Representações sociais de enfermeiros sobre a religiosidade ao cuidar de
pacientes em processo de morte
INTRODUÇÃO
O presente estudo teve como objeto a religiosidade no cuidar do paciente em
processo de morte em Unidade Oncológica e de Terapia Intensiva. Como sabido,
nesses cenários a morte é uma realidade que se apresenta com maior frequência
do que em outras unidades hospitalares. Considera-se relevante essa temática
analisada sob a ótica da teoria das representações sociais, tendo em vista que
o ser enfermeiro é um indivíduo que recebe múltiplas influências sociais,
culturais, psicológicas e espirituais e tende a aplicá-las no cotidiano
profissional.
O enfermeiro é reconhecido como aquele que cuida, porém, atualmente, o descuido
e o descaso têm se mostrado mais evidentes, o que revela um gradual abandono no
aperfeiçoamento da compreensão do cuidar, sobretudo no enfrentamento do
processo de morte, o que acaba por demonstrar o despreparo de muitos
profissionais e a deficiência curricular dos cursos de enfermagem(1-2). Isso se
deve às mudanças na relação entre o homem e a concepção do processo de morte no
percurso histórico-cultural vivenciado também na profissionalização da
enfermagem.
Tal percurso histórico-cultural, expresso na literatura, revela que ainda na
Idade Média a morte era compreendida como um acontecimento natural, domiciliar
e familiar, com amplo significado religioso, sendo esta e o adoecimento
atrelados à vontade divina. No entanto, sabe-se que a partir do século XX,
iniciou-se a luta contra a morte dos pacientes, fato que se deve aos avanços
tecnológicos, bem como ao afastamento do pensamento religioso(3). Após a década
de 1930, o número de óbitos em hospitais começou a crescer, de modo que, na
atualidade, a morte acontece prioritariamente nos hospitais e, por conseguinte,
mais próxima do trabalho dos enfermeiros(3-4). Isso pode ser devido às mudanças
de perspectiva social atreladas ao pensamento capitalista em expansão, que
valorizam as relações trabalhistas e da produtividade humana(5).
Nessas relações há uma preocupação sobre o modo como esse profissional lida,
diariamente, com a morte e com as diferentes concepções religiosas atribuídas a
ela. Tanto nas Unidades Oncológicas quanto nas Unidades de Terapia Intensiva
(UTI), a compreensão acerca da religiosidade no cuidar do paciente em processo
de morte passa a ser relevante. No entanto, é a iminência da falência orgânica
e o desejo humano de alcançar imortalidade que aguçam a reflexão sobre a
vigente presença da negação da morte nas falas dos profissionais enfermeiros na
sociedade atual, revelando o mais antigo paradoxo existencial: o medo da morte
(6).
As temáticas da morte e da religiosidade têm sido pouco exploradas pelos
profissionais, alunos e instituições de ensino, e isso se reflete na
preocupação de que "talvez o maior obstáculo a enfrentar quando se procura
compreender a morte seja o fato de que é impossível para o inconsciente
imaginar um fim para sua própria vida"(7) e, para isso, os enfermeiros
necessitam compreender o simbolismo e o significado do que para eles representa
a morte em seu cotidiano profissional.
Como se apresenta para os enfermeiros de Unidades de Oncologia e de Terapia
Intensiva a religiosidade ao cuidar do paciente em processo de morte? O
presente estudo teve como objetivo compreender as representações sociais dos
enfermeiros acerca da religiosidade ao cuidar de pacientes em processo de
morte.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de campo, com abordagem qualitativa que utilizou o
referencial teórico e metodológico da Teoria das Representações Sociais segundo
o pensamento de Jodelet, desenvolvido no âmbito da Psicologia Social que propõe
a reflexão sobre a realidade e suas implicações. Apoiados nesta autora, toma-se
como base valores e ideias compartilhadas pelo grupo social, formado nesta
pesquisa por enfermeiros de Unidade de Terapia Intensiva e Oncologia de um
hospital universitário da cidade do Recife, Pernambuco, Brasil no qual estão
inseridos, sendo esses valores os responsáveis por reger as condutas desejáveis
ou admitidas(3,8).
