Saúde sexual e reprodutiva e enfermagem: um pouco de história na Bahia
INTRODUÇÃO
No Brasil, as discussões sobre a sexualidade e a reprodução foram
institucionalizadas a partir da década de 1950 do século XX, período em que se
manifestaram preocupações governamentais significativas com o crescimento
populacional, dada sua possível interferência no crescimento econômico. Desse
momento em diante, nas décadas de 60 e 70 do mesmo século, houve maior
investimento do governo brasileiro com relação à formulação de programas para o
controle da natalidade, sob a forma de planejamento familiar. Tais programas
não se preocupavam com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e dos
homens(1-3).
A partir da década de 80, com a intensificação das lutas do movimento de
mulheres, a Reforma Sanitária e a redemocratização do país, as questões
relacionadas aos diretos sexuais e reprodutivos passaram a integrar a pauta das
discussões nas conferências nacionais de saúde. A mudança de atitude
governamental quanto à perspectiva social e ampliada da saúde ocorreu em um
momento de abertura política, favorável à conquista de direitos. Nesse período,
a saúde passou a compor o quadro dos problemas sociais para os quais os
movimentos organizados da sociedade civil reivindicavam soluções(1-3).
O reconhecimento da fragmentação da assistência à saúde da mulher, denunciada
pelas feministas, passou a ser compartilhado por sanitaristas, demógrafos,
cientistas sociais e militantes de partidos políticos. Mediante a pressão do
movimento de mulheres e baseado em algumas das reivindicações na atenção a
saúde, em 1984 o Ministério da Saúde lançou o Programa de Assistência Integral
à Saúde da mulher (PAISM)(4).
Neste Programa, a Enfermagem ampliou seu espaço de atuação, com a possibilidade
de desenvolver atividades educativas, consultas de enfermagem e demais ações
próprias da atenção primária, nos serviços de pré-natal e planejamento
familiar. Na rede hospitalar, sua atuação voltou-se para o alojamento conjunto,
a administração dos centros obstétricos e a realização do parto, quando
habilitadas.
Na década de 1990, houve um redirecionamento das políticas internacionais para
questões do meio ambiente e do desenvolvimento, culminando na Conferência
Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994
(5). A CIPD conferiu papel primordial à saúde e aos direitos sexuais e
reprodutivos, superando o enfoque puramente demográfico. O novo foco provocou
uma transformação profunda no debate sobre o crescimento populacional ao dar
prioridade às questões dos direitos humanos.
A CIPD foi um marco importantíssimo no que se refere a saúde sexual e
reprodutiva, pois trouxe à tona esses conceitos de forma mais abrangente ao
discuti-los numa perspectiva que ultrapassava os limites do biológico e a
obrigatoriedade da reprodução para as mulheres. Com isso, possibilitou mudanças
no âmbito governamental e político vigente, em que a maioria dos países
desenvolvia programas verticais com ênfase no ciclo gravídico-puerperal(5).
Muitas das sugestões e dos compromissos assumidos na Conferência do Cairo
repercutiram e respaldaram as discussões na IV Conferência Mundial sobre a
Mulher, realizada em Beijing em 1995. Houve avanços na definição dos direitos
sexuais e reprodutivos, que passaram a ser vistos como direitos humanos(6). Os
direitos sexuais foram definidos de maneira mais autônoma em relação aos
direitos reprodutivos, dissociando a sexualidade da reprodução. A igualdade de
gênero foi outro tema bastante relevante no que tange às discussões sobre saúde
sexual e reprodutiva.
Em ambas as Conferências, os governos de vários países, entre os quais o
Brasil, assumiram o compromisso de levar em conta os direitos sexuais e
reprodutivos ao elaborar e implementar as políticas e os programas nacionais
dedicados à população e ao desenvolvimento, em especial os de planejamento
familiar. Os princípios de Cairo e Beijing opõem-se radicalmente à imposição de
metas populacionais conceptivas ou contraceptivas que não sejam pautadas no
livre arbítrio e na autonomia sobre o corpo, reconhecendo para isso o fim de
todas as formas de discriminação(6).
Nesse contexto de mudanças conceituais, em que surge uma nova perspectiva sobre
a saúde da mulher, é de grande relevância pesquisar como se deu a inclusão dos
conceitos de saúde sexual e reprodutiva nos currículos do curso de enfermagem
da Universidade Federa da Bahia, um fenômeno que repercutiu no perfil dos
enfermeiros por ela formados. Como conceitos transversais a todas as áreas de
atenção a saúde, considera-se que sua inclusão na formação em Enfermagem
contribui para o exercício dos direitos humanos(7).
