Apoio matricial: dispositivo para resolução de casos clínicos de saúde mental
na Atenção Primária à Saúde
INTRODUÇÃO
As ações de saúde mental desenvolvidas no âmbito da Atenção Primária à Saúde
(APS) exercem papel fundamental ao contribuir com seus saberes para a ampliação
do potencial resolutivo das equipes, mediante a realização do apoio matricial
(AM) ou matriciamento de saúde mental que tem por objetivo superar a lógica da
especialização e da fragmentação do trabalho da própria área de saúde mental.
Ao se considerar o apoio matricial como dispositivo para a resolubilidade de
casos clínicos de saúde mental, é preciso esclarecer acerca do entendimento que
se atribui às referidas nomenclaturas. Dessa maneira, definem-se os termos
dispositivos, apoio matricial e resolubilidade. "Os dispositivos seriam
recursos que alteram o funcionamento das organizações [...] sendo usados para
instaurar algum processo novo"(1). O apoio matricial pode ser definido como um
arranjo organizacional que surge com o objetivo de ampliar a capacidade de
resolubilidade das ações de saúde, ao propor uma reformulação no modo de
organização dos serviços e relações horizontais entre as especialidades que
passam a oferecer apoio técnico horizontal às equipes interdisciplinares de
atenção primária, favorecendo assim a conexão em rede(2). A resolubilidade
abrange aspectos relativos à demanda, à satisfação do cliente, às tecnologias
dos serviços de saúde, à existência de um sistema de referência
preestabelecido, à acessibilidade dos serviços, à formação dos recursos
humanos, às necessidades de saúde da população, à adesão ao tratamento, aos
aspectos culturais e socioeconômicos da clientela, entre outros(3).
De acordo com o contexto, o matriciamento funciona como um dispositivo capaz de
facilitar a resolubilidade da atenção psicossocial, porquanto abre caminhos
para reflexões sobre a inserção de pessoas em sofrimento psíquico na
comunidade.
Na condição de um dispositivo institucional recentemente incorporado pelo
Ministério da Saúde como estratégia de gestão para a construção de uma rede
ampliada de cuidados em saúde mental, o matriciamento rompe com a lógica de
encaminhamentos indiscriminados para uma prática ancorada na
corresponsabilização do cuidado. Ademais, visa produzir maior resolubilidade à
atenção em saúde mental no contexto da APS(4).
Nessa perspectiva, a justificativa da formulação de políticas para a atenção
primária que envolva o cuidado em saúde mental estaria explicada e calcada no
direito do usuário de encontrar em sua unidade sanitária de referência uma
estratégia de acolhimento articulada com os demais dispositivos assistenciais
presentes na rede de atenção(5).
Em virtude de o apoio matricial de saúde mental se constituir um novo
dispositivo em fase de implementação no Sistema Único de Saúde (SUS), torna-se
de grande relevância a formulação de propostas que propiciem a análise dessa
experiência. Nesse sentido, o objetivo desse estudo é compreender a
constituição do apoio matricial como um dispositivo para a resolução de casos
clínicos de saúde mental no âmbito da APS.
CAMINHOS DA PESQUISA
Trata-se um estudo de caso, método amplamente utilizado em pesquisas
qualitativas e que deve ser aplicado quando o pesquisador tem o interesse em
compreender uma situação singular, particular e que retrate a realidade de
forma completa e profunda(6).
A pesquisa foi realizada em um cenário no Nordeste do Brasil correspondente ao
município de Fortaleza-CE que possui 2.505.552 habitantes, o qual possui 88
centros de saúde da família, distribuídos nas seis Secretarias Executivas
Regionais (SERs), com cobertura da ESF de 42% da população.
O estudo de caso selecionado foi acolhido pela equipe da Estratégia Saúde da
Família, considerada de referência para os usuários adstritos do território em
discussão e composta por um médico, enfermeira e uma assistente social, bem
como pela equipe do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS Geral (equipe
matriciadora), formada por um médico, enfermeiro e uma psicóloga, a partir da
observação em atividade de apoio matricial de saúde mental na APS.
