Responsabilização do outro: discursos de enfermeiros da Estratégia Saúde da
Família sobre ocorrência de dengue
INTRODUÇÃO
Dentre as doenças reemergentes da região tropical, o dengue é o agravo de maior
importância na atualidade, atingindo, cerca de 100 milhões de pessoas, segundo
a Organização Mundial de Saúde(1).
Dentre as prioridades de pesquisa do Programa Nacional de Controle da Dengue
(PNCD), destaca-se a avaliação de conhecimentos, percepção de risco e práticas
da população em relação ao dengue, com vistas a aportar subsídios para o
aprimoramento do componente de comunicação e mobilização social(1).
Tem-se observado que todos os programas implantados no Brasil nas ultimas
décadas tenham dedicado um capítulo específico para a implementação de ações
educativas, principalmente nas áreas de informação, educação e comunicação
social. No caso específico da dengue, mesmo alcançando alto grau de
conhecimento da população sobre biologia do vetor, forma de transmissão, sinais
e sintomas e tratamento, não tiveram apoio suficiente para causar impacto(2-3).
A eficácia de estratégias utilizadas para o combate à dengue com foco no
controle do vetor está comprovada por diversos estudos, mas é imprescindível
reconhecer que as estratégias voltadas à mudança de condutas são fundamentais e
que sem elas o controle da dengue será sempre um problema de saúde pública.
Uma estratégia específica, parcialmente aplicada no Brasil para a prevenção da
dengue, é a comunicação para impacto comportamental (Communication and
Marketing Integrated for Behaviour Impact - COMBI), um modelo de planejamento
para mobilização e comunicação social que visa promover a mudança de
comportamento(3).
Assim, o objetivo desta pesquisa é conhecer os aspectos comportamentais da
população que contribuem para a ocorrência da dengue, por meio do discurso dos
enfermeiros de unidades de saúde da família, de forma a contribuir para a
implantação de estratégias voltadas para a efetiva mudança do comportamento em
relação à dengue.
METODOLOGIA
Discutindo as diferenças entre os desenhos de pesquisa qualitativo e
quantitativo, diversos autores afirmam a importância de não se colocar essas
diferenças de forma dicotômica, mas entender que o desenho de uma pesquisa está
intrinsicamente ligado ao seu objeto de interesse e aos recursos disponíveis
para a sua realização(4-6). Neste sentido, o objeto desta pesquisa requer um
enfoque qualitativo. A pesquisa qualitativa não procura explicar o tema
selecionado através de variáveis e sim compreender o tema para produzir o
conhecimento. A flexibilidade e a adaptabilidade são as principais
características da pesquisa qualitativa, que pressupõe um cuidado especial na
construção do referencial teórico e uma estrutura metodológica consistente.
A coleta de dados foi realizada em todas as Unidades de Saúde da Família (USF)
de Dourados-MS e de cinco municípios da microrregião. Dourados-MS é o segundo
maior município do estado de Mato Grosso do Sul, com 191.575.774 habitantes(7)
e é referência na área de saúde. Os cinco municípios da microrregião de
Dourados, selecionados para pesquisa, são de pequeno porte (menos de 50.000
habitantes), com quatro e oito ESF, totalizando 66 equipes de saúde da família
(ESF).
Os sujeitos da pesquisa foram enfermeiros inseridos na ESF, totalizando 66
sujeitos elegíveis. A seleção da amostra foi feita pela saturação(8) das
respostas, atingida após a realização de 16 entrevistas.
As entrevistas foram agendadas por telefone ou pessoalmente, de acordo com a
disponibilidade dos sujeitos. Foi solicitada autorização para gravação,
explicado o objetivo da pesquisa e apresentado o termo de consentimento livre e
esclarecido (TCLE).
Para a análise do material empírico resultante da gravação e da transcrição das
entrevistas foi utilizada a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC),
tendo sido usado o software QualiQuantisoft®, desenvolvido para facilitar a
tabulação de dados de pesquisas baseadas na técnica(9).
Com o uso do QualiQuantiSoft®, a técnica do DSC produz informações
quantitativas sobre os dados colhidos, relativas à quantidade de informantes
que fizeram referência a uma determinada ideia central, e, portanto, integraram
a composição final do DSC. As frequências, sejam elas absolutas ou relativas,
referem-se às respostas contidas nos discursos individuais e que se encontram
agrupadas no DSC e não ao número de ideias centrais identificadas na pesquisa.
