Tecnologia no cuidado de enfermagem: uma análise a partir do marco conceitual
da Enfermagem Fundamental
INTRODUÇÃO
A discussão acerca das tecnologias no âmbito da saúde ganha amplas conotações
na atualidade, perpassando tanto um nível teórico, sobretudo do ponto de vista
conceitual, quanto aos impactos da incorporação de tecnologias na prática dos
serviços de saúde.
Como parte deste processo, a enfermagem vem investindo na produção de
conhecimentos que contribuam para uma melhor compreensão desta temática,
abarcando os múltiplos entendimentos das tecnologias na área da saúde.
Destacam-se tanto os estudos sobre as estratégias para controlar o processo de
trabalho, e acerca da estruturação de material didático-pedagógico para os
clientes, as chamadas tecnologias de processo, quanto os que buscam elementos
para a criação de artefatos e inventos - as tecnologias de produto.
Outro objeto de preocupação da profissão situa-se na interface da ideia de
tecnologia associada aos equipamentos médicos com o cuidado de enfermagem.
Neste sentido, observam-se esforços na problematização do saber necessário para
manejar tais maquinários articulados à assistência, e também uma enorme arena
de debates se delineia em torno dos modos de agir do enfermeiro junto ao
cliente em uso de aparelhagens, com foco na humanização do cuidado.
Tais aspectos se configuram como grandes desafios aos enfermeiros, na tentativa
de manter o equilíbrio entre a dimensão objetiva e subjetiva do cuidado de
enfermagem mediado pela tecnologia. A dimensão objetiva abarca a aplicação de
saberes estruturados e diz respeito à manipulação das máquinas e interpretação
das informações oriundas dessas de tal forma a direcionar as ações, enquanto a
subjetiva ganha força a partir de toda a expressividade do cuidar.
Nesta perspectiva, evidencia-se que um número significativo dos estudos
veiculados na literatura da enfermagem brasileira aponta existir uma estreita
inter-relação deste tipo de tecnologia com a ideia de desumanização,
principalmente quando se referem ao ambiente das Unidades ou Centros de Terapia
Intensiva (UTI/CTI). O distanciamento entre tecnologia e humanização pauta-se
em argumentos que colocam o desenvolvimento tecnológico sobreposto à dimensão
humana do cuidar. Dessa forma, nesse ambiente, as atenções se voltariam para a
tecnologia, priorizando o funcionamento do aparelho em detrimento do ser humano
(1).
Ao encontro desta afirmação estão as sinalizações feitas por pesquisadores de
que a UTI tem características peculiares, tais como a presença constante de
situações de risco e a ênfase no conhecimento técnico-científico e na
tecnologia para o atendimento biológico, com vistas a manter o ser humano vivo.
Assim, o cuidado se processa num ambiente onde predomina o maquinário, marcado
pelo desconforto, impessoalidade, e dependência da tecnologia. Os aspectos
relacionais do cuidado seriam coadjuvantes da tecnologia e do tecnicismo - os
protagonistas(2).
Portanto, não raramente, associa-se a ideia de impessoalidade, insensibilidade,
automatização e mecanização ao entendimento de desumanização nas UTI(3).
Curiosamente, em que pese o fato das tecnologias terem sido criadas
inicialmente para a terapia intensiva (TI), a relação do homem é vista como
desumanizante mais intensamente nestas unidades(4). Contudo, considera-se que
esta caracterização a priori da relação da tecnologia versus assistência de
enfermagem que se realiza neste cenário conduz a análises que por vezes
polarizam a dimensão das práticas de cuidar na TI e geram uma visão apenas
panorâmica do contexto de discussão, de maneira que pouco contribui para o
aperfeiçoamento do cuidado prestado nesta área de conhecimento especializado.
Desta maneira, ao se pensar nestas tecnologias a partir do marco conceitual da
Enfermagem Fundamental, lançam-se novas possibilidades de olhar esta questão.
Então, sob esta ótica, levanta-se o pressuposto de que as tecnologias
constituem um recurso que possibilita a prestação dos cuidados básicos de
enfermagem, e que à luz dos conceitos que sustentam a Enfermagem Fundamental se
aproximam, em si e por si, da ideia de humanização, no sentido de atender às
necessidades do cliente, numa perspectiva integradora e de qualidade.
