Tempos históricos, tempos físicos, tempos epidemiológicos: prováveis
contribuições de Fernand Braudel e Ilya Prigogine ao pensamento epidemiológico
Introdução
Há alguns anos interrogo-me sobre o aforismo epidemiológico tempo-lugar-pessoa,
que pode ser lido como tempo-espaço-populaçãoem uma perspectiva mais complexa.
Minha curiosidade repousa exatamente na ausência de discussões específicas
concernentes à categoria tempo em epidemiologia.
Na ambientação crítica dos epidemiologistas latino-americanos, o elemento
população do aforismo tem sido objeto comum de debates em virtude do próprio
caráter coletivo e social da disciplina, e o espaço foi recentemente revestido
no discurso epidemiológico de novo sentido (Silva, 1985; Sabroza et al., 1992)
mediante os aportes originados das transformações ocorridas na geografia
(Moraes, 1993). No entanto, mesmo neste contexto, o elemento tempo parece não
ser objeto de curiosidade da disciplina. Pelo menos no que diz respeito à
formulação de discussões específicas e abordagens aprofundadas.
É interessante apontar esta aparente falta de preocupação com o tema, quando se
percebe como alguns conceitos clássicos da disciplina são suportados
fundamentalmente pela perspectiva do tempo. Conceitos como sazonalidadee
tendência secular das doenças, por exemplo, são delineadas exatamente em função
do tempo. Além disso, a classificação tradicional dos estudos epidemiológicos
em transversais, caso-controle e coorte ancora-se no tempo, do mesmo modo que a
distinção básica entre endemia e epidemia, como apontam Sournia & Ruffie
(1985:181), "faz inserir o parâmetro tempo na história da saúde dos
homens".
Certamente, todos estes conceitos envolvem contextualizações de representações
de espaço e de tempo, embora este último apareça como elemento silencioso,
desde que não é contemplado com uma atenção capaz de propiciar suporte teórico
específico aprofundado, possibilitando dessa maneira, inclusive, uma análise
crítica da própria epidemiologia.
Tudo se passa como se o tempo sempre existisse e disso os epidemiologistas
nunca tenham duvidado, sem que, de fato, a epidemiologia necessitasse discuti-
lo, abordá-lo ou, num sentido mais extremo e exato, considerá-lo. A
epidemiologia parece não refletir acerca das representações que faz do tempo.
Por outro lado, a ciência, como um todo, se revigora com as perspectivas e
experiências interdisciplinares, sendo que, nestas mobilizações, o tempo tem
sido objeto bastante freqüente. Novos olhares, que admitem o espaço como
produto social historicamente construído (Santos, 1990), têm transformado a
geografia, ao passo que diferentes perspectivas do tempo como as discussões
sobre as relações entre o "acontecimento", o "evento", e a
"longa duração", entre mudança e permanência (Nora, 1988; Vovelle,
1990; Braudel, 1992) movimentam uma "história nova". Além disso, a
dinâmica temporal evolutiva da biologia surge como objeto de discussão (Gould
& Eldredge, 1977) e a irreversibilidade, a flecha do tempo, revela-se tema
fundamental presente nos debates da física contemporânea (Prigogine &
Stengers, 1984).
O tempo, portanto, pode representar para a epidemiologia um elemento importante
no trânsito interdisciplinar, possibilitando melhor entendimento do adoecer
humano coletivo.
Assim, o propósito deste texto é, a partir do ponto de vista do tempo, olhar a
história e a física e, depois, retornar à epidemiologia com o intuito de
informar a disciplina quanto a estes outros tempos, tecendo comparações e
apontando possíveis contribuições em relação ao pensamento epidemiológico.
O tempo histórico de Fernand Braudel
No âmbito da história, a pretensão aqui é apresentar as reflexões acerca do
tempo postas em marcha pela história novafrancesa, alimentadas por autores que
se movimentado-se em torno da revista Annales D'Histoire Économique et Sociale,
fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch. A chamada Escola dos Annales
convém que seja dito não representou um bloco monolítico de pensamento, mas,
em um movimento que se internacionalizou, promoveu profundas transformações na
ciência da história. No entender de Burke (1991), os pontos gerais comuns desse
deslocamento seriam: a orientação para uma história-problema em substituição à
tradicional narrativa de acontecimentos, bem como a interdisciplinaridade e a
busca da história de todas as atividades humanas.
O tempo, no que concerne à dinâmica das mudanças e permanências sociais, é o
objeto da história por excelência, sendo que, na percepção de Reis (1994a), se
a história nova francesa pretende ser chamada de nouvelle,é porque apresenta
uma concepção diferente do tempo histórico ao enfatizar principalmente a longa
duração, o tempo longo. Neste aspecto, o personagem fundamental é o grande
historiador de uma segunda fase dos Annales, nos anos 1950 e 60, Fernand
Braudel, com sua dialética da duração.
As transformações do tempo histórico promovidas pela nouvelle histoire centram-
se na forma de perceber a relação entre a mudança o evento e a permanência
o tempo longo. Contrapondo-se à história tradicional, por demais entregue ao
evento, os historiadores da nova história mergulharam na estrutura, na longa
duração, onde estão os seres humanos comuns, anônimos, em seu cotidiano.
Perceberam aqueles que é na escuridão da profundidade, até então pouco
visitada, que se encontra a lentidão da cultura, a resistência dos hábitos e
valores, os movimentos repetitivos, por vezes inconscientes, característicos da
luta humana contra os obstáculos sociais e naturais. Neste sentido, a
perspectiva dos Annalessignificou também o surgimento de personagens antes
desprezados, esquecidos e desconhecidos, como as mulheres, os pobres, os
marginais; novos temas de investigação emergiram da profundidade, tais como os
sentidos, os sonhos, os costumes, asmentalidades; inéditas formas de abordar os
temas passaram a utilizar novas fontes documentais, de modo que os elementos
produzidos involuntariamente tornaram-se fontes prioritárias, e a história
passou a não se esgotar mais nos documentos oficiais, em uma história do Estado
produzida intencionalmente, na qual os historiadores tradicionais só percebiam
os eventos, os acontecimentos rápidos, e deles só retiravam vultos, heróis e
datas. O evento, a mudança, para ser percebido, deve emergir da permanência, do
tempo longo, das prisões da longa duração, para usar uma expressão de Braudel.
Construir uma dialética da duração, em que a estrutura, a conjuntura e o
evento, ou seja, os tempos longo, médio e curto sejam apreciados e
distinguidos, é o projeto de Fernand Braudel, em torno do qual esta discussão
está centrada.
