Uma saúde pública molecular!?
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INTRODUÇÃO
A justaposição da expressão Saúde Pública com o adjetivo molecular é
passível de provocar algum desconforto, ou, talvez, certa estranheza. Como se
houvesse algo destoante na vinculação de idéias pertencentes a dois campos
discursivos distintos, tanto em termos de seus marcos de referência como de
suas práticas.
O primeiro, por si só, pode dar margem a longas discussões quanto sua definição
e eventual correspondência com noções veiculadas, muitas vezes, de modo
equivalente, como Saúde Coletiva, Medicina Social/Preventiva/Comunitária,
Higienismo, Sanitarismo.
Neste aspecto, a conotação veiculada pela instância da Saúde Pública se
refere a formas de agenciamento político/governamental (programas, serviços,
instituições) no sentido de dirigir intervenções voltadas às denominadas
necessidades sociais de saúde.
Já Saúde Coletiva implica no pré-requisito essencial da inclusão das idéias
de diversidade e heterogeneidade para a abordagem dos grupos populacionais e
das individualidades com seus modos singulares de adoecer e/ou representarem
tal processo (Birman, 1991) (o que, diga-se de passagem, não costuma ocorrer ao
nível da Saúde Pública).
Medicina Social/Preventiva/Comunitária tende a indicar uma área disciplinar/
acadêmica que estudaria o adoecer para além de sua dimensão biológica. Na
verdade, em linhas gerais, está voltada para abordá-la ao nível de
determinantes sócio/político/econômico/ideológicos.
Outra forma de encarar este problema demarcatório é buscar subsídios nos
diversos momentos históricos de reforma em saúde em diferentes formações sócio-
econômicas. Deste modo, por exemplo, as origens da idéia de Medicina Social
estão ligadas aos movimentos sanitários na França e Alemanha. Por sua vez,
Medicina Preventiva, Comunitária e Familiar relacionamse à correspondente
história referida aos Estados Unidos e América Latina, Higienismo tem raízes
européias e Sanitarismo sugere influências marcadamente britânicas (Paim,
1992).
Há autores que consideram Saúde Coletiva como categoria que abrange a
corrente crítica constituída pela Medicina Social, pelo movimento
preventivista, representado pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Social
de diversas Faculdades Médicas e pela própria Saúde Pública, institucionalizada
em nível estatal. De qualquer modo, parece haver consenso com a caracterização
do campo da Saúde Pública mediante dois amplos critérios: a) a vinculação ao
aparelho de Estado; e b) a dimensão coletiva como objeto de intervenção (Paim,
1992).
Claro está que tal categorização é por demais abrangente. Conforme as
circunstâncias, os campos se interpenetram e nem sempre é possível fazer
distinções bem delimitadas quanto aos respectivos domínios e fronteiras. Pode-
se conjeturar, enfim, que a compreensão do que seja Saúde Pública resulte, em
última análise, de pontos de vista dos indivíduos/grupos sócio-econômicos-
culturais, condicionados pelas suas idéias acerca do mundo circunjacente,
conforme os respectivos interesses, crenças, concepções. Mas, sobretudo, sob as
determinações da correspondente formação sócio-econômica (Pires-Filho, 1987).
No presente texto, não há preocupação estrita em aderir incondicionalmente a
qualquer das referidas tentativas de delimitação. Mesmo admitindo-se a
importância das propostas demarcatórias citadas, para efeitos do escopo deste
trabalho, iremos considerar Saúde Pública como um domínio genérico de práticas
sociais dirigidas a um ideal de bem-estar das populações em termos de ações e
medidas que evitem, reduzam e/ou minimizem agravos à saúde.
Por outro lado, como se sabe, o adjetivo molecular [o termo molécula é de
origem francesa (molécule) proveniente do latim escolástico molecula,
diminutivo de mole (massa) (Holanda, 1986)], a princípio, carreia referências a
um conceito básico, bem definido, que dispõe de consagrado estatuto de
cientificidade (proveniente da Química uma ciência natural). Além disto,
por servir como instrumento para operar instâncias as mais íntimas possíveis
referentes à estrutura e aos mecanismos de ação, porta um vigoroso atributo
epistemológico em sua potência explicativa. Atualmente, tal adjetivo encontra
especial valorização ao se conjugar ao substantivo Biologia, designando um
campo disciplinar extremamente prolífico e gerador de consideráveis progressos
técnicos e conceituais (como veremos adiante).
Portanto, subjacente à expressão Saúde Pública molecular, busca-se formas de
pensar avanços da Biologia Molecular no interior da chamada Saúde Pública. Mais
especificamente, como as práticas sociais poderão incorporar (ou não)
conhecimentos e técnicas ensejados pela Genética Molecular. Isto levando-se em
conta, não apenas sua faceta alvissareira, mas, também, especulando-se a
respeito dos possíveis efeitos colaterais de tal processo. Antes, porém, para
fins do desenvolvimento do trabalho, é imperiosa a menção aos cenários onde se
dão as atividades médico-sanitárias no nosso meio.
MAL-ESTAR NA CULTURA DA SAÚDE PÚBLICA
Não há como evitar a constatação da precariedade do papel atual reservado à
esfera da Saúde Pública no contexto dos seus agentes institucionais e de suas
respectivas atuações com o propósito de propiciar melhores condições de saúde
às populações. Seja no que se refere ao terreno dos Modelos de Prestação de
Serviços de Saúde, seja em nível da Pesquisa/ Ensino em Saúde Coletiva.
Desafortunadamente, tornou-se um lugar comum proceder-se às descrições das
limitações que cercam ambos setores. Não é o propósito deste texto, mais uma
vez, detalhá-las. Outros estudiosos já as fizeram com inegável competência.
Mas, sim, situá-las como conseqüências das diversas crises emaranhadas
(política, econômica, social, ética, operativa, organizacional) por que passam
as relações Estado/Sociedade em um país capitalista periférico como o nosso.
Também não se pode evitar a observação da pobre contribuição que a
Epidemiologia indiscutivelmente, um importante instrumento do campo da Saúde
Pública, tem proporcionado. Tanto na sua dimensão investigativa, como nas suas
propostas de racionalização dos processos de planejamento e administração de
Serviços e Programas de Saúde. Parece que os epidemiologistas, em particular, e
os sanitaristas, de um modo geral, permanecem não sendo escutados com atenção
pelos setores responsáveis por decisões na área da Saúde.
Quais seriam as razões para tal situação ocorrer? Os tipos de argumentos e/ou
evidências produzidas pelo setor médico-sanitário não conseguem satisfazer às
expectativas ou interesses dos referidos domínios? Mas, será que, em um
contexto como o nosso, pode algum empreendimento deste caráter cumprir tal
pretensão? Ou, então, o nó da questão localiza-se na insatisfatória capacidade
da referida atividade em responder às dramáticas necessidades sociais de nossa
época?
Será que o problema está localizado predominantemente no interior da dita Saúde
Pública? Ou, temos, mais propriamente, reflexos da crise de um modelo político-
administrativo, concomitante a outra crise organizacional (especialmente, de
gerência e financiamento) das áreas sociais historicamente negligenciadas.
Mas, que se agravaram diante da sucessão de malfadadas ações no campo político-
econômico, resultantes de escolhas, pelo menos, equivocadas em um tumultuado
trajeto de transições (Castiel, 1994).
De qualquer forma, há, nos dias de hoje, evidências flagrantes do campo
sanitário enfrentar simultaneamente a múltiplos e intrincados desafios. Por um
lado, encarar questões oriundas da necessidade de lidar com as referidas crises
internas e externas aos cenários do Setor Saúde. Por outro, levar em conta a
dimensão (mais geral) de complexificação/fragmentação de processos biológicos/
sociais.
