Práticas organizacionais e o estabelecimento de lógicas de equivalência: o
Circuito Fora do Eixo à luz da Teoria Política do Discurso
1. INTRODUÇÃO
O campo dos estudos organizacionais tem sido compelido, pelas constantes
transformações da realidade social, a buscar uma perspectiva diferente para
leitura e compreensão desse social que se transforma, fora dos limites da
disciplina da Administração. O reconhecimento da existência, e relevância, de
práticas organizacionais negadas, negligenciadas ou produzidas como ausentes
(Santos,_1988; Barcellos_&_Dellagnelo,_2013) pelos estudos tradicionais em
administração vem trazendo à tona uma multiplicidade de saberes e de
possibilidades de entendimento da realidade de organizações diversas.
Estudos, como os realizados sobre as organizações da economia solidária (França
Filho,_2003; 2007; Andion,_2005; Balbinot_&_Pereira,_2007 ; Behr_&_Paes
de_Paula,_2008 ; Costa_&_Carrion,_2008), as organizações autogestionárias
(Faria,_Leal,_Attie,_Hirayama,_Matos,_&_Dutra,_2008 ; Faria,_Pontes,_Leal,
Araujo,_Marques,_&_Hirayama,_2008 ; Misoczky,_Silva_&_Flores,_2008), as
organizações substantivas (Serva,_1993; 1997a; 1997b), apresentam organizações
com características diversas das organizações burocráticas tradicionalmente
analisadas e apontam lacunas nos estudos organizacionais em termos de
categorias possíveis para a análise dos aspectos organizacionais desses
espaços. Esses estudos apresentam iniciativas no sentido de construir novas
visões e conceitos a partir dos quais se pode lançar uma nova perspectiva de
análise para compreender a realidade dessas organizações. Nesse sentido,
Misoczky,_Flores_e_Moraes_(2010) argumentam que uma das tarefas políticas mais
importantes dos estudos críticos na área de organizações é explorar os
processos de organização da resistência e das lutas sociais que tendem a ser
ignoradas pelo discurso organizacional contemporâneo. Diversos estudos (ver,
por exemplo, Spicer_&_Böhm,_2007 ; Misoczky,_Flores_& Böhm,_2008;
Holanda,_2011 ; Sullivan,_Spicer_& Böhm,_2011 ; Zilio,_Barcellos,_Dellagnelo
& Assman,_2012) demonstram que existem organizações com práticas que
desafiam o modelo vigente, não se submetendo à sua lógica e desafiando a
estrutura do campo. Essas organizações são chamadas de contra-hegemônicas ou
organizações de resistência.
A resistência é uma temática que vem sendo abordada por diferentes correntes no
contexto dos estudos organizacionais. Os principais desenvolvimentos teóricos
sobre o assunto decorrem dos estudos da Labour Process Theory (LPT) e dos
estudos foucaultianos sobre o local de trabalho (Spicer_& Böhm,_2007;
Contu,_2008 ; Paes_de_Paula_& Maranhão,_2009). No entendimento de Contu
(2008), em ambas as tradições, as possibilidades de resistência estão inscritas
na noção de poder, e o discurso predominante sobre resistência na teoria
organizacional preocupa-se principalmente em investigar evidências encobertas,
discursos não oficiais, gestos e práticas desenvolvidos nas entrelinhas das
organizações produtivas, sob a forma de humor, ironia, sátira e cinismo.
A exemplo dessa perspectiva, Carrieri_(2004)enfatiza o papel do humor como uma
estratégia discursiva de resistência e destaca outros autores como Collinson_
(1988), Morris_(1991), Trethewey_(1999), Hardy_e_Phillips_(1999), que também
realizam estudos críticos dessa natureza. Em sua pesquisa, Carrieri_(2004)
analisa o humor nas charges produzidas ao longo de 20 anos pelo sindicato dos
trabalhadores de uma organização de telecomunicação e evidencia que, como
estratégia de ação, o humor produzia fissuras no discurso corporativo.
Também sobre a resistência nas organizações, Morais_e_Paes_de_Paula_(2010)
discutem de que forma a ideologia nas organizações e a formação da identidade
profissional se relacionam na construção da subjetividade de policiais,
ocasionando sua socialização e consequente adesão, ou não, ao discurso
organizacional. A partir da análise de conteúdo das histórias de vida narradas
pelos policiais entrevistados, os autores mostraram que, em meio a uma relação
em busca da dominação, também ocorrem resistências, de modo que a visão de
mundo da organização pode ser incorporada, rejeitada ou subvertida. Em
contribuiçãoa essas discussões, em recente trabalho, Segnini_e_Alcadipani_
(2014) destacam as importantes contribuições da obra de Prestes Motta para a
compreensão desse fenômeno nas organizações.
Em relação às estratégias de resistência nas organizações, Contu_(2008)
argumenta que são formas de transgressão inerentes às relações capitalistas e
questiona, se essas práticas de resistência seriam capazes de intervir nessa
dinâmica e subverter as relações de poder. Em convergência com essa
perspectiva, Spicer_e_Böhm_(2007) afirmam que as correntes de pensamento mais
desenvolvidas sobre resistência nos estudos organizacionais limitam a
compreensão do fenômeno ao local de trabalho, dificultando a possibilidade de
compreensão do exercício da resistência em uma perspectiva macropolítica, tendo
como arena central a sociedade civil organizada.
Assim, Paes_de_Paula_e_Maranhão_(2009) discutem possibilidades de exercício
dessa resistência pelos movimentos sociais, tendo como horizonte formas de
organização que visem, em última instância, à emancipação.
A análise da resistência numa perspectiva macropolítica também é discutida por
Benini_e_Benini_(2010). Nesse caso, os autores analisam o movimento da economia
solidária e observam que, antes de uma alternativa produtiva de geração de
renda e de trabalho, é um movimento que cria, continuamente, novos pontos de
resistência, fruto das reiteradas tentativas de experimentar algum grau de
autogestão no capitalismo.
Em seu trabalho, Dellagnelo,_Böhm_e_Mendonça_(2014) oferecem importante
contribuição sobre o papel da teoria política do discurso (TPD) em estudos
empíricos concretos sobre a organização dos movimentos de resistência e
discutem como ela pode contribuir para a compreensão das novas formas de
organização que emergem desses movimentos. Em consonância com essa perspectiva
de análise, neste estudo o foco é a resistência em uma dimensão macropolítica,
não adensando as correntes de estudos que abordam a resistência sob a ótica
intra ou inter-organizacional.
O estudo dessas organizações tem se mostrado desafiador, uma vez que as teorias
disponíveis no campo dos estudos organizacionais trazem consigo concepções de
organização e de práticas organizacionais restritas a entidades formais e
instituições nas quais a organização social aparece sempre já formada,
predeterminada e dada (Böhm,_2006). Nesse contexto, a TPD desenvolvida por
Laclau_e_Mouffe_(2001), publicada originalmente em 1985, tem se apresentado
como uma alternativa capaz de auxiliar na compreensão dos processos de
resistência vivenciados por organizações contra-hegemônicas, trazendo à tona
práticas alternativas de organizar (Dellagnelo_&_Böhm,_2010 ; Böhm,
Dellagnelo_&_Mendonça,_2010 ; Mendonça_&_Böhm,_2010).
Assim, acredita-se que a TPD possa auxiliar os estudiosos das organizações a
entender processos de formação de alianças e de formação de confiança como “um
processo comunicativo de criação de sentido, destacando atividades
interpretativas e comunicativas de criação de sentido que são então traduzidas
em ação” (Clegg_&_Hardy,_2006, p. 299).