Para a produção de dados adotou-se a observação sistemática das práticas no
matriciamento que ocorreu inicialmente com a aproximação dos campos empíricos,
em que se procedeu à observação da atividade de matriciamento. Estes primeiros
dados foram discutidos em devolutiva aos trabalhadores, então, sujeitos da
pesquisa, para aprofundamento da compreensão em relação aos mesmos.
Posteriormente novos dados foram produzidos, por continuidade da observação
direta da atividade da equipe. Foi tomado um caso para estudo. Este se
desenvolveu tendo os próprios trabalhadores como fonte de dados, em discussões
conjuntas sobre o caso. Utilizou-se um caderno de campo para registro do
cotidiano da atividade matricial.
Na análise do material empírico, optou-se pela análise de conteúdo, numa
perspectiva crítica e reflexiva, com ênfase em eixos temáticos, por
possibilitar a descrição e a explicação de um pensamento, o qual pode ser
compreendido por meio da linguagem e da observação, como núcleos e instrumentos
de comunicação entre os homens(7). Essa análise se fez com a leitura do
material horizontal, transversal e criação de núcleos de sentido que foram
agrupados em categorias e, na sequência, procedeu-se à organização das
informações contempladas nas observações, com vistas a ampliar a compreensão do
fenômeno.
Cabe ressaltar que a pesquisa é um destaque do projeto intitulado "A rede de
atenção primária como elo de integração da saúde mental, com ênfase no
matriciamento", financiado pelo MS/FUNCAP/CNPq. O projeto foi submetido à
análise do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Ceará
(UECE), com o parecer favorável do CEP/UECE, sob protocolo nº 08622882-0.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O estudo evidencia o caso de uma usuária, MI, do sexo feminino, de 56 anos,
separada, procedente de um bairro denominado Vila União, situado na cidade de
Fortaleza-CE. Ao ser atendida, MI apresentou como queixa principal
sintomatologia caracterizada por dores de cabeça, ansiedade, insônia, choro
fácil, dependência de medicamentos para o sono regular. Segundo refere, aos 20
anos de idade manifestou os primeiros sinais de sofrimento, a qual se iniciou
com a sensação de enrijecimento do corpo, sendo em seguida encaminhada para o
hospital psiquiátrico. Nesta instituição foi atendida pelo médico que
prescreveu medicamentos e decidiu por não interná-la. Conforme ela acrescenta,
durante determinado período fez uso dos medicamentos prescritos e com o tempo
interrompeu o uso por considerar que estava bem. Embora tenha sido encaminhada
para o CAPS, não buscou este centro de atenção.
Posteriormente, decorrido um mês, manifestou novamente outra crise, com o mesmo
quadro sintomatológico da primeira. Submeteu-se a tomografia e, no desenrolar
da sua narrativa, chamou a atenção da equipe para o seguinte fato: o médico que
a atendeu naquela época ironicamente a advertiu de que ela "não tinha crânio
fechado", dessa maneira, continuaria sentindo mesmo fortes dores de cabeça.
Segundo MI relata, ela é mãe de dois filhos, porém reside sozinha. Nos dias
atuais toma ansiolíticos. Quanto à sua ocupação, trabalha no setor
administrativo de uma escola, emprego propiciado por um político da cidade onde
mora. Consoante refere, sente-se pressionada constantemente pelo citado
político que alega o fato de ter proporcionado a ela a sua ocupação atual.
Assim, encontra-se em sofrimento mental e queixa-se de desgaste físico em
consequência da situação vivenciada. Refere sentir-se pressionada
constantemente pelo citado político que alega o fato de ter proporcionado a ela
a sua ocupação atual. Apresenta também queixa de desgaste físico em
consequência da situação vivenciada, caracterizando-se um quadro de sofrimento
psíquico.
