Significações de ser cuidadora do companheiro com câncer: um olhar existencial
INTRODUÇÃO
O aumento da expectativa de vida de um modo geral tem refletido em maior
incidência de doenças crônicas, o que contribui substancialmente à
intensificação do cuidado no ambiente domiciliar(1). Entre as doenças que
trazem maiores repercussões físicas e psicológicas, destaca-se o câncer. Doença
temida tanto pelo próprio doente como por seus familiares, acarretando um misto
de sentimentos e significados(2), que refletem na ressignificação existencial
daqueles que a vivenciam(3).
O papel da mulher diante do cuidado apresenta-se com notória significância,
visto que, além do cuidar exercido no lar e família, a mulher constitui-se como
referência principal do cuidado de pessoas enfermas com dependência(4). Nesse
mesmo contexto, destaca-se como a maioria entre os cuidadores de pacientes com
câncer(5), sendo ainda esposas dos doentes em grande parte dos casos(6).
Nesse vivenciar do câncer, as cuidadoras deparam-se com o sentimento de
tristeza, desespero, medo e desesperança, desencadeando-se até mesmo sintomas
depressivos(7). Acrescenta-se ainda a falta de preparo por parte das
cuidadoras, que vai além dos aspectos psicológicos, incluindo o conhecimento
insuficiente a respeito da doença, bem como de cuidar dos sintomas manifestos e
a dificuldade nas habilidades de comunicação(8), fatores influenciadores no
cuidar.
A importância dessas repercussões do cuidado nos contextos familiar e social é
reforçada na medida em que as próprias mulheres fazem referência a quanto suas
vidas mudaram após o envolvimento como cuidadoras dos companheiros(7). Assim, o
conhecimento das interações entre o paciente e seu cuidador familiar, neste
caso a companheira, constitui-se em uma necessidade para a equipe de enfermagem
a fim de que esta tenha condições para avaliar, planejar e intervir,
proporcionando ações que melhorem as condições de vida e fortaleçam as relações
de cuidado(2). Diante de tal realidade, surge a seguinte inquietação: Qual é a
significação atribuída pela mulher perante o cuidado do companheiro com câncer?
A partir de tal conjuntura, torna-se de fundamental importância aprofundar o
conhecimento a respeito dessa temática. Por meio da compreensão dos
significados atribuídos pela mulher cuidadora do companheiro com câncer, acerca
de sua função, pode ser factível um planejamento da assistência de enfermagem,
de modo a contribuir com o cuidado centrado nessas mulheres, que dedicam suas
vidas a favor do outro. Ademais, ao se amparar aquelas que exercem o cuidar, o
próprio doente que enfrenta o câncer será beneficiado. Mediante a importância
desse contexto, emergiu o interesse deste estudo, tendo como objetivo desvelar
as significações da mulher que vivencia ser cuidadora do companheiro com
câncer.
MÉTODO
Este estudo caracteriza-se como sendo de natureza fenomenológica existencial
heideggeriana. A partir dessa vertente fenomenológica, não se limita apenas à
busca do quê, mas, sim, o como do objeto de investigação, atentando-se para a
possibilidade de seus movimentos de velamento e/ou desvelamento(9).
Seguindo esse pensar, a região de inquérito, ou região ôntico-ontológica do
estudo, constituiu-se nas significações de mulheres ao cuidar de seu
companheiro com câncer. Portanto, como critérios de inclusão elegeram-se as
mulheres que cuidam do companheiro há pelo menos seis meses, possuindo este
grau de dependência menor ou igual a 40%, segundo a Palliative Performance
Scale(PPS)(10), considerando que, neste nível de dependência, há necessidade de
cuidados constantes, exigindo mais da companheira. Ainda, serem cadastrados em
uma instituição filantrópica que presta apoio a pacientes com câncer e suas
famílias, localizada no noroeste do Paraná. Como critério de exclusão: ser
cuidadora de paciente com câncer, mas não residir na cidade sede da instituição
ou em uma cidade metropolitana vizinha.