A população do estudo constituiu-se de 40 enfermeiros, sendo 21 da Oncologia e
19 da UTI, tendo sido a amostra de 20 enfermeiros, sendo 10 de cada setor acima
descrito. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
coletaram-se os dados através de um roteiro de entrevista semiestruturado, com
perguntas abertas referentes às representações da religiosidade no cuidar do
paciente em processo de morte. Como critérios de inclusão, considerou-se: ser
enfermeiro, servidor público em escala de plantão, pertencente às unidades de
internamento de oncologia (Adulto, pediátrico e quimioterapia) e da UTI (Geral,
pediátrica e doenças infecciosas e parasitárias - DIP) e ter aceitado
participar do estudo, assinando o TCLE (Termo de Consentimento Livre
Esclarecido). Os enfermeiros em férias, licença maternidade, afastamento por
licença médica ou para estudo de aperfeiçoamento acadêmico e em regime de
plantões extras no período da coleta de dados, bem como aqueles que não
demonstraram interesse em participar do estudo ou não concordaram em assinar o
TCLE, inseriram-se nos critérios de exclusão.
Os dados foram coletados pelos pesquisadores deste estudo entre os meses de
maio a agosto de 2010. As entrevistas duraram entre 10 e 120 minutos. Após
serem gravadas e transcritas, considerou-se o sigilo dos sujeitos nomeando-os
com a seguinte codificação: categoria profissional, número sequencial e unidade
de trabalho. Sendo Enf designado para categoria Enfermeiro, e os números
sequenciais sendo dispostos em algarismos arábicos, por ordem de coleta dos
dados em cada setor.
Posteriormente, utilizou-se a análise de conteúdo temática que, segundo Bardin
(9), representa um conjunto de técnicas de análise das comunicações que visam à
obtenção, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
das mensagens, de indicadores que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção e de recepção dessas mensagens através da
categorização dos depoimentos. Isso revela dois pólos metodológicos, a
rigorosidade e a necessidade de ir além das aparências sob duas orientações
que, ao mesmo tempo em que se confrontam, se complementam: a verificação
prudente ou a interpretação brilhante.
Procedeu-se à organização das falas, tendo emergido as seguintes categorias: 1)
Passagem para uma nova vida; 2) Processo Natural e Fisiológico; 3) Alívio do
Sofrimento; 4) Preces, Rezas, Orações e Consolo; 5) Respeitar e Incentivar a
Religiosidade do paciente e da família; 6) Acolhimento e Humanização; 7)
Distanciamento na Assistência Profissional; 8) Capacitação e Aperfeiçoamento;
9) Conforto Espiritual e Controle Emocional; 10) Tranquilidade e Calma; 11)
Frustração e Sofrimento. Todos compreendidos, no presente estudo, através de
cinco Eixos Temáticos, de modo a contribuir para a sistematização da análise
metodológica. Sendo estes: A) Representações pessoais, profissionais e
religiosas do enfermeiro acerca do processo de morte; B) Representações da
religiosidade no cuidado de pacientes terminais e/ou graves; C) Representação
da relação ideal entre Paciente-Enfermeiro-Família no processo de morte; D)
Representações do enfermeiro acerca dos mecanismos de enfrentamento do processo
de morte; E) Representações e experiências dos enfermeiros frente ao processo
de morte.
No tocante aos aspectos éticos, respeitaram-se os princípios em conformidade
com a Resolução CNS nº 466/2012 do Ministério da Saúde, sobre Diretrizes e
Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos. Para realização
da pesquisa, obtiveram-se duas aprovações do Comitê de Ética em Pesquisa: uma
para o estudo em Oncologia através do projeto de iniciação científica
intitulado Cotidiano Profissional: como os enfermeiros lidam com a morte e a
religiosidade em seu processo de cuidar? E outra, para o estudo em UTI,
denominado Processo de Cuidar: como os enfermeiros de Unidade de Terapia
Intensiva lidam com a morte e a religiosidade em seu cotidiano profissional?
Tendo sido aprovados e registrados com o CAAE: 0060.0.106.000-09 e CAAE:
0084.0.106.000-10, respectivamente.
Os dados utilizados no presente estudo são oriundos dos projetos de iniciação
científica mencionados anteriormente, e financiados pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os dados foram obtidos no
período entre agosto de 2009 e agosto de 2011.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nos cenários da pesquisa em Unidade de Oncologia e de Terapia Intensiva foram
verificados elementos que revelam a contribuição da religiosidade no cuidar,
como principalmente a presença de uma capela no hospital. Outras referências
religiosas podem ser percebidas na configuração do espaço físico com a presença
de elementos como imagens, quadros de personagens bíblicos, crucifixos, terços
e literatura sacra.
A importância da presença desses objetos foi reafirmada em estudos anteriores,
pois estes representam um elo entre o alívio e a dor, a vida e a morte, a fé, o
conforto e a esperança(10). E a partir da análise das falas presentes no
estudo, foi possível elaborar os cinco Eixos Temáticos, também entendidos como
esquemas figurativos, uma vez que encerram aspectos dimensionais da informação,
atitude e campo representacional(8).
A. Representações pessoais, profissionais e religiosas do enfermeiro acerca do
processo de morte
A motivação para cuidar dos enfermos situou-se inicialmente no ato de
solidariedade humana vinculado à religiosidade e à abnegação(11). Contudo,
mantem-se presente no imaginário do profissional, através de práticas e
crenças, a religiosidade vinculada à assistência e ao acesso aos serviços de
saúde, seja através de financiamentos filantrópicos por meio de doações de
fiéis e sociedade civil, da presença de capelas, igrejas e salas de oração ou
da prática de visitas regulares aos locais de internamento de figuras
representativas de instituições religiosas.
As representações dos enfermeiros, quanto ao processo de morte, permitem a
elaboração de conceitos relevantes para o cuidado atribuídos e formulados sob a
influência social, cultural e histórica(8). Os conceitos são concebidos
integralmente sob o ponto de vista pessoal, profissional e religioso, e por
vezes dicotomizados, evidenciando a multiplicidade inerente ao processo de
morte para o ser enfermeiro, sobretudo quando se sobrepõe a influência
religiosa na construção destes conceitos fazendo emergir a presente categoria:
passagem para uma nova vida, como demonstram as falas abaixo:
A morte? É, a gente, no dia a dia, sabe que chega o momento em que
nós temos que partir para outra vida, entendeu? [...] a morte seria a
passagem dessa vida para outra vida eterna. (Enf. 9 - UTI).
A morte para mim?Bom, é a passagem desta vida para vida eterna,
assim, pelo que eu saiba das religiões que eu tive acesso; para os
cristãos, é uma passagem, (Enf. 16 - Oncologia).
A influência da religiosidade nas representações acerca do processo de morte
está presente nas falas dos enfermeiros. Essa presença é reafirmada em estudo
realizado com estudantes de enfermagem, que apresenta a partir do episódio da
morte, como elemento interveniente às crenças, a convicção de que a fé
religiosa influencia a capacidade de enfrentamento de situações envolvendo a
morte e o morrer(12). Outro estudo realizado com enfermeiros e demais
profissionais de saúde, apresenta a religiosidade como parte da estrutura da
representação, desvelando a morte como: "fim, passagem, mistério, perda, sono,
corte, retorno, experiência macabra, experiência natural, experiência abstrata,
experiência triste e encontro com a verdade(19).
Essas definições e conceitos aproximam-se dos resultados encontrados no
presente estudo, revelando a influência religiosa na concepção do enfermeiro
sobre o processo de morte, a partir da atuação do divino e do místico,
permitindo a passagem para uma nova vida após a morte do corpo físico.
Contudo, a teoria das representações sociais, neste estudo, revela que o
processo de morte compreendido e então enfrentado pelo enfermeiro constitui
relação de dependência com o sentido que eles dão à vida. Esta por si só
apresenta desafios e a relação de dependência perpassa no sentido de se
conhecer a si mesmo, e saber que as escolhas mais difíceis serão as mais
elevadas e também como se ter consciência que a morte não existe, e que nunca
estamos sozinhos na passagem(7). A morte pode representar, para um indivíduo em
um contexto sociocultural e religioso, o fim do corpo, alma e espírito, no
sentido de que a vida não transcende, ou ainda o encontro com uma fonte de
vida, que pode ser mística e eterna ou até mesmo com o próprio Deus. As
concepções e definições da morte contribuem tanto nas ações e escolhas
pessoais, como nos hábitos relacionados às construções para a realidade, diante
do fato de que se criam representações, porque se necessita de informações
sobre o mundo à volta para o ajuste do comportamento, a fim de solucionar
problemas oriundos das relações com objetos, pessoas, acontecimentos ou idéias
(8).