Esse processo de criação de sentido é um dos aspectos analisados pela TPD para
compreender a construção e a reconstrução de discursos hegemônicos e contra-
hegemônicos, entendendo-os intrinsecamente conectados a eventos políticos e
culturais. Nessa tônica, conceitos da TPD como ponto nodal, significante vazio
e lógica de equivalência, por exemplo, são referências importantes para
compreender práticas organizacionais capazes de estabelecer vínculos entre
diferentes iniciativas.
Nesse contexto, o Circuito Fora do Eixo (FdE), uma rede com cerca de 200
coletivos situados em diferentes regiões do Brasil, tem se mostrado como um
movimento que conecta diferentes organizações em torno de objetivos comuns. O
FdE constitui uma forma coletiva de resistência à perspectiva dominante na área
cultural, por desafiar a lógica hegemônica de produção e financiamento à
cultura no Brasil, construindo coletivamente práticas organizacionais que se
distanciam do modo de organizar dominante.
Neste estudo, vale-se de duas oportunidades. A primeira, a de analisar modos de
organizar que não se limitem à mera adaptação funcional de conceitos e
ferramentas gerenciais, mas que confrontem a visão estabelecida do mundo como
mercado, organização como empresa, ser humano como recurso, apresentando-se,
portanto, como rupturas factíveis ao sistema de capital (Misoczky_et_al.,
2010).
A segunda, a de estabelecer relações entre as categorias articulação/prática
articulatória, lógica/cadeias de equivalência, ponto nodal e significante vazio
– propostas pela TPD – e práticas organizativas levadas a cabo dentro do
Circuito Fora do Eixo, as quais puderam ser reconhecidas a partir dessas
categorias. Entende-se que as práticas articulatórias que constroem cadeias de
equivalência em torno de significantes vazios são inextricavelmente
relacionadas a práticas organizacionais. No caso do Fora do Eixo, questionava-
se como se estabeleceu e como se sustenta essa cadeia de equivalência e que
práticas organizacionais construíam práticas articulatórias.
Assim, em consonância com a reflexão de Clegg_e_Hardy_(2006) acerca da
importância de aprender mais sobre temas teóricos e práticos envolvidos na
colaboração entre partes com objetivos, linguagens e poder mais ou menos
diferentes, destacam-se neste trabalho as práticas de comunicação, capacitação
e formação e as relações externas do Circuito Fora do Eixo. Para isso,
inicialmente se discute a respeito da teoria política do discurso, destacando
os conceitos de prática articulatória e lógica de equivalência. Em seguida,
apresenta-se o Circuito Fora do Eixo e discutem-se as práticas de comunicação,
capacitação e formação e suas relações externas. Em seguida, analisam-se essas
práticas à luz da TPD e, por fim, seguem as reflexões e conclusões.
2. A TEORIA POLÍTICA DO DISCURSO: UMA APROXIMAÇÃO
Embora a temática do discurso seja adotada em diversos trabalhos na área dos
estudos organizacionais, as perspectivas de tratamento do tema variam. Dentre
as diversas abordagens empregadas para o uso do discurso nas ciências sociais,
a teoria política do discurso, de Ernesto Laclau e Chantall Mouffe, aparece
como uma alternativa epistemológica para a análise de fenômenos políticos e
sociais (Howarth,_2000; Howarth,_Norval_&_Stavrakakis,_2000 ; Mendonça,
2003a; 2009a; Dellagnelo_et_al.,_2014) e diferencia-se de outras abordagens do
discurso como a análise crítica do discurso (ACD) de Fairclough_(2001; 2003),
expoente da vertente anglo-saxã, e a análise do discurso (AD) de Michel_Pêcheux
(1988), ícone da corrente francesa. Existem fronteiras claras e distinções
marcantes entre essas abordagens. Na ACD, explora-se de forma sistemática a
relação frequentemente opaca entre práticas discursivas e práticas sociais e
confere-se ao sujeito um papel ativo, já que ele não apenas reproduz o
discurso, mas também é capaz de transformá-lo. Nessa perspectiva, o poder é uma
instância fluida e não concebida estaticamente como na AD. Na vertente
francesa, explora-se subjetivamente a ligação entre discurso e prática
política, considerando também opaca a relação entre sociedade e discurso.
Entretanto, para Pêcheux, é justamente a subordinação inconsciente do sujeito
ao discurso, ou o sujeito-assujeitado, que mantém as relações de poder e
assegura a hegemonia.
Ambas as perspectivas diferenciam-se da abordagem do discurso adotada neste
trabalho, qual seja, a TPD. Enquanto as abordagens de análise discursiva buscam
desnaturalizar discursos potencialmente ideológicos, a TDP concentra-se em
estudar a formação de discursos hegemônicos e, por isso, confere um status
central à política na estruturação de seus conceitos, nos quais os sistemas de
relações sociais aparecem sempre como construções políticas que envolvem a
construção de antagonismos e o exercício do poder. Para Laclau_e_Mouffe_(2001),
um discurso é uma tentativa, sempre instável, de fixar um significado
particular a significantes diversos envolvendo a exclusão de outras
possibilidades de significação, ou seja, é uma redução de possibilidades, e,
portanto, pode ser visto como um exercício de poder. Uma característica
essencial dessa teoria, e que a distingue epistemologicamente da ACD, por
exemplo, é que, para Laclau_e_Mouffe_(2001), a realidade social é totalmente
constituída pelo discurso, enquanto a ACD reconhece práticas sociais
discursivas e não discursivas. O que é negado pela TPD, segundo Laclau_e_Mouffe
(2001), não é que os objetos existam externamente ao pensamento, mas eles não
se constituíram como tal fora do discurso. A sociedade é vista como uma
interação social que ocorre dentro de um contexto discursivo (Böhm,_2006). O
caráter não essencialista das ligações entre diferentes agentes caracteriza uma
realidade na qual não se pode conceber a sociedade como totalidade, e por isso
os autores situam a ideia de articulação. Articulação, definem Laclau_e_Mouffe_
(2001,_p._105), é “qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos
de forma que suas identidades são modificadas como resultado da prática
articulatória”. É à totalidade estruturada resultante da prática articulatória
que os autores chamam discurso.
No contexto da TPD, discurso refere-se a sistemas de práticas repletas de
significados que formam as identidades de sujeitos e objetos (Howarth_&
Stavrakakis,_2000). São construções sociais e políticas que permitem à
realidade fazer sentido, fixando as identidades de objetos e ações em sentidos
particulares (Barros,_2008). Burity_(1997) enfatiza que o termo discurso é
utilizado para destacar o fato de que toda configuração social é significativa,
tendo em vista que quaisquer ações empreendidas por sujeitos, identidades,
grupos sociais são ações significativas e que o sentido delas é contingente a
sua localização num sistema de relações sociais.
Essa contingência é fundamental para sua compreensão, tendo em vista que não há
um significado essencial a ser compreendido ou recuperado a partir dos objetos
ou das ações, mas sim que o significado é dado pela inserção de um objeto ou
sujeito dentro de uma prática discursiva (Barros,_2008). Brüseke_(2002)
esclarece que, nas teorias sociais, a compreensão da contingência leva à
observação de que algo é como é, mas poderia ser diferente; de que as coisas
estão necessariamente em seu lugar, mas também poderiam estar em outro; e que
as coisas acontecem em determinada hora, mas não necessariamente.
A categoria central da TPD é hegemonia, tributária dos escritos de Gramsci
(Pinto,_1999). A partir de Gramsci, a noção de hegemonia sustentada por Laclau
e Mouffe leva à ideia de que a realidade social está posicionada dentro de
formações históricas específicas, as quais perduram ao longo do tempo e do
espaço, sempre com suas contestações e embates (Böhm,_2006). Ahegemonia,
explica Mendonça_(2009b,_p._251), é “uma relação em que uma determinada
identidade, num determinado contexto histórico, [...] passa a representar, a
partir de uma relação equivalencial, múltiplas identidades”. O processo de
constituição de uma ordem hegemônica parte sempre de um discurso particular que
consegue representar discursos ou identidades até então dispersas.