Esta instituição consiste em uma Organização Não Governamental (ONG) que provê
suporte aos pacientes com câncer e seus familiares. Atende pacientes que
residem na cidade da instituição, no noroeste do Paraná, cadastrados para
receber acompanhamento por meio de visitas de voluntários, grupo
socioeducativo, atendimento psicológico, cesta de alimentos, medicamentos não
fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), fraldas geriátricas, doação de
utensílios e móveis. Além disso, auxilia pacientes oriundos de outros
municípios pertencentes à 15a Regional de Saúde, por meio de hospedagem,
alimentação, transporte e demais recursos enquanto realizam tratamento na
cidade da ONG. Justifica-se a escolha pela facilidade de acesso às
participantes e também pela receptividade que dispensam a essa instituição, o
que as deixa mais confortáveis em participar do estudo.
Os momentos de interação com as participantes aconteceram entre o período de
dezembro de 2013 a fevereiro de 2014. Os primeiros contatos desenvolveram-se
por meio da busca no banco de cadastros da instituição filantrópica, seguidos
de modo aleatório, e do contato telefônico com as mulheres que atendiam aos
critérios pré-estabelecidos, uma vez que tal informação era disponibilizada
pelos dados do cadastro consultado. Após, foram agendadas visitas de
aproximação e convite para participarem do estudo. Os encontros subsequentes
com as participantes constituíram-se de duas a três visitas para cada mulher,
conforme a necessidade. Estas tiveram o objetivo de aumentar o vínculo,
conhecer as realidades vividas e realizar a apreensão do fenômeno.
Diante disso, para se desvelar as significações das mulheres que vivenciam o
fenômeno pesquisado, utilizou-se a seguinte questão norteadora: Como está
sendo, para você, ser cuidadora de seu companheiro com câncer? As entrevistas
foram realizadas individualmente, no lar das mulheres cuidadoras, por uma
entrevistadora, em ambiente reservado, sem a presença de outras pessoas,
minimizando assim algum desconforto por parte da depoente. Não houve recusas em
participar do estudo e todas as entrevistas foram registradas e armazenadas em
gravador digital para posterior análise.
O término da coleta de dados levou em consideração a suficiência de
significados, sendo este um fator determinante para o encerramento de novas
inclusões e coletas(9), ressaltando ainda que, na maioria das pesquisas de
cunho fenomenológico, verifica-se cerca de dez a 20 participantes(11).
Com o propósito de compreender as informações em sua plenitude, expressas pelas
participantes, observaram-se dois momentos metódicos: no primeiro, a
compreensão vaga e mediana, quando se eliminam os pressupostos, e, após escuta
e leitura atenta dos depoimentos, destacam-se seus significados, com posterior
momento de análise dos mesmos, buscando as estruturas essenciais que emergem e
possibilitam a compreensão do objeto do estudo; no segundo momento metódico, a
compreensão interpretativa, buscou-se desvelar o fenômeno, o sentido do ser,
culminando na hermenêutica heideggeriana(9). Por conseguinte, surgiram as
temáticas ontológicas, que foram interpretadas à luz de algumas ideias
heideggerianas e de autores que referenciam o filósofo, como também
pesquisadores que versam sobre a temática deste estudo.
Por se tratar de uma pesquisa que envolve seres humanos, foram obedecidos todos
os preceitos éticos e legais regulamentados pela resolução n° 466/2012 do CNS -
MS. Houve consentimento da instituição e aprovação do Comitê Permanente de
Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos - COPEP -, da Universidade Estadual
de Maringá. Para garantir o anonimato, as mulheres foram caracterizadas por
meio de nomes de personagens bíblicas, que se relacionam com algumas de suas
características e ressaltam a fé desvelada pelas mesmas em seu vivenciar do
cuidado.