Nesse sentido, cuidar do indivíduo que está morrendo ou sofrendo consiste em
internalizar uma compreensão esperançosa da morte, cultivar o desejo humano do
infinito, sentimentos estes expressos na religiosidade, impedindo que ele se
identifique com objetos finitos e sofra com a possibilidade de morte associada
ao câncer e ao internamento em Unidades de Terapia Intensiva(13).
Em algumas falas observa-se a representação do enfermeiro quanto aos conceitos
de morte, como sendo fundada em concepções apenas biológicas e tecnicistas com
base em critérios fisiológicos, como a utilização de protocolos de morte
encefálica em UTI, ou seja, de perda irreversível das funções do Tronco
Cerebral, ainda dúbios e confusos na aplicabilidade na prática profissional
neste serviço, embora emergentes nas falas como representação da morte,
apreendida na categoria: processo natural e fisiológico, evidenciada nas falas
abaixo:
Seria a ausência de vida. Assim[...]Os batimentos cessaram, o cérebro
foi embora e o paciente morreu, não tá mais lá, não tem mais sinais
vitais. (Enf. 3 - UTI).
Morte para mim assim é um processo natural, todo mundo nasce, cresce,
se reproduz e morre, é um processo natural é um processo que vai
acontecer para mim, para vocês e para todo mundo. (Enf. 8 - UTI).
Tradicionalmente, a definição da morte fazia referência ao instante do
cessamento dos batimentos cardíacos. Essa definição tornou-se obsoleta, e hoje,
a morte é compreendida como um processo biopsicossocial, um fenômeno
progressivo e não mais como um momento, ou evento analisado separadamente(14).
A morte como evento isolado é diagnosticada pelo profissional médico através de
exame físico, aplicação da escala de Glasgow e exames complementares. A morte,
como fenômeno natural, faz parte do ciclo de vida de todo ser vivo.
Acredita-se que o enfermeiro através de suas concepções, apreendidas na
academia, sobre as questões decorrentes do ciclo de vida, se aproprie
prioritariamente da representação biológica da morte, devido à grande carga
horária curricular associada a disciplinas com aproximação e fundamentação
teórica essencialmente biológica em detrimento das outras com valorização das
esferas psicossociais. As Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de
Graduação em Enfermagem, instituídas pela Resolução CNE/CES nº 3, de 7 de
novembro de 2001, apontam para atenção à saúde identificando as dimensões
biopsicossociais dos determinantes do processo de saúde-doença. A Tanatologia,
como um tema transversal na matriz curricular, precisa ser abordada com maior
ênfase no ensino de graduação.
Entretanto, a morte em Unidades Oncológicas e de Terapia Intensiva representa
também, em muitos casos, um alívio do sofrimento para pacientes e familiares,
bem como para o próprio profissional enfermeiro que cuida diariamente desses
pacientes. As compreensões presentes nas falas dos enfermeiros retomam a
concepção da morte como um fim do sofrimento e possibilidade de recomeço longe
dos sentimentos negativos, em uma nova esfera que remete à influência religiosa
na prática profissional. Assim emerge a seguinte categoria: alívio do
sofrimento.
Para gente assim, a morte é até assim[...]'terminou o sofrimento',
porque assim, aqui muitos pacientes sofrem muito, a morte é até
assim, um descanso realmente! Ele pára de sofrer [...]. Então, quando
ele morre, realmente é um descanso, porque o sofrimento daquele
paciente foi embora para ele, para família e para mim. (Enf. 10 -
Oncologia).
O processo de morte acarreta uma grande carga de sofrimento relacionada à dor
física decorrente dos sinais e sintomas característicos da doença e de
procedimentos invasivos realizados durante o internamento, bem como reações e
ações adversas à terapêutica medicamentosa, sofrimento psíquico relacionado à
distância do ambiente familiar(3).
O enfermeiro vivencia o processo de morte e, como mecanismo de defesa, a morte
se apresenta como o fim do sofrimento, ou alívio para o paciente, familiares e,
sobretudo, da equipe de enfermagem. Fica evidenciado, portanto, o reflexo da
esperança religiosa nas concepções compreendidas no âmbito das representações
sociais através de conjuntos de conhecimentos e crenças elaboradas
coletivamente(8). Analogamente, num estudo realizado com trabalhadores de
enfermagem, ficou claro que estes preferem utilizar estratégias coletivas de
defesa, para enfrentar a dor ocasionada pela morte dos pacientes(3).
B. Representações da religiosidade no cuidar de pacientes terminais e/ou graves
A religiosidade está presente no cuidar do paciente em processo de morte, pois
a formação da enfermagem como profissão tem sido extremamente atrelada à
religiosidade no decorrer da história(15). Emerge, então, a seguinte categoria:
preces, rezas, orações e consolo, evidenciada nas falas que revelam a
contribuição dos elementos da religiosidade do próprio enfermeiro no cuidar,
pois alguns enfermeiros rezam e oram pelos pacientes e por seus familiares
enquanto cuidam deles na oncologia e na UTI, como pode ser observado:
Eu faço uma oração, eu rezo, não encarando esse processo como sendo
algo material, biológico, eu acho que tem um prolongamento na vida.
(Enf. 1- UTI).
A gente procura amenizar [...], tenta consolar, tenta estar presente
de alguma forma, até no cuidado, dar um abraço, tentar acalmar[...].
Como profissional, minha visão é totalmente cristã, eu tento passar
um pouco disso, a questão cristã mesmo de consolo que só Jesus pode
dar. (Enf. 11- Oncologia).
A religiosidade tem um significado importante para a humanidade, assim sendo,
as atividades espirituais e religiosas podem ser agregadas às terapias e
tratamentos realizados pela enfermagem, embora novas pesquisas na área ainda
precisem ser implementadas, com o intuito de fundamentar a prática já
encontrada comumente nos serviços, corroborando com alguns autores(16) que
revelam que os recursos religiosos de orações, promessas, peregrinações,
exercícios ascéticos e ações rituais são constantemente utilizados em situações
de enfrentamento.
Ao compreender que a religiosidade faz parte do cuidado, alguns enfermeiros
permitiram a apreensão da seguinte categoria: respeitar e incentivar a
religiosidade do paciente e da família, observada nas falas de modo a valorizar
e evidenciar as crenças do paciente e da família no cuidar de modo a expressar
as suas crenças pessoais em segundo plano neste momento(5), como evidenciam as
falas abaixo:
Assim, alguns deles (pacientes) se pegam muito mais à religiosidade,
[...] então eu preciso apoiar o que deixa o paciente mais
confortável. Eu digo ao paciente tenha fé, tenha fé! Porque até isso
influi. (Enf. 8 - UTI).
Respeito sempre, respeitar a religiosidade do paciente, a
individualidade de cada um. (Enf. 10 - Oncologia).
De uma forma geral, minha impressão pessoal é que a gente tem que
deixar de lado nossa forma religiosa e respeitar a crença de cada
família [...] (Enf. 5- UTI).
Desta forma, reafirma-se que a religiosidade torna-se importante para a maior
parte dos pacientes, por isso os profissionais de saúde precisam conhecer e
valorizar as crenças religiosas, uma vez que, para compreender a integralidade
do cuidar, faz-se necessário inserir o suporte espiritual e/ou religioso(8-16)
de modo a tornar o paciente e seus familiares mais confiantes em relação ao
tratamento.
C. Representações da relação ideal entre Paciente-Enfermeiro-Família no
processo de morte.
A capacidade representacional desse tema do cotidiano do enfermeiro, no que diz
respeito à relação entre a tríade Paciente-Enfermeiro-Família, no que se refere
ao processo de morte, de modo a torná-la um momento mais brando, evidencia a
categoria Acolhimento e Humanização nas seguintes falas:
Eu acho que não só a enfermagem, mas todos da equipe, para o paciente
e para a família é sempre ter um bom acolhimento, a humanização [...]
para dar uma noticia de óbito [...]. Tornar a coisa um pouco mais
humana. (Enf. 1 - UTI).
Eu particularmente acredito que a equipe, assim... [pausa] quanto
mais dedicado, mais comprometido, tentando apoiar mais este paciente,
a família para dar um final de vida menos doloroso possível [...] a
gente tenta dar o maior suporte possível, levar um sorriso [...].
(Enf. 12 - Oncologia).
Sabe-se que a humanização no cuidar insere-se através da Política Nacional de
Humanização, que busca a valorização dos diferentes sujeitos implicados no
cuidar, desde usuários e trabalhadores, aos gestores, estabelecendo vínculos
solidários e de participação coletiva no processo, além de incorporar condutas
acolhedoras, pois o acolhimento apresenta-se como elemento essencial nessa
política de humanização, sobretudo frente ao processo de morte, momento ímpar
da condição humana. Neste âmbito, outros enfermeiros da pesquisa reforçam a
construção da presente categoria, especificando elementos próprios da
humanização e do acolhimento, como ainda pode ser evidenciado nas seguintes
falas:
Acho que tem que ter diálogo e a gente tem que parar e escutar o
paciente, mesmo na fase final, ele ainda tem coisas que quer lhe
dizer, tanto [...]. (Enf. 14- Oncologia)
Conversar com o paciente, mesmo quando achar que ele não tá mais
ouvindo ou entendendo. (Enf. 1- UTI).
A comunicação e escuta ativas constituem procedimentos indissociáveis do cuidar
humanizado e, portanto, do acolhimento. Neste contexto, as habilidades de
comunicação para abordar o processo de morte são um instrumento necessário que
viabiliza ao profissional identificar em qual das cinco fases do processo
(Negação, Raiva, Barganha, Depressão e Aceitação) o paciente se encontra, e
assim, auxiliar de forma integral na sua assistência(7).
A comunicação se manifesta nas relações entre paciente, enfermeiro e família
sob diversas formas, podendo ser verbalizada ou não. O enfermeiro precisa saber
relacionar-se e trabalhar com a comunicação não-verbal, em que palavras são, às
vezes, substituídas por comportamentos e atitudes(17). O enfermeiro que cuida
em Unidades Oncológicas e de Terapia Intensiva necessita ter em mente que o
cuidado é uma atitude inerente ao ser humano e, portanto, o ser enfermeiro deve
apropriar-se do cuidar em sua prática profissional.
Neste estudo, alguns enfermeiros se posicionaram de maneira contrária
possibilitando a formulação da seguinte categoria: distanciamento na
assistência profissional, afirmando em suas falas que o envolvimento afetivo e
emocional e até mesmo religioso pode ser antiético e até trazer danos à
prestação da assistência adequada à relação Paciente-Enfermeiro-Família. Estes
acreditam que para desempenhar bem sua prática profissional nas unidades devem
se manter distantes, evitando construir vínculos de afeto, carinho e amizade
com os pacientes e familiares, para evitar o sofrimento em situações de morte,
como expressado na fala abaixo:
Assim, você tem que manter uma certa distância [...], isso não quer
dizer que você não vai prestar uma assistência de qualidade para o
paciente, mas você tem que entrar em um distanciamento, para não
entrar em depressão toda vez que um paciente morre. (Enf. 2- UTI).
O enfermeiro de UTI, associa a postura profissional de competência e qualidade
elevada ao distanciamento e prefere um perfil rígido, frio, inflexível e
tecnicista na assistência da equipe de enfermagem(3). Atitudes capazes de gerar
o campo representacional do enfermeiro em suas práticas cotidianas verificadas
neste estudo evidenciam a compreensão equivocada da necessidade de separação
dos conceitos apresentados para a vida pessoal em face da conduta profissional,
valorizando o uso de procedimentos técnicos e tecnológicos no cuidar em
detrimento de metodologias holísticas e integrais no encontro com o outro que
também envolvem os aspectos religiosos(8), pois todos esses elementos
biopsicossociais fazem parte do fenômeno cognitivo que permite compreender as
representações sociais(15).
D. Representações do enfermeiro sobre os mecanismos de enfrentamento do
processo de morte.
Alguns enfermeiros afirmam que a maior dificuldade diante do processo da morte
é a falta de preparo para lidar com ela, e acreditam na Capacitação e
Aperfeiçoamento para a superação dessa dificuldade. A citada categoria revela a
busca pelo conhecimento como instrumento de renovação do processo de cuidar e
ainda como mecanismo de enfrentamento do processo de morte, como refere a fala
abaixo:
Eu busco assim, pensar que eu estou fazendo o melhor possível para o
paciente, para o serviço e para a instituição[...] (Enf. 13 -
Oncologia).