O tempo histórico de Braudel é próximo do estruturalismo das ciências sociais,
mas, diferentemente deste, não negligencia o evento, como explica José Carlos
Reis em seu livro Nouvelle histoire e tempo histórico as contribuições de
Febvre, Bloch e Braudel (Reis, 1994a). A dialética da duração de Braudel
consiste em, na perseguição ao tempo coletivo, ultrapassar o indivíduo e o
evento sem negá-los, já que os integra em uma realidade mais complexa. As
estruturas são elementos da longa duração, lentos, aparentemente imóveis,
contínuos, permanentes; sustentam as oscilações cíclicas do tempo médio e
exercem sobre os eventos uma contenção. O tempo médio é constituído pelas
conjunturas, ciclos e interciclos que podem potencializar-se ou anular-se
reciprocamente, dando uma impressão de imobilidade que o olhar do tempo longo
vai esclarecer, permitindo a visualização do curso irreversível do tempo
histórico. É esta perspectiva que vai possibilitar a explicação do evento, do
tempo curto, que, junto com os tempos longo e médio, compõe a dialética da
duração.
A dialética da duração de Braudel é, portanto, um tempo composto,
fundamentalmente coletivo, que não tem a duração do indivíduo, mas sim a de
décadas, séculos. Em sua complexidade e interdisciplinaridade, admite a
coexistência de velocidades e orientações diferentes, permitindo, assim, a
visualização da multiplicidade, dos tempos plurais que conformam os ritmos dos
grupos sociais ao movimentarem suas vidas.
Para Braudel (1992:43, 49), a importância da dialética da duração está na
percepção da pluralidade do tempo social, na "oposição viva, íntima,
repetida indefinidamente entre o instante e o tempo lento a escoar-se". A
base deste tempo dialético é a estrutura, uma arquitetura, articulação,
"uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente".
Reis (1994a), ao discutir a contribuição de Braudel para o tempo histórico,
analisa principalmente duas de suas grandes obras: La Mediterranée et le monde
méditerranéen à l'époque de Phillipe II primeira edição de 1949 e segunda de
1966 (Braudel, 1984) e Civilisation matérielle, economie et capitalisme,de
1979 (Braudel, 1996).
Em O Mediterrâneo ...,Reis (1994a) esclarece, o primeiro volume é o da longa
duração e está posicionado sob o signo da geografia humana. Examina as
repetições, a história lenta, quase imóvel, que traduz as relações dos seres
humanos com o meio natural que os cerca. Os costumes, os hábitos, a
sobrevivência vinculam-se ao clima, à paisagem. "Se a história tradicional
se interessava somente pelas crises destes movimentos lentos, Braudel quer se
interessar pelas lentas preparações destas crises e pelas intermináveis
conseqüências que as sucedem"(Reis, 1994a:77). O segundo volume de O
Mediterrâneo ...está marcado pelas ciências sociais, a sociologia, a economia,
a demografia, a antropologia, e seu objeto é o homem social em suas relações
societárias nos sensos político e econômico não no tempo longo por excelência,
mas nas conjunturas do tempo médio, no limbo entre mudança e permanência. Já o
terceiro volume é o livro do tempo curto, dos eventos que cercam a vida de um
vulto: Felipe II. É o exemplar da história tradicional, que, no entanto, não
pode ser isolado do contexto da obra, só sendo compreendido adequadamente
quando inserido na dialética da duração.
Para Reis (1994a:79), um dos aspectos centrais da obra de Braudel é o conceito
de ritmo e isto pode ser visto em O Mediterrâneo ... . No tempo longo existem
os ritmos diferenciados da vida na planície, no deserto, no mar, nas ilhas, e,
dentro de cada um destes, há outros ritmos de vidas particulares. Braudel quer
mostrá-los em "suas singularidades e evitando o estereótipo. Há uma vida
montanhesa, mas os montanheses não são sempre os mesmos. Há uma vida na
planície, mas há vidas diferentes na planície". Estes ritmos locais e
regionais marcados pela espacialização geográfica no primeiro volume da obra,
combinam-se aos ritmos sociais dos grupos de indivíduos percebidos no segundo
volume, e esta combinação vai possibilitar a visualização dos eventos do tempo
curto do terceiro volume. Braudel pretende fazer estes ritmos convergirem na
unidade histórica do Mediterrâneo do século XVI através da construção de um
tempo econômico-social-demográfico-cultural em que as divergências não devem
ser suprimidas, mas identificadas.
Esta perspectiva também é seguida em Civilização material ..., onde Braudel
relaciona três níveis. A "civilização material", o nível quase imóvel
da economia informal, da produção cotidiana e das trocas de auto-subsistência,
em que predominam os fatos pequenos e repetitivos, onde "semeia-se como
sempre, trabalha-se como sempre, navega-se como sempre"(Reis, 1994a:106).
Acima deste plano, e a ele ligado dialeticamente, emerge o tempo médio do mundo
do "mercado", no qual as realidades são mais conscientes e as trocas,
reguladas pela concorrência. O terceiro nível, o do "capitalismo", é
um nível transnacional, mundial, regularizado pelo monopólio, conformando um
mundo de iniciados com saberes e poderes inacessíveis ao homem comum, onde as
trocas são fundadas mais em uma relação de força do que sobre as necessidades.
É assim que Braudel constrói sua dialética da duração, relacionando estrutura,
conjuntura e evento. Enquanto em O Mediterrâneo ... o tempo curto foi quase
eliminado, em Civilização material ..., o evento, o capitalismo, domina os
níveis da longa e média duração e se constitui no tempo do mundo que invadirá
todos os interiores.
Braudel (1987:19-20) visualiza estrutura, conjuntura e evento como camadascuja
espessura vai se modificando com o correr da história. No entanto, o tempo
longo, "o reino do habitual, do rotineiro (...) invade o conjunto da vida
dos homens, difunde-se nela como a sombra da tarde enche uma paisagem".
Reis (1994a) percebe que na obra de Braudel estão envolvidos três tipos de
tempo: a reconstrução, ou seja, a organização do material do conhecimento, a
concepção do autor e o tempo vivido da realidade. Braudel inclui, portanto, em
sua dialética da duração, o tempo real e o tempo reconstruído; o tempo
reconstruído e a visão geral da história do historiador, "e tanto no tempo
real quanto no reconstruído, as relações de exclusão e inclusão das dimensões
longa, média e curta das durações" (Reis, 1994a: 82). Desse modo é que
percebe e identifica descontinuidades e assimetrias na continuidade do tempo
longo e obtém um resultado complexo, não-linear, não-determinista, onde as
coletividades movimentam a história.
O fundamental para Braudel (1992) é a aplicação de um modelo que compreenda a
multiplicidade das durações. Qualquer objeto de investigação deverá ser situado
nesta dialética da duração, sendo envolvido pelo historiador em uma rede de
tempos diferenciados, de modo a não ser reduzido nem à longa, nem à média, nem
à curta duração (Reis, 1994a).
A pesquisa, diz Braudel (1992:68), "deve ser sempre conduzida, da
realidade social ao modelo, depois deste àquela, e assim por diante, por uma
seqüência de retoques, de viagens pacientemente renovadas".
Quanto à utilização de suas reflexões sobre o tempo por outras disciplinas,
Braudel (1992: 44), num artigo clássico a respeito da "longa duração"
publicado originalmente em 1958, é justamente quem prescreve:
"talvez, de nossa parte, tenhamos alguma coisa a lhes dar. Das
experiências e tentativas recentes da história, desprende-se consciente ou
não, aceita ou não uma noção cada vez mais precisa da multiplicidade do tempo
e do valor excepcional do tempo longo. Esta última noção, mais que a própria
história a história das cem faces deveria interessar às ciências sociais,
nossas vizinhas".