A Enfermagem Fundamental expressa a origem ou começo de tudo no plano da
enfermagem como totalidade. O termo fundamental parte da compreensão daquilo
que é a essência de uma coisa, do que lhe dá coerência e consistência. A
Enfermagem Fundamental refere-se aos elementos considerados básicos às ações
profissionais de assistir pessoas, nas situações mais gerais que interessam à
saúde e à enfermidade(5). O conceito está ligado à noção do que sejam os
conhecimentos mais gerais e mais simples da Enfermagem, e que lhe empresta, por
adição e nunca por substituição, características específicas. Logo, a prestação
dos cuidados básicos é a "pedra de toque da Enfermagem Fundamental"(5). Porém,
no caso do cliente que se encontra em estado grave existe uma máquina que
intermedeia este cuidado que a enfermeiro lhe presta.
Na defesa de que tais tecnologias possibilitam um cuidado integrador, ético e
de qualidade, ao contrário de uma noção primeira de desumanização, este artigo
objetiva discutir a aplicação de tecnologias no cuidado de enfermagem orientado
pela seguinte questão: de que maneira os elementos que integram o marco
teórico-conceitual da Enfermagem Fundamental se apresentam nas práticas de
cuidar dos enfermeiros da TI na interface com a tecnologia?
Verifica-se nos estudos, que a abordagem desta temática se delineia em torno de
duas linhas de argumentação: uma que se constrói ancorada no fato de o
enfermeiro concentrar muito mais suas atenções nas situações críticas que
requerem tecnologias para cuidar, as quais podem dificultar o controle de
outras situações e expor os clientes a condições vistas como desumanas; e outra
que se ampara na consideração de que dar atenção às máquinas não é
necessariamente uma ação mecanicista, mas, ao contrário, cuidar de um cliente
dependente da máquina é uma ação humana, ainda que se tenha que pensar nessa
máquina e no sentido que ela tem(4). Desta feita, a proposta em tela fornece
subsídios para ampliar o prisma de análise desta discussão, sendo então
relevante na compreensão dos modos como os enfermeiros cuidam dos clientes em
ambientes tecnológicos, e contribuindo para o aprofundamento da prática
assistencial neste campo e dos estudos sobre os Cuidados Fundamentais e
Tecnologias de Enfermagem.
METODOLOGIA
Pesquisa de campo, do tipo descritivo, qualitativo e etnográfico. Os princípios
da etnografia aplicam-se para se retratar o cotidiano prático dos enfermeiros
intensivistas no cuidado ao cliente - o que fazem, dizem e pensam, no intento
de se conhecer suas linhas de ação. Neste sentido, captar como agem os
enfermeiros em relação às práticas de cuidado frente ao cliente na TI, ganha
mais fundamento a partir da imersão do pesquisador neste contexto cultural,
partilhando da vida cotidiana na tentativa de apreender as normas, valores,
percepções, as lógicas e os significados socioculturais de suas práticas.
O campo foi um CTI de uma instituição pública do município do Rio de Janeiro, e
os sujeitos foram 22 enfermeiros que atenderam aos seguintes critérios de
inclusão: atuar no CTI, diretamente na assistência ao cliente, estar em
atividade durante o período destinado ao estudo e aceitar participar da
pesquisa. Enfermeiros com atuação exclusiva em atividades de gerenciamento do
cuidado ou chefias de serviço e aqueles que estivessem ausentes do trabalho por
férias, licença ou quaisquer outros motivos foram excluídos do estudo. As
técnicas de produção de dados foram a observação e a entrevista, com análise
etnográfica, visando descrever, traduzir, explicar e interpretar as relações
sociais de maneira densa, delineando os sentidos da realidade para os agentes
implicados nela. Os dados da observação foram registrados em um diário de
campo, e no total, foram contabilizadas 150 horas de observação, acompanhada de
registros orais das entrevistas, apoiando-se em um roteiro baseado em questões
previamente identificadas na observação. A análise foi organizada através da
apresentação dos dados de observação e entrevista que retratam a prática de
cuidados na TI, de tal maneira que permitiram a discussão em torno da
Enfermagem Fundamental na interface com a utilização das tecnologias.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do hospital lócus do estudo, sendo
registrada sob o número 35/10. Os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, mantendo-se o anonimato através da identificação numérica,
com base na sequência em que se organizou a observação. A coleta de dados
ocorreu de novembro de 2010 a maio de 2011.