No entanto, Mendonça_(2009b,_p._257) lembra que “sendo o poder hegemônico em
essência precário e contingente, existirá sempre a possibilidade da existência
de processos discursivos contra-hegemônicos e constituidores de uma nova
hegemonia”, ou seja, hegemonia é uma condição pela qual diferentes formações
discursivas podem travar suas lutas. Assim, devido ao caráter fundamentalmente
político dos sistemas sociais, eles estão sempre vulneráveis a forças que são
excluídas do processo de formação política (Howarth_&_Stavrakakis,_2000).
Para Laclau_e_Mouffe_(2001), qualquer posição, em um sistema de diferenças, na
medida em que é negada, pode tornar-se o lócus de um antagonismo. Portanto, há
uma variedade de antagonismos possíveis no social, tanto mais quanto mais
instável for o sistema de relações sociais.
Para Laclau_e_Mouffe_(2001), antagonismos são relações objetivas que surgem não
de totalidades completas, mas da impossibilidade de sua constituição. No
argumento, Laclau e Mouffe mostram que os antagonismos sociais ocorrem porque
os agentes sociais não conseguem realizar suas identidades e, portanto, seus
interesses; e porque eles constroem um inimigo considerado responsável por essa
falha (Howarth,_2000; Howarth_&_Stavrakakis,_2000).
3. SIGNIFICANTE VAZIO E LÓGICA DE EQUIVALÊNCIA: AS POSSIBILIDADES DA POLÍTICA
A lógica de equivalência consiste na dissolução de identidades particulares dos
sujeitos dentro de um discurso pela criação de uma identidade puramente
negativa que parece estar desafiando-os (Howarth,_2000; Howarth_&
Stavrakakis,_2000). Böhm_(2006) complementa que as cadeias de equivalência
estabelecem algo em comum entre atores que resistem em determinada formação
discursiva, formando um campo de negatividade, o que envolve um discurso de
antagonismo social, ou um “nós x eles”.
Laclau_e_Mouffe_(2001) ressaltam que toda relação de equivalência é ambígua,
dado que dois termos, para serem equivalentes, precisam ser diferentes.
Consequentemente, a lógica da equivalência é uma lógica de simplificação do
espaço político, pois articula elementos dispersos em momentos internos de uma
formação discursiva específica. Nesse processo, as diferenças anulam-se
mutuamente na medida em que são usadas para expressar algo idêntico que permeia
a todos. “O problema é determinar o conteúdo deste ‘algo idêntico’presente nos
vários termos da equivalência” (Laclau_&_Mouffe,_2001, p. 127). A
construção dessa identificação depende da possibilidade de se estabelecerem
diferentes significados em torno de um ponto nodal cujo significado é vazio, ou
abundante, nos termos de Mendonça_(2003a).
Os pontos nodais, afirmam Howarth_e_Stavrakakis_(2000), são significantes
privilegiados ou pontos de referência em um discurso que agrupam um sistema
particular de significados ou uma cadeia de significados. Mendonça_(2003b,_p.
11) afirma que os pontos nodais são fundamentais para a prática articulatória,
pois, “por serem pontos discursivos privilegiados, eles possuem a capacidade de
fixar, ainda que de forma parcial e precária, a própria articulação”,
representando o próprio sentido de uma prática articulatória.
Howarth_e_Stavrakakis_(2000) lembram que o ponto nodal precisa ser um
significante vazio, pois é da ausência de um significado específico que ele
depende para poder agregar os diversos significados possíveis, capazes de
colocar reunidos diferentes elementos em torno de um ideal. Importa notar que a
ausência de um significado específico significa a abundância de possibilidades
de significados, os quais vão agregando diferentes sujeitos em torno de um
ponto na construção de uma identidade.
A parcialidade da fixação desse sentido faz com que o fechamento pleno do
social não seja realizável em nenhuma sociedade atual. Mesmo assim, a ideia de
fechamento e plenitude ainda funciona como um ideal em torno do qual as
sociedades se organizam e cuja emergência depende da produção de significantes
vazios (Howarth_&_Stavrakakis,_2000). Griggs_e_Howarth_(2004) explicam que
os significantes vazios são formas de representação, as quais são
progressivamente esvaziadas de conteúdo ideológico e semântico à medida que
novas demandas e identidades são anexadas a eles.
Esses significantes servem como ponto de identificação simbólica para uma gama
de diferentes grupos e sujeitos, com identidades e interesses divergentes.
Destarte, o significante vazio é um elemento de convergência de tantas
identidades a ponto de perder seu significado específico e tornar-se um
significante sem significado, conforme afirma Mendonça_(2003b).
O significante vazio ocorre quando um discurso universaliza tanto
seus conteúdos a ponto de ser impossível de ser significado de forma
exata. Isso se dá, segundo Laclau_(2011), quando, numa prática
articulatória, a cadeia de equivalência (elementos/ momentos
articulados) expande polissemicamente seus conteúdos, inflaciona-se
sobremaneira de sentidos (Mendonça,_2009a, p. 162).
Com base nos conceitos até aqui discutidos, o estudo será desenvolvido a partir
dos procedimentos metodológicos descritos a seguir.
4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Com base em uma perspectiva qualitativa, é importante destacar que, aplicando a
teoria política do discurso, partiu-se da noção de contingência, presente em
toda realidade social. A contingência das relações sociais apontada pela teoria
do discurso impede o analista social de tomar as relações sociais para além de
injunções contextualizadas. Por isso, optou-se pelo estudo de caso, estratégia
de pesquisa que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da
vida real, que permite analisar o fenômeno de maneira pormenorizada, dentro de
sua especificidade histórica e com suas particularidades (Stake,_2000).
A intenção, ao utilizar-se esse método, foi compreender a situação em
profundidade, enfatizando seu significado para os indivíduos envolvidos no
processo. Nesse contexto, optou-se pela escolha do Circuito Fora do Eixo para
estudo por considerá-lo um caso representativo do fenômeno de resistência à
ordem hegemônica vigente e, por isso, apresentar grandes oportunidades de
aprendizado aos estudos sobre práticas organizacionais alternativas.
Coletaram-se os dados sobre a organização no período de outubro de 2010 a
agosto de 2012. Inicialmente, acompanhou-se o Circuito pela Internet em sites,
blogs, documentos, palestras, vídeos. O Fora do Eixo tem uma estratégia forte
de exposição, então há uma abundância de material sobre o Circuito disponível
para acesso por qualquer pessoa. No início de 2011, estabeleceu-se o primeiro
contato pessoal com o FdE, receberam-se autorização e amplo incentivo para o
desenvolvimento da pesquisa, em forma de disponibilidade irrestrita dos membros
para colaborar com o processo de levantamento dos dados.
Esse processo ocorreu fundamentalmente por atividades de observação e aplicação
de entrevistas semiestruturadas, além da coleta de grande volume de dados
secundários, como o regimento do Circuito, carta de princípios, planilhas,
atas, relatos, etc. As entrevistas tiveram como objetivo compreender a história
da organização a partir dos relatos de seus participantes, assim como os
significados atribuídos por eles às questões de interesse da pesquisa (Godoy,
2006). Ao todo, foram utilizadas 11 entrevistas, das quais nove foram
realizadas pelas pesquisadoras em um trabalho de imersão na Casa Fora do Eixo
São Paulo (na época, a única em funcionamento no Brasil, cuja experiência foi
depois replicada em cidades como Porto Alegre, Fortaleza e Brasília) e outras
duas entrevistas foram obtidas como dados secundários, por terem sido
realizadas por terceiros em outros contextos. Os nomes dos entrevistados estão
divulgados de acordo com seus consentimentos, e as entrevistas concedidas a
terceiros são de domínio público, constando nelas também o nome dos
entrevistados.