Neste sentido, esse estudo propôs-se a responder à seguinte questão: Como se
deu a inclusão dos conceitos de saúde sexual e reprodutiva nos currículos da
Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (EEUFBA)? Seus objetivos
foram analisar a inclusão dos conceitos de saúde sexual e reprodutiva nos
currículos da Escola; identificar as disciplinas do currículo em que são
adotados e descrever como os usos desses conceitos foram e são abordados na
teoria e na prática.
PROCESSO METODOLÓGICO
Para a apreensão do objeto e o alcance dos objetivos propostos, utilizou-se a
abordagem qualitativa, que oportunizou a análise, a descrição e a compreensão
do problema a partir de suas características específicas. O propósito foi obter
informações significativas para auxiliar no processo de desvendamento da
temática de forma concisa, clara e crítica.
A abordagem qualitativa apresentou-se como a mais apropriada para empreender a
construção de conhecimento sobre a historicidade, as contradições e as
possíveis conexões existentes entre os elementos que constituem o fenômeno em
análise. Para melhor apreender o objeto de estudo, a investigação foi
desenvolvida em duas etapas interdependentes e concomitantes: a pesquisa
documental e a escuta de protagonistas do processo.
Entende-se por pesquisa documental o estudo desenvolvido sobre material
elaborado previamente e que ainda não tenha recebido tratamento analítico. No
presente estudo, a fonte do material empírico foi composta por documentos de
primeira mão, que não haviam passado por análise prévia(8), o que incluiu os
currículos de enfermagem da EEUFBA de 1972 a 2006. A escolha desses períodos
ocorreu pela influência dos Programas de Atenção à Saúde da Mulher,
inicialmente na década de 1970, quando ocorreu a implantação do Programa
Materno-infantil, e em 2004, quando houve a reorganização das políticas de
saúde mulher, no PNAISM.
Também foram realizadas e gravadas entrevistas semiestruturadas com docentes de
dedicação exclusiva que lecionavam as disciplinas que abordavam os conceitos de
saúde sexual e reprodutiva. No período da realização da pesquisa, o curso
contava com dez docentes de dedicação exclusiva, sendo uma delas a orientadora
do estudo. Uma negou-se a participar e outra disse não ter tempo disponível, de
tal modo que as entrevistas foram realizadas com sete docentes. A abordagem foi
viabilizada com a entrega de uma carta-convite e do resumo do projeto a cada
uma das docentes, a fim de agendar a data para realização das entrevistas, que
foram realizadas nas salas das docentes. Posteriormente, as entrevistas foram
transcritas e o material resultante foi arquivado em mídia para ser preservado
por cinco anos.
Não foi possível analisar os programas das disciplinas de todos os anos
estabelecidos, pois alguns documentos não foram encontrados. Entretanto, isto
não comprometeu o estudo, já que grande parte foi localizada e organizada por
décadas. Os dados foram analisados mediante a Análise Temática proposta por
Minayo(9).
Os aspectos éticos foram compreendidos não apenas como uma questão de sigilo,
abrangendo também o anonimato, o consentimento informado e a liberdade dos
participantes retirarem-se do processo sem qualquer prejuízo, conforme
preconiza a Resolução 196/96 sobre pesquisa com seres humanos. O projeto de
pesquisa foi registrado no Sistema Nacional de Ética na Pesquisa e ao Comitê de
Ética em Pesquisa da Instituição, tendo sido aprovado mediante parecer de nº
062/2007. Para manter o anonimato, as entrevistadas receberam pseudônimos de
flores: Girassol, Copo de Leite, Gardênia, Margarida, Rosa Amarela, Tulipa e
Angélica. Todas assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No período estudado houve três currículos: 1972-1993 (parecer 163/1972); 1994-
1995 (Parecer 314/1994) e 19962006 (Parecer 472/1995). A evolução dos conceitos
na saúde da mulher tem início com a saúde materna e isto pode ser observado na
estrutura do currículo da graduação em enfermagem sob a vigência do parecer
163/1972.