REVISÃO DE LITERATURA
Tecnologia em saúde: do conceito às repercussões no cuidado de enfermagem
A origem do conceito de tecnologia está bem próxima do de técnica(6). Técnica
(techné) é um termo grego que significa ordem de produção, pressupõe um
engendramento, uma criação de modos de fazer, engenho e arte. Refere-se a um
saber-fazer, que é ao mesmo tempo um saber e um fazer(7). Quanto ao fazer, a
técnica é tomada na qualidade de engenho humano: faculdade da arte, de criação
daquilo que ela própria não o faz (a natureza). O saber está ligado à obra
criada(7).
O desenvolvimento do saber científico levou à mudança do sentido da palavra
técnica. Como intervenção manual fundamentada em um saber complexo e produzida
para o mundo prático, ganha um estatuto de verdade na ciência moderna,
abandonando a concepção de uma intervenção que envolve um saber imediato e
prático(6).O fazer gera produtos, é um trabalho. O produto "é uma obra exterior
ao agente, ainda que intelectualmente maquinada"(7).
A partir dos séculos XV e XVI se origina uma compreensão de ciência não como
verdade desinteressada, mas como um conhecimento produzido para o atendimento
das coisas necessárias à vida. Isto, por sua vez, impulsiona no século XIX a
concepção do trabalho como fundamental para a vida econômica e social. Neste
ínterim, os saberes técnicos são incorporados como conhecimento erudito, ao
tempo em que a ciência, no século XVIII e XIX separa e rejeita o saber prático.
O trabalhador manual da indústria é, então, um agente de trabalho sem saber
(útil).
A ciência revestiu-se deste caráter técnico, de noção científico-tecnológica,
sendo mais valorizada à medida que represente uma razão tecnológica orientando
a produção de conhecimento. Na segunda metade do século XX, com o rápido
surgimento de equipamentos, a técnica reveste-se de ciência e expulsa saberes
de outro tipo. Assim, a estreita ligação entre ciência e técnica deixa de lado
os saberes práticos, ou artes que se diferenciam da técnica científica moderna
(8).
No campo da saúde, o movimento de reorientação e nova qualificação da técnica
resulta no trabalho do médico moderno; isto é, no âmbito do trabalho manual, a
sua interligação com a técnica conduz a uma transformação do ofício, agora
visto como arte de curar. Nesta perspectiva, os médicos conferem um novo
significado para o uso dos equipamentos, muitos deles oriundos e reaproveitados
das artes de cura gregas e medievais, enquanto outros são criados no século XIX
(6).
Na segunda metade do século XX evidencia-se um movimento grande de criação e
incorporação de equipamentos e medicamentos, a chamada tecnologia em saúde,
mais especificamente, a 'tecnologia de curar'. Portanto, esta tecnologia se
confunde com a tecnologia da medicina, sobretudo pela possibilidade de
intervir, passando a ser vista como um bem em si mesmo, corporificado em
equipamentos, que se tornam referência da noção de tecnologia(6).
No Brasil, a partir da década de 30 em virtude do processo de industrialização,
é que a tecnologia no setor saúde ganha vulto. Isto porque os países
industrializados começaram a difundir sua cultura, refletindo-se principalmente
no que tange ao ensino médico e infraestrutura. Nos anos 50, ocorre a
industrialização da medicina, culminando na especialização e tecnificação do
ato médico. Já na década de 60, predomina o discurso da racionalidade, no
intento de expandir a assistência curativa hospitalar(6). Como resultado deste
processo histórico, na década de 70 o setor saúde é reconhecido como um novo
ramo industrial em relação a equipamentos e fármacos, gerando a entrada de
capital no país(6), e as UTI são os locais que mais retratam esta ideia das
tecnologias.
Atualmente, as UTI têm grande repercussão nas instituições hospitalares em
virtude da evolução técnico-científica dos últimos anos. Ao se refletir sobre
as influências da tecnologia no cuidado de enfermagem que lá se processa,
destaca-se a importância de que se assista e se cuide também da máquina, com o
propósito final de manter a vida dos clientes. Este cuidado envolve
conhecimentos técnicos e racionais, que possibilitem fundamentar as ações
perante as tecnologias(4).
A Enfermagem, ao acompanhar o avanço tecnológico, necessitou aprender a
trabalhar com muito mais aparelhos. Contudo, atividades realizadas por
máquinas, a exemplo do controle preciso do número de gotas, não dispensa a
presença do ser humano, capaz de detectar através de sua sensibilidade e
perícia técnica, que algo não está bem com o cliente ou com o maquinário.