O tempo físico de Ilya Prigogine
Algumas descobertas recentes têm revelado um tempo físico irreversível, o que
contraria a dinâmica clássica e sua reversibilidade do tempo. Neste aspecto,
uma das perspectivas mais interessantes é a do físico-químico belga, de origem
russa, Ilya Prigogine, com a proposta de uma "termodinâmica
generalizada" inspirada em suas contribuições para a compreensão das
estruturas dissipativasque lhe valeram o Prêmio Nobel de Química de 1977.
Segundo Prigogine (1988), a ciência herdou do século XIX duas concepções
fundamentais, porém aparentemente paradoxais: a visão mecanicista, determinista
e reversível, baseada em negação do tempo, e a visão termodinâmica,
fundamentada no crescimento da entropia, que conduz à morte térmica
irremediável. No século XX surgiram a mecânica quântica e a relatividade, mas
nenhuma destas rompeu com a intemporalidade da física clássica.
A termodinâmica surgiu no século XIX, envolvendo em seu contexto o aparecimento
das máquinas térmicas que movimentaram a revolução industrial, suportadas na
constatação de que "a combustão liberta calor, e o calor pode provocar uma
variação de volume, quer dizer, pode provocar um efeito mecânico"
(Prigogine & Stengers, 1984:83).
Em 1847, Joule denominou de conversão as transformações de ordem qualitativa
envolvidas neste processo que resultava em um efeito mecânico e que representam
"a conexão entre a química, a ciência do calor, a eletricidade, o
magnetismo e a biologia"(Prigogine & Stengers, 1984:87). Joule também
definiu um equivalentegeral das transformações físico-químicas que possibilita
o meio de medir a grandeza conservada quantitativamente nestas transformações,
posteriormente chamada de energia. É uma função de estado, uma grandeza física
que se conserva nas transformações sofridas pelos sistemas físicos, químicos e
biológicos, a qual, no entender de Prigogine & Stengers (1984:88), a partir
de então vai "ser colocada na base do que podemos chamar de ciência do
complexo, e vai constituir o fio condutor que permitirá explorar de maneira
coerente a multiplicidade dos processos naturais".
No entanto, como explicam Prigogine & Stengers (1984), o processo era
pensado em termos da relação em que o trabalho produzido era dependente do grau
de perfeição do funcionamento das máquinas, ou seja, a questão se resumia ao
rendimento ideal que poderia ser prejudicado por atritos e fricções do
mecanismo, mas jamais por perda inerente ao processo de transformação da
matéria. Mesmo porque a idéia de conservação que rege a ciência dos séculos
XVIII e XIX somente admite a diferença pela substituição de outra diferença,
nunca pela eliminação. Em relação ao movimento, essa ciência admite que apenas
é possível transformá-lo e transferi-lo aos outros corpos, concepção que também
orientou a termodinâmica de Sadi Carnot quando, em 1824, enunciou o princípio
da conservação de energia, o primeiro princípio da termodinâmica.
Quanto à termodinâmica clássica, Prigogine & Stengers (1984) esclarecem que
a conservação de energia é condição de todos os sistemas, efetuando-se as
trocas apenas de forma fechada e reversível; neste sentido, é justamente a
perspectiva das perdas que introduz na física a irreversibilidade e a flecha do
tempo. No entanto, se o conceito de irreversibilidade descreve "um mundo
que queima como uma fornalha, sem recuperação concebível" (Prigogine &
Stengers, 1984:91), a energia, embora conservando-se, precisa dissipar-se, ou
seja, diante da condição de conservação expressa no primeiro princípio, a perda
só poderia ser considerada com a revelação de uma nova função de estado, a
entropia.
Conceituada por Clausius em 1865, a entropia está ligada às trocas caloríficas
entre os sistemas físicos que são construções espaciais abstratas e o meio
exterior chamado mundo exterior e faz parte do segundo princípio da
termodinâmica. Mantendo-se a idéia da conservação da energia enunciada no
primeiro princípio, torna-se possível fazer variar um estado através da
entropia. As trocas com o meio produzem no interior do sistema transformações
irreversíveis responsáveis pela queda de rendimento observada no ciclo de
Carnot, a qual não é explicada sem a idéia de entropia.
Matematicamente, conforme explicam Prigogine & Stengers (1984), sendo S a
entropia, temos dS=deS+diS, onde deS descreve o fluxo de entropia entre o
sistema e o meio, e diS, a entropia produzida no interior do sistema, ou seja,
as transformações irreversíveis mencionadas. Por definição, diS terá sempre
valor positivo ou nulo e deS poderá ter valor negativo, nulo ou positivo,
dependendo dos sistemas serem isolados, fechadosou abertos, sendo estes últimos
aqueles que trocam matéria e energia com o mundo exterior. Desta forma, em um
sistema isolado que não troca matéria nem energia com o exterior o fluxo de
entropia é nulo, só subsistindo o termo de produção de entropia, diS, de modo
que a entropia apenas pode aumentar ou permanecer constante.
Desta forma, "para todo o sistema isolado, o futuro é a direção na qual a
entropia aumenta" (Prigogine & Stengers, 1984:96), o que traduziria
uma evolução espontânea do sistema e a existência física de uma flecha do
tempo. Tem-se, assim, o segundo princípio da termodinâmica: todo o sistema
evolui para a entropia máxima, um estado de equilíbrio onde nenhuma
reversibilidade será possível. A morte térmica. Situação de equilíbrio que
funciona como verdadeiro atrator dos estados de não-equilíbrio. Um estado
atrator correspondente à máxima desordem do sistema, ao equilíbrio e à máxima
entropia.
Embora tais postulações fossem possíveis ao nível de uma física macroscópica,
tornava-se necessário trabalhá-las ao nível microscópico, o que foi feito por
Boltzmann ao introduzir a probabilidade na física, ainda no século XIX. O
Princípio da Ordem de Boltzmann parte da hipotética existência de um sistema
composto por um número N de elementos colocados em uma caixa dividida em dois
compartimentos. Para conhecer a probabilidade de ter N1 elementos num
compartimento e N2=N-N1 no outro, recorre-se à teoria das probabilidades.
Considerando-se P o número de repartições que fará chegar a N1=N2=N/2, obtém-se
um valor de P tanto maior quanto menor a diferença entre N1 e N2, e o maior
valor de P quando N1=N2=N/2. Além do que, quanto maior for N, maior será o
número de repartições assimétricas, ou seja, será cada vez maior o
"esquecimento" em relação ao estado inicial, à "dissimetria
inicial" (Prigogine & Stengers, 1984: 100). Ao ser atingido o
equilíbrio no caso dos sistemas microscópicos, os afastamentos desse estado
serão cada vez menos possíveis e a distribuição dos elementos do sistema
flutuará em volta do estado atrator, que é o do equilíbrio.