Em relação aos resultados qualitativos representados pelo DSC, seu uso
apresenta infinitas possibilidades, uma vez que, além de ser enriquecido pelo
meta-discurso, propicia ainda outras interpretações à luz dos diversos olhares,
que dependem da bagagem de conhecimentos e vivências do leitor.
Tradicionalmente, meta-discurso é o tratamento teórico dos dados de uma
pesquisa e a comparação dos achados com a literatura já estabelecida nas
publicações científicas. É a interpretação do saber científico sobre o saber do
senso comum. Quando se usa o DSC, o meta-discurso faz um diálogo entre o
discurso empírico e o científico em um mesmo nível de relevância, de tal forma
que todo o conjunto apresente-se harmônico. O meta-discurso é a produção de
sentido do pesquisador sobre o discurso produzido, que dá forma ao texto final
da pesquisa.
O presente estudo seguiu as diretrizes e normas da pesquisa envolvendo seres
humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa em Seres Humanos da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram entrevistados 16 enfermeiros com idade média de 33,2 anos, sendo 12 (75%)
do sexo feminino. O total de entrevistados perfez 24,2% da população elegível
para a pesquisa. O primeiro DSC (DSC 1) é composto pelas falas dos 16
enfermeiros, que apontaram o descaso como fator que contribui para a ocorrência
do dengue, sendo um comportamento muito criticado pelos entrevistados.
DSC 1 - Descaso da população na limpeza do ambiente
Eu acho que a população não se conscientizou ainda com as questões
que os ovos permanecem lá. Elas não cuidam nem dentro da casa, muito
menos do lado de fora. Normalmente você vai lá, mostra que tem, mas é
a aquela coisa: a pessoa não se sente responsável por aquilo. Porque,
assim, quando a gente está na campanha, está todo mundo empenhado em
estar coletando. Aí passa aquele período, o pessoal esquece, não dá
valor, não dão importância. Porque o dengue tem esses ciclos. Então,
assim, quando acontece uma diminuição a população acaba se
esquecendo, acaba deixando de lado um pouco. A criança come o iogurte
e do jeito que come joga ali e fica ali mesmo. Mora na terra, vai
viver na terra e não faz nada pra melhorar a situação. É basicamente
o descuido com a higiene do ambiente mesmo, relaxo, preguiça,
comodismo. A displicência dos moradores, da população.
Observa-se uma correlação direta entre o fato de que a população não acredita
nas informações técnicas sobre a dengue e o comportamento desleixado em relação
ao cuidado com o meio ambiente. O descuido com o micro-espaço é atribuído ao
desconhecimento ou à baixa conscientização do papel individual na construção do
coletivo. Este descaso generalizado é descrito por Boff(10) como um dos
sintomas da crise civilizacional e que enfatiza a necessidade do cuidado com a
terra nos pequenos detalhes do cotidiano, em suas palavras, "o próprio nicho
ecológico".
A referência à falta de conscientização da população perpassa todo o discurso,
mas é importante frisar que essa conscientização, tão necessária na ótica dos
enfermeiros, não é um processo simples, já que a experiência da doença é fator
preponderante para formar o que Bosi e Affonso(11) chamam de "consciência
preventiva". Esta não ocorre só porque existe um saber que é passado dos
enfermeiros para a população, mas da experiência com a saúde e a doença. Assim,
a orientação e, muitas vezes, a limpeza dos quintais realizada pela equipe de
saúde não leva a uma postura permanente de conservação do meio e consequente
formação de hábitos higiênicos. Marzocki(12) enfatiza que é um grande desafio
manter a população motivada, principalmente em casos em que a doença tem
ocorrência endêmica e esporádica.
Vale ressaltar que o processo de criação de uma consciência preventiva é
influenciado diretamente pela polifasia congnitiva(13) que, em geral, os
enfermeiros não dão a devida importância, focando sua atenção apenas no repasse
de informações técnicas.
O DSC 2 mostra o processo de culpabilização do outro como um comportamento
recorrente, sendo citado por 10 (62,5%) entrevistados.