Portanto, no uso das máquinas para cuidar é fundamental o cuidado dirigido
também a elas(3).
A UTI é um setor em que as atividades de enfermagem estão sucessivamente sendo
alteradas e suplantadas. O conhecimento aceito hoje como válido é colocado em
segunda instância, quando um novo conhecimento é validado(9). A enfermagem, com
a ajuda das aparelhagens tem conseguido traduzir o invisível do corpo do
paciente em informações, que conseguem direcionar o cuidado prestado a eles.
Para que esta tradução não tenha erros, o corpo da enfermeira precisa interagir
com a máquina, sendo fundamental múltiplas aprendizagens(9).
Contudo, apesar destes requisitos, o foco de atenção não pode ser somente a
máquina, relegando o cliente a segundo plano. A utilização de aparatos
tecnológicos que facilitam a assistência ao cliente crítico e que requerem
vários cuidados, os quais exigem atenção e zelo dos profissionais para garantir
a fidedignidade dos dados, não deve invalidar uma compreensão acerca dos
cuidados de enfermagem, considerando o uso de tecnologias como uma ação humana
(4).
Assim, mesmo em um setor repleto de tecnologias deve haver expressões de
cuidado humano, centrando o processo de tomada de decisões nas condições
fisiológicas e psicológicas do paciente(2). Conclui-se que a tecnologia impacta
no cuidado de enfermagem, na medida em que demanda conhecimento e sua aplicação
prática no domínio das máquinas, ao mesmo tempo em que suscita considerações em
relação aos elementos do cuidado humano.
Enfermagem Fundamental: algumas considerações epistemológicas
A Enfermagem Fundamental pode ser entendida como o conjunto de ideias e
proposições mais gerais e mais simples, do qual se origina a totalidade dos
conhecimentos da enfermagem. Tal noção de conhecimentos mais gerais diz
respeito àqueles que são comuns a todas as possíveis classificações teóricas ou
práticas que a enfermagem possa assumir, ao passo que os mais simples referem-
se aos que mantêm uma simplicidade original, não tendo sido acrescido novos
elementos, a exemplo das conversas espontâneas com os clientes(5).
Neste sentido, a Enfermagem Fundamental se constitui num dos pilares de
sustentação da prática, abrangendo o referencial ético-filosófico e histórico
da profissão. A realização dos cuidados básicos envolve assim princípios
(científicos, éticos), conceitos (os metaparadigmas - saúde, ser humano,
ambiente e enfermagem) e teorias que norteiam as ações da profissão.
O ser humano, visto como totalidade individual, singular, possui qualidades e
potencialidades física, intelectual, emocional, social e espiritual, dotado de
intuição, criatividade, sensibilidade. Ambiente e saúde se inter-relacionam de
modo a se afetarem mutuamente. A saúde é percebida como um bem-estar físico,
mental e social, na qual existe um equilíbrio no organismo, e a doença, como um
desequilíbrio que ameaça a qualidade de vida e a segurança. O processo saúde-
doença deriva da relação do sujeito com o ambiente. A Enfermagem requer
conhecimento formal e científico, intuição, criatividade e sensibilidade para o
indivíduo atingir nível ótimo de saúde(10).
Afirma-se que a Enfermagem Fundamental faz parte de uma totalidade complexa, a
Enfermagem, configurando-se componente essencial desta, não tendo, pois, campo
específico de atuação, permeando-a na sua inteireza, já que a prestação de
cuidados básicos se faz a qualquer clientela, cenário, em situações de menor a
maior complexidade, nas quais se acrescentam conhecimentos específicos de uma
área especial da enfermagem(5).
Então, a Enfermagem Fundamental corresponde ao "escopo primeiro da arte da
enfermeira"(5). Arte de cuidar que implica no estabelecimento de interação
entre os sujeitos e que envolve uma ação técnica, baseada no saber profissional
e conhecimentos específicos, e sensível que compreende os sentidos humanos, a
subjetividade, a intuição(11).
A partir do exposto, entende-se o conceito de cuidado como essência do que seja
fundamental na enfermagem. Este vem sendo definido por estudiosos como um
processo, no qual atitudes e comportamentos são desenvolvidos, fundamentados
num conhecimento científico, técnico, pessoal, cultural, econômico, político e
psicoespiritual em vistas à promoção, manutenção e recuperação da saúde e da
dignidade humana(12).