A partir desta perspectiva, que continua considerando um sistema isolado, o
Princípio da Ordem de Boltzmann foi generalizado para os sistemas fechados e
abertos, revelando-se capaz de "compreender a singularidade dos estados
atrativos que são estudados pela termodinâmica do equilíbrio" (Prigogine
& Stengers, 1984:100). Desta forma, Boltzmann foi o primeiro a mostrar que
podia interpretar o crescimento irreversível da entropia como medida da
desordem molecular.
Uma questão, no entanto, a termodinâmica do equilíbrio não resolvia: diante do
conhecimento até aqui exposto, como explicar os organismos vivos que parecem
não evoluir para um estado de equilíbrio, desordem e entropia máxima? É neste
sentido que Prigogine (1972) observa que toda a discussão sobre a posição da
biologia com relação às ciências físicas conduz cedo ou tarde ao problema da
situação dos sistemas vivos em relação às grandes leis de organização da
física. Quanto a isto, segundo Prigogine, a maioria dos biólogos atualmente
insiste em que o teorema do crescimento da entropia seria aplicável, no caso da
vida, ao conjunto sistema vivo-meio ambiente. Neste âmbito, os sistemas vivos
seriam considerados sistemas abertos trocando energia com o meio, de tal forma
que o crescimento da entropia valeria não para os sistemas vivos tomados
isoladamente, em cujo interior a entropia diminuiria em favor de uma
organização cada vez maior, mas para a totalidade do conjunto. Por conseguinte,
o Princípio da Ordem de Boltzmann também seria adequado à situação.
Mas Prigogine & Stengers (1984:102) argumentam que tal perspectiva não é
correta, pois, quando consideramos uma célula ou uma cidade, percebemos que
estes sistemas, além de serem abertos, vivem da sua abertura. "Alimentam-
se do fluxo de matéria e energia que vem do mundo exterior. Está excluído que
uma cidade, ou uma célula viva, evolua para uma compensação mútua, um
equilíbrio entre os fluxos que entram e saem". A cidade e a célula
morrerão se isoladas do seu meio, pois são uma espécie de
"encarnação" dos fluxos que transformam continuamente.
Prigogine (1972) explica que as teorias da termodinâmica, da evolução biológica
e sociológica foram formuladas à mesma época, embora contrariamente à idéia
termodinâmica de evolução para a desordem máxima e o equilíbrio no estado de
entropia máxima, as idéias de evolução em biologia e sociologia estão
associadas a uma organização crescente, a uma ordem, portanto, e à formação de
estruturas mais e mais complexas. Desta forma, Prigogine não julga adequada aos
organismos vivos a termodinâmica do equilíbrio enquanto modelo de explicação.
Para ele, a perspectiva correta no que diz respeito à explicação da vida
estaria compreendida dentro de uma "termodinâmica da vida" e
consistiria na consideração de sistemas abertos que contam com reservatórios
externos de matéria e energia suficientemente grandes para suportarem um estado
permanente de não-equilíbrio. Assim é que encontraremos associação entre os
sistemas vivos e as estruturas dissipativasda física.
Enquanto o Princípio da Ordem de Boltzmann que descreve o segundo princípio
da termodinâmica mostra-se adequado aos estados de equilíbrio, não o é para
as estruturas dissipativas, que estão associadas a um princípio de ordem
diferente, o da ordem por flutuação. As estruturas dissipativas são estados
instáveis, porém contínuos, que oscilam em torno do estado atrator de
equilíbrio. Compreendidas no âmbito de uma termodinâmica do não-equilíbrio,
tais estruturas representam, no entender de Prigogine, uma perspectiva adequada
à explicação dos sistemas vivos e sua orientação para a ordem e o não-
equilíbrio.
Para Goldbeter (1988), a alternância dos dias e das noites, as mudanças de
clima e as estações dão ritmo ao escoamento irreversível do tempo. Os seres
vivos conformam ritmos biológicos em consonância com as variações periódicas do
meio. A vida humana, por exemplo, não se poderia manter sem os ritmos que
governam a respiração, as atividades dos neurônios e do coração. Os processos
químicos e de transporte biológico envolvidos na vida, tais como as reações
enzimáticas e o transporte de íons através de membranas, parecem obedecer
também a certa ordem por flutuação, a qual impõe instabilidade, um estado de
não-equilíbrio permanente, que sobrevive oscilando em torno do estado atrator
de equilíbrio. Além disso, relações biológicas ao nível macroscópico devem
também funcionar segundo o tipo de ordem descrito, tal como os sistemas
predador-presa em que o crescimento ou a diminuição da população de presas
precede sempre os movimentos iguais e correspondentes na população de
predadores.
No entender de Prigogine (1972; 1988), esta forma de ver as coisas que
compreende uma flecha do tempo, uma irreversibilidade propiciaria o
entendimento da ordem biológica orientada para uma complexidade cada vez maior
e para a amplificação de inovações. Neste contexto não-linear de uma
termodinâmica do não-equilíbrio seriam aceitáveis os fenômenos de auto-
organização, a associação intercelular e a formação de organismos superiores
que se produzem longe do equilíbrio.
As descobertas experimentais da instabilidade das partículas elementares, das
estruturas de não-equilíbrio e da evolução do universo, que marcaram a física a
partir dos anos 1950, apontaram "a necessidade de ultrapassar a negação do
tempo irreversível que constitui a herança legada pela física clássica à
relatividade e à mecânica quântica" (Prigogine & Stengers, 1990:16).
Prigogine (1988:5, 7) acredita que o tempo precedeu a criação do universo, e
que o big-bang,além de não ser uma singularidade, não significa o começo do
tempo, mas sim "instabilidade", "mudança de fase" de um
processo que se desenvolve em escala maior. "O universo tal como nós o
vemos é então o resultado de uma transformação irreversível, e provém de um
'outro' estado físico". Para ele, o nascimento do nosso tempo não é o
nascimento do tempo. Nesta concepção, a vida seria resultado de flutuações e o
tempo sempre preexistirá a estas flutuações potenciais. A vida se formaria a
cada momento em que as circunstâncias planetárias se apresentassem favoráveis,
do mesmo modo que o universo se formará cada vez em que as circunstâncias
astro-físicas se mostrem propícias. Mas o tempo não é ontológico, não é retorno
nem eterno retorno, é irreversibilidade e evolução.
Para Prigogine & Stengers (1984:97), "as transformações reversíveis
pertencem à ciência clássica, no sentido de que elas definem a possibilidade de
agir sobre o sistema, de controlá-lo (...) neste quadro a irreversibilidade é
definida negativamente, e só aparece como uma evolução 'incontrolada' que se
produz cada vez que o sistema escapa do equilíbrio". Assim, a
termodinâmica contemporânea, a do não-equilíbrio, veio contrapor-se ao
determinismo da ciência clássica. Neste último contexto, a irreversibilidade é
que está implicada nos modernos representativos do comportamento dinâmico, e os
sistemas reversíveis só são compreendidos como casos limites particulares
(Prigogine & Stengers, 1990).