Neste quadro, por exemplo, destacam-se as atuais configurações epidemiológicas
das doenças infecto-contagiosas, especialmente nos países mais pobres. Isto
pode ser notado tanto nas novas formas epidêmicas de velhas moléstias que
voltaram a grassar, como no aumento da ocorrência de infecção e de casos de
doenças aparentemente recentes (como é caso da S.I.D.A, Doença dos Legionários,
Toxi-infecções hemorrágicas intestinais por carne processada em redes de fast
food provocadas por cepas mutantes de Escherichia coli).
Além disso, a etiopatogenia multifária das enfermidades crônicas não-
transmissíveis permanece de difícil abordagem. Isto torna pouco viável a
delimitação precisa e o peso da participação de seus supostos determinantes.
O mesmo se aplica para as manifestações de caráter predominantemente
psicossomático ou aquelas em que os fatores considerados psicogênicos têm
destacada participação. Ambas apresentam sinais sugestivos de um aumento
generalizado na sua ocorrência.
É imprescindível, também, mencionar uma terrível e ameaçadora epidemia dos dias
de hoje: a flagrante eclosão de múltiplas situações nas quais a violência, em
suas diversas formas, desempenha papel preponderante. Trata-se,
indiscutivelmente, de um problema de Saúde Pública com determinantes
extremamente complexos e diversificados que demandam distintos saberes e
disciplinas para sua abordagem.
Por outro lado, a fragmentação aparece nas atuais formas de organização sócio-
culturais. Há fortes indicações que apontam para processos de profunda e
irreversível segmentação que ampliam a heterogeneidade dos grupos populacionais
que compõem as sociedades contemporâneas.
Esta circunstância parece ocorrer em tal magnitude que a noção de subcultura
começa a dar sinais de desgaste para dar conta do fenômeno. Este fato, per se,
demanda novas categorias de análise que viabilizem aproximações mais
satisfatórias nas propostas de estudar as populações. Dizendo de outra forma:
há proliferação de diversas tribos (Maffesoli, 1987) no interior de uma mesma
formação sócio-cultural que podem se constituir tanto em termos de guetos,
relativamente isolados, como de modo a permitir distintos graus e formas de
interpenetração entre seus componentes e outros grupos, simultaneamente.
Estes sintomas foram enunciados pela Dra. Kristine Gebbie, que recentemente
ocupou o lugar de Chefe do Departamento de Saúde de Washington, D. C. cidade
reconhecida como sede de conflitos inter-raciais, tráfico de drogas e extrema
violência, entre outros problemas. Em um trecho intitulado Definindo
Comunidade em uma Sociedade Moderna, manifesta sua perplexidade e pergunta
(com certa ingenuidade) como encarar problemas sociais de modo mais abrangente,
de maneira a deslocar-se do paradigma que contrapõe um eu contra um tu para
outro que inclua todos nós de modo equivalente. Mas, mais do que isto, admite
a complexidade, a interdependência das relações e as dificuldades na definição
de grupo na sociedade moderna. E, além disso, confessa não saber como avaliar a
saúde de uma comunidade nestas condições (Gebbie, 1993).
Em suma, evidenciam-se as insuficiências das consagradas categorias
classificatórias de estratificação social. Torna-se uma tarefa extremamente
penosa estabelecer níveis de homogeneidade que permitam estabelecer padrões de
vulnerabilidade e suscetibilidade a específicos agravos à Saúde, conforme a
inserção em tais categorias. Pois, haverá possibilidades não desprezíveis de
variação conforme as características, digamos assim, tribais. Ou seja, uma das
resultantes deste processo de fragmentação é a eclosão de microssistemas que
apresentam traços muito particulares em relação aos seus modos de vida.
Isto pode ser ilustrado pela variedade de condutas sexuais (e de prevenção a
danos à saúde) nos contextos homoeróticos e, também, pelas diferentes práticas
de compartilhamento de seringas entre distintos grupos de usuários de drogas
endovenosas. Estas circunstâncias estão sendo estudadas em países europeus sob
uma nova categoria de análise, denominada cenas de vida (Scheerer, 1993).
Contudo, o surgimento de novas e avançadas técnicas de tipagem gênica
propiciadas, por exemplo, pelos conhecimentos da Engenharia Genética pode
trazer, como veremos adiante, alterações a este panorama. Mas, quais serão as
possibilidades e os efeitos de tais progressos no campo da Saúde Pública? Esta
é uma das preocupações centrais deste trabalho. Para isto, é preciso proceder a
um breve comentário sobre algumas aquisições especialmente significativas,
pertinentes aos domínios da Genética atual.
A PERSPECTIVA MOLECULAR NA SAÚDE PÚBLICA
Nos dias de hoje, há uma certa aura, mescla de fascínio e desconfiança, quanto
à função e ao alcance da Genética Molecular (e mais especificamente, da
denominada Engenharia Genética). Este sentimento popular difuso tem sido
explorado com freqüência pelos meios de comunicação de massa que aí encontraram
um excelente filão. Basta observarem-se as seções de Ciência e Tecnologia da
imprensa leiga para perceber a presença constante de temas relativos a tal
campo. A própria imprensa leiga já aventou a hipótese de se tratarem de efeitos
resultantes da possível intrusão no imaginário popular da idéia do homem estar
invadindo os recônditos terrenos reservados ao exclusivo domínio do Divino. Ou
seja, dispor do poder de atuar no terreno da criação/alteração da vida... Isto
chegou ao ponto de servir de pretexto para obras de divulgação científica com a
finalidade de esclarecimento de seus perigos reais e imaginários dos
avanços da Biotecnologia em função da sua percepção pública e repercussão
social (Davis, 1993).
Independente disto, os avanços da Biologia Molecular, e, especialmente, das
técnicas de manipulação genética no campo da Biomedicina são apreciáveis.
Chega-se postular, inclusive, a emergência de uma Nova Genética, definida
como um corpo de conhecimentos e procedimentos baseados na tecnologia do
D.N.A. recombinante que cria informação sobre os gens que os indivíduos e as
famílias portam (Richards, 1993: 567).
Um dos exemplos mais revolucionários é o da Reação em Cadeia da Polimerase
(P.C.R. - Polymerase Chain Reaction). Esta é uma técnica concebida pelo
bioquímico Kary Mullis em meados da década de oitenta (pela qual foi agraciado
com o Prêmio Nobel de Química em 1993). Trata-se da ampliação de um processo
natural mediado pela enzima Polimerase, através do qual ocorre a replicação de
fitas complementares de seqüências específicas de D.N.A. nas células de modo a
facilitar e viabilizar o estudo e a análise de gens. Tais investigações,
anteriormente, sofriam sérias restrições diante da reduzida magnitude
constituída pela estrutura gênica e a conseqüente dificuldade de acesso.
Com este procedimento, é possível, por exemplo, detectar infecções virais e
bacterianas nas quais os microrganismos não costumam apresentar-se em
quantidades suficientes para o diagnóstico nas amostras patológicas (P. ex.:
Mycobacterium tuberculosis, Toxoplasma gondii) (Watson et al., 1992). Estes
aspectos indicam a importância em Saúde Pública proporcionada por tal técnica.
Assim, torna-se factível, mediante o P.C.R., proceder a mapeamentos geográficos
de hospedeiros humanos, reservatórios e vetores (já é consensual a importância
deste procedimento no estudo da S.I.D.A.). Além disto, têm sido descobertos
importantes métodos de detecção para um grande número de doenças parasitárias
(Bendall & Chiodini, 1993) ou crônico-degenerativas.
Por exemplo, uma demonstração da efetividade da abordagem molecular em
Vigilância Epidemiológica pode ser vista no estudo de um surto de Doença dos
Legionários em um hotel na cidade de Orlando, Flórida. A investigação utilizou
anticorpos monoclonais e técnicas de eletroforese em gel para identificar a
fonte ambiental de infecção (Hlady et al., 1993).
Amplia-se, também, o conhecimento sobre as próprias doenças genéticas. É
possível, mediante o uso de marcadores específicos, a testagem preditiva para
determinar os portadores de gens defeituosos, tanto dominantes como recessivos,
responsáveis por tais doenças (Richards, 1993).