RESULTADOS
Apresentaram-se, como resultados deste estudo, os discursos de dez mulheres que
vivenciam a experiência de ser cuidadora do companheiro com câncer. As
participantes possuem uma renda familiar insuficiente para suprir todas as
necessidades advindas com a doença, necessitando de auxílios, entre estes,
cesta básica, medicações e dieta, da instituição filantrópica que faz parte
deste estudo e na qual são cadastradas. Entre as cuidadoras, cinco eram
aposentadas, duas trabalhavam para auxiliar nas despesas do lar e três se
desvincularam do emprego para prestar os cuidados. Todas possuem filhos, porém
estes não são envolvidos diretamente com o cuidar, mas, sim, as próprias
companheiras do doente. Quanto ao tempo que se dedicam a cuidar do esposo, esse
varia entre seis meses a um ano e oito meses. A faixa etária de tais cuidadoras
varia entre 24 a 71 anos, sendo que seis possuem mais que 55 anos.
A compreensão das linguagens das esposas revelou a responsabilidade das mesmas
como cuidadora principal, a mudança na intimidade do casal e os sentimentos os
quais precisam enfrentar no cotidiano dos cuidados, apresentados sob três
temáticas ontológicas, como seguem.
Assumindo a responsabilidade de estar-com-o-outro no câncer
Ante a condição de ser esposa, a mulher acaba sendo a cuidadora principal e
responsável, quase que exclusivamente, por acompanhar toda a trajetória de
enfrentamento da doença de seu companheiro, como demonstrado nas falas a
seguir:
[...] Pois quem mais ajudou fui eu. Por que ele tem os filhos dele,
mas mora lá, separado. De vez em quando que vem só. Mas quem está
convivendo tudo aqui junto sou eu. Bem dizer sou eu[...] sempre
acompanhei direto. (Isabel)
[...] Tinha um conhecido nosso que estava no quarto com a perna
quebrada e eu dizia: eu vou em casa, você pode dar uma olhadinha no
meu esposo? Deixava o celular do lado, e qualquer coisa ele me
ligava. Eu vinha posava em casa, quando dava seis horas da manhã eu
voltava, e ficava o dia todo lá. A irmã dele, ficou duas vezes só. O
resto era eu. Não ficou ninguém não. Eu ficava muito cansada, mas não
tinha o que fazer. (Sara)
[... ] Minha filha me ajudou no hospital. Mas o resto foi tudo eu. Em
casa sou eu. Eu que levo no médico, saio para comprar remédio,
procuro fazer a alimentação melhor para ele. [...]Cheguei a comprar
os aparelhos de fazer inalação, pressão, termômetro, tudo aqui, foi
bem complicado. Em casa eu cuidava e às vezes vinha as moças do
postinho. Eu fazia a troca do curativo, toda hora tinha de trocar por
que não parava. Era eu. Colocava toalha, roupa de cama, mas não
vencia trocar. (Sunamita)
Ainda, as cuidadoras não podem contar com um auxílio constante dos demais
integrantes da família pelos compromissos e afazeres diários que possuem.
[...] Para mim foi muito difícil, meus filhos todos trabalhavam e eu
não tinha quem me ajudasse, só Deus mesmo na minha vida. Eu tinha que
fazer de tudo. Eu não gosto nem de lembrar aquele tempo sabe. Por que
foi uma coisa muito difícil, e eu sozinha. Tinha dia que as meninas
vinham aqui mas elas não faziam nada, chegavam e já estava tudo
pronto. Por que todas as minhas filhas trabalham e vinham depois do
serviço. As vezes que vinha uma sobrinha dele, que é enfermeira.
Vinha aqui e tinha vez que ela chegava e eu já tinha feito os
curativos. Tinha vez que não tinha dado tempo aí ela fazia.
(Joquebede)
[...] Aqui é eu e ele praticamente sozinhos. Por que a minha filha
tem a família dela. Não posso falar que não foi ninguém lá posar com
ele no quarto. Minha filha foi uma vez comigo. Para eu vir dormir em
casa, que eu tenho problema de coluna e eu não estava mais aguentando
dormir ali. Mas ela foi posar uma noite e eu vim dormir em casa.
(Noemi)
Além disso, a esposa reconhece seu papel e entende que o companheiro prefere
que os cuidados sejam exercidos por ela, principalmente naquelas circunstâncias
em que a privacidade necessita ser invadida.