Ao longo do processo de análise, procurou-se perceber a dinâmica do Circuito
Fora do Eixo a partir das categorias propostas pela TPD que se apresentaram
pertinentes ao caso. Assim, trabalhou-se essencialmente com as noções de
articulação e lógica de equivalência. A primeira refere-se a qualquer prática
que estabeleça uma relação entre elementos de forma que suas identidades são
modificadas como resultado da prática articulatória. A segunda foi entendida
como uma simplificação do social, uma reunião de diferentes demandas que se
equivalem quando articuladas em uma cadeia de equivalência, em torno de um
ponto nodal, sempre como resultado de uma percepção comum de negação.
5. AS PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS DO CIRCUITO FORA DO EIXO E O ESTABELECIMENTO E A
MANUTENÇÃO DA LÓGICA DE EQUIVALÊNCIA
Apesar de ter ganho visibilidade na mídia tradicional pela relação com o
movimento Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação)
após os protestos ocorridos no Brasil em junho de 2013, o FdE já existe desde
2005. Naquele período, o Circuito surgiu no Brasil como um movimento voltado
para a produção musical independente, em um contexto caracterizado por
movimentações, no final da década de 1990 e nos anos 2000, em duas grandes
estruturas: a indústria fonográfica e o Estado, mais especificamente nas
políticas públicas para a cultura com o início do governo Lula. Naquele
contexto, o fenômeno dos novos festivais e o barateamento do acesso às
tecnologias de comunicação permitiram a articulação entre coletivos de produção
artística e cultural de todo o País, os quais, com demandas distintas, porém
historicamente negadas pela formação hegemônica no contexto da cultura, puderam
identificar equivalências em suas realidades.
A partir disso, articula-se uma série de diferentes demandas, relacionadas a
diferentes linguagens artísticas, em torno de um ponto nodal (Laclau_&
Mouffe,_2001), fora do eixo, inicialmente referente ao eixo geográfico Rio de
Janeiro-São Paulo. Articulados inicialmente em torno da música, coletivos de
produção cultural independente de todo o País enfrentavam dificuldades para
desenvolver processos de produção, circulação e distribuição. Durante os anos
de 2006, 2007 e 2008 o Circuito FdE foi crescendo e ampliando suas bases de
atuação. Em 2009, com os processos de circulação, distribuição e produção de
conteúdo já bastante desenvolvidos e com um grande alinhamento de valores e
práticas entre os coletivos participantes, o Fora do Eixo sentiu a necessidade
de organizar-se, de sistematizar seus processos de organização.
O Circuito Fora do Eixo não é uma organização tradicional, de acordo com a
definição dominante do que seja organizar, no sentido explicitado por Böhm_
(2006), cujos pressupostos estão vinculados a construções modernas como o
individualismo e a racionalização. O FdE é composto por cerca de 200 coletivos,
que constituem locais de produção cultural independente em suas cidades,
denominados de Pontos Fora do Eixo. Esses coletivos compartilham 18 Cadastros
Nacionais de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e atuam de forma autônoma localmente, sua
organização é conduzida pelos próprios membros, numa lógica de autogestão. Cada
coletivo tem total autonomia para desenvolvimento de projetos locais, com a
chancela do Fora do Eixo.
Os coletivos, também chamados de Pontos Fora do Eixo, articulam-se entre si
formando um grande coletivo, uma organização nacional de coletivos que é o Fora
do Eixo, ocupando 25 estados brasileiros (Fora_do_Eixo,_2011) e mobilizando
cerca de 2.000 pessoas com dedicação integral ao circuito. Os Pontos Fora do
Eixo são movimentos ou organizações sem fins lucrativos responsáveis por toda e
qualquer ação ligada ao Circuito Fora do Eixo em sua cidade. Cabe ao Ponto Fora
do Eixo conectar novos agentes interessados em participar da organização, bem
como desenvolver medidas estruturantes capazes de gerar e estabelecer Pontos
Parceiros, organizações informais ou formais de qualquer natureza jurídica, que
participam da esfera municipal.
As conexões entre os Pontos Fora do Eixo e Pontos Parceiros de um mesmo estado
formam as Redes Estaduais, as quais atuam de forma conectada entre si. A partir
da rede estadual, forma-se o Ponto de Articulação Estadual (PAN). Para sua
composição, não há eleição, nem indicação, os membros de pontos de articulação
e de casas Fora do Eixo que desejam fazer parte do Ponto de Articulação
Estadual autoindicam-se para participar e são aceitos, em qualquer instância
deliberativa. Já os Pontos de Articulação Regionais são compostos por membros
das Casas Fora do Eixo e de integrantes de pontos de articulação locais e
estaduais da região, também autoindicados e aclamados em qualquer instância
deliberativa regional. As Casas Fora do Eixo, além de constituírem espaços de
moradia e produção coletiva, são pontos de articulação regionais,
estrategicamente desenvolvidos em cidades como Brasília (Distrito Federal),
Fortaleza (Ceará), São Paulo (São Paulo), Belo Horizonte (Minas Gerais), Belém
(Pará), Rio de Janeiro (Rio de Janeiro) e outras.
O PAN é composto por membros de colegiados estaduais e/ou regionais e
temáticos, com no mínimo um integrante de cada estado/região, e um integrante
de cada Frente Temática. Destina-se a gerir e chancelar ações de âmbito
nacional e a mediar conflitos entre si. Para participar, os integrantes devem
autoindicar-se em quaisquer instâncias deliberativas regionais ou temáticas, e
serem aprovados em plenária (Fora_do_Eixo,_2012).
Todos esses pontos de articulação constituem colegiados que se comunicam na
maior parte do tempo virtualmente. A dinâmica da autoindicação garante que
qualquer um que deseje participar desses colegiados tenha acesso a isso. O que
acaba acontecendo é uma superposição dos papéis, quando o membro de um coletivo
é membro do ponto de articulação regional, mora na casa fora do eixo da região
e é o representante de determinada linguagem cultural dentro do circuito, por
exemplo.
Com uma dinâmica predominantemente horizontalizada, as decisões do circuito são
tomadas por consenso em reuniões semanais, não há uma hierarquia formal e o
poder é exercido de forma compartilhada pelos membros. Os documentos que
orientam as ações na organização são elaborados de forma coletiva e aprovados
por todos antes de serem considerados válidos. Ferramentas tradicionalmente
usadas por organizações burocráticas como planilhas, listas, editais,
regimentos, além de serem elaboradas colaborativamente, são utilizadas para
garantir a democratização da informação e a amplitude do acesso a ela, buscando
oferecer oportunidades iguais a todos dentro do circuito e viabilizando a
organização e a prática da colaboração e da solidariedade (Malatesta,_1927;
Moraes,_2010).
Práticas como as sede-moradia, o caixa coletivo e a moeda complementar são
aspectos estruturantes do modo de atuação do FdE no contexto cultural
brasileiro. As sedes moradias são casas nas quais os membros residem e
trabalham. Abrigam número variado de pessoas e servem também como alternativa
de hospedagem solidária para membros dos coletivos de outras cidades, bandas e
artistas em turnês pelo país. O financiamento dos coletivos se dá pelo caixa
coletivo, dinâmica por meio da qual toda e qualquer atividade remunerada
realizada por membros do coletivo é revertida em benefício do próprio coletivo,
atendendo às demandas pessoais como alimentação e moradia e também a demandas
coletivas como equipamentos e insumos para eventos. A moeda complementar é uma
das formas encontradas pelo FdE para viabilizar suas atividades um contexto de
escassez de recursos financeiros. Nessa lógica, todo e qualquer serviço
realizado por membros ou coletivos é contabilizado, e as trocas que ocorrem
dentro do circuito são sistematizadas compondo um esquema próprio de
financiamento baseado na troca, dispensando em grande parte a mediação
financeira.