Além disto, já se começa a cogitar na possibilidade de, mediante terapêuticas
da linha germinal (germ-line therapy), aplicarem-se vacinações genéticas nas
futuras crianças para evitar enfermidades crônicas não-transmissíveis, como
câncer, doença coronariana e assim por diante (Tannsjo, 1993).
Por outro lado, há indicações (pelo menos nos países ditos centrais), que uma
parcela considerável das admissões em serviços pediátricos (ao redor de um
terço) estão, de alguma forma, associadas a distúrbios genéticos. Da mesma
forma, as doenças genéticas se constituem numa importante causa de óbito em
menores de 15 anos.
Isto mostra como a Saúde Pública se encontra comprometida com a dimensão
genética, tanto em nível das técnicas de detecção, como na verificação da
morbi-mortalidade da população infantil, onde tais moléstias vêm ocupando um
lugar de destaque (nos referidos países) (Watson et al., 1992).
Este panorama (visto acima do Equador) sugere que tal constatação não deva
tardar a manifestar-se entre nós. Especialmente, se for levado em conta o
processo de transição epidemiológica que sucede no Brasil. No entanto, o
enfoque molecular dá margem a discussões quando a Epidemiologia investida
no papel de instrumento racionalizador das ações em Saúde Pública se orienta
em direção aos conhecimentos da Genética Humana na busca de alicerces para
agenciar determinados programas de pesquisa. Especialmente, no que se refere a
sua proposição de obter explicações científicas para deslindar os processos
etiopatogênicos ou, então, estabelecer fatores predisponentes na eclosão de
agravos à saúde nas populações.
A rigor, para a Biologia, a característica essencial de uma explicação
científica seria a proposta de um mecanismo. A previsibilidade não constituir-
se-ia no ponto central, apesar de poder estar presente (Maturana, 1990).
No entanto, para a Epidemiologia Moderna (voltada para as relações entre as
medidas de ocorrência de exposição a supostos determinantes e correspondentes
agravos à Saúde), a previsibilidade é fundamental. Pois, está intimamente
vinculada à almejada racionalidade pragmática que permeia o campo, base das
pretendidas intervenções no âmbito da Saúde Coletiva.
Todavia, as operações do seu dispositivo metodológico não buscam estabelecer
mecanismos biológicos. Na verdade, procuram basear-se neles (a plausibilidade
biológica como um dos critérios para sustentar afirmações da existência de
nexos causais nas associações estatísticas entre exposições e agravos
encontradas nos estudos epidemiológicos). E, nestas circunstâncias, a Biologia
Molecular proporcionaria tais mecanismos com aparente firmeza.
Neste sentido, é ilustrativa a posição de Vandenbroucke ao considerar que a
ênfase dada por alguns epidemiologistas aos fatores do ambiente (no sentido
mais amplo), mimetiza a discussão entre miasmistas e partidários da teoria
contagionista. Tal afirmação se dá em função das críticas do citado autor ao
trabalho de dois conceituados epidemiologistas britânicos Doll e Peto, que
elaboraram em 1981 uma detalhada revisão chamada The Causes of Cancer. Aí,
afirmam, em síntese, que cerca de 80% dos cânceres poderiam ser explicados por
alterações no ambiente (Doll & Peto, 1981). Vandenbroucke discorda do
sentido vago atribuído à idéia de ambiente. Para ele, a adesão dos (jovens)
epidemiologistas a um aparato conceitual alternativo à posição
miasmáticoambiental lhes traria uma superioridade epistemológica em relação
aos primeiros (Vandenbroucke, 1988). Esta seria, portanto, a via proporcionada
pela proposta de molecularização da Epidemiologia, da qual se mostra
partidário.
Portanto, Vandenbroucke considera que a saída para a Epidemiologia seria
direcionar-se para programas de pesquisa que abordem a interação ambiente-
gene, sem, contudo, especificar (do mesmo modo que faz ao criticar Doll e
Peto) a que ambiente se refere. A rigor, esta ordem de problemas demanda
abordagens bem mais elaboradas do que sugere. Pois, é preciso dimensionar
efeitos extremamente complexos: a) dos gens; b) do ambiente (deve ficar claro
que a idéia de ambiente requer uma definição criteriosa, especialmente no que
se refere à incorporação de aspectos sócio-culturais); c) da interação entre
gens e ambiente.
Na verdade, fica a impressão que sua perspectiva, ao dirigir-se rumo à
Epidemiologia Molecular, seja a de alcançar a otimização do programa
epidemiológico de pesquisa reducionista. Não é absurdo pensar que tal pretensão
visaria conferir à disciplina epidemiológica um estatuto científico (e social)
correspondente àquele proporcionado pela Genética Molecular.
Esta posição é vista com muita simpatia por outros autores que chegam,
inclusive, a adotar uma postura, digamos, casamenteira, ao sugerir que
existem muitas afinidades entre as duas disciplinas (Epidemiologia Clássica e
Genética Humana), uma vez que:
cada uma delas estudam variações em doenças nas populações, baseiam-se e
estimulam progressos na Estatística e fazem uso especial da gemelaridade. Na
prática atual, epidemiologistas tendem a negligenciar hipóteses genéticas e
geneticistas falham ao estudar determinantes ambientais (Mulvihill &
Tulinius, 1987: 339)
Como se, ao conjugar os dois campos, adquirir-se-ia maior poder demarcatório
para, em última análise, abordar o propalado problema inato/adquirido (nature/
nurture). O que, diga-se de passagem, para certos autores, seria uma questão
equivocada. Pois, diante de tantas dificuldades (conceituais/metodológicas)
para abordá-lo, este empreendimento se torna pouco promissor. Na verdade,
interessa é saber o que se passa entre a informação inicial e o resultado final
(Cohen & Lepoutre, 1988).
Pois bem, é perceptível a relevância das perspectivas relativas à abordagem da
Genética molecular contemporânea (com a Epidemiologia Moderna como ponta-de-
lança) para a Saúde Pública. Agora, é preciso introduzir (e justificar) a
apresentação da noção de imprinting genômico, desenvolvida com maior detalhe.
Pode-se atribuir sua importância ao fato deste conceito constituir-se em uma
recente descoberta. Mais do que isto, por trazer duas notáveis decorrências:
1) amplia o alcance da Biologia Molecular para além da Genética. Pois, avança
por terrenos considerados epigenéticos, produzindo uma abordagem bioquímica
para etapas mais precoces da ontogênese. Distinta, portanto, do significado
atribuído aos processos mais tardios do desenvolvimento embriológico, por um
lado, ou, dos processos iniciais de interação com o ambiente, por outro;
2) abala a hegemonia dos modelos mendelianos de explicação dos processos de
transmissão hereditária.
A escolha deste tema aparentemente especializado prende-se, além disso, ao fato
desta concepção constituir-se em tópico ainda pouco difundido no campo
sanitário. Atualmente, está sendo encarado como um conceito promissor para as
perspectivas da pesquisa biomédica (Alarcon, 1993). Será que esta afirmação se
aplica, mutatis mutandis, para o terreno da pesquisa epidemiológica? Em caso
afirmativo, em que medida e quais seriam as possíveis limitações de tal
proposição?
Este terreno de indagações aponta, em termos mais amplos, para possíveis
desdobramentos e repercussões de descobertas no campo da pesquisa de D.N.A.
recombinante na Saúde Pública. Uma vez que, desta forma, dispor-se-iam de novas
e importantes ferramentas técnicas e conceituais para o estudo de um grande
número de enfermidades.
Torna-se necessária, assim, uma breve descrição de aspectos relacionados a
conhecimentos genéticos, essenciais para a percepção da amplitude dos problemas
envolvidos.