No marco teórico da Enfermagem Fundamental reside a ideia dos fundamentos do
cuidar, ou seja, os elementos básicos às ações de cuidar indispensáveis em
qualquer campo de atuação. Nesta perspectiva, alguns instrumentos foram
destacados, definidos como os conhecimentos e habilidades primordiais para a
prática profissional(13). Dentre tais instrumentos, a observação é de suma
importância à prática de enfermagem, suscitando habilidades e perícia por quem
observa. Requer a utilização dos sentidos para a observação dos clientes, seus
comportamentos, aparência, sinais físicos, além do ambiente. É mediada pelos
valores, visão de mundo, experiências, expectativas e emoções(13). Já a
comunicação deve estar embasada na empatia entre as pessoas, percebendo o outro
como sujeito partícipe do processo de comunicação, respeitando-se seu saber. A
comunicação é condição sine qua non para uma relação efetiva no encontro entre
os sujeitos no cuidado(11).
A ideia dos cuidados fundamentais, aqueles que traduzem a verdadeira essência
da enfermagem e visam preservar a vida, promover conforto e bem-estar ao ser
humano colocam em evidência os cuidados necessários e os desejados pelos
clientes. Os cuidados fundamentais consideram que as dimensões biológica,
social e emocional estão imbricadas, não devendo o cuidado somente curar ou
reabilitar, mas resgatar no cliente sua subjetividade(14).
RESULTADOS
Dentre os elementos que integram os fundamentos do cuidar e que se fazem
presente no cotidiano do cuidar da enfermagem na terapia intensiva estão a
observação e o planejamento. Tais aspectos ganham destaque nos registros do
diário de campo. Isso porque verifica-se que o enfermeiro no seu dia-a-dia
neste setor experiencia uma variedade de acontecimentos, fatos e episódios, os
quais manifestam a dinâmica, bem como a organização do cuidado que ele
estabelece para dar conta das necessidades do cliente captadas com base na
observação e intermediadas pelo arsenal tecnológico empregado, conforme se
visualiza no trecho em seguida.
Nesta intercorrência a enfermeira 11 está no posto de enfermagem, enquanto no
boxe de número 10 duas técnicas de enfermagem realizam o banho no leito do
cliente. A enfermeira volta-se aos técnicos e questiona:_o que está acontecendo
aí que não para de alarmar? Rapidamente ouve-se uma explicação:_é que ele está
fazendo esforço, tossindo. A enfermeira 11 após obter essa informação permanece
no posto. A enfermeira 13 passa próximo a este leito e, intrigada, interroga:
_porque está alarmando? A técnica repete: _ele não está bem sedado! A
enfermeira 13 complementa:_acho que ele está mordendo o tubo, vamos colocar uma
cânula de Guedel [sai em direção ao armário de materiais]. Ao retornar com o
dispositivo ela diz: _mas ele está com esforço respiratório. Imediatamente se
aproxima do cliente, pega o estetoscópio e realiza a ausculta respiratória. No
fim chega ao diagnóstico da situação: _mas ele está com sibilos expiratórios,
ele tem alguma nebulização prescrita? (trechos de diário de campo, enf. 13 e
11).
Uma experiência semelhante acontece com a enfermeira 18, que ao suspeitar de
uma deterioração no estado clínico da cliente do leito 5 rapidamente se
mobiliza. Logo após chegar ao seu lado, constata que não há uma expansão
torácica adequada, comprovada ao monitor pela redução na saturação do oxigênio
de modo importante. A enfermeira chama a cliente pelo nome, a qual não
responde, em seguida olha para o monitor novamente, e ao analisar o quadro
apresentado, afirma acreditar que alguns daqueles dados não sejam fidedignos.
Em vista disso, decide desacoplar o circuito do respirador artificial da
cliente e iniciar uma ventilação manual através do uso do dispositivo Ambu.
Procede na sequência a ausculta pulmonar e conclui existirem secreções
pulmonares, optando então pelo procedimento de aspiração traqueal. O resultado
das medidas implementadas é visto por meio do retorno aos níveis hemodinâmicos
de normalidade pela doente, com estabilização dos valores relativos à
respiração e pressóricos. A enfermeira finaliza sugerindo a suspensão
temporária da dieta enteral e realização de gasometria arterial para
acompanhamento dos gases sanguíneos. (trecho de diário de campo, enf. 18).