Atualmente, o Circuito organiza-se em diferentes frentes temáticas como: Clube
de Cinema, Palco, Música, Emissora Multimídia, Fora do Eixo Letras, Artes
Visuais, Partido da Cultura, Universidade Fora do Eixo e Banco da Cultura. Cada
uma das frentes é formada por agentes produtores dos mais diversos Pontos Fora
do Eixo de todo o Brasil, que são responsáveis pela concepção dos projetos
desenvolvidos pela organização, bem como por sua aplicação nas cidades (Fora_do
Eixo,_2011).
Cada frente temática atuante no modo de organizar do FdE pode ser entendida
como a expressão de diferentes demandas que existem no contexto cultural
brasileiro e que estão articuladas dentro dessa formação discursiva (Laclau
&_Mouffe,_2001), organizada em torno de um significante vazio constituído
em torno do termo fora do eixo. Pode-se afirmar que as frentes temáticas
representam as demandas que conseguiram articular-se de forma a estabelecer
equivalências dentro dessa formação. Assim, a partir do estabelecimento de uma
frente de trabalho relacionada a cada uma dessas demandas, a organização do FdE
garante espaço para as diferentes demandas articuladas na cadeia equivalencial.
Além do estabelecimento formal de frentes de trabalho, apoiadas e recebendo
suporte umas das outras, as linguagens representadas pelas frentes temáticas
têm garantidas vez e voz no processo de gestão do FdE.
Esse espaço garantido às diferentes demandas pela formação de frentes temáticas
aponta para um aspecto crucial da organização da resistência: o estabelecimento
e a manutenção de lógicas de equivalência (Laclau_&_Mouffe,_2001), já que
para Laclau_(2011)qualquer processo político é uma tentativa de estender
parcialmente as equivalências e limitar parcialmente sua expansão indefinida.
Na medida em que se percebem representadas e contempladas naquele espaço
discursivo, as demandas permanecem articuladas e sua permanência habilita a
formação de novas equivalências e o fortalecimento das que já se estabeleceram.
Em oposição, à medida que uma demanda não encontra espaço de significação
dentro daquela formação discursiva, não encontra mais respaldo no significante
vazio que dá sentido àquela formação e a cadeia de equivalência se enfraquece e
pode ser rompida naquele ponto, o que pode significar a ruptura com outros
pontos.
6. PRÁTICAS DE COMUNICAÇÃO: AS COLUNAS FDE E O COMPARTILHAMENTO MASSIVO DE
INFORMAÇÕES
Na dinâmica de trabalho do FdE, a atuação de uma frente pode dar suporte e
potencializar a outra. Nem todas as frentes existem em todos os coletivos, mas
todos trabalham para viabilizar o trabalho dessas frentes em sua realidade
local, de forma que o processo de construção das soluções de uma demanda seja
potencializado por outras demandas.
Para conseguir essa articulação, desde o início de sua trajetória, no Fora do
Eixo entendeu-se que a comunicação seria um aspecto fundamental. Talles Lopes,
um dos fundadores do FdE, explica que a proposta de trabalhar inicialmente com
circulação, distribuição e produção de conteúdo já dava à comunicação um lugar
de destaque nos processos a serem desenvolvidos pelo Fora do Eixo. Por um lado,
porque eles entendiam que não conseguiriam entrar na grande mídia, a qual não
se interessava pelas produções fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo e, por
isso, eles teriam de criar os próprios canais de comunicação se quisessem
relacionar-se com os possíveis públicos de seus trabalhos. Por outro lado, no
contexto de escassez de recursos financeiros e à margem do sistema dominante, o
que viabilizaria a construção de um circuito independente das grandes
estruturas hegemônicas seria uma rede ampla o suficiente, a qual, por meio de
sua capilaridade, pudesse oferecer condições para a circulação de artistas e a
distribuição dos produtos a eles vinculados.
Em busca dessa expansão, o Fora do Eixo realiza as chamadas Colunas, atividades
nas quais um grupo de integrantes do circuito sai em viagem por determinada
região, conversando com coletivos locais, lideranças comunitárias, escolas,
universidades. As colunas são ações estratégicas de formação que deslocam
agentes e propõem a estrada como espaço de ação, parando de cidade em cidade e
mobilizando os agentes locais, participando das agendas da cidade e integrando
os temas regionais e/ou nacionais ao debate local nas diversas frentes de
atuação do Fora do Eixo (Fora_do_Eixo,_2012).
As colunas são uma prática importante de comunicação para o Fora do Eixo e são
formas de articulação bastante utilizadas. Por meio delas, integrantes do Fora
do Eixo que conhecem bem o funcionamento do circuito e que dispõem de
conhecimento e experiência para poder ajudar, promovem uma série de eventos, de
conversas informais a palestras e oficinas, comunicando sua forma de atuar e as
possibilidades de adesão de novos coletivos. A luta contra-hegemônica que o
Fora do Eixo representa e a possibilidade de articulação de diferentes demandas
da área cultural dentro dessa formação discursiva (Laclau_&_Mouffe,_2001)
atraem grupos que se dispõem a formar novos coletivos em suas cidades.
É essencialmente por meio da comunicação, de conversas pessoais, e da
retransmissão dessas informações que a lógica de equivalência vai se
estabelecendo, na medida em que os grupos se identificam como parte deste nós
Fora do Eixo e percebem que existe a possibilidade de ressignificar o que é
cultura, arte e economia dentro desses novos espaços que se formam.
Além de servirem à comunicação, as colunas são fonte de formação e adesão de
novos coletivos, estabelecendo uma lógica de equivalência no espaço social e
articulando novos elementos em torno do significante vazio Fora do Eixo. Laclau
(2011) argumenta que o que torna possível uma relação de equivalência é o fato
de que diferentes lutas particulares são tantos corpos que podem encarnar
indiferentemente a oposição de todos ao poder repressivo. Assim, quanto mais
estendida estiver a cadeia de equivalência, menor será a capacidade de cada
luta concreta ficar fechada na própria identidade, algo que a distinga das
outras identidades por ser uma característica exclusivamente sua.
No caso do Fora do Eixo, essa cadeia de equivalência expande-se rapidamente,
mas há cuidado em fortalecer os elos que se estabelecem entre as diferentes
lutas, de forma que o significante vazio continue a fazer sentido para os
diferentes grupos ao longo do tempo.
A comunicação interna do Fora do Eixo, feita essencialmente por meio de grupos
de e-mails, é bastante simples. Não há muitas regras para o funcionamento
dessas listas, exceto a proibição do envio de e-mailspuramente publicitários e
a organização dos assuntos em discussão em tópicos. Qualquer integrante de
Ponto Fora do Eixo tem autonomia para criar um novo tópico (Fora_do_Eixo,
2009).
O armazenamento de todos os documentos e atas de reuniões em planilhas, que
podem ser acessados por qualquer pessoa, permite o compartilhamento de
informações de forma muito intensa, constituindo um dos principais recursos do
FdE. Esse compartilhamento também é uma forma de dispersão do poder, tendo em
vista que, na medida em que qualquer membro tem acesso a qualquer informação de
forma imediata, a distribuição do poder associado ao conhecimento também é
muito mais intensiva. Para dar vazão às diferentes demandas e dar visibilidade
ao Circuito como um todo, potencializando a ampliação da cadeia de equivalência
(Laclau_&_Mouffe,_2001), o Fora do Eixo desenvolveu uma série de
tecnologias.
O processo de comunicação nacional do circuito em si tem como fontes todas as
ferramentas que os coletivos operam em suas localidades: blogs, sites, redes
sociais. O trabalho da comunicação em nível nacional é coletar conteúdo e
conseguir expor em conjunto o que a organização está fazendo de forma mais
abrangente, em espaços próprios criados pelo FdE e também por meio da
assessoria de imprensa, visando a um diálogo com a mídia hegemônica.
