuidadores familiares e idosos nesse processo
adaptativo. O apoio formal contribui para o equilíbrio familiar, favorece a
redução de conflitos e fornece à família uma referência profissional para
orientá-la.
Isolamento social
Outro ponto causador de sobrecarga para o cuidador é a restrição do mesmo ao
domicílio. O idoso dependente, muitas vezes, encontra-se impossibilitado de
ficar sozinho em casa, requerendo a presença constante de alguém ao seu lado. A
maior parte do tempo, esse cuidador permanece restrito ao ambiente domiciliar,
reduzindo seus momentos de lazer a poucos ou nenhum evento, dos quais antes
podia participar. Os familiares e amigos, geralmente, estão presentes no início
do processo, mas com o tempo se afastam, e o cuidador se vê sozinho, mantido
apenas na esfera doméstica, com distanciamento dos círculos de amizade(1).
Os amigos fugiram [...] sumiram, desapareceram [...]. Porque eu
também não posso ser aquela pessoa que eu tava sempre, toda semana
tinha festa, tinha aniversário. Eu participava. Então, aí fica mais
difícil. Agente tem que ver os dois lados. (Beija flor).
Eu ainda saio, vou ao mercado, vou à farmácia. Então, eu ainda dou
essas saídas, mas o resto é aqui mesmo, dentro de casa vendo
televisão [...] (Beija flor).
A ausência de lazer, aliada ao confinamento no ambiente do cuidar constante,
leva o cuidador familiar, muitas vezes, a sentir-se sobrecarregado
emocionalmente. As doenças que levam a incapacidade, impõem limitações ao
doente e cuidador, resultando sentimentos de isolamento, alterações no estilo
de vida e insatisfações na vida social, proporcionando um cotidiano restrito
apenas às atividades domésticas(19). Autores apontam que esse isolamento com
sobrecarga é maior quando se trata de dependentes por transtornos mentais(13).
Outra situação que ocorre junto ao isolamento social são as repercussões
financeiras para o cuidador familiar(1), e sua dificuldade ou impossibilidade
de se inserir no mercado de trabalho. Esse contexto resulta em uma dupla
sobrecarga para o cuidador familiar, já que além de não manter suas atividades
cotidianas e de lazer como antes, ele também vê a sua liberdade financeira
atingida, dependendo agora da renda de outrem. Essa privação econômica
repercute assim na sobrecarga emocional, o que resulta em conflitos constantes
com os outros membros da família, os quais podem não compreender esse momento
do cuidador e contribuir para a manutenção desses conflitos.
O que mais me afeta é o setor financeiro, né? [...] Agora que eu tô
montando uma empresa virtual pra ficar em casa. (Canário).
A sobrecarga emocional resultante do isolamento social tende reduzir o limiar
de tolerância do cuidador para algumas situações, promovendo conflitos com
outros membros da família e até com o idoso sujeito dos cuidados. Além disso, o
isolamento social de um cuidador único, enquanto os outros familiares gozam de
plena liberdade, causa indignação por parte do cuidador com sentimentos
negativos.
Eu e minha irmã somos quem mais cuida [...] Os outros não. Se
preocupam muito com suas próprias vidas, não se preocupam com a avó.
Só agente, que vive o dia a dia [...]. Não tenho mais minha
liberdade. (Canário).
O programa de atenção domiciliar, locus do estudo, possui um grupo de
convivência para os cuidadores onde, uma vez por mês, eles se reúnem para
atividades diversas. Dentre estas estão atividades de lazer como encontros à
beira-mar, cinema, momentos de cuidados com o corpo/beleza e comemorações de
festas típicas. A proposta dessas atividades é justamente envolvê-los em
momentos de distração, onde possam sair um pouco do cotidiano do cuidar do
outro para cuidar de si.
Porque eu não saio mais, a não ser assim pra vir aqui (grupo de
cuidadores), pra ir ao médico. Mas passear, como eu passeava [...].