[...] Porque por mais que os filhos cuidem não é como a gente. Ele é
muito vergonhoso sabe. Quando as sobrinhas dele vinham fazer curativo
nele, ele morria de vergonha. Ele falava: 'Não, eu quero que minha
esposa faça' ele não queria que as sobrinhas fizessem [... ] Ele não
queria ficar com ninguém. Minha nora, minha irmã queria ficar com
ele, mas ele não queria. já que ele não quer que ninguém fique eu
fico. Aí eu dormia no chão, dormia. Aí quando era de dia, eu deixava
ele com as meninas aqui fazendo os negócios e eu falava: agora você
fica aqui que eu vou em casa lavar uma roupa. (Joquebede)
Aprendendo a conviver com as mudanças na intimidade
O câncer traz, consigo, alterações emocionais, comportamentais e físicas que
acabam afetando o relacionamento entre o casal. As mudanças na intimidade são
destacadas pela esposa, que faz até mesmo o uso de comparações, ao descrever o
distanciamento como casal, ao conviver com a doença.
[...] Resumindo para você o nosso relacionamento, eu digo que nós
somos dois irmãos. (Ester)
[...] Olha filha, ele é muito fraco em sexo, sabe, a gente não tem
isso, eu não tenho vergonha de falar, não existe isso entre a gente.
Eu disse para ele: eu não sei se eu sou sua mulher, se eu sou sua
irmã, se eu sou sua amiga, porque eu durmo aqui oh, do lado dele,
todos os dias, todas as noites, e do jeito que eu durmo, eu acordo.
Isso se agravou com a doença. Nós vivemos por viver. (Noemi)
Esse distanciamento também ocorre pelas próprias reações que a companheira
apresenta ao se deparar com instrumentos que envolvem o cuidado, como a bolsa
de colostomia e a traqueostomia de seu companheiro.
[...] No tempo que ele estava bem ruim mesmo eu colocava um
colchãozinho junto a cama dele. Ele ficou na outra cama e tinha outro
quartinho. Colocava ele aqui e eu dormia na outra cama. Ele dorme na
cama dele e eu durmo na minha, por que eu tenho medo de romper aquela
bolsinha dele e escapar e me sujar e fica um mal cheiro sabe, aí eu
não gosto de dormir com ele. Aí eu durmo na minha cama e ele na dele.
(Joquebede)
[...] Sexo então? Nem pensar. Tem vezes que ele até tenta mais eu
rejeito. [... ] Não é mais a mesma coisa. Eu fico nervosa às vezes,
que eu fico cansada, muito cansada. Eu deito que eu estou cansada e
quando eu deito ele coloca a mão, aí eu tiro. [... ] Eu acho que eu
não sou mais esposa. Porque eu não faço mais nada. Porque tem aquela
questão do buraco ali (traqueostomia), ele tem muita secreção, é
nojento. Perdão Senhor! Mas não é que eu queira, não é que eu queira!
Eu peço perdão a Deus todo momento. Eu fiquei com nojo mesmo, mas é
mais forte que eu! (Ana)
Além das situações em que a intimidade sexual é prejudicada, a ponto de quase
não existir, há, ainda, a possibilidade de o casal encontrar no diálogo uma
maneira de superar as intempéries do relacionamento.
[...] Foi o período mais difícil para mim, ele queria ter relação
comigo, não podia se movimentar, nem nada, a gente tinha que estar
ajudando. [...] E difícil essa questão de esposa, ele queria todo
dia, mas não dá certo. Porque o homem não entende a parte da mulher.
Um dia está com problema, outro dia não está. Devido a doença, um dia
tem dor, outro dia não tem dor. Isso afetou o relacionamento como
casal, afetou bastante. Ele achava que ia descontar tudo em mim,
entendeu? Ele achava que tendo relação todo dia, ele iria resolver o
caso. Então tem dia que eu converso com ele, e aí fica tudo bem. Não
deu certo, vamos sentar conversar, esclarecer. (Rebeca)
Mesmo em meio às adaptações em relação à intimidade, algumas esposas conseguem
manter o sentimento de proximidade e afeto.
[... ] No relacionamento a gente ficou até mais unido, mais próximo.