Nessa dinâmica, a soma das ações individuais traduz a grandiosidade daquilo que
o Circuito consegue produzir e, com isso, as ações específicas que cada
coletivo desenvolve somam-se umas às outras, formando algo que é maior do que
as somas, é uma organização de atuação nacional. Isso potencializa as ações
locais. Ao comunicar as realizações do circuito, o Fora do Eixo ajuda os
coletivos locais a ganharem visibilidade e maior poder de ação junto a
parceiros como empresas e até mesmo o Estado.
É interessante perceber que a dinâmica do processo de comunicação também se
estrutura de forma colaborativa. O Fora do Eixo não contrata pessoas para
cuidar da comunicação, são os integrantes dos próprios coletivos que assumem
essa função, além de haver entre os integrantes a disseminação da importância
desses processos, de forma que muitas pessoas atuam como comunicadores ou como
apoiadores dos processos de comunicação. Rafael Rolim explicou que as pessoas
que cuidam da parte da produção de conteúdo nos coletivos estão sempre atentas
ao que ocorre no circuito. Assim, quando um parceiro encaminha um e-mail
anunciando o lançamento de um CD, por exemplo, alguém da comunicação já
encaminha esse e-mail para um banco de pautas, a partir do qual são elaborados
instrumentos como o Comunica, boletim semanal que divulga os principais eventos
e ações da organização, a página do FdE no Facebooke no Twitter, o site do FdE,
entre outros.
O banco de pautas é uma ferramenta colaborativa de comunicação. Qualquer
integrante do Fora do Eixo pode postar uma pauta lá, a ponto de surgirem cerca
de dez pautas por dia, enviadas pelos coletivos. Algumas já vêm redigidas em
formato de nota, prontas para integrarem um boletim ou para serem encaminhadas
a veículos de comunicação por meio da assessoria de imprensa, a qual também é
desenvolvida internamente. Outras são colocadas em formato mais bruto e são
trabalhadas por uma grande equipe virtual de redatores voluntários, que vai
baixando as pautas, trabalha nelas e as envia de volta prontas, em forma de
texto, áudio, ou vídeo. Além disso, as frentes de linguagem também têm a
própria produção de pautas, garantindo o espaço nas comunicações institucionais
das diversas demandas representadas pelo Fora do Eixo.
Esse processo é fundamental para a comunicação da organização externamente,
alcançando potenciais parceiros, a área da cultura em geral, e outros coletivos
que possam vir a integrar a cadeia de equivalência. Para isso, as redes sociais
são ferramentas importantes para a divulgação do circuito e para estabelecer
diálogo com outros atores. O Fora do Eixo tem uma página institucional no
Twitter com mais de 10.000 seguidores. As frentes temáticas também têm as
próprias páginas, além dos twitters dos coletivos e das Casas Fora do Eixo. O
mesmo se dá com o Facebook. O site da Casa Fora do Eixo São Paulo é um local de
bastante visibilidade do circuito, devido à intensa ocupação que o Fora do Eixo
vem fazendo em diversos espaços da cidade. O Fora do Eixo tem ainda duas contas
na Web que comportam cinco canais de transmissão ao vivo de vídeo, a Web TV, e
quatro canais de transmissão ao vivo de rádio, a Web Radio, além dos sites
tradicionais de compartilhamento de vídeos, como o Vimeo e o Youtube.
7. PRÁTICAS DE FORMAÇÃO: IMERSÕES, VIVÊNCIAS E OBSERVATÓRIOS
Além da comunicação dos coletivos entre si e da interface com outros agentes, o
Fora do Eixo desenvolve ações de formação interna, as quais disseminam valores
e reforçam as relações entre os diferentes coletivos, com suas respectivas
demandas, a percepção de equivalências e o fortalecimento de uma identidade
comum (Laclau_&_Mouffe,_2001). Esse trabalho de formação humana envolve
desde a roda de conversa que acontece todos os dias nos coletivos até as
atividades de imersão, vivência e os observatórios.
Entre as ações de formação que o Fora do Eixo promove, as imersões são
procuradas por coletivos e grupos parceiros que passam dias imersos em Casas
Fora do Eixo buscando metodologias de organização específicas, entendendo as
possibilidades de inter-relação com as estruturas do Fora do Eixo e realizando
atividades de planejamento, consideradas importantes para o avanço dos
processos locais.
Durante a imersão em um coletivo, são apresentadas as estruturas de gestão do
Fora do Eixo e tudo o que ele desenvolve em sua localidade, traçando o próprio
modo de organização, a partir do qual se faz uma aproximação com aquilo que o
Fora do Eixo disponibiliza, e então se buscam possibilidades de intersecção.
Assim, o próprio coletivo vai definindo uma estrutura que esteja mais de acordo
com a realidade que vivencia em seu local. Apesar de o coletivo tomar as
decisões de forma autônoma, as imersões acabam por promover certa homogeneidade
organizacional dentro do circuito, independentemente das demandas, variando
apenas as estruturas com as quais os coletivos trabalham particularmente em
suas cidades. Outrossim, sempre há a possibilidade de o coletivo abrir novas
frentes e exercer novos formatos, tendo em vista que não há no sistema
amarração alguma nesse sentido, mas o que acaba acontecendo é uma organização
interna à luz do modo de organização do Fora do Eixo. Dentro das imersões, os
integrantes do coletivo lançam-se, a partir de suas afinidades pessoais e das
decisões tomadas em conjunto, às vivências, que são processos nos quais o
indivíduo aprende fazendo. Divulgadas por meio de editais, as vivências também
são fontes de pessoas para trabalhar em projetos específicos, mas esses
trabalhos não preveem remuneração alguma. O que se argumenta é que o retorno
individual se dá em termos de aprendizado e de experiências que o indivíduo
vive durante o processo, as quais também podem ser importantes para o coletivo
do qual ele faz parte, além do estímulo relacionado à realização de eventos
importantes e à participação ativa no circuito. Os editais são enviados pelas
listas de e-mail do circuito e são também enviados pelos integrantes dos
coletivos a pessoas que possam interessar-se pelos processos, além da
divulgação intensa nas redes sociais.
Assim como as imersões, as vivências também propiciam maior alinhamento com as
práticas organizacionais do circuito, disseminando conhecimentos e formas de
fazer que vão sendo incorporadas pelos coletivos.
A ausência de remuneração direta, questão que vem suscitando polêmicas em
matérias veiculadas na mídia tradicional, é vista como parte do processo de
construção coletiva. Para Talles Lopes, em um campo onde o recurso financeiro é
muito escasso, como o da cultura independente, o que move as pessoas é o
estímulo. Baseado em sua vivência no circuito, Rafael Rolim explicou que esse
estímulo ocorre porque as pessoas estão sempre muito conectadas a outras, estão
o tempo inteiro em processos de aprendizagem muito intensos. Por isso eles não
consideram a dicotomia vida/trabalho relevante, tampouco consideram que suas
jornadas de cerca de 14, 16 horas diárias, de domingo a domingo, sejam
demasiado intensas.
Os observatórios são também atividades de formação que divulgam temas e valores
vinculados ao Fora do Eixo, uniformizando o conhecimento de todos os
interessados em determinados assuntos. Os observatórios são ações presenciais e
virtuais, transmitidas via Web Radio ou via Web TV, as quais comportam debates
com pensadores, pesquisadores e pessoas com experiência nas mais variadas
temáticas. Esses observatórios, como atividades de formação, disseminam modos
de pensar, valores os quais, dentro de uma lógica de equivalência entre
diferentes demandas, fortalecem a própria noção de equivalência, no sentido de
criar um sentimento de nós (Griggs_&_Howarth,_2004) a partir da
identificação dos coletivos individualmente com questões comuns ao circuito
como um todo. Por outro lado, os observatórios ajudam a traduzir as ações da
organização em conceitos, o que pode ajudar a trazer o universal Fora do Eixo
para dimensões mais particulares, no olhar de cada coletivo (Laclau,_2011).
8. RELAÇÕES EXTERNAS
Além das relações que se estabelecem internamente, entre os coletivos, há
também um processo de relacionamento com outras redes, instituições, movimentos
com os quais o Fora do Eixo se relaciona. São relações importantes para a
manutenção e o crescimento da organização, que podem ser entendidas como
parcerias que se articulam temporariamente, não chegando a estabelecer uma
lógica de equivalência ao ponto de que o significante vazio Fora do Eixo seja
atrativo o suficiente para aglutinar esses parceiros nessa formação discursiva
específica.
Entre as premissas e diretrizes do FdE, formuladas no II Congresso Fora do
Eixo, em 2009, são enfatizados o estímulo à formação de parcerias e o
compartilhamento de relações com grupos de parceiros com princípios
semelhantes, redes e movimentos sociais. Para Atílio Alencar, essa formação de
parcerias é um importante aspecto do que eles chamam de lógica de contaminação,
tendo em vista o caráter aberto do Fora do Eixo e a percepção da importância de
interagir com outras organizações e parceiros importantes como as
universidades, o Ministério da Cultura e os Pontos de Cultura.
Pablo Capilé, uma das lideranças do coletivo cultural, entende que esse diálogo
precisa ocorrer não somente entre organizações com objetivo afins, mas também
com instituições que articulam a formação hegemônica vigente. Pablo entende
que, para disputar a sociedade que existe, é preciso dialogar com ela,
negociar:
Nós estamos disputando a única sociedade que existe e, para você
disputar com ela, você vai ter que dialogar, vai ter que negociar,
você não vai jogar uma bomba no que existe, você tem que negociar,
tem que dialogar, tem que ampliar contaminação, e você vai ter que
discutir com o vigente, vai ter que ampliar o diálogo neste sentido,
que é com banco, que é com o mercado, que é com a indústria, e você
tem que contaminar ela por dentro, você tem que estar disputando de
fato.
Nesse sentido, Capilé afirma que não existe conflito ou incoerência acerca das
relações que o Fora do Eixo estabelece com empresas como bancos, empresas de
telefonia e outras instituições típicas da forma dominante de organização, os
quais eventualmente atuam como patrocinadores de eventos promovidos pelo Fora
do Eixo ou atuam como apoiadores em atividades desenvolvidas pelo circuito. Em
sua visão, para disputar a sociedade, é preciso negociar com quem “tem mais
lotes dentro dela”, é preciso ocupar espaços dentro desses lotes para conseguir
democratizá-los. Ao encontro das afirmações de Pablo Capilé, Atílio Alencar,
ex-membro da organização, afirma que o FdE não tem pudor algum em realizar
trocas com o mercado convencional, até porque qualquer tipo de serviço prestado
pode gerar receita comum para o coletivo.
Essas relações ambíguas evidenciam a dificuldade de inserção de modelos
alternativos à forma capitalista de organizar numa sociedade calcada nesse
sistema e com padrões organizacionais centrados na burocracia e no
gerencialismo. No sentido discutido por Benini_e_Benini_(2010) sobre as
cooperativas e o movimento da autogestão, percebe-se que, assim como a atuação
do Fora do Eixo tem um caráter utópico e emancipatório, tem também meios
institucionais e organizacionais constituídos para concretizar esse projeto.
Nesse movimento, O FdE estabelece relações e acessa recursos de grandes
corporações e do Estado, o que exige de certa forma que se constitua legalmente
como organização burocrática. O que o diferencia como tal é a forma como esses
instrumentos burocráticos são geridos e as finalidades às quais eles servem.
9. AS PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS FORA DO EIXO E A ARTICULAÇÃO DE EQUIVALÊNCIAS
Inicialmente, considera-se importante destacar que a constituição do
significante vazio Fora do Eixo foi fundamental para que ele se tornasse um
ponto nodal capaz de aglutinar em torno de si uma diversidade de demandas,
tornando-se um elemento de convergência de tantas identidades a ponto de perder
seu significado específico e tornar-se um significante sem significado (Laclau,
2011). O significante Fora do Eixo, que a princípio se referia a uma demanda
específica de coletivos de produção musical que enfrentavam uma série de
dificuldades para atuar fora do eixo geográfico Rio-São Paulo, universalizou
seu conteúdo e passou a não ter um significado específico, podendo assim
acolher diversas demandas.
A constituição organizativa do FdE calcada em frentes temáticas e o
compartilhamento que elas fazem da gestão do circuito garantem às diferentes
demandas aglutinadas em torno do Fora do Eixo um espaço representativo nas
definições de ações e encaminhamentos do circuito, mantendo fortalecida a
cadeia de equivalência. A atuação inter-relacionada de diferentes demandas faz
com uma potencialize os resultados da outra, numa relação em que todos saem
beneficiados. É relevante o fato de o FdE estar organizado em uma estrutura na
qual as diferentes linguagens artísticas, com suas diferentes demandas, são
representadas e possuem as ferramentas institucionais para interferir nos
processos de decisão, podendo discutir conjuntamente as ações e os destinos do
circuito.
Entende-se que esse é um dos aspectos-chave no processo do Fora do Eixo.
Percebe-se que, mesmo estando organizadas em torno de um ponto nodal, as
demandas, que não perdem suas identidades particulares (Laclau,_2011), podem
vir a estabelecer disputas dentro da própria luta. A tradução das demandas em
estruturas organizativas e as diversas iniciativas que visam à diluição
territorial do poder dentro do FdE buscam assegurar vez e voz a todos,
articulando interações que viabilizem o alcance de resultados conjuntos em vez
do desenvolvimento de uma frente em detrimento das demais.
O estabelecimento do significante vazio, no caso do Fora do Eixo, é fruto de um
amplo processo de comunicação colaborativo, operado por todos os integrantes da
organização, de formas diferentes. É a comunicação das dificuldades, de
aspectos específicos das realidades locais, das potencialidades, das
realizações que fazem com que os grupos se identifiquem entre si, estabelecendo
um nós Fora do Eixo, que se opõe à forma hegemônica de produção cultural no
Brasil.
Na história cotidiana do circuito, a dinâmica colaborativa do processo de
comunicação e o entendimento de que todo integrante é um comunicador fazem com
que a informação circule de forma bastante ágil e fluida. Não há um fluxo
preestabelecido pelo qual a informação deva circular, tampouco há indivíduos
que têm acesso a informações de forma privilegiada. Com o acesso à informação,
qualquer integrante do FdE tem as condições necessárias para tomar decisões
rápidas vinculadas às necessidades cotidianas, rompendo com a tradicional
estrutura de poder das organizações burocráticas, na qual as decisões são
tomadas em níveis hierárquicos distintos, com base na concentração das
informações em determinados pontos (Clegg,_1998).
O processo de comunicação é intenso, fundamentado no compartilhamento massivo
de informações. Todos os documentos relacionados ao Fora do Eixo ficam
disponíveis em uma base digital que pode ser acessada a qualquer momento, por
qualquer integrante do circuito.
As práticas de comunicação intensiva levam os coletivos a saberem quase
simultaneamente o que se passa em qualquer outro coletivo do Brasil, nas
regionais e nas articulações em nível nacional. Esse intenso compartilhamento é
visto por Misoczky_et_al._(2010) como característica essencial de uma
organização horizontal, cujo princípio da difusão das informações relevantes a
todos com a maior frequência possível para as respectivas deliberações por meio
de uma rede formalizada evita o acesso privilegiado a informações, bem como a
dissimulação de relações de poder existentes.