Eu perdi a minha liberdade. (Beija flor).
A exemplo dessa cuidadora, outros cuidadores também tem, nesses grupos, o seu
único momento de saída do ambiente domiciliar. Na prática e nas conversas,
percebe-se que os cuidadores sentem-se muito bem nessas atividades,
considerando-as de grande valor, trocando experiência e retomando forças para
continuar o cuidado.
Idoso cuidador de idoso
Como observado, o perfil das cuidadoras foi de mulheres com idade acima de 59
anos, chegando até 83 anos de idade. Essa situação configura um quadro de
idosos cuidando de idosos, muitas vezes decorrente da função de cuidador ser
atribuída aos cônjuges em primeira opção, seguida por filhas, noras e irmãs.
Quando um idoso é o cuidador, a sobrecarga física gerada é maior. Muitas vezes,
os cuidadores em idades avançadas possuem doenças crônicas, e problemas
osteoarticulares, que dificultam a realização de algumas tarefas. Estas também
podem iniciar ou piorar problemas já existentes. Além disso, a prestação de
cuidados pode ficar comprometida diante de suas limitações. O idoso cuidador,
ao assumir a sobrecarga do cuidado, sem suporte ou informação, é submetido a
esforços físicos e emocionais que podem transformá-lo em um doente, ou até
mesmo agravar patologias já estabelecidas(20).
Quando a gente morava em Cruz, ele caiu no banheiro e só estávamos
nós dois. Aí eu falei pra ele ir se arrastando e se apoiar pra
levantar, porque eu não tive força. (Gaivota).
Cabe ressaltar que Gaivota tem 83 anos, mora sozinha no domicílio com o esposo
e, mesmo este tendo dependência leve, o cotidiano do cuidar torna-se difícil
para ela. Situações como essas são comuns, principalmente, em domicílios que
convivem apenas os cônjuges, sem filhos ou outro familiar que possa colaborar.
Os suportes públicos ainda são escassos e pouco eficientes para garantir o
adequado acompanhamento desses idosos, cuidadores e cuidados, sua implantação
pode melhorar muito a qualidade de vida dessas famílias(15). Alem disso,
grupos de apoio aos cuidadores pode reduzir o ônus do cuidador idoso, atenuando
seu desgaste físico e emocional.
Uma das cuidadoras idosas envolvidas no estudo, estava desenvolvendo processo
de depressão. Nesse caso, dois fatores podem ter contribuído: a dedicação
exclusiva aos cuidados, sem momentos de lazer, e sua aposentadoria, que reduziu
seu convívio social.
Eu já disse a ele. Não é só ele aqui que é idoso, não. Eu também
tenho 70, ele tem 74 [...] Eu já tenho 70, ele tá pensando, estou
cansada. (Bem te vi).
Os cuidadores idosos são "vítimas ocultas", pois além de toda a sobrecarga e
responsabilidade do cuidar, ainda lidam com o seu próprio processo de
envelhecimento e o comprometimento físico(15). Eles sentem que, com o passar do
tempo, não dão mais conta de algumas tarefas como antes, gerando preocupações e
angústia quanto ao futuro da pessoa a qual dedica cuidados e ao seu próprio
futuro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo procurou identificar mudanças ocorridas nas relações familiares após
evento gerador de dependência no idoso, e os possíveis fatores que as causaram.
Foram pontuadas mudanças positivas, com estreitamento e manutenção das boas
relações familiares, em famílias previamente unidas, com vínculos fortes,
restritas, com melhor renda e conhecimentos prévios sobre técnicas de cuidado.
Mudanças negativas foram influenciadas pela sobrecarga do cuidador familiar,
principalmente quando idoso submetido ao isolamento social, e sem apoio.
Os resultados corroboram com demais pesquisas sobre a temática, mostrando que a
dinâmica familiar, após a dependência do idoso, segue padrões semelhantes de
alteração, devendo guiar programas de atenção a essa população.