O caminhar da usuária: dilemas e desafios
Os trabalhadores da saúde do CAPS e do centro de saúde da família iniciaram a
discussão do caso, procurando compreender de que maneira se deu o desenho do
fluxo de atendimento da usuária no centro de saúde da família, pois, conforme
entendimento, o fluxo possibilita a descrição do caminhar do usuário em busca
de acompanhamento e respostas concernentes às suas necessidades de saúde. Tem
também por finalidade reconhecer o processo de trabalho da equipe, revelando
seus desdobramentos, as linhas de tensão e os ruídos enfrentados no caminho.
Dessa maneira, identificou-se durante o atendimento que a usuária, ao acessar o
serviço, foi acolhida inicialmente na recepção, onde recebeu informações acerca
dos atendimentos realizados.
No concernente ao caso em análise, ao serem detectadas suas especificidades,
houve o encaminhamento para a consulta de enfermagem e, nesta, ao se
identificar a demanda de saúde mental, conduziu-se a usuária para avaliação com
o médico clínico, pois a definição dos casos clínicos mais complexos deverá ser
discutida no encontro do matriciamento no centro de saúde da família. Dessa
maneira, o caso foi acompanhado de forma compartilhada no apoio matricial de
saúde mental realizado pelos trabalhadores da saúde do Centro de Atenção
Psicossocial e da Estratégia Saúde da Família, buscando-se assim operar o
cuidado tendo como horizonte de trabalho a integralidade da atenção.
Antes da entrada da usuária, a equipe de referência, composta então por
enfermeiro, médico e agente comunitário de saúde no centro de saúde da família,
expõe a situação e o contexto do caso a ser discutido para a equipe de apoio
matricial, formada pelo psiquiatra, assistente social e enfermeira do CAPS.
Após essa explanação, a usuária é recepcionada pela equipe interdisciplinar.
Nesse momento, ela já foi esclarecida sobre o atendimento conjunto e se
apresenta aos demais profissionais. O processo se desenvolve com a participação
de todos os atores envolvidos, sempre sob a condução da equipe de referência,
em face da maior vinculação desta com MI.
É nessa linha de entendimento que alguns estudos afirmam que a prática do
matriciamento possibilita o início da mudança no fluxo burocrático e
hierárquico de usuários na rede e na lógica dos encaminhamentos dos casos
atendidos na ESF e nos serviços de saúde mental(8). Isso pode ser compreendido
por haver uma aproximação entre os trabalhadores desses serviços, facilitando a
comunicação e a interação entre eles, tornando referência e contra referência
personalizadas. Transcende-se, assim, o método tradicional do encaminhamento
restrito e descompromissado.
Compartilhamento de saberes: uma ampliação de olhares?
Conforme se observa ao analisar o estudo de caso, as ações de apoio matricial
em saúde mental passam por um processo de implementação. Com isso ainda é comum
um relativo desconhecimento dos trabalhadores da atenção primária sobre o apoio
matricial. Mesmo alguns que conhecem não se comprometem em utilizá-lo, pois o
percebem como um serviço especializado, enquanto outros o entendem como sendo
apenas uma proposta pedagógica, na qual não há um acompanhamento efetivo dos
usuários e nem formação de uma equipe de referência eficiente.
A inexistência de práticas de saúde mental na atenção básica está associada a
determinados motivos, os quais a formação dos profissionais e o pouco
conhecimento acerca do processo de reforma psiquiátrica, capacitação
insuficiente para atuarem junto aos casos de transtornos mentais, as péssimas
condições de atendimento dos casos nas unidades básicas de saúde, a falta de
medicações psiquiátricas para fornecer aos pacientes, a quase inexistência de
uma rede assistencial em saúde mental de suporte, e na existência desta uma
carência de entrosamento com os serviços especializados da área que funcionem
com retaguarda e permitam a referência rápida quando necessário, e os conceitos
ainda arraigados em um modelo asilar(9).