O IMPRINTING GENÔMICO
Para melhor compreensão desta noção, é importante proceder a uma breve revisão
de suas origens etológicas (inclusive, para justificar o emprego do termo
inglês). Uma definição sucinta de imprinting é aquela proposta por Steven Rose:
o processo em que aves recémnascidas adquirem uma forte preferência por um
objeto móvel proeminente (Rose, 1984: 42). No entanto, Hess relata que pode
acontecer em insetos, peixes e em alguns mamíferos, especialmente aqueles
herbívoros cujos filhotes têm a capacidade de movimentarem-se logo após o
nascimento (búfalos, cabras, carneiros, cervos etc.) (Hess, 1970).
Há referências ao fenômeno que remontam à Idade Média e à Renascença. Como
ilustração, Vieira faz alusão a um trecho da Utopia de Thomas Morus,
publicada em 1518, onde se descreve a criação artificial de pintos sob tal
efeito (Vieira, 1983). Mas, foi Konrad Lorenz quem criou a denominação e
enfatizou que o fenômeno devia ocorrer numa fase crítica do início da vida do
animal (Lorenz, 1952).
O termo original proposto pelo etologista alemão é Pragung, traduzido pelo
Dicionário Langenscheidt para cunho, do verbo pragen cunhar (Irmen,
1988). A utilização da denominação em Português não se encontra bem
estabelecida, sendo comum o uso da expressão inglesa. Mesmo assim, Bracinha
Vieira usa impregnação na edição lusitana de Etologia e Ciências Humanas
(Vieira, 1983). A partir de outro campo de saber, mas, referindo-se ao fenômeno
em foco, o psicanalista francês Jacques Lacan menciona o processo das
impregnações imaginárias (Pragung) como base para a constituição do simbólico
humano (Lacan, 1978).
Em La Logique du Vivant, de François Jacob, a tradução lusa utiliza impressão
(Jacob, 1985), da mesma forma que na edição brasileira de O Cérebro
Consciente de Steven Rose (1984). Todavia, pode-se considerar que a idéia de
impressão aqui referida diz respeito tanto ao verbo impressionar como ao
imprimir, uma vez que seriam produzidas marcas/inscrições ao nível
neuronal. Temos, ainda, apesar de sua conotação por demais, digamos, textil,
o termo estampagem (Chertok, 1982), que aparece na tradução de A Hipnose
entre a Psicanálise e a Biologia de Leon Chertok. Diante da indefinição quanto
à escolha do termo na língua portuguesa, optou-se neste texto por adotar-se a
consagrada expressão inglesa.
Por outro lado, é interessante perceber a preocupação do campo psicanalítico
com o fenômeno. Por exemplo, em relação ao bebê humano, a elaboração freudiana
contida no Projeto Para uma Psicologia Científica sugere que no decorrer das
primeiras experiências infantis sucederiam facilitações que marcariam o
aparato psíquico de modo indelével, sendo responsáveis pela constituição da
memória (os traços mnêmicos) (Freud, 1950). Cabe lembrar o fato da palavra
facilitação usada na Edição Standard das Obras Completas de Freud não é a mais
indicada para dar a idéia contida no termo original Bahnung. A expressão
trilhamento, mais próxima, tanto da significação viária, como da metáfora a que
dá ensejo, parece bem mais conveniente, como assinala Lacan (1988). Além disso,
mais recentemente, em referência aos mecanismos da memória, postulou-se a
ocorrência de uma potenciação de longa duração ao nível neural, com algumas
similaridades à idéia de facilitação/trilhamento proposta por Freud. Neste
caso, ocorreria a participação de receptores estimulantes chamados N-metil D-
aspartato (N.M.D.A.), que teriam como antagonistas os receptores de ácido gama-
amino-butírico (G.A.B.A.). O estabelecimento de tais vias dependeriam da
duração e da freqüência dos estímulos repetitivos, como se houvesse um processo
de aprendizagem (Tomaz, 1993).
Vale mencionar que, ao nível da Neurofisiologia, uma hipótese correspondente
foi desenvolvida pelo francês Jean-Pierre Changeux em sua teoria da epigênese
por estabilização seletiva das sinapses durante os primeiros tempos de vida
(Changeux, 1985). Ou seja, o processo ocorreria para além das determinações de
caráter genético. Neste sentido, há trabalhos em Neurobiologia que mostram a
importância dos fatores neurotróficos nos processos de regressão e morte
neuronal nos primeiros tempos de vida (Linden, 1993).
Entretanto, a concepção de imprinting genômico altera, como mencionou-se, tanto
esta noção como os cânones mendelianos no interior da Genética. Existem
diversas evidências acerca da existência do referido fenômeno nos mamíferos.
Para nossos propósitos, vamos nos deter nas deficiências cromossômicas
observadas em ratos (Swain et al., 1987) e homens.
Há uma forma de doença genética que se manifesta após o nascimento através dos
seguintes sinais: pés e mãos com tamanhos bem menores que os habituais e
apetite reduzido. Em geral, entre os 18-36 meses, a criança começa a
desenvolver hiperfagia e a manifestar retardo mental, que pode ser leve ou
moderado. Além disto, há hipotonia, hipogonadismo, baixa estatura, dismorfismo
facial leve e distúrbios de comportamento. Esta é uma das formas mais comuns de
obesidade genética: a Síndrome de Prader Willi.
Outra doença genética, chamada Síndrome de Angelman, apresenta-se mediante
retardo mental severo, incapacidade de falar, riso deslocado, movimentos
atáxicos (marionete alegre), microbraquicefalia, crises convulsivas,
hipertonia leve e prognatismo, com protrusão lingual (Day, 1993; Driscoll et
al., 1992).
A maioria dos casos de Prader-Willi apresentam a eliminação de um pequeno
segmento de uma das duas cópias do cromossoma 15. Mas, nem todos. Há casos em
que os cromossomas estão aparentemente íntegros (cerca de 1/5 dos casos
apresentam os cromossomas íntegros) (Day, 1993). Por sua vez, a doença de
Angelman pode ocorrer em situações onde há uma cópia defeituosa do cromossoma
15, herdada da mãe. Mas, em muitos afetados, isto não acontece. Enfim, misturas
desequilibradas entre gens paternos e maternos podem surgir de formas
distintas, causando as mesmas doenças (Day, 1993).
Chama a atenção o fato de ambas se constituírem em exemplos de imprinting
genômico. Ou seja, no caso de Prader-Willi, os dois segmentos do cromossoma 15
que estão íntegros provêm da mãe, enquanto que em Angelman, os segmentos
íntegros do mesmo cromossoma originam-se do pai (Driscoll et al., 1992).
A síndrome de Beckwith-Wiedemann também apresenta estas características. O
imprinting conduz a alterações do desenvolvimento e câncer na infância. Bebês
acometidos sofrem crescimento rápido intra-uterino e nascem com anormalidades
físicas. Em algumas situações, atribuem-se a duas cópias paternas do cromossoma
11. Noutras, as cópias são de cada progenitor, mas há uma duplicação errada de
um pequeno segmento do segmento 11 do pai. De todo modo, o desenlace é o mesmo
(Day, 1993).
A relevância destes achados se vincula ao fato de mostrarem que as idéias
mendelianas referentes à transmissão hereditária como resultante da herança de
fatores imutáveis (gens) não são suficientes para explicar uma série de
situações. Deste modo, o modelo mendeliano básico (dominante/recessivo) que
propõe não haver influência na expressão gênica a partir da fonte (pai/mãe) da
informação genética perde seu poder explicativo. Segundo Hall,
Um dos desafios importantes da genética contemporânea é explicar aquelas
características e condições que não mendelizam. É neste respeito que o conceito
de imprinting genômico assumiu progressiva importância, pois pode
proporcionar explicação para uma considerável variedade de observações sobre
condições cuja transmissão genética e expressão não se conformam a predições de
herança gênica única (Hall, 1990: 857)
A idéia de imprinting genômico está sendo utilizada em referência à expressão
distinta do material genético (tanto em nível cromossômico como alélico)
conforme tenha origem materna ou paterna. Além disto, o fenômeno parece ser uma
forma de mecanismo regulatório que permita outra dimensão de plasticidade no
controle e manifestação do genoma dos mamíferos (Hall, 1990).