O profissional comprometido a cuidar de pacientes em processo de morte em
oncologia ou pacientes graves em UTI prepara-se para enfrentar situações de
sofrimento e de morte na perspectiva da Tanatologia, ou seja, da educação para
a morte(18). Contudo, até então, a maior parte das instituições de ensino de
enfermagem ainda não integrou a concepção tanatológica ao perfil curricular dos
cursos(12). Aconselha-se que as representações que surgem diante desse processo
sejam compreendidas e analisadas, pois estas advêm da insuficiência da ciência
e da desinformação relativas à morte. A mudança de atitude almeja resultar na
reflexão e discussão holística do tema em questão(8).
O Conforto Espiritual e o Controle Emocional também aparecem como mecanismos de
defesa e enfrentamento para cuidar do paciente em processo de morte. Nesta
categoria, os enfermeiros evidenciam a religiosidade como elemento organizador
da prática em benefício do paciente e para o profissional, que convergem para
um equilíbrio entre o envolvimento afetivo e o distanciamento, a fim de evitar
o sofrimento excessivo. Esses mecanismos estão presentes na seguinte fala:
[...] eu, pelo menos tento trabalhar a minha parte sentimental [...],
mas, por outro lado, também não chega ao ponto de me envolver o
suficiente, assim a deprimir, a sofrer, [...] é tipo um
mecanismozinho de defesa, cada um utiliza o seu. (Enf. 11-
Oncologia).
Os enfermeiros têm criado mecanismos de defesa que os auxiliam no enfrentamento
do processo de morte(17), sabe-se que a enfermagem está entre as profissões
mais sujeitas aos agravos psíquicos e somáticos, geniturinários e
osteomusculares, devido à natureza de sua rotina ocupacional, sobretudo devido
à aproximação com a dor e a morte maior do que o resto da população(19).
E. Representações e experiências do enfermeiro frente ao processo de morte.
A análise revela características próprias do contexto do grupo em estudo, no
que se refere à teoria das representações sociais, isto é, as concepções são
estruturantes das práticas, e estas, por sua vez, determinadas pelo sistema de
representações, sendo, portanto, assumidas como um guia para as práticas,
definindo o que é lícito ou inaceitável em determinado contexto social(20).
Frente ao processo de morte, alguns enfermeiros referiram desempenhar suas
atividades com Tranquilidade e Calma, ou seja, expressam sentimentos positivos
que promovem crescimento e desenvolvimento a nível pessoal e profissional. Essa
categoria revela que quando a representação do processo de morte remete ao
equilíbrio da dinâmica biopsicossocial, então as experiências da vivência são
pouco traumáticas para o profissional, sobretudo em oncologia, onde a morte é
vivenciada, como revelam as falas abaixo:
Com tranquilidade, né?! Creio que morreu procuro me policiar de fazer
comentários ruins. (Enf. 20- Oncologia).
Extremamente calma, viu?! Calma! Não tem estresse nenhum, eu tento
acalmar a família, se a família fica estressada, fica aquele "auê"
aqui, mas faço direitinho. (Enf. 14- Oncologia).
A calma e a tranquilidade são adquiridas com a experiência pessoal e a
elaboração de mecanismos de enfrentamento, sobretudo religiosos. Em vista
disso, todos os enfermeiros da pesquisa professaram uma religião e referiram
participar de eventos religiosos com frequência. Essa estrutura psíquica
elaborada a partir das representações da religiosidade no cuidar do paciente em
processo de morte constrói-se como estruturante da prática(8). Entretanto,
alguns enfermeiros revelam que as vivências profissionais remetem ao
sofrimento, frustração e impotência diante da morte. Assim a categoria
Frustração e Sofrimento fundamenta-se nas falas:
Eles pedem assim para não morrer aí isso aí frustra você demais! '-
Tia, não me deixe morrer!', eles morrem realmente com a plena
consciência e isso é mais frustrante [...]. (Enf. 9- Oncologia).
[...] às vezes é muito frustrante por você achar que ia sair, que ia
se recuperar, que ia ter possibilidade de se recuperar. (Enf. 5-
UTI).
Diante das falas, reafirma-se que a morte ainda tem sido vista como um tabu
para a sociedade atual. A realidade em que se encontra o enfermeiro no seu
ambiente de trabalho, o sentimento de frustração diante da morte e a natureza
religiosa no seio dessa representação, apontam para a importância de realizar-
se estudos sobre a religiosidade relacionados aos objetos que compõe essa
realidade social(19).