Outro fundamento que se visualiza no âmbito da assistência de enfermagem na TI
é a comunicação. Este exercício da comunicação no fazer profissional da
enfermeira parece sofrer influências dos efeitos produzidos pelo emprego das
tecnologias na assistência. Os excertos de entrevista selecionados reafirmam
isso, na medida em que colocam em evidência que a aplicação de tecnologias, a
partir do seu "olhar" vigilante sobre o paciente se repercute sobre a prestação
dos cuidados básicos, como é o caso da comunicação, dando condições para que
ela aconteça.
(A tecnologia) consegue me dar informação sobre o paciente. Mesmo
estando com o paciente 1, 2 e 3, conheço os casos e vou ter que
selecionar a prioridade do meu cuidado entre eles. Atendendo o
paciente do leito 1, posso olhar para a tecnologia do 3 e ela vai me
dizer se devo parar o que estou fazendo, porque está acontecendo
alguma situação que não estava sendo esperada. Ela abre esse olhar,
para isso eu tenho que estar ligada. (Entrevista, enfermeira 11)
Eu utilizo como meu auxiliar, meu companheiro diário, porque ele que
vai me dar as informações específicas. E se eu estou vendo que está
normal, condiz com o paciente ele para mim é um amigo fidedigno, que
me dá as informações aonde eu possa estar trabalhando e não precise
estar em cima do paciente o tempo todo. (Entrevista, enfermeira 10)
É, um monitor digital e um aparelho de pressão são exemplos que você
pode poupar o teu tempo, e aquele tempo que você estaria se
deslocando para pegar um aparelho de pressão, verificar uma pressão,
você tem um monitor ali, multiparamétrico, que te dá esse resultado
de maneira muito mais imediata, você pode estar gastando esse tempo
com outra coisa, com uma assistência, uma atenção maior, uma conversa
com o paciente. (Entrevista, enfermeira 2)
Assim, diante destes dados e considerando a descrição clínica abaixo é possível
perceber que a enfermeira tem momentos em que consegue estar mais próxima do
cliente, vivenciando ao seu lado o processo de cuidado e permitindo que o
diálogo esteja na base deste encontro.
Tal história ilustrada é a de uma cliente acamada, do sexo feminino, vítima de
soterramento, lúcida e orientada, com fratura em membro inferior direito e
lesão com fasciotomia no membro esquerdo. Na cena verifica-se que existe uma
reunião médica em torno do leito desta cliente, discutindo-se acerca da conduta
terapêutica a ser implementada. A enfermeira 8 se aproxima da cliente, segura a
sua mão e começa a acariciá-la, permanecendo ao seu lado enquanto os demais
membros da equipe continuam conversando. Após alguns minutos a equipe médica
decide por uma intervenção cirúrgica, e a enfermeira resolve então promover
cuidados preparatórios de higiene. A cliente sentindo-se acolhida pela
enfermeira e com tom carinhoso se dirige a ela pelo nome:_será que teria
possibilidade de escovar os dentes? Durante todo período percebe-se preocupação
com a possível experiência de dor à manipulação física. A enfermeira 8 com ar
de consternação vira-se ao pesquisador e diz:_ela [a paciente] foi, abraçou a
filha e conseguiu permanecer por seis horas soterrada (....) no plantão passado
(....) nossa, quando cheguei em casa não consegui fazer mais nada, fiquei com
aquela história na minha cabeça.(trecho de diário de campo, enf. 8)
Quando comenta sobre o envolvimento com este tipo de situação dos clientes tal
enfermeira complementa durante a entrevista etnográfica:
Eu gosto de falar por mim, eu gosto de estabelecer uma relação além
do cuidado do curativo, do banho, do exame físico, da avaliação, da
evolução. Eu gosto de saber da vida do paciente, eu gosto de
perguntar, eu gosto de brincar, enfim, gosto de tentar conhecer esse
paciente um pouco melhor para tentar até influenciar no psicológico
desse paciente, tentar animar um pouco mais esse paciente. Sempre
tento ver, paciente está ali, tem uma série de coisas por trás, o
paciente está doente, está debilitado, em um lugar fechado onde não
vê se está dia ou noite, onde ele não vê a família, ele não tem o
contato, está com saudade do filho, está sentindo dor. Eu estabeleço
uma relação além de uma relação enfermeira-paciente, além do cuidado
da clínica, acabo me envolvendo com o paciente (...) saio daqui
muitas vezes com o paciente na cabeça, pensando, já cheguei a sonhar
com os pacientes, juro para você, e assim, eu tenho minha fé, faço
oração mesmo e lembro-me de cada paciente. (Entrevista, enfermeira 8)
DISCUSSÃO
A tecnologia na TI: contribuição ao debate sobre o cuidado de enfermagem
A tecnologia tem uma linguagem própria, com códigos específicos de manipulação,
que necessitam de ser decifrados para seu adequado uso. Além do que a emissão
de sons e a mudança de cores nos sinais emitidos pelas máquinas devem ser
interpretadas pelos usuários. Assim, a tecnologia se comunica através de uma
linguagem peculiar, que precisa ser compreendida pela equipe de tal modo a
aplicar tais informações no cuidado ao cliente(15).
Esta linguagem tecnológica nos leva a pensar sobre alguns aspectos inerentes à
enfermagem fundamental, na interface com o debate em torno da humanização. Ora,
se as aparelhagens incorporadas ao cuidado, a partir do seu correto manuseio,
comunicam informações aos enfermeiros sobre o estado clínico do cliente,
possibilitando que um conjunto de ações ou tomadas de decisão sejam
desencadeadas, isto implica em dizer que a tecnologia possibilita a observação
do cliente pelo enfermeiro, que, em articulação com os seus conhecimentos
específicos, viabilizam o planejamentoda assistência.
A observação é tida como um dos instrumentos à prestação de cuidados básicos de
enfermagem, assim como o planejamento e a organização da assistência devem
estar norteando a prática em todos os cenários de atuação. Logo, já que a
observação do cliente na busca de evidências e informações que possibilitem o
diagnóstico de enfermagem e o planejamento assistencial são conhecimentos mais
gerais da Enfermagem, independente de categorizações, afirma-se que a
tecnologia colabora para a realização deste cuidado fundamental. De outro modo,
já que o acompanhamento clínico do cliente, diagnosticando alterações e
realizando intervenções é condição para a restauração da saúde do sujeito,
contribuindo ao resgate de sua autonomia, pode-se dizer que a tecnologia
contribui para a humanização, pela preservação da dignidade humana.
Outro argumento que se coloca é que o enfermeiro quando domina as tecnologias
pode substanciar a sua avaliação clínica amparado em um segundo olhar,
semelhante ao de uma sentinela avançada, já que as tecnologias ampliam a
capacidade de alcance dos sentidos humanos, dando mais segurança nas tomadas de
decisão na assistência de clientes críticos(15).
O uso da tecnologia no cuidado facilita o trabalho da enfermeira, na medida em
que agiliza, traz maior precisão e rapidez nas ações, propicia um maior tempo
para a equipe de enfermagem se dedicar ao cuidado, melhorando a qualidade da
assistência(15). Uma vez que a tecnologia poupa tempo da enfermeira,
possibilita maior aproximação do cliente. Desta maneira, ao liberar a
enfermeira da execução de algumas atividades técnicas, pode permitir a
realização de cuidados fundamentais de enfermagem, em virtude da otimização do
tempo.
Portanto, a tecnologia dá meios para que o enfermeiro consiga se dedicar também
aos aspectos expressivos do cuidado, estabelecendo uma comunicação e interação
efetiva com o cliente. Assim, apesar de diversas publicações salientarem que as
enfermeiras estão voltadas para o atendimento das demandas do maquinário,
existem em contrapartida outras sinalizando que as necessidades psicossociais e
psicoespirituais também são atendidas por estas, principalmente quanto ao
caráter relacional do cuidado e apoio à família do cliente(1).
O uso da tecnologia no cuidado oportuniza que toda a expressividade seja capaz
de aflorar no encontro entre a enfermeira e o cliente. Dá margem ao exercício
da comunicação, interação e à criatividade da enfermeira. Entende-se que a
comunicação se conforma como fundamental a todo e qualquer cuidado, fazendo
emergir subjetividades e permitindo uma relação interpessoal eficaz. Sob este
ponto de vista, defende-se a concepção de que a tecnologia seja um instrumento
facilitador da comunicação, cuidado daqueles mais simples, ato humano.
Ao retornar a problemática inicial posta em evidência, situada na relação entre
tecnologia e humanização, retoma-se o questionamento se a suposta ameaça ao
humano em TI, justifica-se pelo uso de tecnologias duras para o cuidar em
enfermagem nessas unidades(4). Isto porque se observa uma mobilização
profissional, principalmente veiculada nos mecanismos de difusão acadêmica, no
sentido de transformar a assistência em ambientes de TI, perseguindo um ideal
de humanização.