Alguns desses aspectos foram encontrados durante o atendimento, como a
necessidade da equipe de referência de identificar inicialmente os sinais e
sintomas com vistas a propor o diagnóstico da doença. Assim, fazem inferências
como: o que lhe incomoda mais, a ansiedade, dor de cabeça? Como é essa
ansiedade de que você fala? O que você sente no seu corpo que você acha que é
essa ansiedade e como esse choro acontece?
Deste modo, é possível reproduzir socialmente a relação tecnicista no campo
psicossocial, ou seja, redireciona-se a forma de atendimento baseada na
intervenção direta na patologia em contraposição às demandas existenciais dos
sujeitos. Visto assim, coloca-se a doença em destaque e desloca-se o olhar para
ela, tornando-o objetivo de todo o trabalho; é apenas a ação técnica.
Tal fragmentação do cuidado tende a produzir um cuidado pautado nas práticas
tradicionais, que refletem o "modelo produtor de procedimentos", onde a
racionalidade científica e técnica é que determina a atenção á saúde. Assim, o
sujeito que necessita de cuidado é reduzido à posição de objeto e fica passivo
as intervenções meramente curativas(10).
Em seguimento a essa discussão, os estudos de Oliveira(11) realizados em
Vitória-ES, refere que, dentre os avanços ocorridos com a efetivação do
matriciamento, se destaca o enfrentamento que o dispositivo matricial impõe
frente à superação da fragmentação do cuidado, tornando a atenção às pessoas
com transtornos mentais mais resolutivas.
Ao mesmo tempo, a supremacia do modelo positivista de atenção à saúde é
reforçada, também, pela usuária, pois suas colocações, quase sempre, envolvem o
tratamento farmacológico e seu quadro clínico. Assim, a usuária refere: E a
minha tomografia, e os meus remédios? Quero saber se eu ainda vou continuar
tomando os medicamentos. Quem passou foi a doutora lá do posto e sem ele eu não
consigo dormir. Olha, eu preciso de um médico me acompanhando [...].
O "saber médico" predominou nas discussões da equipe, onde "as soluções" são
dadas geralmente com a indicação de algum medicamento, sem o devido
acompanhamento integral do usuário.
Fundamentados nos estudos de Figueiredo e Onocko-Campos(12), desenvolvidos em
Campinas-SP, dentre os achados, os gestores participantes da pesquisa
consideram que a atenção básica deve desenvolver o trabalho preventivo e
educativo. Também deve ofertar propostas clínicas e curativas, nucleares da
saúde mental, porém acredita que é preciso ainda avançar no desenvolvimento de
propostas, como estimula a prática do matriciamento o aspecto integral do
cuidado, buscando compreender o indivíduo como um todo, nas suas dimensões
biológicas, psicológicas e sociais, em contraposição às atitudes fragmentárias
e reducionistas, exclusivamente biologicistas e medicamentosas.
A excessiva demanda da usuária por medicamentos e exames, muitas vezes sem uma
justificativa técnica, revela o predomínio de uma ideia muito frequente: o
cuidado está associado ao alto consumo de tecnologias duras, onde sua dimensão
relacional é negligenciada. Marcado por esta relação, o modo de produção do
cuidado gera a denominada "produção imaginária da demanda", ou seja, uma
demanda que é verdadeira, porque sentida como necessidade pela usuária; mas é
também falsa, porque não é entendida tecnicamente como necessária. De modo
geral, a demanda imaginária vem de uma formação sócio-histórica dos modelos de
assistência desenvolvidos no século XX, fortemente centrados nos procedimentos,
alimentados por práticas excessivamente prescritivas. E quanto mais os
processos de trabalho estão centrados na instrumentalização do cuidado em
saúde, mais a demanda imaginária se manifesta. Urge, pois, uma reestruturação
dos modos de produzir o cuidado, em que os fatores acolhimento, vínculo e
seguimento de projetos terapêuticos integrais sejam o centro da atividade
assistencial(10).