DSC 2 - Culpabilização do outro
As pessoas não acreditam a ter a doença. Ele se prolifera para as
outras casas. Muita gente acha que só acontece na casa do vizinho,
né? É sempre assim, achar que só vai acontecer com o vizinho, nunca é
o quintal delas nunca é o terreno do lado da casa delas que está
sujo. É, acho que informação eles têm, mas eles não acreditam. Igual
quando você fala que tem que eliminar os focos, aí as pessoas falam
na minha casa não. Mas o que a população é sempre individualista e
joga um pro outro. Ninguém nunca fala que minha casa está precisando
de uma faxina. Mas eles não pensam em coletividade e se você só
pensar como individualista não vai resolver.
Quando o DSC menciona a transferência de responsabilidade para o outro,
colocando sempre a culpa no vizinho, deve-se entender a importância do conceito
de alteridade e sua inclusão no comportamento dos profissionais e da população
(14). A pessoa vive em mundo em constante movimento, constituído de relações
enquanto fenômeno intersubjetivo. Nesse mundo relacional, alteridade é tomar o
outro como referência para os valores éticos e morais, de forma a pensar e
transformar as práticas assistenciais dos profissionais no campo da saúde. O
conceito de alteridade, quando aplicado a relações entre vizinhos, deveria
propiciar a transformação ética do cuidado com o ambiente(14).
A necessidade de entender a importância da convivência com um outro diferente
produz revoluções no olhar para um sujeito que tem direitos iguais, implica
deixar de olhar o outro como ser de categoria inferior frente ao conhecimento
científico e seu poder no sistema de saúde(15). Alteridade pressupõe ainda
autoconhecimento para entender os próprios limites e assim compreender melhor
os processos envolvidos na formação de atitudes e práticas da população
referentes ao cuidado com o lixo e o ambiente em que vive. Assim, "o outro é
imprescindível na constituição do indivíduo"(16). O deslocamento da
responsabilidade para o outro ocorre sem a percepção de que o entrevistado
também é outro na visão de seu vizinho e do profissional de saúde(17).
Uma ideia que perpassa, não só este, mas vários outros DSC, é a individualidade
das atitudes. A cidadania é outro conceito que precisa ser trabalhado nas
atividades educativas para que se possa pensar em coletividade. O DSC propõe
ainda o trabalho em sociedade, em grupo para entender que a luta contra dengue
é coletiva, de todo mundo. Para tanto é importante que todos entendam que a
ocorrência da doença é universal e as ações de prevenção e controle são de
responsabilidade compartilhada entre a população e as instituições, sejam elas
públicas ou privadas.
A terceira ideia central identificada nos discursos originaram o DSC 3, que
mostra que a população tem acesso a informações de qualidade, adequadas e em
quantidade suficiente, apresentando conhecimento sobre prevenção, sinais,
sintomas e tratamento do dengue, mas isso não se reflete no comportamento
relativo a estes aspectos. Isso está fortemente presente no discurso de 14
(87,5%) entrevistados.
DSC 3 - Conhecimento adequado com conduta inadequada
Todo mundo já sabe do dengue. Eles têm conhecimento e estão
preocupados com os sintomas da doença, mas na hora que fala de como
prevenir, aí não faz. Até contrair os sintomas, sabe que tem que
tomar remédio, tomar água. Mas chega aqui no posto morrendo. Prova é
que, quando se faz os arrastões, as limpezas, aí eles trazem um monte
de coisas. Pegam ali das casas, dos quintais, do vizinho. É sinal que
não está limpo. Tem pessoas que são super preocupadas e aí o vizinho
do lado, que recebeu a mesma informação, recebeu as mesmas
orientações, tem lá um monte de coisa que está acumulando água. Mas
assim, generalizando, todos sabem como que deveria ser. Mas quando a
gente vai fazer visita, faz palestra, praticamente eles não têm mais
dúvida em relação ao dengue, sabem o que pode acontecer. Se fizer uma
provinha, tiram dez. Eles acreditam na informação, só que não tomam
uma atitude.