Vale salientar a existência de hipóteses relativas ao desenvolvimento
apropriado do embrião ser dependente de gens de origem materna. Enquanto que
tecidos extra-embrionários (em especial, a placenta) demandariam gens de
provenientes do pai (Varmuza, 1993).
Assim, temos uma plausível hipótese genômica para a etiopatogenia de dois
dramáticos eventos gravídicos. Caso, por algum acidente biológico durante a
primeira divisão do ovo fertilizado, se produza uma célula com 46 cromossomas
de origem paterna e nenhum materno, não surgirão embriões, mas, sim, um tecido
proliferante de características placentárias a mola hidatiforme. Se,
alternativamente, os 46 cromossomas forem todos provenientes da mãe (e nenhum
do pai), teremos um tumor benigno (teratoma ovariano), composto por muitos
tipos de tecido: conjuntivo, nervoso, ósseo, dentário etc., mas desprovido de
placenta (Day, 1993). Se este for o caso, há trabalhos que sugerem o fato da
evolução humana ser atribuível predominantemente aos gens imprintados das
mães. Pois, as mutações favoráveis precisam ser expressas e transmitidas à
próxima geração. Um gen imprintado oriundo do pai não obteria expressão
embrionária, mas, sim, placentária, diferentemente do gen correspondente da mãe
(Watzman, 1993).
Alguns autores desenvolvem modelos que descrevem os efeitos de controlar o
processo de ativação/desativação do padrão de imprint em gens-alvo do macho e
da fêmea. A conseqüência disto seria o isolamento reprodutivo, de modo a levar
à formação de uma nova espécie (Varmuza, 1993).
Há estudos que atribuem a geração do fenômeno de imprinting a mecanismos
enzimáticos que, sob certas condições, alteram a cadeia de D.N.A. ao incluir ou
excluir radicais metila de sua estrutura (Swain et al., 1987). Este suposto
mecanismo daria margem a um efeito de comutador (liga/desliga) que ativaria ou
não certas disposições biológicas embutidas molecularmente. Além disto, há
indícios que os gens metilados possam estar sujeitos a maior risco de mutação.
No entanto, parece que, a rigor, os mecanismos envolvidos são desconhecidos.
Pois, o fenômeno também tem sido observado em espécies que não sofrem o
processo de metilação (Varmuza, 1993).
De todo modo, o fenômeno se constitui numa modificação epigenética reversível
específica da linhagem germinal. Estudos que permitam o entendimento dos
controles cromossômicos da expressão dos gens irão proporcionar idéias
importantes sobre a regulação gênica e demonstrar o papel de tal herança
epigenética nos processos de desenvolvimento e produção de doenças (Surani et
al., 1993).
A importância do referido fenômeno em termos de Saúde Pública se evidencia
diante das indicações de sua participação na etiologia de diversos tipos de
cânceres da infância. Por exemplo: o tumor de Wilms (origem renal), também
ligado aos casos de Síndrome de Beckwith-Wiedemann. Além disso: cromossoma 9:
leucemia mielóide crônica; cromossoma 11: rabdomiossarcoma, carcinoma
adrenocortical, leucemias (células T e B), carcinoma de células hepáticas,
múltiplas neoplasias endócrinas; cromossoma 13: retinoblastoma, osteossarcoma,
etc. (Hall, 1990). Assim, este enfoque proporciona novos caminhos para
investigações epidemiológicas referentes à oncogênese. O mecanismo molecular
envolvido parece prender-se ao fato da maioria das pessoas possuírem duas
cópias ativas de cada gen supressor, uma de cada progenitor. O tumor surge
quando as duas cópias são incapacitadas na mesma célula. No entanto, costuma
ocorrer um fenômeno peculiar: caso um dos gens supressores sejam afetados (por
mutação na sua seqüência de D.N.A.), o outro acaba por desaparecer da célula,
tornando-a vulnerável à proliferação tumoral (Day, 1993).
Além disto, permite estabelecer hipóteses moleculares (tanto genéticas como
epigenéticas) para estudar outros aspectos. Por exemplo: as razões que levam
determinados indivíduos a serem resistentes a determinadas moléstias infecto-
contagiosas (ou tão-somente portadores assintomáticos), enquanto outros são
suscetíveis. Da mesma forma, em relação a enfermidades crônicas não-
transmissíveis.
No entanto, é preciso levar em conta que, mesmo que se estabeleça o mecanismo
molecular responsável em nível genético ou epigenético, outros processos
ontogenéticos também devem tomar parte. Portanto, constitui-se num desafio
tentar-se delimitar quais outras condições envolvem mecanismos moleculares
genéticos ou imprinting genômico e a quais isto não se aplicaria.
Além disto, tal discussão nos conduz para o problema da hegemonia das
proposições de empreendimento científico ensejado por este modelo de
investigação e seu alcance correspondente. Especialmente no que diz respeito
aos domínios da Saúde Pública, onde se destaca o crucial conceito de risco.
RISCO GENÉTICO E PROPENSÃO HEREDITÁRIA
Como foi mencionado, temos doenças cujas determinações, sejam genéticas, sejam
epigenéticas são bem demarcadas. Nestes casos, o modelo de risco desenvolvido
pela Epidemiologia Moderna alcançaria alto grau de eficácia: o fato de
determinados indivíduos portarem determinados gens ou receberem-nos do pai ou
da mãe delimita com precisão satisfatória a probabilidade de desenvolverem tal
ou qual enfermidade. A rigor, temos aqui condições de fechamento das variáveis
em jogo que permitem a aplicação bem-sucedida do referido modelo (Hayes, 1992).
Mas, mesmo neste nível, há outras doenças cujas configurações moleculares não
sejam tão claramente identificáveis o caso das desordens poligênicas
(resultantes de mutações em quaisquer gens diferentes), ou naquelas em que as
interações sócio-ambientais tenham peso. Nestas circunstâncias, as relações de
risco podem não ser percebidas com os mesmos graus satisfatórios de precisão.
Neste caso, os pressupostos assumidos para que o modelo de risco funcione a
contento se tornam instáveis diante da complexidade dos elementos e/ou de suas
interações em termos de: 1) regularidade dos efeitos empíricos; 2) das
relações causais entre fatores de risco e agravos; 3) dos períodos cronológicos
válidos para a validade preditiva e 4) da abordagem de níveis de organização
distintos, correspondentes a fatores de risco sociais e biológicos (Hayes,
1991).
Assim, o programa de pesquisa baseado no paradigma epidemiológico dos fatores
de risco dá indícios de fragilidade. Perde o poder explicativo pretendido.
Apesar da grande produção de trabalhos que procuram estabelecer relações de
risco entre variados tipos de exposições e diversos agravos, independente das
contingências de fechamento (e previsibilidade) dos fenômenos.
Entretanto, é indiscutível a importância dos avanços das técnicas da Biologia
molecular na apreensão dos elementos genéticos e epigenéticos na etiopatogenia
de muitas enfermidades e distúrbios. Porém, o modelo de risco está
aparentemente circunscrito a condições bem delimitadas, dirigido para a
dimensão referente ao organismo biológico humano. Não leva em consideração seu
caráter dependente do contexto e da dimensão subjetiva e cultural. Sob esta
ótica, as doenças, salvo exceções, via de regra, eclodem como resultante de uma
profusão de eventos interativos.