No processo de estabelecimento e manutenção da lógica de equivalência, as
atividades de formação e capacitação, intensamente vinculadas às práticas
cotidianas exercidas nos coletivos, têm um papel fundamental. Atividades como
as colunas, os observatórios, as vivências e as imersões comunicam as práticas
organizacionais do Fora do Eixo para seus coletivos integrantes e para outros
grupos que, em muitos casos, acabam por aderir ao circuito, fortalecendo a
cadeia de equivalência com base em uma identificação de valores e de condições
de vida e trabalho em suas realidades. A diversidade de alternativas de
aprendizagem oferece aos indivíduos a possibilidade de acessar o conhecimento
necessário ao desenvolvimento das mais diversas atividades dentro do circuito,
democratizando o acesso das pessoas a projetos e ações que lhes interessam e
tornando fluidas as relações com o trabalho, ao mesmo tempo que as pessoas vão
escolhendo com o que querem trabalhar e construindo a própria trajetória, sem
cargos ou funções prefixadas, como é comum à forma burocrática de organizar
(Parker,_2002).
Os modos de vida são compartilhados também por meio de experiências nas quais o
indivíduo vivencia diretamente outras realidades, como os processos de imersão
nos quais indivíduos e/ou grupos inteiros passam dias imersos junto a grupos
que já estejam mais consolidados, aprendendo a utilizar as ferramentas, as
formas de lidar com as questões de gerenciamento e da vida coletiva como um
todo. Nesses processos, é dedicada especial atenção à estruturação do coletivo
de forma a definir algumas atividades consideradas essenciais para sua
manutenção, como o financiamento, as relações externas e a comunicação.
Para o desenvolvimento do indivíduo, mas principalmente do circuito como um
todo, são construídas coletivamente diversas oportunidades de aprendizado, como
as imersões, as vivências e os observatórios, nos quais os próprios
integrantes, ou parceiros convidados, disseminam pela organização e pelo
público em geral conhecimentos que podem ser aplicados a realidades
específicas. Entende-se ser relevante destacar que esses movimentos de formação
são sempre baseados em experiências empíricas, ou seja, o Fora do Eixo não
nasceu e não nutre suas práticas em modelos teóricos, embora tenha algumas
inspirações nesse sentido. A máxima é aprender fazendo, conforme sugere a
pedagogia freireana (Freire,_2005), e isso decorre da intensa interação que
ocorre entre seus integrantes, na maior parte do tempo de forma virtual e,
sempre que possível, de forma presencial.
Finalmente, destaca-se a importância das relações externas com parceiros que,
apesar de não estabelecerem uma lógica de equivalência, encontram pontos em
comum e conseguem fortalecer suas atuações particulares por meio dessas
parcerias. Também há parcerias com empresas e instituições cujo fim não é a
transformação ou a luta em um espaço social. Para Pablo Capilé, as parcerias
com empresas privadas e órgãos estatais não é uma incoerência do circuito,
tendo em vista que o Fora do Eixo entende essas relações como um avanço no
espaço dominante, uma ampliação da disputa a qual, pelas incoerências do
sistema atual, permite que ele próprio financie seu antagonismo.
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferentemente da neutralidade política argumentada pelas organizações
gerencialistas, o Fora do Eixo tem uma posição política clara: está disputando,
na sociedade que existe, a concepção dominante de significantes como cultura e
artista. A partir do significante vazio Fora do Eixo, esses construtos foram
colocados em disputa, evidenciando a possibilidade de inúmeras novas
conceituações, as quais possam incorporar perspectivas, como a do artista igual
pedreiro, a do caixa coletivo, a da sede moradia. Existe cultura fora do eixo.
Existe artista fora do eixo que pode sobreviver de sua arte.
Entende-se que um dos aspectos-chave na produção desse organizar alternativo
está na forma como os coletivos ligados ao Fora do Eixo articulam-se em torno
de um ponto nodal, o significante vazio Fora do Eixo, o qual tem a capacidade
de abarcar diversas demandas existentes nesses grupos, estabelecendo uma
relação de equivalência. É relevante destacar, nesse contexto, que os coletivos
optaram por uma forma de organizar que contemplasse suas demandas,
representadas pelas linguagens artísticas, de forma ativa e atuante no processo
de gestão. Assim, cada demanda identificada dentro do circuito tem uma frente
temática correspondente, com espaço, vez e voz na estrutura de decisão da
organização, garantindo espaço e relação mais equitativa entre os diferentes
grupos no contexto do circuito.
Para aglutinação em torno de um ponto nodal, revelou-se particularmente
importante a tônica dada pelo circuito aos processos de comunicação, os quais
se entendem como expressão de uma prática articulatória voltada ao
estabelecimento de uma cadeia de equivalência. Esse processo de comunicação
intensivo, colaborativo e descentralizado viabiliza a articulação entre
elementos dispersos no campo da discursividade, permitindo-lhes perceber
equivalências entre si e fornecendo os argumentos necessários para sua
articulação em momentos de uma formação discursiva que se coloca contra a ordem
dominante. Note-se que o processo de comunicação não cria equivalências, mas
traduz as demandas individuais em linguagem e sentido e, com isso, permite que
seja compartilhado por outros grupos que, a partir de suas ações e posições
políticas, fazem escolhas no sentido de integrar o movimento Fora do Eixo.
O compartilhamento de experiências que ocorre por intermédio dos diversos meios
de comunicação utilizados pelo Fora do Eixo ajuda os grupos a darem sentido
para suas experiências individuais, as quais não encontram sentido na forma
dominante de produção cultural que tem o mercado por instituição central, quer
por atuação das grandes empresas (gravadoras, editoras, produtoras, etc.), quer
pela atuação do Estado, que não deixa alternativas às organizações culturais
senão a luta por recursos oriundos do incentivo fiscal.
Diante dessas análises, a teoria política do discurso apresenta-se como uma
alternativa teórica importante para o entendimento dos processos políticos que
dão sustentação a práticas organizacionais alternativas como as concretizadas
no Circuito Fora do Eixo. A concepção de lógica de equivalência como prática
articulatória que leva ao reconhecimento do compartilhamento de uma condição de
negação dentro de uma relação hegemonia/contra-hegemonia é um recurso valioso
para pesquisadores que buscam entender a dinâmica dos processos de colaboração
e confiança entre diferentes organizações.
Por fim, entende-se que o Fora do Eixo é permeado, como organização inserida
num contexto social mais amplo, por ambiguidades e contradições, percebidas em
especial na utilização de instrumentos burocráticos na gestão e nas relações
estabelecidas com instituições típicas da forma dominante de organizar, como o
Estado e as grandes empresas. Essa ambiguidade pode sugerir a necessidade de
superar-se um dualismo teórico na abordagem das organizações de resistência,
compreendendo- as a partir de relações concretas que acontecem no espaço social
e entendendo as contradições como características inerentes a organizações
humanas. Ainda assim, entende-se que o FdE constitui uma alternativa viável à
forma dominante de organizar, pelo engajamento, comprometimento e dedicação
pessoal de seus integrantes. A paixão pelo que fazem pode ser vista em seus
olhares, ouvida em seus discursos, sentida em suas imagens. Gente que circula
pelos quatro cantos do Brasil defendendo, e concretizando, uma nova realidade,
a possibilidade de fazer cultura sem depender exclusivamente do suporte direto
do Estado ou da estrutura das grandes corporações. Contudo, nem por isso deixam
de pautar a cultura nos debates políticos, deixam de envolver-se em lutas por
espaços públicos, por direitos iguais, por liberdades individuais e coletivas
capazes de construir uma sociedade mais transparente e igualitária.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review Editor Científico: Nicolau Reinhard