Ainda mostra-se importante referir neste estudo que as representações sociais
dos enfermeiros acerca do processo de morte estão relacionadas à compreensão do
ciclo de vida que fundamenta as vivências, por exemplo, a morte de idosos e
adultos em estado de saúde grave ou comprometidos, sendo este um fato aceitável
para o profissional. Contraditoriamente, a morte de crianças caracteriza-se
como um fato impactante que causa angústia e sofrimento, como evidenciado na
seguinte fala:
Morte de criança é mais difícil para mim, porque a gente sempre
imagina que ela tinha todo um futuro pela frente, tem uma
perspectiva, tinha um plano. (Enf. 8- Oncologia).
Outra relação que remete ao sofrimento e a frustração do enfermeiro, além da
morte da criança, diz respeito à morte de um paciente próximo, com presença
marcante e frequente no serviço, seja por tempo de internamento, seja por
identificação com a equipe, como na fala abaixo:
Tem paciente que a gente se pega mais, e sofre mais quando morre, tem
paciente mesmo aqui que eu não vou querer estar aqui quando morrer,
[...].. (Enf. 10 - Oncologia).
As representações acerca da morte são elaboradas para a enfermagem bem como
para a sociedade, fundamentadas nas concepções religiosas. A religião emerge
dessas experiências quando vivenciadas no coletivo, sentimentos de sofrimento e
a maneira de enfrentar a morte, depende do sentido que é dado por cada um, suas
crenças, religião e ou mesmo de sua religiosidade. A partir daí são observadas
expressões no cuidar e no relacionamento do enfermeiro com o paciente e a
família, frente ao processo de morte como demonstra este estudo.
A apreensão da religiosidade no processo de morte está atrelada a realidade
social e vivência dos profissionais acerca da morte, e às questões pessoais e
profissionais no contexto em que se encontram. É importante estar informado
sobre o que acontece no mundo a nossa volta, saber se relacionar, comportar-se,
identificar e resolver as situações que se apresentam e é por isso que se cria
representações(8).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo possibilitou desvelar as representações de um grupo de
enfermeiros de Oncologia e UTI sobre o processo de morte, revelando tanto os
significados quanto o caráter simbólico da religiosidade ao cuidar de
pacientes, bem com os elementos do fenômeno cognitivo que permitem compreender
as representações sociais relativas à contribuição das experiências vividas por
eles sobre a religiosidade nesse processo. Além disso, foi possível refletir
sobre os conceitos que determinam o comportamento, de modo a permitir ao
enfermeiro elaborar mecanismos de enfrentamento, revelando medos e crenças ao
inserir a religiosidade como instrumento terapêutico em benefício de quem cuida
e de quem é cuidado.
A análise das falas permitiu revelar que os enfermeiros compreendam o processo
de morte inserindo suas concepções religiosas, conceituando a morte em alguns
momentos como sendo uma passagem, remetendo à representação simbólica de um
caminho para o conforto e alívio do sofrimento. O enfermeiro ainda realiza
preces e orações ao cuidar, o que demonstra que respeitando e incentivando a
religiosidade do paciente e da família é possível ser um profissional capaz de
promover o acolhimento e a humanização. Contudo, algumas falas evidenciam o
distanciamento na assistência como mecanismo de enfrentamento.
Com este estudo propõe-se a inserção da temática no perfil curricular de
graduação em enfermagem. Tendo sido verificada a necessidade de capacitação em
grande parte das falas, constatou-se que a mesma precisa funcionar como
elemento norteador da prática, favorecendo a aprendizagem do autocuidado pelo
profissional, diminuindo o risco de doenças decorrentes da rotina de trabalho,
e oferecendo suporte psicológico e educacional dentro dos serviços, o que
contribuiria positivamente para a desmistificação da representação da postura
profissional distanciada.
Consideram-se ainda as representações sociais dos enfermeiros, acerca da
religiosidade ao cuidar do paciente em processo de morte, como extremamente
relevantes, e que necessitam serem compreendidas no cotidiano profissional,
visto que o trabalho apreendido pelo enfermeiro no campo das representações
sociais implica na análise da realidade, na tomada de consciência e então na
mudança de atitude.