Então:
O desafio para os epidemiologistas diante do século XXI é desenvolver teorias
causais similarmente sofisticadas que considerem os sistemas complexos nos
quais o processo saúde/doença está imerso. Isto envolve tanto novos avanços
laboratoriais como antigas preocupações quanto ao papel do ambiente sem isolar
cada qual dos sistemas globais dos quais são partes essenciais (Loomis &
Wing, 1990: 3)
Por outro lado, externo à produção científica das afirmações de risco baseadas
na Genética Humana, é importante levar em conta as representações sociais
relativas à idéia de hereditariedade e como esta pode ser responsabilizada pela
gênese e desencadeamento de um grande número de condições e agravos à saúde. A
importância deste aspecto se deve ao fato de estar relacionada a padrões de
conduta que conduzam a situações tanto de exposição como de proteção.
Como ilustração, é relativamente comum escutar-se (ou, até, falar-se...) das
características físicas, conforme puxam traços de progenitores ou outros
parentes consanguíneos, em uma conotação hereditária procedente (dadas as
evidências fenotípicas...). Isto já não é tão evidenciável no caso das
idiossincrasias psíquicas/comportamentais das pessoas. Apesar de serem,
conforme as contingências, atribuídas, hereditariamente a determinado ramo
da família ao qual se alega menor, digamos, qualidade genética...
Nesta perspectiva, encontramos bastante difundida a idéia de propensão
(proneness), com, inclusive, aparentemente, maior aceitação pública que a noção
de risco, produzida pela retórica tecnocientífica. Trata-se de um discurso
acerca dos padrões de adoecimento e de longevidade considerados hereditários no
interior das famílias. Assim, não é incomum encontrarem-se enunciações de
supostas tendências dos indivíduos adoecerem (e, até, morrerem) de enfermidades
que acometeram seus pais/avós etc. Como se houvesse, nestes casos, uma
potencial determinação de caráter fatalista, definida a partir de ramos
anteriores das respectivas árvores genealógicas.
Isto foi observado em um estudo sobre crenças acerca da hereditariedade numa
investigação a respeito das percepções leigas de saúde (especialmente doenças
cardíacas) numa amostra aleatória de adultos no País de Gales. Apesar de todos
os esforços da Educação em Saúde no sentido de enfatizar a importância dos
fatores dietéticos, comportamentais etc. na etiopatogenia das doenças
cardíacas, um número considerável de entrevistados acreditava que os fatores
hereditários se constituíam em determinantes destacados (Davison et al., 1989).
Isto nos leva a cogitar que as representações vinculadas à percepção pública de
risco (tal como produzido pelas disciplinas riscológicas) sofrem
modificações. Pois, apesar de superposições, certamente transitam por níveis
perceptuais e discursivos distintos, comparados àqueles relativos à propensão.
Parece que, a partir da possibilidade do acesso ao genoma humano, propiciada
pela Genética Molecular, o modelo do risco, aparentemente, poderia confluir e
se sobrepor ao discurso da propensão hereditária. E, com isto, adquirir um
estatuto mais vigoroso, e, portanto, mais efetivo para sua aceitação pelas
populações. Apesar de suas limitações, quando aplicado fora das condições de
fechamento dos fenômenos mencionadas anteriormente.
As repercussões desta possível potenciação da retórica do risco não são
negligenciáveis. Especialmente se nos determos na dimensão ideológica (e seus
desdobramentos no terreno político e moral) que subjaz a tal discurso (Lupton,
1993). Isto pode ser observado, por exemplo, nas conseqüências sociais de
caráter punitivo decorrente da possibilidade maior (alto risco) de
seropositividade ao vírus H.I.V. No caso dos exames do genoma, este aspecto
pode se ampliar, diante da ratificação proveniente da explicitude das
evidências (voltaremos a este ponto adiante)...
Além disso, é importante levar em conta os efeitos colaterais das campanhas
de Educação em Saúde, baseadas no enfoque de risco, pois:
(...) há perigo em conceder aos governos o poder de difundir publicidade sobre
riscos à saúde. Conhecimento e fatores de risco podem ser mal-interpretados:
intervenções podem ser inefetivas ou contraprodutivas. A Educação para a Saúde
pode ser coercitiva caso propicie somente um lado da questão (...). As
campanhas de Educação em Saúde, em seus esforços de persuadir, têm o potencial
de manipular informação enganosamente e manipular psicologicamente por meio de
apelos às emoções, medos, ansiedades e sentimentos de culpa das pessoas
(Lupton, 1993: 431)
É preciso encarar o fato de que a objetividade pretendida pelo discurso
científico de risco é discutível. E, portanto, deve ser vista de modo crítico,
sem negligenciar os significados individuais e coletivos que o modelo adquire
na sociedade contemporânea (Lupton, 1993). É perceptível a existência de
fissuras e brechas entre as racionalidades científica e social ao lidarmos, por
exemplo, com o potencial de riscos dos tempos atuais. Mas, mesmo assim, elas
não deixam de permanecerem emaranhadas e interdependentes.
De qualquer forma, o efeito social das definições de risco não tem dependido de
sua validade científica (Beck, 1992). Como menciona Beck:
A não-aceitação da definição científica de riscos não é algo a ser reprovado
como `irracionalidade na população; mas ao contrário, indica que as premissas
culturais de aceitabilidade contidas nas afirmações técnicas e científicas
sobre risco estão erradas (grifos do autor) (Beck, 1992: 58)
A este respeito, alguns estudos mostram resultados reveladores. Por exemplo,
realizou-se uma pesquisa, também no País de Gales, acerca da percepção leiga do
risco genético para mulheres, na eventualidade de se tornarem mães de crianças
femininas veiculadoras do gen defeituoso; ou masculinas afetadas, por uma
doença degenerativa ligada ao cromossoma X, denominada Distrofia Muscular
Duchenne. É possível, mediante história familiar, teste de creatinoquinase e
estudos de D.N.A., chegaremse a estimativas (percentuais) de risco genético
bastante acuradas (Parsons & Atkinson, 1992).
Os resultados mostraram, que apesar do nível cultural da população inglesa, há
tendências a simplificar os valores que lhes são transmitidos por geneticistas.
Por exemplo: tornam-se 50%/ 50% ou risco alto/baixo. No entanto, houve
evidências que grande quantidade de informação se perdeu no processo de
tradução. Na realidade, os riscos genéticos e suas potenciais ameaças à saúde
destas mulheres foram expressos em termos de riscos reprodutivos. Para elas, o
que realmente importava era a capacidade de gerar bebês sadios (Parsons &
Atkinson, 1992).
Isto indica, antes de tudo, que, para decisões a respeito de tópicos de tanta
importância, as informações devem ser transformadas em medidas pessoalmente
significativas (Kessler, 1989). Ou seja, com todo o presumível rigor e potência
do modelo de risco (mesmo genético), é preciso que ele tenha significação e
importância para a vida das pessoas. De outra forma, tende a ser ineficaz para
as finalidades sociais a que se destina.
Neste ponto, cabe enfatizar a evidente ocorrência de descompassos entre as
prescrições técnicas partir do discurso riscológico e suas correspondentes
traduções no universo das representações (e valores) das pessoas. Como se tal
discurso se constituísse, na verdade, numa retórica pertencente a uma cultura
separada da vida, e, portanto de pouca utilidade para o que de fato importa:
viver com seus prazeres, seus limites, suas singularidades [tal conceito foi
rastreado por Teixeira (1993) na obra de Antonin Artaud para estudar aspectos
culturais da Epidemia de S.I.D.A.]. Como diz Kirmayer: (...) Comida e sexo,
medo e desejo, doença e saúde, não obstante tudo que tenha sido elaborado a
este respeito através de modelos semânticos abstratos, eles adquirem sua
urgência e poder a partir dos modos de vida das pessoas. A tentativa de modelar
estas exigências da vida humana como equivalentes a qualquer proposição
sustentada racionalmente ignora sua importância e sua qualidade subjetivamente
irreprimível. A falha em reconhecer a primazia do irracional faz parte de uma
limitação básica dos modelos semânticos racionalistas sua falta de atenção
para a incorporação de significados (Kirmayer, 1992: 330-331)
A partir deste ponto de vista, é possível visualizarem-se razões pelas quais as
prescrições (e proscrições) produzidas pelos discursos médico-epidemiológicos
apresentem tantas dificuldades para serem acatadas. Enfim, são inevitáveis
efeitos colaterais que eclodem ao se evitar o movediço e impreciso território
dos desejos humanos e seus significados...
AS TRIBOS GENOTÍPICAS
Nos início dos anos oitenta, foi descrito um fenômeno no genoma humano que
consiste na observação da existência da repetição de pequenas seqüências
variáveis de bases ligadas de forma peculiar: como um cortejo de seqüências
dispostas de modo que o início de uma se situa após a terminação da anterior.
Tal formato, por analogia, lembra um tipo de charrete carregada por animais
alinhados em fila, cujo nome é tandem.
Assim, o fenômeno recebeu a denominação Variable Number of Tandem Repeats
(V.N.T.R.), ou seja o número variável de repetições de tandem. O número de tais
seqüências pode variar entre indivíduos e entre grupos. Isto permite,
inclusive, sua utilização como procedimento identificatório em práticas
forenses e criminais (Watson et al., 1992; Rabinow, 1993).
Por outro lado, o sistema chamado de H.L.A. (vinculado ao complexo de
histocompatibilidade), relativo aos gens do sistema imune, também permite
estabelecer procedimentos de identificação para grupos étnicos, conforme a
freqüência do número de alelos. Por exemplo, os franceses caucasianos
apresentam 19% para um alelo H.L.A., enquanto os japoneses, 0,2%. Ou seja, os
franceses são mais provavelmente homozigotos que os nipônicos (Rabinow, 1993).
Em termos de validade, pode-se dizer que o H.L.A. tem maior especificidade,
enquanto o V.N.T.R. é mais sensível para a identificação genotípica de
populações.
A técnica de P.C.R. (descrita anteriormente) viabiliza o acesso a cópias de
D.N.A. para verificar a constituição tanto de V.N.T.R. como H.L.A. Com isto,
passa-se a dispor de um potente instrumento de tipagem populacional, dando
margem a desdobramentos importantes em diversos domínios. Já é relativamente
conhecida a possibilidade de obterem-se impressões digitais fidedignas de
cada indivíduo, a partir de seu respectivo D.N.A., com validade jurídica e
criminal (Pena & Jeffreys, 1993).
Sob o ponto de vista epidemiológico, permitiria a discriminação (nos dois
sentidos que a palavra sugere) de populações para estudos de suscetibilidade/
resistência a determinados fatores de risco para uma série de agravos. Isto é,
além das determinações ligadas aos modos de vida, a carga genética de cada um
poderia ser responsável por seus riscos de adoecimento, tanto pelas
fragilidades constitucionais do indivíduo, como por pertencer a grupos
étnicos desfavoráveis...
Talvez não seja absurdo especular a eclosão de uma extemporânea
lombrosianização genotípica capaz de apontar as deformações genéticas e
epigenéticas inscritas no D.N.A. de determinados grupos populacionais
(molecularmente definido) de contrair moléstias infecto-contagiosas (que
ameacem seus vizinhos) ou outras condições crônico-degenerativas (que abreviem
sua sobrevivência), dispensando-os (perversamente) da condição de recipientes
de medidas de saúde, deficitárias nos cálculos das relações de custo/benefício.
Esta problemática foi denominada speciesism por alguns autores de língua
inglesa, numa tentativa de criar-se um termo com as conotações preconceituosas
equivalentes às veiculadas por expressões como racismo e sexismo.
Este tema tem sido abordado por antropólogos como Paul Rabinow. Ele chamou de
biosociabilidade às repercussões sócio-culturais nas vidas das pessoas ao
sofrerem os efeitos da revelação de suas estruturas gênicas (tanto pessoal como
para outros agentes). O citado autor alerta para o recrudescimento de projetos
eugênicos, mediante um processo de genetização de discriminações (Rabinow,
1991).
Nesta perspectiva, a molecularização sanitária pode desempenhar um papel
destacado na identificação de desprioridades, isto é, inações de Saúde
justificadas tecnicamente. Pois, a partir de uma racionalidade epistemológica
aparentemente coesa na teorização do risco, vinculados aos avanços da Biologia
Molecular, tem-se à disposição um vigoroso arsenal conceitual/metodológico.
Mas, é preciso perceber que as determinações de risco (mesmo moleculares), não
carreiam padrões morais abertamente, mas disfarçados sob a capa de uma
moralidade causal (quantitativa e conceitual) implícita. E, portanto, muito
mais perigosa. Como diz Beck: afirmações sobre risco são afirmações morais de
uma sociedade cientificizada (Beck, 1992: 176).
Torna-se, então, essencial dedicar atenção para tal possibilidade. Diante da
lógica subjacente às respectivas argumentações, propiciada pela ciência
molecular, não é despropositado cogitar-se em concepções operatórias
científicas e modos de intervenção decorrentes como justificativa para
projetos de disfarçada índole eugênica. Isto se torna especialmente candente em
função dos indícios de um clima social onde não parece tão absurda a eliminação
de contingentes populacionais ameaçadores, facilmente perceptíveis no cotidiano
assustadiço dos nossos centros urbanos.
EXPERT EM SAÚDE PÚBLICA? (MOLECULAR!?)
Agora, cabe a pergunta: como conceber um profissional de Saúde Pública apto a
lidar com a constatação que nos colocam os tempos atuais? Isto é: como
enfrentar simultaneamente problemas complexos, diversificados e dramáticos?
Antes de tudo, tenha-se clareza que estamos confrontados por uma série de
dilemas. Qual deverá, por exemplo, ser o perfil do sanitarista, de modo a
dispor de instrumentos para, pelo menos, como diria Bateson, cartografar um
terreno cada vez menos familiar?
Não basta pensar que os atuais problemas de demarcação (e atuação) da Saúde
Pública permanecem relacionados somente às suas reconhecidas características de
multidisciplinaridade. Que, por sinal, estariam bem mais acentuadas em função
dos acelerados processos de ultra-especialização e fragmentação que atinge o
campo dos saberes (sanitários ou não).
Infelizmente, trata-se de algo bem mais grave e complexo, a ponto de desafiar
nossa capacidade de delimitação. Já vai longe o tempo em que parecia suficiente
para a formação do dito sanitarista, o acesso às conhecidas disciplinas
aplicadas e constitutivas do edifício da Saúde Pública (Ciências Sociais,
Epidemiologia e Métodos Quantitativos, Planejamento/Administração, Ciências
Biológicas, Saneamento Ambiental, Saúde Ocupacional etc.).
A rigor, como sugeriu-se ao início, o sanitarista (ou qualquer denominação que
se lhe dê) é atualmente um perplexo administrador de estranhezas. Pois (apesar
do jogo de palavras parecer abusivo), seus domínios (da Saúde Pública) fogem a
seu domínio. Além disso, a própria definição de sua expertise é especialmente
problemática. Mas, é possível encarar a ídéia do profissional deste domínio
como um expert? [a utilização do termo na língua inglesa, comum na língua
portuguesa, foi mantida. Evitou-se a expressão experto por sua reduzida
utilização (quiçá) pela incômoda homofonia, que, eventualmente, pode dar margem
a associações jocosas...].
Em geral, o termo expert refere-se ao indivíduo que possuiria reconhecidas
habilidades e/ou conhecimentos específicos sobre determinado campo de
atividade/saber. Estas prerrogativas atribuiriam-lhe autoridade para tomar
decisões, agir, enfim, abordar aspectos pertencentes a sua correspondente área
de indiscutível competência.
Mas, idéias como autoridade, competência, expertise nem sempre são
claras. Não cabe desenvolvê-las neste espaço. Aqui, considera-se que a noção de
expert deveria implicar no fato de tal autoridade ser supostamente sólida em
virtude de treinamento apropriado, aptidão e/ou experiência adquirida ao longo
do tempo. Portanto, a noção de expertise subjaz às supostas condições técnicas
para atuar no correspondente ramo de atividade.