Consta no Quadro_1 as disciplinas que abordavam a saúde da mulher e cujos
conteúdos diziam respeito unicamente ao ciclo gravídico-puerperal. A saúde
reprodutiva e o sexo eram entendidos apenas no sentido biológico, assim como os
problemas correlatos: frigidez, fertilidade e infertilidade. Em seu estudo,
Lessa(10) aponta que as disciplinas sobre a assistência à saúde da mulher desse
período preocupavam-se apenas com o aparelho reprodutor feminino, "o aparelho
biológico-sexual da mulher".
Esse currículo vigorou até 1993. No início da década de 1980, deixaram de
existir as habilitações em obstetrícia e em saúde pública e o curso foi
renomeado Bacharelado em Enfermagem.
A partir da década de 1980, os conceitos de saúde sexual e reprodutiva passaram
a ser abordados no contexto político, econômico, cultural e social que
determina a situação da mulher na sociedade. Esse fato pode ser verificado pela
presença dos conteúdos: política de assistência integral à saúde da mulher,
papel da mulher na sociedade, fertilidade e infertilidade, assistência à mulher
no planejamento familiar.
A preocupação com a modernização do currículo de Enfermagem ocorreu por
influência do movimento feminista no final da década de 1980(10). O feminismo,
como ideologia política, pode ser identificado desde o século XIX, mas foi nas
décadas de 70 e 80 do século XX que o pensamento feminista ingressou no campo
acadêmico e impõe-se como uma tendência teórica inovadora e de forte potencial
crítico(11).
Em 1983, o processo de implementação do PAISM pelo Ministério da Saúde ampliou
essas discussões. Deve-se registrar que na EEUFBA a disciplina Materno-infantil
já trazia conteúdos sobre a saúde da mulher. Em 1988, as propostas feministas
foram reafirmadas e consolidadas no âmbito da EEUFBA com a criação do GEM(11).
Uma das docentes também destacou o papel do GEM no processo de inclusão nas
disciplinas dos conceitos de saúde sexual e reprodutiva:
[...] Nós começamos o processo da disciplina com uma perspectiva
feminista desde 1987, quando o GEM foi criado, o grupo foi criado com
a perspectiva feminista e nós tínhamos a preocupação de que as alunas
da graduação tivessem práticas diferenciadas [...] (Copo de Leite)
Na década de 1990, os conceitos de saúde sexual e reprodutiva foram ampliados
com a introdução da categoria gênero, instrumento útil para compreensão da
situação da mulher na sociedade. A grande maioria das entrevistadas concordou
que esses conceitos vêm sendo abordados na EEUFBA desde o início da década de
1990; enquanto uma pequena parte acredita que tenham sido abordados desde a sua
proposição nos fóruns nacionais e internacionais, aprimorando-se ao longo dos
anos, principalmente a partir do final da década de 1980 e início da década de
1990.
[...] Esse conteúdo começou a ser introduzido na década de 90 aqui na
nossa disciplina; inclusive nossa Escola é pioneira não só nesse
conteúdo de saúde sexual e reprodutiva, mas também na forma como ele
vem sendo dado. Nós damos os conteúdos de forma didática, pois o
aluno vai estudar procurando ver sua fisiologia, sua anatomia, o
funcionamento, a prevenção, a promoção da saúde. Também temos
trabalhado com oficinas onde o conceito de gênero permeia esses
conteúdos[...] (Margarida)
No final dos anos 1990, a disciplina Enfermagem na atenção à saúde da mulher
estabeleceu como conteúdo a assistência à saúde sexual e reprodutiva. Antes
essa temática era vinculada a discussões advindas dos programas públicos da
área técnica de saúde da mulher do Ministério da Saúde: PAISM, DST/AIDS,
planejamento familiar, prevenção e detecção ao câncer de colo uterino e mama,
pré-natal. A maioria das docentes entrevistadas considera que teoria e prática
estão interligadas, sendo muitas vezes influenciadas pela dinâmica dos serviços
sem, contudo, se limitar a ela.
Ainda conforme Parecer 314/1994, no currículo vigente no período de 1994-1995,
as docentes buscavam implementar no processo de ensino e aprendizagem a
percepção da mulher como cidadã, inserida numa sociedade caracterizada pela
reprodução de desigualdades de gênero. Buscavam ainda desenvolver e ensinar uma
prática diferenciada visando ao empoderamento das mulheres, oferecendo aos
estudantes as condições necessárias para a conscientização e fazendo com que as
mulheres criassem meios de decidir sobre si mesmas.
...as estudantes aprendem sempre que há oportunidades de colocar a
mulher como sujeito da atenção e instrumentalizá-la para tomar
decisões sobre sua vida... (Girassol)
...nós procuramos ensinar aos alunos para que eles forneçam as
informações necessárias para que as mulheres tomem as decisões...
(Copo de Leite)
Para as docentes entrevistadas, as práticas desenvolvidas no ciclo gravídico-
puerperal envolvem o pré-natal, o alojamento conjunto, a atuação em centro
obstétrico, a prevenção de câncer cérvico-uterino e de mama e o planejamento
familiar. Algumas também citaram o cuidado de enfermagem no climatério e na
menopausa, além da assistência à mulher idosa. Duas mencionaram a atividade
educativa e as oficinas para o incremento das práticas assistenciais. Ao fazer
referência às práticas, as docentes destacaram a falta de insumos,
especialmente de métodos contraceptivos, como elemento que prejudica a
continuidade da atenção.
No currículo de 1971-1993, as disciplinas relacionadas à saúde reprodutiva
deixaram de ser fragmentadas como eram desde a fundação da EEUFBA, em 1947.
Exemplo disso está na disciplina Saúde materno-infantil, que era dividida nas
disciplinas Obstetrícia I e II. A primeira era ministrada durante a graduação e
somente os alunos que optavam pela habilitação em obstetrícia cursavam a
Obstetrícia II. Os que optavam por outras habilitações não tinham acesso aos
conteúdos da segunda disciplina, o que fragmentava o conjunto de conteúdos
referentes à assistência à saúde da mulher, contribuindo para a fragmentação da
integralidade da pessoa assistida. Segundo Christófaro(12):
...a flagrante compartimentalização e a minimização do conhecimento
estabelecidas na legislação em vigor resultam em um processo de
formação anacrônico onde o enfermeiro "aparece" em falsas e frágeis
vertentes: habilitação geral e habilitações especificas. Sobre este
aspecto, o que as atuais normas produzem, de fato, é a indefinição do
profissional. As chamadas habilitações específicas (por área), cujo
oferecimento é opcional para a Instituição e para os alunos, tornaram
a formação do enfermeiro um processo pulverizado em detrimento de um
processo que privilegie as bases técnico-científicas da profissão.
No material documental analisado não foram identificadas ações para
implementação da interdisciplinaridade nos currículos vigentes entre 1972 e
2006 da EUEFBA, em que pese a importância crescente das discussões sobre as
inter-relações entre diversos conteúdos para compreensão do mundo, presentes
nos currículos da Instituição desde a década de 1960.
A partir da década de 1980 a prática era dividida em blocos separados por
campos e docentes com um determinado número de alunos (seis discentes por uma
docente). Todas as estudantes passavam por todos os campos de forma contínua,
sem repetir a prática ou o programa de saúde. As docentes procuravam fazer com
que tivessem uma visão ampliada das questões construídas socialmente e
culturalmente, abordando todos os conteúdos com enfoque de gênero, numa
perspectiva feminista.
No processo de transição da década de 1990 e o início dos anos de 2000,
observa-se que as ementas passam a incluir a temática de gênero, inicialmente
articulada com a classe social e, em seguida, com a raça/etnia. Isto marca as
discussões sobre o processo saúde-doença das mulheres quando não relacionado à
reprodução. Além disso, as ementas aparecem mais descritivas, detalham um
número maior de agravos à saúde da mulher e abordam a sexualidade a partir de
transtornos e desvios. A temática do aborto só apareceu nas ementas na década
de 1990, mesmo sendo um grave problema de saúde pública no município de
Salvador.
O processo de ensino e aprendizagem, que já era influenciado pelas propostas de
Paulo Freire(13-14), apropriou-se da pedagogia feminista(15). Observa-se mais
uma vez a influência do GEM e do feminismo para transformação dessas práticas,
o que contribuiu de forma significativa para construção de uma metodologia
inovadora, baseada nos conceitos de gênero e raça/etnia e voltada para uma
atenção humanizada. A disciplina de Atenção a saúde da mulher, vista até então
de forma biológica, passa a adotar uma visão da mulher como um todo, nos
aspectos reprodutivos, sexuais, psicológicos e sociais.
As práticas feministas têm similaridades com a metodologia criada por Paulo
Freire, em que o sujeito e suas experiências são colocados como centro, sendo
assim uma pedagogia transformadora e humanizadora. O movimento feminista, desde
seus primórdios na década de 60 até os dias atuais, têm tido uma visão
diferenciada no que diz respeito às questões de gênero, defendendo os direitos
das mulheres e principalmente lutando por sua emancipação cultural, política e
social. Enfatiza a relação constante entre as identidades pessoal, social e
coletiva, tendo como base que a identidade pessoal é informada pelos padrões de
gênero, o que influi na identidade social e coletiva das mulheres(15).
O próprio movimento feminista vem sofrendo várias influências, desde o
marxismo, o estruturalismo, o pós-estruturalismo ou o funcionalismo e também de
diferentes disciplinas da área das ciências humanas, como sociologia,
antropologia, psicanálise, pedagogia, psicologia e filosofia.
A construção de aprendizado é feita por meio de práticas educativas
diferenciadas, em que o corpo é um dos temas centrais. Ao tratar desde tema, as
docentes reconhecem o desconhecimento que as mulheres têm sobre seus próprios
corpos e suas implicações(16-17). Uma docente enfatiza a importância dessas
práticas não só na formação das graduandas de enfermagem, como também dos
demais profissionais da saúde:
[...] nós tínhamos a preocupação de que as alunas da graduação
tivessem práticas diferenciadas, no primeiro momento fazíamos o
treinamento das estudantes com práticas educativas, essas práticas
eram práticas feministas já desenvolvidas por outras ONGs e também
nós fazíamos práticas no Serviço de Saúde de acompanhamento. Essa
prática não diz respeito apenas à formação dos estudantes, mas também
a formação dos profissionais de saúde [...] (Copo de leite)
O movimento feminista criou uma nova metodologia para a ação educativa,
fortemente ancorada na perspectiva de gênero, com ênfase nas atividades em
grupo e metodologia que articula a racionalidade e a subjetividade, além de
experiências, conhecimentos técnicos e teóricos. Dentre as atividades
educativas, são utilizadas principalmente as oficinas, que propiciam a
construção do conhecimento de forma diferenciada, além de outros processos mais
horizontais e democráticos, em todos os envolvidos participam de forma direta
de tudo que é realizado ou construído(15).
A partir da análise documental realizada observou-se que em algumas disciplinas
principalmente entre as décadas de 1970 e 1980 ainda há um olhar predominante
para os aspectos biológicos da mulher e a atenção ao ciclo gravídico-puerperal.
Tal como afirmam Tyrell, Santos, Lucas(18), a assistência à saúde da mulher é
limitada ao ciclo reprodutivo e, mais especificamente, à área obstétrica,
permanecendo a ênfase no período reprodutivo e na "naturalização" das relações
de poder entre os sexos.
A partir do final da década de 1980 começa a surgir um olhar diferenciado,
buscando superar a atenção voltada unicamente ao ciclo gravídico-puerperal, que
se intensifica nas décadas de 1990 e 2000. As metodologias de ensino também
apresentam forte evolução e as aulas puramente expositivas são substituídas por
seminários, simpósios, visitas domiciliárias e atividades educativas, entre
elas as oficinas.
Na década de 1970, a disciplina Enfermagem e Obstetrícia I tinha uma carga
horária total de 135 horas, distribuída em 45 horas teóricas e 90 horas
práticas, distribuição essa que privilegia a prática em detrimento da teoria,
reforçando uma ideologia de "naturalidade" para o cuidar nessa profissão
feminina. Isso persiste na década de 80, com 135 horas distribuídas entre a
prática e o estágio e apenas 45 horas para a teoria. Na década de 90,
especialmente a partir de 1995, começa a haver maior preocupação com a teoria,
com a inclusão da disciplina Enfermagem na Atenção Integral à Saúde da Mulher,
em que se igualam as cargas horárias da teoria e da prática (90 horas), o que
permaneceu até 2003.
Já na disciplina Enfermagem na Atenção à Saúde da Mulher, a partir de 2004,
volta a privilegiar a prática em detrimento da teoria, mas de forma bem menos
significativa (Quadro 1). Dispensar maior tempo para a prática pode demonstrar
uma preocupação em formar profissionais cada vez mais técnicos, com uma visão
limitada e fragmentada da assistência. Isso só começa a mudar a partir da
década de 1990, quando se passou a formar profissionais mais capacitados para
prestar uma assistência integral e mais humanizada.