A nova forma de promover saúde requer ruptura com os paradigmas da clínica
tradicional do modelo biomédico, efetivando-se outra forma de fazer clínica a
ocorrer numa visão ampliada do processo saúde-doença-cuidado. Uma clínica na
qual o objetivo da prática não é a cura, mas a produção do cuidado integral em
que o sujeito é sempre biológico, social e subjetivo(13).
Ao perceber que a condução do projeto terapêutico era, basicamente, de natureza
medicamentosa, a equipe matricial procura fazer sugestões, levantamentos e
intervenções dialógicas com questões sobre a subjetividade humana, na tentativa
de promover uma discussão ampliada acerca dos casos, não negando o valor do
medicamento, porém explorando outras ações de saúde no delineamento do projeto
terapêutico. Dessa maneira, busca interrogar e colocar em reflexão se a
medicação é realmente necessária, e se não há outros mecanismos e ferramentas
de auxílio ao usuário, sempre no intuito de promover a sua autonomia
Então, a equipe busca uma "substitutividade" nos dispositivos terapêuticos,
isto é, uma substituição dos recursos instrumentais por formas de cuidar que
possam também ser eficazes, e que substituam, em algum grau, por exemplo, o uso
de medicamentos.
Diante desse outro modo de cuidar do outro, a equipe de apoio matricial
utiliza-se de ferramentas para a promoção da saúde mental dos usuários por meio
de instrumentos que produzam acolhimento, autonomia e resolubilidade(14).
Como observado, o compartilhamento de saberes com os profissionais do CAPS
possibilita se alargar a visão da equipe da ESF, particularmente ao sugerir
aspectos além dos cuidados com os sinais e os sintomas. Desse modo, inclui os
aspectos da vida e do sofrimento apresentados no caso clínico mediante
vivências pessoais e da própria existência humana, na tentativa de ampliação do
projeto terapêutico dos usuários.
Assim, o apoiador matricial é um especialista detentor de um núcleo de
conhecimento e de um perfil distinto daquele dos profissionais de referência;
contudo, ele pode agregar recursos de saber e mesmo colaborar com intervenções
que aumentem a capacidade em dar resolubilidade a problemas de saúde da equipe
primariamente responsável pelo caso. O apoio matricial procura construir e
avivar espaço para a comunicação ativa e para o compartilhamento e
aprimoramento de conhecimento entre profissionais de referência e apoiadores.
Mediante encontros recorrentes discutem-se casos ou problemas de saúde
selecionados pela equipe de referência e procura-se elaborar projetos
terapêuticos integrados e acordar linhas de intervenção para os vários
profissionais envolvidos(15).
Entre as equipes de referência e matricial se produz um espaço de interseção no
qual ocorre o inusitado encontro de saberes, práticas, e afetos, que neste
processo produzem algo em comum: o cuidado. Consoante se evidencia, entre as
equipes é preciso haver mais do que um encontro no qual se realiza troca de
tecnologias de intervenção; entre elas deve se construir, também, identidades,
no sentido atribuído ao cuidado, na forma com que significam o usuário e seu
sofrimento. Esta dimensão, sensível, de percepção da produção do cuidado, é
capaz de tornar o processo de trabalho mais eficaz quer para o usuário, quer
para o próprio trabalhador da saúde, que se sente potente à medida que os
efeitos da sua prática são verificados como resolutivos.
Como se percebe, as interações entre as duas equipes - equipe de apoio
matricial e equipe de referência - favorecem a mudança de posicionamentos na
forma de abordar e acolher o sofrimento do outro, ancorando-se no olhar
psicossocial estimulado pelos trabalhadores da saúde mental, os quais propõem
ampliar a discussão/reflexão, com ênfase nos aspectos da subjetividade. Dessa
maneira, rompem com a lógica restrita do binômio queixa/conduta. De modo
enfático, revela-se: o medicamento corresponde a mais um item do projeto
terapêutico, mas não é o mais importante.
Em corroboração a essa ideia, o apoio matricial modifica o foco da orientação
da assistência, que se desloca progressivamente dos serviços e seus cardápios
de programas e ofertas, para se dar a partir das necessidades dos sujeitos, das
famílias, do território e da rede de relações que nele acontecem(12).
A cortina se abre: passou, mas a dor ficou!
Em continuidade à descrição do seu caso, a usuária, agora mais à vontade com a
equipe, a denotar o início do vínculo, relata um episódio possivelmente
potencializador de suas crises.
Vou chegar numa coisa agora [...] a minha filha quando eu tive,
naquele tempo era no interior, um lugar pequeno, e aí a pessoa perder
a virgindade e engravidar na adolescência naquela época era um
absurdo. Hoje as coisas vão mudando e tá mais fácil [...]. Então
assim meu pai, que era um homem ignorante, violento e ele não aceitou
e me obrigou a doar a minha filha e isso foi uma coisa que me chocou
muito [...], um trauma que eu passei dezesseis anos para poder pensar
em ter o segundo filho. E essa filha eu não criei [...], porque ele
me obrigou a dar e isso é um trauma muito grande. Eu não sei se
perdoei [...] mas assim era meu pai. Passou, mas a dor ficou! Ficou a
cicatriz! Não sei nem como eu consegui viver depois disso.
De acordo com o observado, o fato produziu o efeito, na usuária, fixando-a em
um território existencial no qual ela aparece como "mãe-abandônica", "filha-
transgressora". Isto gerou nela mesma uma subjetividade na qual há intensa
despontencialização da vida, uma reduzida potência vital, ocorrendo, pois, uma
produção de si, centrada na sua própria mortificação, representada pela dor e
sofrimento subsequentes. É assim que parece acontecer, tomando por referência a
ideia segundo a qual os encontros que causam tristeza reduzem a capacidade de
agir no mundo(16), e, no caso, o encontro da mãe com a ordem paterna, com o
abandono, com a perda, reduziu por completo sua capacidade de agir. Portanto,
resultou em produção de morte em si mesmo, manifestada pelo intenso sofrimento.
Conforme mencionado, o vínculo, tal como outros fatores, deve ser o centro da
atividade assistencial. O vínculo é uma ferramenta que agencia as trocas de
saberes entre o técnico e o popular, o científico e o empírico, o objetivo e o
subjetivo, a razão e os afetos, convergindo-os para a realização de atos
terapêuticos conformados a partir das sutilezas de cada coletivo e de cada
indivíduo. Ele favorece outros sentidos para a integralidade da atenção à saúde
(17). O trabalho em saúde deve ser permeado pelos encontros diversos e pelas
múltiplas visões na relação entre o trabalhador e o usuário. Por outro lado, a
relação terapêutica também é constituída pela dor, sofrimento, vivências e
percepções de vida em que os saberes e práticas no campo da saúde mental
precisam estabelecer mecanismos para tornar evidente os elementos
assistenciais, subjetivos e sociais(18).
A privação ou a ausência da relação afetiva/vínculo mãe-filho observada no caso
clínico citado, é decisiva para a saúde mental desses indivíduos(19). Ademais,
várias formas de neuroses e desordens de caráter, sobretudo psicopatias, podem
ser atribuídas seja à privação do cuidado materno, seja à descontinuidade na
relação da criança com uma figura materna durante os primeiros anos de vida.
Desfecho: construção coletiva do projeto terapêutico
Ao serem esclarecidas as dúvidas e explorado todo o contexto, solicitou-se à
usuária esperar em outra sala, enquanto as equipes promoviam uma nova
discussão/reflexão do caso.