De qualquer modo, é importante caracterizar o que se pretende designar ao
tratar-se de expertise. Dois critérios básicos devem levar-se em conta: 1)
capacidade de propor justificativas consistentes para uma faixa de proposições
em um domínio específico; 2) aptidão de desempenhar uma determinada habilidade.
Assim, expertise assinalaria a possibilidade de propor opiniões abalizadas (ou
competentes) (sentido 1) ou demonstrar habilidades evidentes para o desempenho
de tarefas específicas (sentido 2) (Weinstein, 1993). Parece ficar claro que
trata-se da capacidade de atingir os melhores resultados possíveis (em suma,
uma idéia de eficácia).
É importante, ainda, mencionar o fato de um expert não necessitar
obrigatoriamente ser um especialista. Por exemplo, um clínico geral pode ter
expertise no seu campo sem ser especialista. Tal ressalva é importante, pois se
aplica ao revés, mutatis mutandis, na problemática definição de sanitarista.
Pois, ainda que ele/ela tenham certificados de especialistas em Saúde Pública
e/ou tempo de experiência na carreira e/ou estejam definidos como tais em sua
atividade profissional, tais critérios não os tornam necessariamente experts.
Ou, ainda, caso sejam experts em determinada área, o profissional corre o risco
de não estar aplicando tal expertise no seu presente campo de atuação. Não
parece obrigatório, portanto, para se ser(estar) sanitarista, que os
profissionais sejam indiscutíveis experts [há um substantivo usado comumente de
forma pejorativa tecnocrata, que ao designar algum profissional do Setor
Saúde (biotecnocrata?) passa a carregar três estigmas conjugados: 1) o fato de
ser contaminado por uma dimensão técnica restritiva, destituída de uma visão
humanizada; 2) a visão administrativa rígida e limitada, presa aos
procedimentos ditos burocráticos, ou seja, que perderam sua dimensão
gerencial; 3) pouco prestígio e pequena participação nas decisões no interior
do aparelho de Estado...].
Mas, ao nosso ver, diante da amplitude do campo sanitário, com diversos
subdomínios (Planejamento em Saúde, Epidemiologia, Saneamento Ambiental etc.) a
noção de expert em Saúde Pública se torna inadequada. A rigor, pode-se pensar
nesta ídéia quando aplicada aos referidos subdomínios. Ainda assim, com
ressalvas.
Pois, diante do atual processo de problematização epistemológica e fragmentação
dos saberes (do qual a Saúde Pública não escapa), surgem novas disciplinas (por
exemplo, a Bioética) e o desenvolvimento de áreas de interface que podem se
constituir em subespecialidades (por exemplo, as relações das áreas
constituintes da Saúde Pública com a Genética Molecular). Nesta perspectiva,
será preciso considerar tal emergência de subáreas no campo sanitário e a
decorrente possibilidade (necessidade, em alguns casos) de produzir seus
respectivos especialistas (e experts). Portanto, a Saúde Pública reconhecida
por sua tradicional característica multidisciplinar, além dos processos de
interdisciplinaridade em curso, passa a exigir uma abordagem transdisciplinar.
O ESTADO E AS PRIORIDADES EM SAÚDE
Outro elemento complicador para a atuação do sanitarista se origina nas
enredadas relações da Saúde Pública com o Estado. É inegável que a configuração
assumida pelo campo sanitário reflete a respectiva índole político/ideológica
da formação sócio-econômica de onde emerge. Daí seu caráter histórico-
estrutural.
Não há como esquivar-se das atuais conflagrações que atingem o setor. Este tem
sido foco de perspicazes estudiosos do tema (Gonçalves, 1986; Possas, 1989;
Franco et al., 1991; Merhy, 1991; Paim 1992). Não se pode, sob hipótese alguma,
negligenciar tal ordem de problemas, especialmente em um contexto onde se
presenciam (e se sofrem) cotidianamente os terríveis efeitos da atual
hipercrise sanitária.
Mesmo assim, tais relações não admitem leituras apressadas. Não se deve propor
uma vinculação associativa imediata nas franjas de interferência entre o
contexto mais geral das crises em nível do Estado e as tendências assumidas
pelas políticas públicas internamente ao campo da Saúde Pública. Há confluência
(e conflitos) entre diversos (f)atores em diferentes patamares que intermediam
e especificam as resultantes deste processo (Oliveira, 1988). A compreensão
destes agenciamentos é de suma relevância para a a percepção do quadro
político-administrativo do setor e de seus intrincados movimentos.
Além disso, os citados fenômenos de complexificação e fragmentação dos
processos sociais e biológicos demandam novos rumos teórico-metodológicos e
éticos para sua abordagem. Por exemplo, as teorizações a respeito da ótica da
complexidade podem servir como pauta preliminar para novas formulações em busca
de superação das referidas limitações (Schramm, 1993; Castiel, 1994).
No entanto, mesmo levando em conta a possível inadequação da expressão Saúde
Pública molecular, ela serve para chamar a atenção para aspectos que não podem
ser negligenciados por serem vistos, equivocadamente, como não-prioritários.
Desafortunadamente, não são. Vivemos, nos tempos atuais, sob a égide da
simultaneidade, da co-existência e interpenetração de múltiplos territórios,
que teimam em escapar aos nossos esforços delimitadores.
A propósito, nas circunstâncias atuais, a noção de prioridade tão cara à
lógica racionalizadora para instrumentalizar decisões políticas relativas a
procedimentos sanitários sofre grande desgaste em sua significação.
Conseqüentemente, sua função operativa se enfraquece. Para onde quer que se
dirija nosso olhar, aí encontraremos potenciais prioridades.
Assim, por um lado, é essencial enfrentar os dramáticos desafios de nossa
realidade, decorrentes das profundas desigualdades sociais responsáveis pela
miséria (e doença) de grandes parcelas de nossa população. Por outro, não se
sustenta (nem é aceitável) omitir-se diante das repercussões e desdobramentos
carreados pela Biotecnologia, Engenharia Genética e disciplinas correlatas.
Independente de nossa capacidade de lidar com tantas e avassaladoras
transformações, seus aspectos industriais, econômicos, científicos e éticos
(entre outros), estão invadindo progressivamente nosso objeto de estudos e
campo de práticas.
Torna-se imperioso, apesar das perplexidades, estimular e ampliar discussões a
este respeito pelos setores responsáveis pela Saúde Pública. Esta ordem de
preocupações já está sendo merecedora de atenção e pode ser observada, por
exemplo, no Relatório final do II Congresso Interno da Fundação Oswaldo Cruz ao
abordar prioridades sociais e políticas de saúde:
(...) as mudanças que se estão processando no campo científico, nas áreas de
fronteira do diagnóstico ou tratamento, chegarão ao Brasil de qualquer forma,
sendo responsabilidade do Estado torná-las acessíveis à maioria do povo
brasileiro (Fiocruz, 1993: 6)
Assim, apesar do mencionado desgaste da idéia de prioridade, para ainda mantê-
la operativa, o citado relatório sugere, com pertinência, que não há mais lugar
para opções de caráter exclusivo. Mas, sim, alternativamente, pensar em uma
estratégia de investimentos concentrados (...) de natureza diversificada, em
base à identificação de nichos (...) (Fiocruz, 1993: 6).
Neste sentido, torna-se cada vez mais difícil manter distanciamento das
questões trazidas pelo nicho da Genética molecular. Elas demandam uma
inevitável reflexão em relação tanto a nossas práticas em pesquisa, em ensino
e/ou na assistência, como na formação de respectivas competências em Saúde
Pública. Apesar da aparente obviedade, em função das flagrantes distorções que
atingem nossas instituições (em múltiplos níveis), é importante enfatizar:
caso, é claro, a preocupação de fato com a saúde pública seja primordial para o
Estado brasileiro.