A partir da década de 1990, os conceitos de saúde sexual e reprodutiva começam
a se expandir com a introdução de conteúdos ancorados na perspectiva de gênero,
conceitos mais aprofundados de saúde sexual e reprodutiva, com a finalidade de
empoderamento das mulheres para tomar decisões e lutar por seus direitos, como
pode ser observado na fala de algumas docentes:
[...]essa disciplina procura adequar à forma de atendimento, de que a
mulher tenha a expressão de sua própria voz, que seja autônoma com
relação as suas decisões[...] (Copo de Leite )
[...] Dentro desses temas sempre são abordados na perspectiva da
saúde e na qualidade da saúde da mulher, o posicionamento da mulher
mais ativa, da mulher mais empoderada, da mulher mais consciente do
seu papel[...] (Gardênia)
A disciplina relacionada à saúde da mulher sofreu várias modificações de
nomenclatura até atingir a atual denominação, ou seja, Enfermagem na Atenção à
Saúde da Mulher. As mudanças não são apenas de nomenclatura, mas se fazem
presentes nas ementas, nas metodologias e nos conteúdos. Exemplo disso é que,
na década de 1970, estes estão voltados para a obstetrícia, envolvendo o ciclo
gravídico-puerperal e algumas questões ginecológicas relacionadas a possíveis
intercorrências no processo reprodutivo. Na década de 1980 são incluídas
discussões sobre a política de assistência integral à saúde da mulher, o papel
da mulher na sociedade, a fisiopatologia nas diversas fases do ciclo vital da
mulher, fertilidade, infertilidade e assistência no planejamento familiar. Na
década de 1990 e no início dos anos 2000, ocorre a inclusão da temática gênero
e discussões sobre aborto, DST/AIDS, transmissão vertical do HIV, os programas
de saúde da mulher nos níveis nacional e internacional, os perfis demográfico e
epidemiológico, indicadores de avaliação e acompanhamento da atenção a saúde da
mulher, câncer cérvico-uterino e de mama e doenças associadas ao ciclo
gravídico-puerperal por causas diretas e indiretas.
Até a década de 1980, as disciplinas vigentes eram voltadas ao ciclo gravídico-
puerperal. A partir da segunda metade da década de 1980, por influência das
políticas de saúde, a disciplina mudou seu enfoque para a assistência à mulher
e à criança, embora seus conteúdos tenham permanecido voltados para fase
reprodutiva. No final dessa década, por influência do movimento feminista na
política de saúde, seu conteúdo passou a focalizar a mulher de forma mais
abrangente.
Atualmente as questões de gênero são bem mais trabalhadas dentro da disciplina,
que é norteada pelo enfoque de gênero e a perspectiva feminista.
[...]tanto em consulta como hospitalar e assistência ao parto às
mulheres no parto e atividades educativas na perspectiva de gênero e
feminista[...] (Angélica)
[...] toda a disciplina em si aborda as questões de gênero e aborda
questões relacionadas a saúde sexual e alguns enfoques da disciplina
prezam pela questão da saúde reprodutiva, mas os dois conteúdos eles
estão interligados e eles são entendidos de um modo geral em todo
contexto da disciplina...(Rosa Amarela)
A visão da maioria das docentes entrevistadas é que os conceitos são
trabalhados em toda a disciplina, tanto na teoria como na prática. Os
documentos mostraram que realmente houve uma evolução desses conteúdos com
maior ampliação a partir do final da década de 80 e início da década de 90.
ALGUMAS REFLEXÕES FINAIS
A EEUFBA até 2006 ainda estava sob a vigência do currículo aprovado pelo
parecer 472/95 que é norteado pelo parecer 314/94, sendo que Diretrizes
Curriculares para os cursos de Enfermagem foram aprovadas após o parecer 1133
do CNE/ CES em 7/08/2001. Muito do que foi estabelecido nas Diretrizes já foi
incluído no currículo que estava vigente, como o incentivo à pesquisa e à
extensão, além do trabalho de conclusão de curso de graduação.