Contudo, em vista dos resultados e apoiando-se em outros autores, acredita-se
que este discurso de humanização relacionado à tecnologia desvia o foco do
verdadeiro problema, que alguns estudiosos colocam como sendo o descuidado na
TI. Todavia, muitos o chamam de desumanização, culpabilizando as tecnologias.
Entende-se que a tecnologia utilizada na TI não pode ser vista como ameaçadora
da condição humana, até porque já há evidências de que o barulho constante e
comentários inoportunos são as situações mais próximas da ideia de
desumanização(3).
Ressaltam-se, entretanto, as investigações que apontam que os enfermeiros vêem
o cliente como uma extensão da máquina, nas quais as relações são frias e
distantes(16). Porém, considera-se que a desumanização, despersonalização ou
objetivação não seja produzida pela tecnologia em si, mas pelo modo como opera
em contextos específicos do usuário(17). Apesar de pautadas na objetividade e
racionalidade da ciência, não pressupõem necessariamente uma prática
fragmentada(18), que (des)subjetiva o sujeito e gera a perda da sua identidade.
A favor de uma posição epistemológica norteada por uma psicossociologia do
conhecimento, compreende-se que os sujeitos agem no seu cotidiano a partir dos
sentidos construídos em torno dos fenômenos tidos como relevantes para eles. Na
construção de tais sentidos os indivíduos mobilizam experiências prévias,
conhecimentos acumulados, valores, cultura, assim como se amparam nas ideias
compartilhadas pelo grupo a que pertencem.
Afirma-se, portanto, que a tecnologia aplicada no cuidado em saúde se constitui
objeto de conhecimento psicossocial, pois sua incorporação, pela complexidade e
demandas diferenciadas que traz no manejo do cliente, faz com que os
profissionais pensem, discutam e troquem experiências sobre o cuidado,
tornando-se assunto em voga no conteúdo dos seus debates cotidianos(19). Ao
considerar esta compreensão abre-se espaço para pensar os modos de cuidar dos
enfermeiros nestes cenários, mormente sobre a ideia de desumanização articulada
à tecnologia(19).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dado o exposto, torna-se importante repensar os modos pelos quais se analisa a
questão do uso de máquinas no cuidado de enfermagem. O domínio da linguagem
tecnológica conduz ao correto manejo das máquinas com efetiva aplicação dos
fundamentos do cuidado. Isto porque, se partimos do princípio que os cuidados
básicos envolvem a utilização de instrumentos como observação, mensuração,
comunicação, é mister considerar que no caso de um cliente crítico isto se dá
por intermédio de aparelhos que mantém a função dos órgãos e, ao mesmo tempo,
informam os enfermeiros sobre a clínica do cliente, orientando a adoção de
condutas para sua melhoria. Destarte, sob esta ótica, as tecnologias ajudam na
preservação da dignidade humana e no resgate da autonomia do indivíduo.
Admite-se, todavia, que o uso da tecnologia não deve inviabilizar a compreensão
das esferas objetiva e subjetiva do cuidado, já que é experimentado pelo
cliente como uma ação técnica e sensível. A ideia do desumano, comumente ligada
à tecnologia, ou seja, o fato do enfermeiro orientar sua ação somente pela
máquina, não existindo interlocução entre o olhar que se volta ao cliente e
aquele que se dirige a aparelhagem, pode ser explicado principalmente pelo modo
como ele significa as coisas afetas ao seu cotidiano, o qual irá fornecer a
linha condutora da sua ação. Logo, não é a tecnologia que desumaniza, mas a
ideia formada pelo sujeito sobre ela é que pode conduzir a uma perspectiva de
ação que pode vir a ameaçar a dignidade humana.
As estratégias que visem à melhoria do cuidado de enfermagem na TI devem
proporcionar informações/experiências que levem o sujeito a reinterpretar o
significado da tecnologia, isto é, implica em reorganizar alguns elementos que
estruturam o pensamento sobre ela. Por fim, reafirma-se o pressuposto de que as
tecnologias são recursos que ajudam a promover a vida, resgatar o humano
através de um cuidado holístico, ético, de qualidade, fortalecendo assim o
marco conceitual da Enfermagem Fundamental, tendo em vista sua base
paradigmática.