Importante distinguir entre conhecimento, atitude e prática(18), para que se
entenda porque o alto nível de conhecimento sobre a dengue não se reflete em
prática preventiva adequada e eficaz para a redução da ocorrência da doença. O
conhecimento é a capacidade de reproduzir de forma correta um determinado
conteúdo, a atitude está relacionada à dimensão emocional e diz respeito à
opinião que o indivíduo tem a respeito daquele conteúdo. Assim, conhecer as
medidas preventivas pode não estar acompanhado de uma opinião positiva sobre o
assunto. Exemplificando, a maioria dos discursos faz referência ao acúmulo de
lixo nos quintais e terrenos baldios e que todos sabem que este acúmulo pode
ter macro e micro criadouros do vetor da dengue; entretanto, a opinião da
população pode ser que isto seja apenas um depósito de materiais que ainda
tenha utilidade e que poderá ser sua fonte de renda. Neste sentido, a tomada de
decisão será uma prática relacionada à dimensão social.
Enquanto a atitude refere-se à orientação do comportamento, a prática refere-se
à ação executada. Como a ação dos agentes é sempre centrada no vetor, observa-
se alta taxa de conhecimento sobre esse conteúdo e, portanto, há apropriação do
conteúdo transmitido, mas conhecimento insuficiente quanto à gravidade da
doença pela pouca ênfase das campanhas neste aspecto. Estudo concluiu que o
conhecimento não leva necessariamente a práticas preventivas, mesmo nos casos
em que o indivíduo já vivenciou as mazelas causadas pela doença(19).
A ultima ideia central identificada refere-se à transferência de
responsabilidade pela manutenção da limpeza do ambiente privado para o poder
público, citada por 6 (37,5%) enfermeiros.
DSC 4 - Transferência de responsabilidades para o setor público
Então ele vai sempre esperar alguma coisa do poder público. A pessoa
ainda acha assim que quem tem que cuidar do dengue é o governo, é a
prefeitura, é o pessoal da saúde. Teve situações em que o agente
comunitário de saúde foi com saco de lixo, que sair nas casas para
juntar os lixos dos quintais. Tudo bem, ele pode entrar, olhar e
orientar, só que ele não tem tempo de ir lá e catar o lixo. Então
ficou uma coisa muito assim, de passar a mão na cabeça mesmo. A
população acaba deixando para o município ser responsável pelo
próprio quintal dela. Aqui, por exemplo, tem situações no ano que o
município tem que mandar fazer o mutirão da limpeza. E eles ficam
ansiosos esperando que entrem nos quintais e façam a limpeza. A
maioria, pelo menos, não se mexe para limpar e evitar o foco que se
forma. Eu acho que as pessoas são muito dependentes, depende da
prefeitura, do assistente social, para tudo ela depende. Aí a
prefeitura vai lá corta a grama. Eu acho que ela não vai atrás, não
quer fazer alguma coisa porque o SUS fornece remédio, tem médico de
graça. Na minha concepção, eles querem depender do município, querem
que vão na casa deles 24 horas. É ninguém toma iniciativa. Eles
querem sugar mesmo o município, muita dependência porque sabe que o
SUS fornece.
O discurso deixa evidente que a população transfere a responsabilidade da
limpeza da cidade toda, incluindo os seus quintais, para o poder público. Em um
contexto similar pesquisado, também se encontrou essa situação associada ao
comodismo e às ações assistencialistas planejadas para prevenção da dengue,
como os mutirões de limpeza(20).
Assim, na lógica dos enfermeiros, os quintais estão sempre sujos porque a
população acredita que a manutenção da limpeza do ambiente deve ser realizada
pelos agentes públicos e não é entendida como responsabilidade individual. A
manutenção constante da higiene ambiental é fator preponderante para a
prevenção de epidemias e diminuição dos riscos de transmissão da dengue.
Observa-se que a transferência de responsabilidade, aqui evidenciada no caso do
dengue, é uma realidade para a saúde em geral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os discursos dos enfermeiros de saúde da família sobre comportamentos da
população relativos à prevenção do dengue apontam para a responsabilização do
outro, seja um ente público ou privado, individual ou coletivo. Generalizam os
comportamentos, apontando para aqueles negativos, que contribuem para a
ocorrência da doença, mesmo que estejam presentes em pequena parcela da
população. Ou seja, comportamentos inadequados são mais visíveis, mesmo quando
não são quantitativamente relevantes.
Conhecer o discurso dos enfermeiros sobre o comportamento da população pode
ajudar na implementação de mudanças, não apenas na população, mas também nas
ações de educação e comunicação, bem como efetivar alterações de comportamento
no trabalho do próprio enfermeiro.