Ver as coisas desta forma não é simples, segundo Prigogine (1988); exige mesmo
profunda mudança de consciência. Se antes a analogia da desordem era o não-
equilíbrio a turbulência e a da ordem era o equilíbrio o cristal , a
termodinâmica mostra hoje que a desordem acompanha o equilíbrio e a ordem o
não-equilíbrio.
Prigogine (1988) conta que sempre lhe inquietaram duas afirmações de
inspiradores seus. A do filósofo Henri Bergson de que "o tempo é invenção
ou não é absolutamente nada", e a do bioquímico Jacques Monod de que
"a velha aliança rompeu-se; o homem sabe finalmente que está só na
imensidão indiferente do universo de que emergiu por acaso". Refletindo
acerca destas frases, Prigogine tem-se dedicado, por um lado, a mostrar que o
tempo existe, não é ilusão, e, por outro, a fazer uma ciência que reúna o ser
humano e a natureza em nova aliança.
Talvez seja no tempo irreversível, complexo, não determinista, e por que não
supor? em uma ordem por flutuação, que Prigogine (1988:14, 19) vê
"convergência" entre a física de hoje e a história nova, ao
"reler (...) alguns textos de Marc Bloch", um dos fundadores dos
Annales. Prigogine está certo de que "o tempo é construção" e admite
a necessidade de uma visão globalizante implicada na conservação do planeta
para a construção do futuro. É desse modo que sua "termodinâmica
generalizada" está fundamentada na complexidade que envolve e liga tudo,
os seres humanos, a natureza, a sociedade.
Epidemiologia e tempo
Segundo Reis (1994b:66), não há unanimidade nas definições ou noções de tempo
produzidas pela ciência. Para o autor, "os tempos parecem emergir uns dos
outros, tanto na realidade quanto no conhecimento".
Tanto na realidade quanto no conhecimento, o tempo é apreendido de tal maneira
que, ao imaginá-lo, o fazemos segundo metáforas de natureza e substância,
forma, direção e orientação, construindo a partir disso uma idéia do tempo.
No âmbito do conhecimento, Reis (1994b) percebe três tempos principais: "o
tempo da física", "o tempo da filosofia", e, talvez, "o
tempo da história", um "terceiro tempo". As perspectivas de
objetividade e subjetividade marcarão as diferenças entre o tempo da física e o
da filosofia, os dois tempos fundamentais do conhecimento.
O tempo da física, explica Reis (1994b:65, 66), é objetivo por excelência.
Trata-se do tempo exterior, dos movimentos numeráveis da natureza, que
naturaliza o evento e o transforma em movimento. Conseqüentemente, é
quantificável e "reversível". Considera-se aqui que esta preferência
pela reversibilidade diz respeito ao contexto da física da relatividade de
Einstein e não ao tempo da física da termodinâmica de Prigogine, apresentado
neste texto, que tem como característica fundamental a irreversibilidade e
também não é desconhecido por Reis.
Já o tempo da filosofia, conforme expõe Reis (1994b), é subjetivo, interior.
Forjado a partir das mudanças vividas da consciência, da sua
incomensurabilidade, é por isto qualitativo e preferencialmente irreversível.
Desta forma, as dimensões de anterioridade, posterioridade e simultaneidade são
próprias do tempo da física, do seu projeto de causalidade matemática, bem como
as de futuro, passado e presente caracterizam o tempo da filosofia, do tempo
vivido. O tempo da história, um possível terceiro tempo, seria justamente
aquele que ligaria natureza e consciência, que faria uma ponte entre a física e
a filosofia ao considerar e reconhecer em sua composição a objetividade e a
subjetividade.
A epidemiologia em sua intenção de contar "doentes em populações"
(Almeida Filho, 1989:16, 17; 1992:50) e medir a ocorrência das doenças
necessitava, para aparecer, das medidas estatísticas e da taxonomia da clínica,
pois a contagem precisa de uma classificação anterior.
O despontar das classificações das doenças pode ser assinalado nos anos 1600,
desde os trabalhos de inspiração botânica de Thomas Sydenham. A clínica médica,
com sua taxonomia baseada em sintomas, sinais e localizações anatômicas, nasceu
como aponta Foucault (1977) dentro dos hospitais franceses já transformados
em recursos terapêuticos pelos revolucionários da passagem do século XVIII para
o XIX. A estatística, por sua vez, surgiu no declínio da Idade Média, durante a
formação dos estados nacionais, da necessidade de contar trabalhadores e
soldados para medir a riqueza destas nações, em uma época na qual tanto o
sucesso nas guerras quanto a produção dependiam do número de pessoas envolvidas
e não das máquinas de produção e de guerra.
Assim, embora vestígios da formação da epidemiologia possam ser percebidos
desde a medicina grega hipocrática dos séculos IV e V A.C. conforme é o caso
dos conceitos de endemia e epidemia, esboçados no texto Ares, Águas, Lugares
como doenças que habitam ou visitam um lugar esse domínio do conhecimento
surgiu, enquanto ciência, no século XIX. Contando com bases históricas
fundamentais também na medicina social dos anos 1800, apresenta as
características de uma disciplina do coletivo (Ayres, 1993).
Para estudar a questão da saúde/doença em populações humanas, como aponta
Almeida Filho (1989:19, 20), o "raciocínio epidemiológico" acompanha
a ciência moderna e "traduz a lógica causal em termos probabilísticos
(...) adotando e desenvolvendo ométodo observacionalaplicado à pesquisa em
populações" (grifos no original). Desse modo, segundo o autor, o termo
"observacional" caracteriza a estratégia comparativa da disciplina e
o termo "probabilístico", sua disposição quantitativa.
Na busca desta relação causal, a epidemiologia procura associações estatísticas
entre os possíveis fatores determinantes e a ocorrência de doenças em
populações humanas. Determinantes que podem estar entre as características
individuais dos membros das populações estudadas, como sexo e idade, em
particularidades sócio-econômicas, como renda e profissão, peculiaridades
geográficas relacionadas às formas de ocupação do espaço e outras ligadas à
cultura, aos hábitos e comportamentos.
Em linguagem estatística, o objetivo da disciplina é investigar
comparativamente a distribuição destes fatores na população, identificando
também os indivíduos doentes. As associações estatísticas encontradas entre os
fatores apresentados e a ocorrência de doenças alicerçarão uma provável
determinação desta ocorrência, orientando, a partir disso, a aplicação de
medidas para controlá-la.
Assim fundamentada, a epidemiologia, adotando linguagem matemática, procurou
alinhar-se no caminho das ciências duras, de bases experimentais e
estatísticas. Neste alinhamento, tornou-se por demais conhecida a perspectiva
positivista da disciplina.
Em ciência, para Stengers (1990:84), "é sabido, e doravante mesmo os
epistemólogos o sabem, que não há fato sem linguagem interpretativa
(...)". Tal constatação, que anuncia a participação do observadorna
condução do experimento, pressupõe a associação íntima entre conceitos e
operadores com o fim de fazer do fato algo cientificamente aceitável. Segundo a
autora, o essencial, portanto, será "fazer falar"objetos e sujeitos,
de modo que seu "testemunho" possa ser legitimado pela comunidade
científica, à qual é socialmente outorgado o poder político para tal
reconhecimento.