Mas negócio de sexo acabou. Estamos que nem irmãos. Mas está bom. Eu
acho que a paciência e a convivência ajuda muito o casal. Eu penso
assim, o respeito principalmente.(Isabel)
O relacionamento como casal mudou, a atenção e vínculo continua a
mesma coisa, a gente tinha uma boa convivência, agora assim, só o
relacionamento que não está tendo aquela [...]porque ele não está
tendo condições. O que mudou mais foi só a parte sexual mesmo, por
que a parte afetiva continua do mesmo jeito. (Sunamita)
[... ] Para mim não mudou muita coisa não, às vezes a gente ficava
assim, agora ele fica mais nervoso. Mas assim de esposa, é só assim,
no mais é a mesma coisa. Acho que não mudou muito não. Eu conseguia
sim, levar ao mesmo tempo a situação, depois que ele ficou com os
problemas aí, a gente entende. Entende que o casal fica assim, um
para lá, outro para cá. Tem um ao outro mas, ah.(Dorcas)
Aprendendo a ser forte ante a fragilidade do outro
Nesse contexto de cuidado emergem sentimentos que a cuidadora enfrenta, ao
deparar-se com situações de irritação e descontrole do companheiro, quando a
mesma tenta manter o equilíbrio emocional, com paciência e força.
[... ] Ele ficava nervoso. Ele ficava muito nervoso e qualquer
coisinha já irritava ele. Nesses tempos atrás quando ele veio do
hospital, qualquer coisinha irritava. Era muita coisa para ele.
Qualquer coisa que falava, nossa. Mas eu tinha paciência, sempre tive
paciência. Tinha horas que me dava um desespero, mas eu me segurava.
Mas a gente sempre teve eu penso assim, muita paciência. Se a gente
não tiver paciência, quem vai ter? Tem que cuidar. (Dorcas)
[... ] Mas você tem que ter muita fé porque tem dias que você acha
que não vai aguentar! Não vai! Por que ele também(esposo) com essa
doença fica muito irritado, nervoso. Você fala as coisas parece que
ofende sabe? Mas tem que ter paciência.(Isabel)
[... ] Ele falava alguma coisa para mim e eu não entendia aí ele
ficava nervoso. Ele ficava nervoso por qualquer coisa. Ele ia fazer
alguma coisa e não dava certo aí ele jogava as coisas. Dava murro,
quebrava. Eu falava: não adianta nada você fazer isso, não vai sarar
assim e, vai sair do seu bolso para consertar. Comecei a conversar
com ele até que endireitou. Tive muita paciência, até eu mesmo me
admiro, nunca tive tanta paciência, aprendi. (Rute)
Diante de tais situações, muitas vezes a esposa controla-se diante dos
dissabores a fim de não provocar ou agravar o quadro de saúde do seu
companheiro, mesmo que essa atitude lhe cause um impacto emocional.
[... ] Nosso relacionamento é difícil assim, porque acontecem muitas
coisas hoje no meu casamento que eu deixo, eu tenho que deixar
passar. [...] Às vezes eu me sinto no dever de não culpar, não
julgar, não cobrar. Por causa dessa situação que ele está, entendeu.
Para evitar uma briga, uma coisa que ele vá ficar nervoso. Nesse
período que ele está de doença não deveria ser assim, se tivesse
alguma coisa, a gente deveria sentar e conversar, mas eu me sinto
presa sabe, eu não consigo expor e tenho medo da reação dele. Eu
deixo muita coisa passar. Vai me machucando entendeu, eu vou poupando
ele, mas vai me machucando. (Ester)
[...] Eu largo o que estou fazendo e vou lá ajudar. Ele é ranzinza, é
bem ranzinza, tem hora que ele fala coisas que dói na alma. Mas daí
eu já penso: ele tem idade, ele está doente, eu tenho que aguentar.
Às vezes ele começava a discutir, brigar, e eu evitava de fazer
nervoso para ele. Vai ver que a úlcera estoura né? Eu tentava
apaziguar aquela situação. Então é meu companheiro e eu vou lutar por
ele até o final, que Deus me dê forças para lutar por ele. (Noemi)
Além de enfrentar os sentimentos do outro, vive também situações que fazem
emergir seus próprios sentimentos, sendo que entre eles, destaca-se o
sentimento de aceitação de sua realidade.
[... ] Entre o casal, entre esposa, mulher, tudo isso, tem
complicações, cuidar do esposo e dos filhos. Então, a vida não é mil
rosas não, contém os seus espinhos. Entre eu e ele está sendo assim.
Um dia está de bom humor, outro dia não está. Estamos levando a vida,
já faz dois anos assim. (Rebeca)
[... ] Às vezes você fica até pensando assim: nossa eu estou tão bem
e a pessoa está assim. Como eu posso falar, não tem como explicar
isso. Injusto, é uma coisa assim. Mas com o tempo que vai passando
você vai aprendendo a conviver e vendo que não é tudo aquilo, você
vai levando. (Ana)
DISCUSSÃO
O estar-lançado é a forma como o ser humano se constitui no mundo por meio de
seu processo de abertura e, por se constituir como um ser aberto as suas
próprias possibilidades, o mesmo se projeta para os entes ao seu redor(12).
Perante a presença do câncer no seio familiar e vivendo a facticidade de ser
cuidadora de seu companheiro, a mulher como esposa se vê lançada à necessidade
de assumir para si essa responsabilidade.
Nesse sentido, o ser que adoece não está isolado, vivendo sem os outros, pois
estes são copresenças do ser-no-mundo(13).
O ser-com-o-outro na doença pode tornar-se uma participação significante,
quando se expressa a solicitude, isto é, cuidar do outro, ter consideração e
paciência com o mesmo.
Assim, apesar de sobrecarregada e sem o auxílio constante dos familiares, a
mulher cuidadora permanece firme em sua função, demonstrando força mesmo em
meio a momentos de intenso desgaste. Essa realidade apresentada é comum, uma
vez que, em cerca de 60% das situações de doença, o cuidador não recebe ajuda
de seus familiares para aliviar as sobrecargas do cuidado(5).
Apesar de tais percalços, ao assumir a responsabilidade do cuidado do outro, a
mulher desenvolve modos de preocupação, ou seja, expressa autenticamente o modo
de ser-com, característica do Dasein(12). A preocupação, entretanto, pode se
manifestar de diferentes formas: em uma primeira expressão, aquele que se
preocupa retira o cuidado do outro, substituindo-o, chamada então de
substituição dominadora. Nesse modo de preocupação, aquele que cuida toma o
lugar do outro, podendo tornar dependente o ser cuidado. Já em outro modo, a
anteposição libertadora, o cuidador antepõe-se ao cuidado, para devolvê-lo como
tal, de forma que permite, em sua possibilidade existencial, a liberdade para o
cuidado(14). Esse cuidado traz espaço para a solicitude com o outro, sendo essa
a expressão de zelo de muitas das mulheres que cuidam de seus esposos com
câncer.
Em face dessa condição em que foi lançada existencialmente, a esposa também
reconhece sua importância, reforçando sua presença imprescindível durante o
cuidado, quando muitas vezes ela se torna até mesmo insubstituível. Nesse
cotidiano diante do câncer, ambos precisam abster-se dos próprios preconceitos
e valores visando fortalecer os vínculos existentes e encontrar refúgio que
favoreça o enfrentamento da doença(2). Portanto, quando o cuidado é exercido
pela esposa, esta assegura ao companheiro a possibilidade de sentir-se mais
confortável, na medida em que demonstra autenticamente seu desejo de cuidar.
Ainda, ao vivenciar o cuidado e os sentimentos que surgem após o adoecimento, a
mulher percebe tal influência no relacionamento com seu companheiro, inclusive
apresentando repercussões na intimidade do casal. Assim, algumas esposas aludem
a um distanciamento, quando usam a expressão "somos como irmãos". Essas
mudanças podem ser decorrentes das dificuldades de aceitação da doença, a
intensidade na relação entre os papéis de ser-cuidadora e ser o companheiro
doente e até mesmo o cansaço proveniente dos momentos de cuidado(15).