Assim, a usuária aguarda a discussão da equipe e ao fim de alguns minutos
retorna à sala e tem a oportunidade de decidir e pactuar com a equipe o seu
projeto terapêutico, o qual vai se desenhando em forma de esboço, receptivo a
possibilidades e interações de diferentes saberes.
Durante a exposição de um caso clínico no matriciamento, nota-se que os
participantes colocam-se no lugar do outro, oferecem-se como parceiros, dão
sugestões de conduta baseadas em sua experiência profissional e pessoal(20).
Assim, constrói-se um saber novo e híbrido, composto de diversas visões e
experiências. Sabe-se que cada situação tem suas particularidades e não há uma
receita a ser seguida na construção do projeto terapêutico. Entretanto, ao
longo do trabalho, observa-se claramente a amplitude de conhecimento que cada
participante da equipe adquire.
Compreende, portanto, que o projeto terapêutico trata de uma discussão
prospectiva de caso, em que, depois de uma avaliação de risco e de
vulnerabilidade compartilhada, são acordados procedimentos de cuidado a cargo
de diversos membros da equipe, no qual o grupo incorpora a noção
interdisciplinar e recolhe a contribuição das várias especialidades e de
distintas profissões(15).
Desse modo, o projeto terapêutico é elaborado com base nas necessidades de
saúde de cada usuário, não excluindo suas opiniões, seus sonhos, seu projeto de
vida. Esse projeto é algo singular, uma interação democrática e horizontal
entre trabalhador/usuário/família. Por isso, pode seguir vários caminhos.
No diálogo sobre a construção do projeto terapêutico, a equipe compartilhou com
a usuária todas as possibilidades e etapas desse projeto, com vistas a elaborá-
lo de maneira conjunta, pois desde o início a equipe tentou estimular o
protagonismo da usuária. Nesse contexto, sugeriu diferentes possibilidades de
atos em saúde que poderiam compor a planificação do projeto terapêutico, tais
como a psicoterapia individual, em que a argumentação e a explicação de tal
atividade se baseou na ideia de facultar a ressignificação dos sentimentos
ainda emergentes geradores de sofrimentos.
O matriciamento se configura como um elo entre a atenção primária e os CAPS,
tendo em sua essência o compartilhamento de experiências e de saberes, a
corresponsabilização dos casos, buscando oferecer múltiplos caminhos para a
efetivação do projeto terapêutico(8). Assim, o usuário poderá optar pelo
percurso que considerar mais viável.
Ressalta-se, porém que é preciso que toda a equipe considere o projeto
terapêutico do usuário como algo flexível. Nessa ótica, ele deve ser reavaliado
periodicamente, porquanto as necessidades do sujeito se modificam, sendo sempre
dinâmico.
Nesse prisma, a partir das pactuações e articulações entre profissionais surgiu
à proposta da psicoterapia individual como forma de ensejar a discussão/
reflexão dos sentimentos da usuária no tocante ao seu sofrimento, bem como os
valores e desejos por ela manifestados em relação ao plano de cuidados
inicialmente proposto. Contudo, a usuária se mostrou resistente à indicação da
psicoterapia. Outro ponto relevante coloca em evidência a questão da
corresponsabilização da usuária no tratamento, pois esta se mostrou receptiva,
principalmente, à ideia farmacológica. Com isso, a irredutibilidade da usuária
em relação às outras formas de cuidado ocasionou desconforto por parte da
equipe em propor outras opções de tratamento.
A equipe começa a se perguntar "se a usuária possuía potência naquele momento
para decidir sobre qual a melhor estratégia de cuidado a seguir"; ou "se ela
apresentava potencial de gestão para conduzir e tomar decisão sozinha".
Contudo, fica claro que a equipe precisaria propiciar outros momentos de escuta
qualificada para a referida usuária, e nestes momentos verificar o melhor
projeto terapêutico. Poderia, então, no campo das tecnologias leves, abrir o
leque de alternativas para além da própria psicoterapia, e negociar com a
usuária dispositivos terapêuticos adicionais à medicação, até a sua redução e
extinção. Mas para isto a própria equipe deve ampliar suas opções de cuidado no
intuito de proporcionar à usuária um rol de possibilidades, operando, portanto
mais sintonizada com a clínica dos afetos, a qual procura enfatizar o lado
sensível, a possibilidade de proporcionar bons encontros, afecções capazes de
recuperar a alegria, retomando Espinosa, para que a usuária produza em si mesma
uma nova e revigorada potência de agir no mundo(16).
Como observado, as equipes dos CAPS têm se mostrado bastante ativas e
preocupadas em estabelecer o matriciamento de forma real nas unidades de saúde,
e, apesar dos constantes desafios, vêm buscando alargar as oportunidades de se
realizar a clínica ampliada e integração dialógica entre distintas
especialidades e profissões. Cabe-lhes o desafio de transformar a reorganização
do processo de trabalho em saúde das equipes a partir do dispositivo do Apoio
Matricial e da reflexão sobre a prática em saúde.
Nesta perspectiva, a mobilização de componentes afetivos contribui para a
determinação das atitudes profissionais, onde desenvolvem a empatia e a
compreensão do paciente como um ser humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O apoio matricial faculta o encontro com o outro e com o campo saúde mental
rico em possibilidades, porquanto questões antes não percebidas pelos
profissionais, motivadas por receio e estigma de enxergar a demanda de saúde
mental na atenção básica, tornam-se mais uma necessidade de saúde que é
encarada com um novo olhar pela equipe. Desse modo, evitam-se os
encaminhamentos desnecessários e o usuário passa a ter um vínculo maior com a
equipe, o qual favorece sua autonomia e seu modo de andar na vida.
No caso analisado, o vínculo propicia o discurso de uma experiência de
abandono, fixação em um território existencial em que suas identidades são
marcadas por personagens vinculadas a esta questão. Esta situação gera na
usuária uma intensa e crônica vivência de sofrimento, "Passou, mas a dor
ficou!". Inegavelmente, o cuidado em saúde desenvolvido pela articulação entre
as equipes aponta para uma tentativa de reelaborar esse modo de andar na vida.
Evidencia-se, contudo, a necessidade de ampliar a oferta de terapêuticas para
melhor vinculação da usuária e/ou alargar o tempo de escuta e diálogo com ela
com vistas à maior resolubilidade. Isto, porém, pode ser insuficiente, pois as
atividades terapêuticas precisam operar uma desterritorialização do lugar onde
a usuária se encontra, da "mãe-abandônica" e "filha-transgressora", para outra
expressão de si mesma. Para tal, urge formar um novo território existencial, o
qual deve se constituir em substituição ao atual, o que ressignificaria a
usuária para ela mesma. Conforme se percebe, entretanto, a equipe não detém
tecnologias de cuidado para operar um projeto terapêutico com esta
radicalidade, mas busca um caminho nesta direção, o de ampliar a escuta, pois
desta atitude podem surgir novas e inovadoras possibilidades.
O dispositivo equipe matricial pode contribuir fundamentalmente para a
constituição da outras ferramentas da equipe, para o cuidado em saúde mental.
Ele tem potência para problematizar as práticas, agregar novos dispositivos,
sinalizar os caminhos para a construção de outro modelo de assistência à saúde
que esteja articulado e sinérgico com os princípios e diretrizes do SUS e,
sobretudo processos de cuidado baseados em múltiplos dispositivos. Para tanto,
faz-se imprescindível a organização dos processos de trabalho em função da
produção do cuidado como finalidade do trabalho em saúde, que investe nas
tecnologias leves, na clínica dos afetos, e na corresponsabilização como forma
de estimular o compromisso de trabalhadores, usuários e familiares com a
produção da saúde.