Neste sentido, afirma Stengers (1990:85, 93), "nas ciências experimentais
o trabalho de criar uma testemunha(fidedigna acréscimo meu), de fazer falar
um fato, é sempre um trabalho de purificação e controle". E, "quando
o operador remete sempre a uma abstração controle e purificação o conceito
corresponde a uma operação concreta de captura e redefinição do mundo da qual
depende a significação do operador".
Diante destas considerações de Stengers (1990) torna-se possível admitir que,
ao operar seus conceitos, a epidemiologia o faça na contextualização do seu
projeto científico positivista, ou seja, que sua movimentação científica
requeira para esta operacionalização um tempo também positivista. Tal deve ser
o modo pelo qual a epidemiologia faz falar seu objeto, "doentes em
populações"(Almeida Filho, 1989: 16, 17; 1992:50). É preciso que se
perceba, então, que uma das características fundamentais do positivismo é o
isolamento do objeto, a sua exteriorização e purificação.
Como esclarece Reis (1994b:88, 89, 90), o tempo positivista é modelado pela
física e foi o que aproximou o tempo da história daquele da física mediante a
adoção do positivismo pelas ciências sociais no século XIX, possibilitando o
surgimento de uma "física social". Trata-se, segundo o autor citado,
de um tempo evolutivo e irreversível, cujo propósito é "situar eventos
singulares e irrepetíveis no tempo-calendário (...) dar homogeneidade,
linearidade e continuidade a estes eventos irreversíveis e descontínuos,
inserindo-os nos números do calendário e atribuindo-lhes uma sucessiva
necessária, pois numérica e baseada nos conceitos decausa econseqüência
(...)" (grifos no original).
O positivismo, em seu projeto empiricista e homogeneizador, "sublinha
decididamente ocomoe evita responder aoque, aoporquee aopara que" (grifos
no original) (Mora, 1991:314).
Quer controlar os eventos, por si sós únicos e irrepetíveis, eliminando a
perspectiva de mudança neles contida. Quer afastar o terrordos eventos, o seu
conflitante potencial de mudança.
O tempo da epidemiologia se caracteriza, por conseguinte, como tempo
quantitativo: objetivo e exterior. Não é o tempo vivido e, em vez de passado-
presente-futuro, envolve dimensões de anterioridade-simultaneidade-
posterioridade.
Interessa, portanto, refletir acerca do propósito da epidemiologia de, através
do entendimento do adoecer coletivo humano, controlá-lo. Esta pretensão de
controle é um dos elementos fundamentais da disciplina, pois, como esclarece
Almeida Filho (1992:71), ao contrário da clínica, cujo objetivo mais próximo é
a intervenção sobre a doença do indivíduo, a epidemiologia tem como
"compromisso fundamental (...) a produção de conhecimento em si"
referente a "padrões de distribuição da ocorrência em massa de doenças em
populações". Justamente nesta perspectiva de antes conhecer para, desse
modo, controlar, é que se insere a intenção de prever, sendo o ato de prever,
em sentido mais amplo, elemento fundamental do projeto científico moderno como
um todo.
Segundo Barbosa (1992:76, 77), quando o racionalismo científico foi erigido à
posição de "único paradigma possível" da modernidade e foi suspensa a
validade dos saberes estéticos, religiosos e "até mesmo políticos", o
ato de prever passou a constituir o projeto da ciência moderna de domínio sobre
a natureza. Para o autor citado "toda previsão estrutura-se no interior da
experiência do devir do mundo", em cuja essência está a ameaça constante
do convívio com o inesperado e o inédito. Desta forma, "para salvar-se,
torna-se imperioso afastar as ameaças do devir, e para tal é necessário
controlá-lo, submetê-lo ao império da lei e então dominá-lo".
Em relação ao tempo da epidemiologia parece ocorrer que, em sua objetividade e
exterioridade, captura elementos descolados da realidade, unicamente por sua
simultaneidade, sem que esta captura implique necessariamente em qualquer
relação social entre os elementos ou fenômenos. O tempo do conhecimento
epidemiológico trabalha com os fatos de modo a artificializá-los, separá-los
das pessoas, amputá-los de sua historicidade e submetê-los estatisticamente.
Dessa maneira, controla os eventos, eliminando a sucessão e a ameaça de
mudança.
Por conseguinte, sempre será difícil para a epidemiologia perceber as relações
sociais profundas, as inter-relações humanas emaranhadas no tecido social. No
tempo do conhecimento epidemiológico, os tempos históricos e sociais não são
compreendidos. Como assinala Goldberg (1990:98), "ao se considerar os
indivíduos como unidades estatísticas independentes, ignora-se completamente a
existência das relações sociais nas quais as representações, os comportamentos,
os saberes e os modos de vida são produzidos".
No entender de Goldberg (1990:98, 99), "a análise estatística opera um
corte no tempo e apresenta uma imagem, em um momento dado, das situações de
risco ou dos comportamentos sanitários de uma população, sem apreender sua
historicidade". Conseqüentemente, os movimentos diferentes e
contraditórios dos grupos sociais não são visualizados em sua complexidade. Uma
complexidade da qual participam também outras coisase outros seres, pois,
afinal e é curioso que nem sempre isto seja percebido a realidade não se
faz só de seres humanos. Estes outros seres e coisas que nos cercam é que
permitem o sentido e orientação à vida. Compõem nossas ações, revelam nossos
caminhos e dão concretude ao nosso tempo.
Assim, este corte no tempo, de que fala Goldberg, parece não eliminar somente a
possibilidade de visualização das interações humanas, mas também das interações
dos agrupamentos humanos com estes outros seres e coisas do meio. Capturando
valores no momento, na simultaneidade, descolando-os da realidade complexa, o
tempo epidemiológico pode fazer perceber, de modo equivocado, relações diretas
de variáveis que se religam inversamente ou mesmo associar variáveis que de
fato não têm ligação entre si. Em outras palavras, esta captura na
simultaneidade pode associar doenças a fatores determinantes que
verdadeiramente não o são, reconhecendo, algumas vezes, causalidades erradas.
Um indício de que o tempo do conhecimento epidemiológico desconhece estas
interações sociais e naturais complexas e que pode, portanto, incorrer nos
erros mencionados, deve ser buscado em uma observação de Skrabanek no artigo
denominado The poverty of epidemiology (Skrabanek, 1992). O autor examinou os
resumos dos trabalhos apresentados em uma reunião científica de
epidemiologistas realizada nos Estados Unidos, em 1990, e observou que,
aparentemente, qualquer combinação entre exposiçãoe doença se prestou para que
os participantes do encontro calculassem riscos relativos, odds ratios e riscos
proporcionais, sem que levassem em conta razões de implausibilidade biológica
ou elaborassem hipóteses que suportassem as associações pretendidas.