Outro fator agravante nesse distanciamento é a significação conferida pela
esposa em relação aos entes intramundanos que invadiram o espaço do casal após
o adoecimento, limitando sua proximidade. Neste sentido, o uso da bolsa de
colostomia ou traqueostomia é permeado de significados, em que o sentimento de
não normalidade se faz presente, alterando assim as vivências consigo, com os
outros e com o mundo. Neste ínterim, é comum a limitação da sexualidade, uma
vez que ocorrem os sentimentos de impotência, diminuição da autoestima e
preocupações com a eliminação de odor ou fezes durante o momento íntimo do
casal(16).
Seguindo o pensar heideggeriano, em sua mundaneidade de mundo, o ser humano
pode se desvelar de maneiras diferentes e essa disposição apresenta-se por meio
do humor ou tonalidade afetiva. Essa disposição, ou humor, possibilita que os
entes possam parecer de diversas maneiras, tanto positivas como inúteis ou até
mesmo ameaçadores(17). Diante desse pensar, observa-se nas falas de Joquebede e
Ana um desvelar-se baseado em sentimento de medo e repulsa em relação aos
dispositivos utilizados pelos companheiros, o que demonstra quão é difícil para
elas manterem relações íntimas com os mesmos, nesse momento de suas vidas.
Essas disposições são características ontológicas de ser lançado no mundo, onde
o ser está à mercê das possibilidades, sem que possa controlá-las(12).
Relativo a essa questão, o estado emocional é de grande significância para as
cuidadoras, sendo que em decorrência dos cuidados, podem desenvolver com maior
frequência ansiedade e transtornos depressivos(4). Porém, percebe-se o quanto
as mulheres apesar de sentirem-se "sobrecarregadas" com o comportamento
"agressivo" do companheiro, conseguem contornar essa circunstância com muito
diálogo e paciência.
Filosoficamente, em sua existência, o ser já existe sempre adiante de si mesmo,
ultrapassando-se, ou seja, transcendendo. Assim, o homem antecipa-se a si
mesmo, garantindo a sua ultrapassagem ao próprio ser(18). Neste contexto,
distinguem-se ainda nas falas que algumas mulheres procuram antecipar as suas
próprias possibilidades, tentando agarrar-se à sua situação, não com desânimo,
nem tristeza, mas com entendimento de suas condições existenciais. Desta forma,
elas superam seus próprios temores, manifestando o seu poder de transcendência
sobre o mundo e sobre si mesmas.
E, nessa transcendência, algumas cuidadoras revelam em seus discursos que,
mesmo não havendo a proximidade íntima, sobrepõem-se a essa circunstância e os
sentimentos de afeição um pelo outro são valorizados pelas mesmas, o que
minimiza as questões da sexualidade. Seguindo esse pensar, podemos relacionar
ou traduzi-los no amor, sendo que este é referido como expressão do cuidado: "O
amor [...] é possibilidade da relação do ser-com, [...] como possibilidade da
possibilidade do relacionamento é o fundamento do cuidado" (18).
Sabe-se ainda que, ao se tornar cuidadora, perante a necessidade de adaptação e
discernimento diante da nova condição existencial, as mulheres conseguem
superar as barreiras e demonstrar dedicação, sensibilidade e disponibilidade
para ajudar o companheiro doente(19). Ao compreender sua função de cuidadora
como manifestação holística do bem-estar ao outro, a mulher controla-se e deixa
que seus sentimentos sejam minimizados para a realização do cuidado.
Mediante esse emaranhado de sentimentos, as mulheres desenvolvem a paciência de
forma inimaginável para muitas, ao controlar suas ações em prol de não causar
discussões ou qualquer situação que possa piorar, de alguma maneira, o bem-
estar de seu ente querido. Essa atitude de "evitar" é tomada perante a reação
do companheiro em relação à doença, quando este diminui possibilidades de
conversas e negociação(15) com a companheira. No entanto, a mulher desvela ser
prejudicada emocionalmente e, mesmo assim, cuida do outro em detrimento de si.
Mostra-se mais uma vez como ser-com em seu modo de relacionar-se, sendo que a
mesma vive de maneira a estar à disposição para cuidar de seu amado(14).
Portanto, ao ser-cuidadora do companheiro com câncer, a mulher adentra-se em
uma nova realidade existencial que não apresenta facilidades, ainda mais que o
cuidado do homem é diferenciado pelas suas próprias possibilidades
existenciais, permeadas da masculinidade, que acabam por influenciar seu
vivenciar da doença e também refletem no cuidado exercido pela esposa(3).
Diante de tal realidade, considera que o companheiro encontra-se como um ser-
no-mundo com câncer, onde se vê lançado em um mundo desconhecido, sujeito a
manifestar sentimentos diversos, que podem estar relacionados à depressão,
isolamento e ansiedade(16).
De tal forma, a cuidadora pode ver a doença como um ente que afeta o
relacionamento do casal ou como a possibilidade de assumir o seu poder-ser e
transcender ante a facticidade imposta pela doença. Considerando-se tais
sentimentos e as repercussões dos mesmos, além da gravidade do câncer e seus
estigmas enraizados, percebe-se o quanto essa doença pode exercer influência
sobre os vínculos, sendo comuns duas situações: a fragilização dos mesmos ou o
seu fortalecimento(2), como se apresentou neste estudo.
Em virtude do quadro vivenciado por tais mulheres, diante de inúmeras
dificuldades advindas ao cuidar de seu companheiro, ressalta-se ainda que,
devido às sobrecargas físicas e emocionais, muitas vezes necessitam
ressignificar a própria vida, e, para tal, o apoio da equipe de saúde é
fundamental neste processo, principalmente por parte da enfermagem, como uma
facilitadora, que fornecerá conhecimento e suporte ao cuidado(20).
Esta pesquisa possibilitou desvelar as significações de mulheres que cuidam do
companheiro com câncer e considera necessário apontar suas limitações, sendo
estas no que tange às especificidades das participantes, por serem as
companheiras do doente, e de suas realidades, com o foco na vivência e cuidado
domiciliar. Assim, os resultados encontrados não devem ser generalizados,
porém, acredita-se que devem ser analisados com o intuito de fundamentar as
ações de assistência a essa parcela da população que também contribui para o
cuidar. Dessa maneira, espera-se que esta pesquisa venha incentivar novos
questionamentos que ampliem o conhecimento da temática apresentada.
CONCLUSÃO
Por meio da fenomenologia existencial foi possível vislumbrar os percalços
vivenciados pelas mulheres que são lançadas diante de sua existencialidade,
enquanto cuidadoras dos companheiros com câncer, quando vivenciam essa
circunstância, de forma profunda e impactante.
Ao abraçar o cuidado do companheiro e vivenciar o câncer em seu lar, as
mulheres veem-se diante das alterações em seus modos de disposição, deparam-se
com o comprometimento da intimidade do casal e a necessidade de lidar com os
sentimentos do companheiro e de si. Contudo, ao aceitar sua nova condição de
existir no mundo, transcendem as vicissitudes e mantêm os sentimentos de
afeição pelo outro e, assim, são impulsionadas a continuar na condição de ser-
com o companheiro durante sua jornada em meio à doença.
Enquanto profissionais de saúde, também podemos ser lançados perante a
necessidade de acompanhar mulheres em tais circunstâncias do cuidar, assim é
imprescindível compreender as dificuldades por elas enfrentadas. Desta forma,
na medida em que ações são estabelecidas com base em tal conhecimento,
contribuir-se-á na minimização dos impactos sofridos ao longo de sua trajetória
como cuidadora.
Diante de tal realidade, em que a mulher é a personagem protagonista do
cuidado, cabe à enfermagem uma reflexão crítica da atenção que dedica a esses
seres, bem como a importância das mesmas no contexto apresentado para que, além
de oferecer suporte para a continuidade dos cuidados do companheiro, ela também
mantenha, mesmo em meio às dificuldades, o seu próprio bem-estar.
Como citar este artigo:
Piolli KC, Medeiros M, Sales CA. Significations of being the caregiver of the
companion with cancer: an existential look. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016;
69(1):99-105.