Desde sua criação, o GEM vem exercendo forte influência nas teorias e práticas,
tendo sido por sua vez influenciado pelo movimento feminista. Os conteúdos
sobre saúde sexual e reprodutiva são observados nas disciplinas: Obstetrícia I
e II, Ginecologia, Enfermagem nas Doenças Sexualmente Transmissíveis,
Enfermagem Materno-infantil, Enfermagem na Atenção Integral à Saúde da Mulher,
Enfermagem na Atenção a Saúde da Mulher I e II e Enfermagem na Atenção a Saúde
da Mulher. Desde a década de 1980 até a atualidade, tais disciplinas receberam
várias influências: o feminismo, o GEM, o PAISM e a reforma sanitária, além de
reflexões internas à profissão.
Os conteúdos disciplinares são abordados por meio de oficinas, atividades
educativas, conteúdos teóricos. Na prática, estão relacionados à assistência às
mulheres no pré-natal, no planejamento familiar, no alojamento conjunto, no
centro obstétrico e na prevenção de câncer de colo de útero e mama. Ambos são
norteados pelo enfoque de gênero e a perspectiva feminista para que as mulheres
sejam empoderadas e tomem decisões sobre seus corpos.
A evolução desses conceitos foi perceptível a partir da década de 1970, ocasião
em que eram direcionados para aspectos biológicos do ciclo gravídico-puerperal,
e a partir da década de 1980, quando começaram a ocorrer mudanças. Isto é mais
evidente após a criação do PAISM (1984), que ampliou a atenção para além da
noção reducionista da reprodução como único aspecto a ser observado na saúde da
mulher. O programa também incorporou nas práticas em saúde o ideário feminista
favorável à emancipação das mulheres. Um de seus pontos principais era o
planejamento familiar, fundado no princípio de que toda mulher tem livre
escolha e o direito de decidir sobre ter ou não filhos.
Os currículos e demais documentos das disciplinas analisados guardam relação
com as falas das docentes entrevistadas e com o direcionamento dado à proposta
de ensino do curso de graduação em Enfermagem da UFBA, em resposta às demandas
de formação na área de saúde. Num primeiro momento, até início dos anos 1980,
sem influências das reflexões oriundas do movimento de mulheres e depois
absorvendo suas ideias e propostas, especialmente após a constituição do GEM,
grupo de pesquisa com esse enfoque.
Outra reflexão é a ausência da transversalidade dos conceitos de saúde sexual e
reprodutiva no currículo, o que reproduz uma visão fragmentada de cuidado, em
que uma disciplina pode ser o único espaço de discussão sobre a temática e as
demais não resgatam nem comentam o assunto. Isso compromete a possibilidade de
ações integrais na saúde da mulher e dificulta o exercício da
interdisciplinaridade. Consequentemente, o currículo contribui para a formação
de profissionais que reproduzem em sua prática a falta de integralidade na
atenção a mulheres e homens, quaisquer que sejam sua classe, raça, etnia,
geração, restringindo-se a aspectos biológicos.
Em síntese, ao analisar os documentos, foi observado que os conceitos de saúde
sexual e reprodutiva só aparecem nas disciplinas que dizem respeito a saúde da
mulher e, em especial, a partir da década de 1980, com exceção na disciplina
Enfermagem nas doenças transmissíveis, que abordava as "doenças venéreas",
desde o final da década de 1970. Entretanto, essa disciplina deixou de fazer
parte do currículo após o parecer 314/1994, que aprovou o currículo de 1995.
Nas demais disciplinas, a evolução desses conceitos ocorreu de forma gradativa
e novos conteúdos foram sendo incorporados. Tais conteúdos são essenciais para
formação do profissional de saúde, uma vez que possibilitam lidar com diversas
questões sociais, culturais e de gênero, garantia para uma prática séria e
humanizada.
Foram observadas lacunas de conteúdo que fazem parte da temática da saúde
sexual e reprodutiva, como a discussão sobre a sexualidade e a reprodução de
mulheres homossexuais, bissexuais e transexuais, mulheres indígenas e
trabalhadoras da zona rural e as repercussões do HTLV no ciclo gravídico-
puerperal. Também há pouco aprofundamento sobre como as profissionais de
enfermagem devem lidar com questões relativas à sexualidade.
Pode-se dizer que os conteúdos detalhados são importantíssimos para a formação
de todo profissional de saúde, uma vez que o preparam para lidar com diversas
questões sociais, culturais e de gênero. Torna-se, pois, indispensável
implementar a transversalidade desses conteúdos em outras disciplinas
curriculares a fim de possibilitar a incorporação da integralidade do cuidado à
formação profissional.