Considerados estes fatos, é possível admitir que a socialização das coisas, que
não parece ser primordial para o tempo epidemiológico, deve ser, então,
procurada fora da disciplina, em outros tempos de diferentes áreas do
conhecimento, com a finalidade de complementar as análises epidemiológicas,
dar-lhes maior abrangência e consistência. De tal modo que, a partir do
reconhecimento e aceitação destes outros tempos de diversas disciplinas, a
epidemiologia opere melhor o seu objeto, doentes em populações, e seja alçada
ao nível de complexidade perseguido pela ciência atual.
No que diz respeito à dialética da duração o tempo histórico de Fernand
Braudel alguns aspectos relativos à visualização da cultura podem servir para
comparações interessantes com a epidemiologia. Foi a antropologia, com as
reconstruções de cenários a partir de vestígios arqueológicos, sua percepção
das peculiaridades sociais dos grupos humanos e da lentidão da cultura, que
inspirou a história nova em seu mergulho na longa duração do tempo em busca das
explicações do evento. Deve ser considerado que justamente a cultura tem sido
reconhecida como conceito de difícil operação para a epidemiologia, por
envolver elementos de difícil quantificação (Helman, 1994). Certas questões,
tais como o descolamento cultural observado quando do desenvolvimento de
programas de controle de doenças em sociedades tradicionais e que tem sido
apontado como das causas principais de alguns insucessos destas ações (Uchôa
& Vidal, 1994), possivelmente resultam da inadequação do tempo
epidemiológico positivista em lidar com estas situações do tempo longo. Isto
parece indicar também que temporalidades sociais distintas percebidas pela
dialética da duração da história, não o são pelo tempo epidemiológico.
A possibilidade de observar epidemias-eventos emergiremda profundidade da longa
duração do tempo e serem explicadas pela combinação estrutura-conjuntura-evento
representa, sem dúvida, perspectiva interessante para o conhecimento do adoecer
das coletividades humanas. Da mesma forma, os perfis de saúde das populações
imbricados no tecido social poderão ser melhor compreendidos se examinados sob
a dialética da duração, um tempo coletivo, irreversível, complexo, não-
determinista, que abriga e reconhece temporalidades múltiplas. Tal enfoque
também deve significar um contexto do tempo do conhecimento capaz de permitir a
formulação de previsões mais adequadas à realidade.
Já no que se refere ao tempo físico da termodinâmica generalizadade Ilya
Prigogine e suas contribuições potenciais à epidemiologia, é preciso considerar
a aceitação das influências das ciências humanas, declarada pelo físico-químico
belga (Prigogine & Stengers, 1984; Prigogine, 1988; 1990). A tenacidade de
Prigogine em defesa da irreversibilidade do tempo físico veio justamente da sua
estranheza ante o fato da evolução biológica, da sociologia e da história
apontarem para um tempo irreversível, enquanto a física de Einstein se
orientava para a reversibilidade e para uma idéia de eternidade que situava a
física em uma intemporalidade. É neste sentido que Prigogine (1988) fala da
"redescoberta da tempo" por parte da física, quando trata da
existência da flecha do tempo, da certeza a respeito da irreversibilidade a que
o conduziram suas investigações no campo da termodinâmica.
De certa maneira, Prigogine pretende humanizar a física. Retirá-la da posição
avessa em relação aos rumos percebidos da história e aproximá-la das ciências
humanas. É neste contexto que explica a vida como ordem que tende para o não-
equilíbrio, como instabilidade que prevalece à custa das trocas de nutrientes
que mantém com o mundo exterior. Os sistemas vivos se auto-organizam,
amplificam inovações e, por conseguinte, caminham em complexidade crescente. É
uma ordem por flutuação, que oscila, mas não é frágil, porque depende também de
uma consciência humana de futuro.
Prigogine sabe e declara que o tempo é construído. Em sua termodinâmica
generalizada constrói um tempo físico-químico e lhe atribui as características
de não-linearidade e não-determinismo. É um tempo dos elementos, das coisas,
dos outros seres biológicos, mas também é tempo humano. O próprio
envelhecimento humano diz da irreversibilidade do tempo (Prigogine &
Stengers, 1984). O nascimento do tempo, para Prigogine, transcende o universo,
mas o tempo é irreversível, porque a biologia ciência da vida e a história
ciência do tempo social humano mostraram-lhe esta irreversibilidade.
Para a ciência clássica, sustentam Prigogine & Stengers (1984:7, 22),
"o microscópico é simples" e a natureza é um autômato, regida por
leis que descrevem o mundo segundo trajetórias deterministas e reversíveis, e
diante da qual o ser humano é estranho, está só "num mundo mudo e
estúpido". Mas, perguntam Prigogine & Stengers, como é possível
distinguir um cientista moderno de uma bactéria que também interroga o mundo e
não cessa de colocar à prova a decifração dos sinais químicos que a orientam?
Na perspectiva de Prigogine, a natureza não é um autômato, pois interroga o
cientista a todo momento e, muitas vezes, o desmente.
Assim, a introdução do conceito de irreversibilidade e da noção de
instabilidade refletem um contexto no qual a ciência se abre ao mundo em que se
desenvolve. "O tempo hoje reencontrado é também o tempo que não fala mais
de solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve"
(Prigogine & Stengers, 1984:15).
No que concerne à epidemiologia, portanto, compreender o tempo físico
irreversível de Prigogine, onde a vida é ordem e não-equilíbrio, implica
adentrar na complexidade que liga as sociedades humanas à natureza. Dito de
outra forma, significa investigar o fenômeno do adoecer das coletividades
humanas, entendendo-o segundo pressupostos não-deterministas, pelos quais o
evento enfocado possa ser admitido e percebido como participante de uma
realidade em constante transformação, em uma relação dinâmica de
interdependência entre o cultural, o histórico, o social e o biológico.
Como explicam Schramm & Castiel (1992: 380, 381), a idéia de complexidade
se alastrou das ciências biológicas, humanas e sociais para as ciências
durascomo a física. Este olhar da complexidade confere "à própria natureza
uma dimensão essencialmente histórica, vinculada à flecha do tempo (...)
abifurcações, arupturas de simetria, ao acaso" (grifos no original).
Trata-se de uma visão que admite os sistemas vivos vinculando-se na troca de
matéria, energia e informação com o ambiente, sendo tais trocas "máximas
nos sistemas dinâmicos, como as sociedades humanas, que são tipos de sistemas
dentre os mais complexos". As sociedades humanas lidam com o
desenvolvimento de projetos e satisfação de desejos, gerando incessantemente
novos vínculos com o ambiente, diminuindo, portanto, a capacidade de controle e
previsão sobre o conjunto sistema-ambiente.
No estudo do adoecer coletivo humano, termos como determinação, causalidade,
exposição, risco,suscetibilidade ou mesmo endemia e epidemiatalvez percam seu
significado original, sendo substituídos por outros, ou porventura desapareçam
quando considerados fora da linearidade e da simplicidade da ciência clássica,
quando enquadrados em outras construções do tempo, como as da dialética da
duração de Braudel e da termodinâmica generalizada de Prigogine, só
visualizadas no âmbito da interdisciplinaridade.
Finalizando: o casodas "infecções emergentes"
Ao final serão aventadas questões relacionadas às chamadas infecções
emergentes, problema que tem preocupado extremamente não só os
epidemiologistas. Trata-se de abordagem muito breve à vista da riqueza e da
transcendência do assunto, servindo apenas para compor a argumentação tecida
até aqui. Apenas serão pinçados alguns pontos centrais para reforçar o objetivo
principal deste texto, qual seja, o de demonstrar a importância do ponto de
vista do tempo para o pensamento epidemiológico.
Para Morse (1995:12) as "infecções emergentes" podem ser definidas
como aquelas que só recentemente surgiram ou que já existiam, mas
"rapidamente aumentam sua incidência ou extensão geográfica". O autor
sugere que, de modo "operacional", estas infecções podem ser vistas
como um "processo de duas fases: 1) introdução de um agente infeccioso em
uma nova população de hospedeiros (se o patógeno é originado do meio,
possivelmente em outras espécies, ou como uma variante de uma infecção humana
já existente), seguido de 2) estabelecimento e disseminação adicional na nova
população de hospedeiros".
Já a ocorrência das infecções emergentes tem sido atribuída a fatores
demográficos, comportamentais, tecnológico-industriais, relativos ao
desenvolvimento agrícola e uso da terra, a deslocamentos populacionais, como
viagens de lazer e comércio, transportes de cargas e alimentos, capacidade de
adaptação e mutação bacteriana, além de falência das medidas de saúde pública
(Lederberg et al., 1992).
É notório que estes fatores responsáveis pelas infecções emergentes, esta
causalidade apresentada, implica uma visão epidemiológica que contempla desde
elementos da ordem biológica até os históricos, culturais, políticos,
econômicos e sociais. Uma visão que pode ser melhor identificada quando Wilson
(1994:4) afirma que o entendimento da emergência de doenças requer a
visualização do organismo e do meio, do ecossistema e da sociedade, para o que
"uma perspectiva global é essencial".
Deve ser visto, no entanto, que este posicionamento, ao menos no que diz
respeito à epidemiologia norte-americana, traduz nova disposição em relação ao
conhecimento do adoecer coletivo humano, que parece vir acompanhado também de
certa perplexidade diante das infecções emergentes. Assim, Levins (1994a:406)
sustenta que a consideração do problema das infecções emergentes "deve
principiar pela rejeição do modelo da transição epidemiológica (...) que
suporta a crença no declínio das doenças infecciosas e em sua substituição por
outros problemas médicos". Segundo o mesmo autor (Levins, 1994b:xvii), a
frustração diante da persistência das infecções "forçou uma nova
consciência" de que as doenças nascem e caem, desenvolvem-se e espalham-se
incessantemente, e que, por isto "temos que nos preparar para um amanhã
mais complexo". Ressalte-se que a transição epidemiológica, embora
discutida e criticada por alguns autores (Barreto et al., 1993; Possas &
Marques, 1994), é figuraepidemiológica que até recentemente gozava de ampla
aceitação pela maioria dos epidemiologistas.
Para Wilson (1994:1, 11), esta nova realidade "desafia a nossa confiança
no poder da ciência e da tecnologia para controlar a natureza", o que
conduz a perguntas como:
"O processo de emergência(de doenças infecciosas acréscimo meu) está
relacionado ao de adaptação de uma espécie à presença de outra, sendo, por
exemplo, coabitação estável, ou, ao contrário, uma conseqüência da remoção de
prévios competidores ou predadores? A emergência de doenças é justamente o fim
visível do espectro do processo contínuo de adaptação e evolução? Há limitações
fundamentais nos conceitos de causalidade que dificultam os esforços para
detectar e acompanhar novas doenças? Como compreender a complexidade dos
sistemas que influenciam a presença, abundância e distribuição das
espécies?".
Bastante estimulante é ver o surgimento deste tipo de questionamento no âmbito
da epidemiologia norte-americana, pois entre os epidemiologistas latino-
americanos e brasileiros há já algum tempo são construídas abordagens sociais e
críticas que discutem os rumos da disciplina. Mais interessante ainda é ver
tais questionamentos colocados a partir, justamente, das doenças infecciosas,
berço por excelência da disciplina.
Parece, então, que com o problema das infecções emergentes, emerge também a
necessidade de rever o conhecimento epidemiológico, pois, obviamente, os
elementos para responder a estas perguntas residem na complexidade e envolvem
desde a ordem epistemológica propriamente dita até o reconhecimento e
utilização de conceitos e noções de diversas disciplinas. Certamente em relação
a este estado de coisas, Garrett (1995:22) sugere, para o entendimento e
enfrentamento das infecções emergentes, "um novo paradigma para encarar a
doença (...) que permita uma relação não-linear entre oHomo sapiens e o mundo
microbiano dentro e fora do seu corpo".
O surgimento da AIDS, da infecção pelo vírus Ebola e o retorno da cólera, entre
inúmeros acontecimentos, requerem novas formas da ciência interrogar a natureza
e compreender o mundo. A preservação da vida humana no planeta exige uma
convivência respeitosa com a natureza e não a pretensão de conquista e domínio.
Deveríamos, como pensa Thomas (1990), aprender com nossos ancestrais
microbianos os hábitos através dos quais estabeleceram normas e regulamentos de
intervivência,conseguindo assim sua longevidade.
Diante do que foi apresentado, seria interessante refletir sobre a utilidade do
ponto de vista do tempo para o pensamento epidemiológico, ou seja, para a
compreensão do fenômeno do adoecer humano coletivo. Com certeza, a dialética da
duração de Fernand Braudel viabilizaria, entre outras coisas, a melhor
avaliação do modelo de transição epidemiológica. Em outra perspectiva, a
percepção da dinâmica dos sistemas vivos como a do sistema predador-presa em
sua relação com as doenças, por exemplo caso fosse considerada sob a ótica do
tempo da termodinâmica generalizada de Ilya Prigogine, possibilitaria à
epidemiologia um trajeto investigativo, reflexivo e operacional mais adequado à
realidade. Nestes termos, estaríamos nos movimentando segundo o que Almeida
Filho (1990:339, 340) chamou de "um novo paradigma epidemiológico", o
da complexidade, que tenta lidar com "processos de determinação não-
linear", "processos sensíveis à condição inicial" e
"sistemas dinâmicos" que se alteram a cada momento. No entanto, é bom
esclarecer, um paradigma novo envolve imprescindíveis mudanças na concepção de
ciência do pesquisador, na forma como percebe a relação ser humano-natureza.
O conhecimento humano, apesar das resistências e bloqueios, historicamente
sempre viveu às custas de trocas, transportes, metáforas de conceitos, noções e
idéias entre as diversas áreas do saber. Sempre precisou disto para alimentar-
se e crescer. Neste contexto foi considerado aqui o ponto de vista do tempo
para a epidemiologia, pois, como afirma Souza Santos (1995:47), na perspectiva
da interdisciplinaridade e da complexidade, "os temas são galerias por
onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros".