Quarenta anos de demografia histórica
A demografia histórica não é especialmente fácil. Por um lado, ela tem toda a
complexidade da moderna demografia; por outro, possui todas as lacunas e
incertezas da própria história.
(Hollingsworth, 1977, p. 25)
Passadas quase quatro décadas da introdução dos estudos de demografia histórica
no Brasil, uma massa crítica de importância encontra-se, na atualidade,
bastante consolidada. Com seus erros e acertos, os estudiosos da população
brasileira no passado contribuíram de modo significativo para um melhor
conhecimento da história do país. Pela exploração de fontes e temas pouco
abordados, ampliou-se de modo notável o conhecimento sobre a família livre e a
escrava, sobre a criança e a mulher, sobre as relações de sociabilidade; fez-
se, também, algumas análises críticas das fontes utilizadas.
Ao longo do período, uma série de balanços foi realizada, buscando caracterizar
as principais linhas de investigação, apontando os avanços e lacunas e
sugerindo novos caminhos para futuras pesquisas (Samara e Costa, 1984;
Marcílio, 1997; Motta, 1999; Tupy, 2002). Não é nossa intenção, contudo,
atualizar o estado das artes, mas fazer algumas reflexões críticas sobre a
produção brasileira na área.
Essa produção, ampla, diversificada e de boa qualidade, deixa transparecer
certos impasses e discussões ainda em aberto, alguns dos quais refletem debates
correntes no contexto internacional, enquanto outros são específicos à
realidade brasileira. As polêmicas passam por questões amplas como a própria
definição dos campos e dos limites da demografia histórica, história
demográfica, história da população e história da família. Dizem respeito,
também, à escolha do espaço e do período de análise, à problemática da
mobilidade da população, à dificuldade de transposição e uso de modelos
teórico-metodológicos criados para outras realidades, à deficiência de
aplicação dos recursos técnicos e, até mesmo, à escassez do diálogo
internacional e interdisciplinar.
A questão da definição do campo da demografia histórica é um debate que vem
sendo constantemente travado nas reuniões científicas, especialmente durante os
encontros da Abep. As dúvidas e discordâncias que se revelam não são, contudo,
exclusivas ao nosso meio; repetem-se, na realidade, em âmbito internacional, e
não há, reconheçamos, um consenso.
David Reher, importante pesquisador da demografia histórica ibérica, por
exemplo, defende que é falsa "a distinção entre demografia histórica e história
da população". Segundo ele, esta distinção teria sido forjada principalmente
por autores franceses, e a sua origem estaria na base de uma "guerra
subversiva" contra a imprecisão dos historiadores, indicando que a "demografia
histórica era uma ciência social e a história da população, um entretenimento
para pessoas pouco preparadas para levar a cabo uma análise rigorosa". Ainda de
acordo com Reher, tais autores definiram, assim, que "a demografia histórica
aplica métodos próprios da demografia às populações do passado em função de
critérios e preocupações analíticas típicas da demografia", ao passo que a
"história da população seria qualquer contexto histórico onde se trata da
variável população". Tal distinção, para Reher, seria inteiramente falsa,
arcaica e desnecessária: "a pessoa que escreve sobre, por exemplo, a história
da peste está fazendo tanto demografia histórica como história da população"
(Reher, 2000). Logo, alerta ele, estaria usando as duas expressões, ao longo de
seu texto, de maneira quase indistinta.
Joaquim Manuel Nazareth, demógrafo português, por outro lado, distingue os dois
campos. Sobre a história da população, admite que é um ramo da história, e não
da demografia.
Enquanto a história da população procura refletir sobre os dados
existentes acerca do estado e dos movimentos das populações do
passado, a demografia histórica define-se, sobretudo, a partir das
fontes que utiliza e da metodologia que desenvolve para investigar o
passado. A história da população limita-se à utilização dos dados
demográficos para explicar o passado numa perspectiva de dinâmica
social. Sempre foi uma preocupação dos historiadores, desde que a
história se afirmou como disciplina autônoma, conhecer o estado das
populações e dos seus movimentos ao longo do tempo, de forma a
compreender certos acontecimentos e as suas conseqüências econômicas
e sociais. Antes do aparecimento da demografia histórica, a história
da população utilizava dominantemente dados brutos recolhidos
diretamente nas fontes manuscritas ou indiretamente nas fontes
impressas. Posteriormente, com o desenvolvimento dos resultados
obtidos pela demografia história, a história da população passou a
utilizar indicadores mais sofisticados. (Nazareth, 2004, p. 50)
Não obstante tais posicionamentos distintos, haveria um consenso de que definir
o que seria a demografia histórica apresenta dificuldades diante da crescente
incorporação de novas fontes, objetos e abordagens. Talvez, como propõe
Nazareth, seria mais produtivo "clarificar o sentido de sua originalidade",
deixando de lado a procura de novas definições. Para ele,
a originalidade da demografia histórica reside no seguinte: não ter
estatísticas feitas; as fontes que utiliza não terem sido elaboradas
com objetivos demográficos; o tratamento dessas fontes ter dado
origem ao aparecimento de novos métodos e de novas técnicas
(Nazareth, 2004, p. 50).
No Brasil, tal discussão tem sido constantemente retomada. De uma maneira
geral, persiste a polêmica, principalmente durante as reuniões do GT "População
e História" da Abep, sobre o quanto se tem produzido em demografia histórica.
Talvez o mais sintomático diagnóstico tenha sido feito por Iraci Del Nero da
Costa: "Muito de história e pouco de demografia", revelando "uma carência em
termos de domínio dos métodos e técnicas desenvolvidos pela demografia formal"
(Costa, 1994 e 1999).
Consideramos, no entanto, que não se trata de uma questão de "muito de História
e pouco de demografia". Na realidade, poderíamos dizer que se trata de "muito
de estudos de população e pouco de análise demográfica propriamente dita". Os
próprios balanços efetuados sobre a produção brasileira deixam implícito ' e
não explícito, como seria de se esperar ' a rarefação de estudos concretos
relativos às variáveis demográficas clássicas ' natalidade, nupcialidade,
mortalidade e mobilidade ' e à relação entre elas e delas com os contextos
socioeconômico e cultural. Ao mesmo tempo, um exame da produção disponível nos
Anais dos encontros nacionais promovidos pela Abep e na Revista Brasileira de
Estudos de População reforça este diagnóstico (Tupy, 2002).
Ressalta-se, de fato, a carência de estudos que privilegiem a análise
demográfica do passado, diante da proliferação de trabalhos voltados para o
estudo da população atual. Temas como a história da família, da criança e da
mulher, a análise das estruturas do parentesco, da sociabilidade, do patrimônio
familiar, da composição da força de trabalho com ênfase na mão-de-obra escrava
e da imigração são amplamente dominantes, levando José Flávio Motta e Iraci Del
Nero da Costa a afirmarem que a demografia histórica no Brasil passou por um
processo de "transbordamento" em relação aos limites tradicionais da disciplina
(Motta e Costa, 1997; Motta, 1999).
No entanto, tais estudos nascidos no contexto desse "transbordamento", com
poucas exceções, raramente se aventuraram por uma proposta de análise
demográfica estrita, seja pela aplicação das técnicas e métodos já existentes,
seja pela criação de novos procedimentos metodológicos, fundamentados nas
peculiaridades das fontes documentais brasileiras. Tal deficiência dificultou a
ampliação do conhecimento do comportamento demográfico retrospectivo, seus
condicionantes e implicações recíprocas. Grande parte dos trabalhos que vieram
a público deu ênfase à aplicação de métodos estatísticos básicos aos dados
brutos, muitas vezes sem recorrer aos testes que permitem avaliar a
confiabilidade e a consistência das fontes.1
Não se trata, portanto, a nosso ver, de um "transbordamento" da demografia
histórica, mas sim de um efetivo enfoque majoritário das análises em história
da população, se considerarmos o ponto de vista defendido por Nazareth e outros
autores. E isto, ressalte-se, sem qualquer demérito para tais trabalhos. Muito
pelo contrário, essa vasta produção em história da população deu uma
contribuição fundamental para o melhor conhecimento da população brasileira em
perspectiva histórica.
Mesmo assim, os balanços realizados, ao apontarem as lacunas geográficas e
temporais da produção brasileira, ressaltam, na realidade, e talvez um pouco
inconscientemente, a ainda persistente carência de maiores análises
demográficas retrospectivas. Sintomático disto são as propostas de se tentar
definir uma geografia dos sistemas demográficos brasileiros do passado, como
ensaiado pioneiramente por Maria Luiza Marcílio e, mais recentemente, por
Sérgio Odilon Nadalin (Marcílio, 1984; Nadalin, 1994 e 2004).
Passadas quatro décadas da introdução da demografia histórica no Brasil, e
vinte anos da tentativa de sistematização promovida por Marcílio, Nadalin não
pode avançar para além de considerações gerais e de novos desdobramentos
geográficos. A produção restrita e localizada, no tempo e no espaço, de
análises demográficas propriamente ditas impediu Nadalin de aprofundar sua
proposta, permanecendo na superfície da questão. Sua descrição do que denomina
"regime demográfico das secas do sertão" é um bom exemplo do grau de
generalidade a que foi obrigado a recorrer:
Dadas as particularidades climáticas da região, seria possível
postular um sistema demográfico fundado no regime de secas do sertão
nordestino, articulado às economias de subsistência e à criação de
gado, caracterizado, no principal, pela grande mobilidade gerada
pelas fomes periódicas que assolavam a região. (Nadalin, 2004, p.
141)
Uma descrição, em suma, que não consegue sequer citar algum elemento da análise
demográfica que caracterizaria esse sistema para além da constatação de um
movimento emigratório sobre o qual ainda há muito por conhecer.
Qualquer proposta de tipologia de sistemas demográficos será barrada pela pouca
representatividade dos estudos existentes fora do eixo São Paulo'Minas
Gerais'Paraná'Rio de Janeiro, e pela concentração temporal na segunda metade do
século XVIII e primeira metade do XIX. Portanto, o que se faz necessário, hoje,
é incentivar a produção de análises sobre o comportamento demográfico
propriamente dito, ou seja, a produção de trabalhos em demografia histórica,
sem deixar, contudo, de se continuar a pesquisar na profícua e importante linha
da história da população. Afinal de contas, é preciso que deixemos de nos
preocupar em "enquadrar" todas nossas linhas de pesquisa sob o guarda-chuva da
demografia histórica, como que fugindo da denominação de historiadores da
população.
Talvez a origem dessa preocupação esteja relacionada ao que David Reher
ressaltou ao vincular o descrédito da história da população ao momento de
afirmação da demografia histórica como campo autônomo de pesquisa: o esforço
que alguns demógrafos historiadores franceses empreenderam ao procurar acentuar
a cientificidade desta em detrimento daquela (Reher, 2000). No Brasil, a forte
influência da escola de demografia histórica francesa parece, assim, ter
contribuído para a conservação de um certo olhar de descaso para com a história
da população, obrigando os pesquisadores a um esforço de interminável
justificação de suas linhas e de sua inclusão no âmbito da demografia
histórica.
Portanto, conclui-se, pelo visto até aqui, que a carência maior está na
produção de análises do comportamento demográfico que, juntamente com a
produção significativa de estudos de população, venham a permitir um melhor e
mais amplo conhecimento de nosso passado demográfico. Nesse sentido,
gostaríamos de apontar alguns fatores que teriam inibido um maior
desenvolvimento dos estudos em demografia histórica, sugerindo opções para o
estabelecimento de uma política de incentivo à abordagem demográfica mais
estrita.
Em primeiro lugar, devemos novamente lembrar que a origem da demografia
histórica brasileira esteve fortemente atrelada à chamada escola francesa, que
tinha por base o método de reconstituição de famílias de Louis Henry. Os
primeiros resultados surgiram em São Paulo e no Paraná, seja pela fiel
aplicação do método (Nadalin, 1978; Burmester, 1981), seja pela sua adaptação,
tal como o fizeram Marcílio (1986), Scott (1987) e Bacellar (1997). A
fidelidade ao método entre os pesquisadores paranaenses resultou em muitas
críticas por parte dos historiadores, acusando-os de excessiva aridez
estatística em seus trabalhos. Já em São Paulo, por outro lado, apesar das
análises demográficas, os autores buscaram refúgio na história social e
econômica e na história da população, utilizando os dados demográficos e o
método de reconstituição de famílias como base para outras análises, escapando
de críticas mais contundentes. Héctor Pérez Brignoli, em recente reflexão sobre
as peculiaridades da demografia histórica latino-americana, reforça este
diagnóstico:
La trayectoria intelectual de Maria Luiza Marcílio sigue siendo
ejemplar en cuanto a los alcances del impacto de la demografía
histórica europea en la historiografía latinoamericana. En su tesis
[...] Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700-1836)
[...], utilizó una muestra probabilística de las listas nominativas
de la Capitania de São Paulo para reconstruir la dinámica de
población paulista en relación con la historia agraria [...]. En
Caiçara (1986) [...] aplicó con éxito el método de reconstitución de
familias, utilizando los datos de las listas nominativas [...]. Ambos
libros muestran bien que la más brillante especialista en demografía
histórica de Brasil buscó, desde muy temprano, salidas hacia la
historia económica y social. Dicho de otro modo: la justificación y
perspectiva de ambos estudios se localiza fuera de la demografía.
(Pérez Brignoli, 2004)
Acusados de excessivo empirismo, os pioneiros da demografia histórica deram
origem, mesmo assim, a linhas de pesquisa bastante fecundas. Estas, de uma
maneira ou de outra, abrigaram-se, mesmo que inconscientemente, nos domínios da
história da população e da história social, levando ao contínuo crescimento da
produção. Isto fica claro ao se observar o volume cada vez maior de inscrições
de trabalhos no GT "População e História" nos últimos encontros da Abep.
Aparentemente, as críticas que o método de reconstituição de famílias recebeu
no exterior ' escassa representatividade estatística, baixo rendimento ' vieram
se somar às dificuldades em aplicá-lo ao caso brasileiro, devido à qualidade
desigual de nossas fontes e à extrema mobilidade de nossa população.2 Além
disso, os prazos cada vez menores impostos para os programas de pós-graduação
colocam mais obstáculos ao desenvolvimento de pesquisas nessa linha.
No entanto, ao contrário do que ocorreu no exterior, a demografia histórica
brasileira não buscou desenvolver metodologias alternativas para superar tais
obstáculos, tal como aconteceu na Inglaterra, em torno do Cambridge Group e de
Peter Laslett; no Canadá, em torno de Hubert Charbonneau, na Universidade de
Montreal; nos Estados Unidos, em torno da chamada escola de Berkeley, com
Woodrow Borah e Sherbune Cook, e do projeto de Princeton, dirigido por Ansley
J. Coale; e, mais recentemente, na Espanha e Portugal, com a Asociación de
Demografia Histórica (ADEH), em torno principalmente de David Reher e Maria
Norberta Amorim, e na Itália, com a Società di Demografia Storica (Sides), com
Massimo Livi-Bacci e Carlo Corsini.
De todos estes centros, talvez a maior influência sobre os brasileiros tenha
vindo de Peter Laslett e seu importante trabalho de análise do grupo doméstico,
que teve um relativo sucesso entre os pesquisadores no Brasil. Em geral,
contudo, as novas propostas técnicas e metodológicas surgidas nesses grupos
permaneceram pouco conhecidas entre nós. Ancoradas em forte trabalho
interdisciplinar, com intenso uso dos modernos recursos da demografia, da
estatística e da informática, as novidades elaboradas no exterior não tiveram
repercussão significativa no Brasil. Basta um simples olhar para o volume
organizado por David Reher e Roger Schofield ainda em 1993, Old and new methods
in Historical Demography (Editora Oxford), para percebermos o descompasso em
que nos encontramos.
A ausência de novas propostas técnico-metodológicas e de trabalho
interdisciplinar por aqui pode ser um reflexo da inexistência de fortes grupos
institucionalizados, com acesso a recursos materiais e humanos. A pulverização
da pesquisa em pequenos grupos regionais ou até mesmo em indivíduos dificultou
o diálogo e impediu tais inovações. Como conseqüência, e devido ao fato de a
maioria esmagadora desses pesquisadores terem formação em história, o caminho
mais acessível mostrou ser o da história da população, que exigia menos em
termos estatísticos e técnicos. Se a produção historiográfica assim alcançada é
profícua e de qualidade, e como tal vem sendo reconhecida, padece, como já
ressaltado, da escassez de análises de cunho demográfico estrito.
Esta realidade criou uma relativa ambigüidade na definição do fórum a ser
ocupado pelos pesquisadores interessados no estudo da população. Com a carga
negativa que a demografia histórica ainda carrega entre alguns historiadores,
herança dos tempos pioneiros, o público que se reúne na ANPUH, a associação
nacional dos historiadores, por exemplo, tem pouco interesse e muita
resistência à abordagem demográfica, situação revertida apenas quando
oferecemos análises respaldadas em estudos da família e da população que
contribuam para a história social e econômica. Logo, não caberia alegar que
trabalhar com história da população não tem relevância, nem público. Cabe, a
esse respeito, o comentário de David Reher:
O público que lê história da população é um público de historiadores
e, em menor medida, de outros estudiosos das ciências sociais. Boa
parte deste público leitor não compreende ou lê com muita dificuldade
estudos que se utilizam de técnicas sofisticadas de análise
estatística. (Reher, 1997, p. 118)
Outro espaço de discussão de nossos trabalhos é, evidentemente, a Abep. Apesar
da crescente oferta de trabalhos para o GT "População e História", percebe-se,
claramente, a dificuldade de diálogo entre o GT e os demais abepianos. Tal
dificuldade reside na fraca presença de trabalhos calcados na análise
demográfica e em alguns dos temas dominantes no interior da Abep. Some-se a
isso a nossa forte produção em história da população, o que faz com que nos
sintamos mais como historiadores do que como demógrafos historiadores no
interior da Abep. Se nossos trabalhos são considerados muito importantes e
interessantes, o que nos garante excelente acolhida no espaço dos encontros
anuais, por outro lado tal interesse não evolui para um diálogo
interdisciplinar.
Se a formação acadêmica dos demógrafos historiadores e/ou dos historiadores da
população é esmagadoramente em história, é preciso reconhecer que temos
dificuldades em lidar com os conceitos e com o arsenal técnico-metodológico da
demografia e da estatística, e maiores dificuldades ainda em tentar adaptá-los
às necessidades específicas da demografia histórica. Se no exterior este
diálogo foi frutífero, no Brasil ele ainda está por ser implementado.
Somados, a deficiência no domínio dos conceitos e das técnicas estatísticas
demográficas, a formação quase que exclusiva em história e as reservas iniciais
dos historiadores para com os estudos de demografia histórica resultaram em
enfoques que privilegiaram a história da população. Como já vimos, mesmo
aqueles que se valeram das fontes, técnicas e métodos da demografia histórica,
embora se interessassem em ampliar o conhecimento demográfico, estavam muito
preocupados em responder a questões postas pela história. Daí muitos trabalhos
terem feito da demografia histórica um instrumento refinado para subsidiar suas
análises da sociedade e economia brasileiras do passado. É o caso, por exemplo,
dos trabalhos de Scott (1987), Bacellar (1997) e Andreazza (1999), que, apesar
de aplicarem o método de reconstituição de famílias, não centraram sua análise
na questão demográfica.
Nessa mesma perspectiva podem ser enquadrados diversos estudos sobre a
população escrava. Apesar da diversidade e riqueza dos trabalhos, centrados
primordialmente em torno da análise da estrutura da posse de cativos, pouco se
conhece, ainda hoje, acerca das variáveis demográficas deste grupo,
principalmente no que diz respeito à mortalidade e à mobilidade interna. No
tocante à fecundidade e nupcialidade, temos os trabalhos de Slenes (1976), Luna
e Costa (1981), dentre outros. Surpreende, contudo, o escasso uso dos
abundantes registros paroquiais que, cruzados com outras fontes utilizadas
nesses trabalhos (matrículas de escravos, listas nominativas e inventários,
entre outras), poderiam ampliar ainda mais o conhecimento sobre a demografia da
escravidão.
Os balanços historiográficos até hoje realizados não se preocuparam com tal
problemática, mas sim em detectar as lacunas, em termos de abrangência
temporal, espacial e temática, que devem ser completadas para se conhecer
melhor a população brasileira do passado. Os questionamentos nesse sentido
foram estritamente genéricos, simplesmente recomendando uma maior cobertura do
território brasileiro e dos quinhentos anos de história; mas, o que é notável,
não há cobranças no sentido de reorientar o enfoque dos pesquisadores, mesmo
que para a exploração de séries temporais básicas.
Isto se reflete, por exemplo, quando das cobranças de uma maior abrangência
espacial dos estudos de demografia histórica. Ora, se é patente a concentração
dos pesquisadores na região Sudeste, resultando daí uma inflação de temas de
pesquisa igualmente centrados nessa região, por outro lado é surpreendente a
rarefação de projetos de levantamento dos registros vitais de nascimento/
batismo, casamento e óbito. Talvez o fato de nessa região estarem disponíveis
as listas nominativas de habitantes tenha contribuído para uma certa "prisão"
dos pesquisadores a esta fonte tão rica, não os estimulando a buscar uma das
fontes tradicionais da demografia histórica, isto é, os registros paroquiais.
Mesmo a questão da má distribuição temporal das pesquisas está intimamente
relacionada à presença dessas mesmas listas nominativas para o intervalo entre
1765 e 1836. O avançar para além desse intervalo, que seria plenamente
possível, não tem sido sistemático, ficando restrito aos estudos sobre
imigração internacional e população escrava, apesar da crescente
disponibilidade de registros paroquiais e civis ao longo dos séculos XIX e XX.
Como conseqüência, apesar de ser notória a produção na área, tal como foi
apontado nos diversos balanços, a dificuldade de se propor sínteses, modelos e
sistemas demográficos persiste.
Tomemos, por exemplo, duas questões básicas para a demografia histórica: as
taxas de legitimidade e a sazonalidade do nascimento. Embora não passem de
simples contagens de dados vitais, não requerendo qualquer análise estatística
mais sofisticada, continuam muito pouco conhecidas, mesmo para o Sudeste
brasileiro. Quarenta anos após, resta difícil enumerar uma dezena de
comunidades em todo o Brasil para as quais se conheçam os fenômenos da
ilegitimidade e da presença de crianças abandonadas. Tais resultados,
espacialmente pulverizados em um contexto histórico heterogêneo, não permitem a
constatação de quaisquer tendências num aspecto que é fundamental para a
compreensão da população e sociedade brasileiras do passado.
Portanto, não se trata apenas de expandir a cobertura geográfica e temporal,
como defendem os autores dos diversos balanços, mas, principalmente, de
reorientar nossa preocupação, mesmo na área mais estudada, o Sudeste. As fontes
são abundantes, mas faltam pesquisadores motivados nessa direção e devidamente
instrumentalizados para tanto. Se recuamos para os séculos XVI e XVII,
permanece um desafio quase intransponível, pela rarefação das fontes; já os
séculos XVIII, XIX e mesmo o XX nos legaram uma massa documental expressiva.
Embora não se conheça muito bem o que está disponível e onde, a simples
consulta ao Guia brasileiro de fontes para a história da África, da escravidão
e do negro na sociedade atual (1988) e ao Roteiro de fontes para a história da
imigração em São Paulo (Bassanezi et al., no prelo) deixa entrever a enorme e
rica variedade documental passível de exploração pelos estudiosos da população.
Já há vinte anos, Maria Coleta F.A. de Oliveira, fazendo uma avaliação sobre os
trabalhos apresentados na sessão "Processos socioeconômicos e demográficos numa
perspectiva histórica", no IV Encontro Nacional da Abep, em 1984, chamava a
atenção para essas mesmas lacunas:
a. Comportamento e condições/causas da mortalidade nos séculos XVIII,
XIX e XX e suas relações com a fecundidade (por exemplo,
condicionantes da infertilidade temporária e permanente);
b. Avaliação do impacto demográfico da migração internacional,
especialmente em suas interações com a mortalidade e a fecundidade;
c. Avaliação do comportamento das variáveis intermediárias tomadas
como determinantes próximos da fecundidade, especialmente a
nupcialidade;
d. Demografia da escravidão, envolvendo reconstituição da família,
fecundidade, mortalidade e migrações nas diversas regiões;
e. Sistemas de transmissão da propriedade e suas relações com a
dinâmica demográfica, quer como causa, quer como efeito. (Oliveira,
1984, vol. VI, p. 2.118)
Passados vinte anos, muito pouco se avançou nessas direções. A expansão e
reorientação dos estudos faz-se, portanto, imperiosa. Seja na própria região
Sudeste, já preferencialmente contemplada, seja no Brasil como um todo, é
preciso multiplicar o trabalho e, principalmente, formar pesquisadores. Para
tanto, é fundamental que se busque, no âmbito do GT "População e História" da
Abep, a tão cobrada, mas nunca concretizada, padronização dos procedimentos. Os
estudos hoje disponíveis revelam uma clara disparidade de critérios para a
agregação de dados, especialmente no que diz respeito às faixas etárias e
faixas de posse de escravos. Os resultados dificilmente são comparáveis entre
si devido aos critérios diferenciados adotados por cada pesquisador. Se os
estudos são pontuais e, ainda por cima, de difícil comparação, é preciso
adotar, conjuntamente, algumas normas orientadoras, e o GT "População e
História" da Abep deveria ser o locus dessa ação, possibilitando a discussão
nas mais variadas instâncias e momentos.
Não se trata, contudo, de exigir a padronização, mas, ao menos, de propor
práticas que permitam contornar tal obstáculo. Uma saída possível seria,
certamente, que os autores buscassem disponibilizar, em anexos, seus dados
brutos, que possibilitassem o rearranjo da informação, tornando-a comparável.
Mesmo assim, um esforço no sentido de uma padronização mínima, e ao menos
referenciada nos critérios usuais à própria demografia, seria salutar.
É muito provável que essa falta de padronização reflita, de fato, tanto a
ausência do diálogo entre os pesquisadores nacionais quanto o pouco contato com
experiências de pesquisadores do exterior, quer no que diz respeito às
realidades estudadas, quer no que tange às técnicas e métodos de pesquisa.
Nosso histórico de uma sociedade escravista, de dimensões continentais,
população dispersa, heterogênea, e com elevados índices de mobilidade espacial
pouco tem a haver com as sociedades do Velho Mundo, leia-se França e
Inglaterra, que sempre serviram de modelo e referência para nossas análises.
Seria fundamental, nesse sentido, que se buscassem as experiências mais
próximas de nosso contexto colonial, tal como o Canadá, os Estados Unidos e a
América Hispânica, assim como aquelas específicas à Península Ibérica e ao
continente africano. Isso inclui, também, as experiências relacionadas ao
fenômeno imigratório comum ao continente americano.
A especificidade de nossa sociedade dificulta, por outro lado, a transposição
das técnicas e métodos desenvolvidos com base nas experiências históricas
francesa e inglesa, que foram a principal referência para nossos estudos. No
caso, por exemplo, do método de reconstituição de famílias de Louis Henry, as
dificuldades vão desde a ausência de regras para a transmissão de nomes de
família ' elemento básico do método ' até a elevada mobilidade espacial da
população brasileira colonial.
Um outro exemplo dessas dificuldades foi a utilização da conhecida tipologia de
classificação de domicílios proposta por Peter Laslett, que não previa a
presença de agregados, escravos, ou mesmo a situação, comum à nossa sociedade,
de mulheres solteiras com filhos ilegítimos. Como conseqüência, neste caso
específico, tivemos as mais variadas respostas: alguns optaram pela adoção da
tipologia em sua forma original, apenas diferenciando os domicílios com ou sem
escravos, enquanto outros optaram pela adaptação da tipologia, resultando em
análises de difícil comparação entre si. Além disso, é preciso reconhecer que
se a adoção dessa tipologia levou à constatação do predomínio dos domicílios
com família nuclear, ao mesmo tempo levou ao questionamento da existência da
chamada "família patriarcal", como que tomando esta como sinônimo de domicílio
extenso ou múltiplo.3
De qualquer maneira, essas duas escolas analíticas moldaram grande parte da
produção nacional em demografia história, história da população e história da
família. Todo o desenvolvimento posterior dessas áreas no exterior foi pouco
explorado pelo pesquisador brasileiro.
Exemplo concreto disso pode ser percebido pela quase total ausência de diálogo
entre a produção do país e os resultados mais recentes e expressivos da
demografia histórica em Portugal e Espanha. O substantivo avanço alcançado
pelas pesquisas desenvolvidas sobre as populações ibéricas em perspectiva
histórica é virtualmente desconhecido do historiador da população brasileira,
que insiste em citar e comparar com a Europa Norte-Ocidental. É preciso,
destarte, buscar as nossas raízes ibéricas, de modo a evitar a caracterização
de nossas populações coloniais como anômalas ou específicas perante a realidade
européia, já que estudos vêm demonstrando que muitas das características de
nossa sociedade estavam presentes em certas áreas das sociedades
metropolitanas. É o caso, por exemplo, da presença significativa de domicílios
chefiados por mulheres, da importância do concubinato e das uniões consensuais,
bem como dos elevados índices de ilegitimidade, comuns ao Brasil e ao noroeste
português.
Cabe, portanto, aos demógrafos historiadores e aos historiadores da população e
da família explicar tal constatação. As explicações tradicionais, que atribuíam
tais comportamentos "desviantes" à heterogeneidade da sociedade colonial, à
dispersão da população e à falta de controle da Igreja sobre as comunidades,
não mais se sustentam. No noroeste de Portugal, por exemplo, encontramos uma
população homogênea ' quase integralmente branca e católica ', concentrada em
espaços territoriais exíguos e com um controle efetivo da Igreja, exercido
mediante visitas pastorais praticamente anuais, e que apresenta os mesmos
comportamentos "desviantes" (Scott, 1999, 2000, 2001 e 2002). O diálogo é,
portanto, urgente, seja para dar sentido ao que já conhecemos, seja para abrir
novos questionamentos, seja para incentivar novas pesquisas.
O diálogo, contudo, não se deve limitar ao mundo ibérico, devendo ser aberto,
igualmente, para a América. Afinal, é todo um contexto histórico colonial, de
sociedades escravistas, heterogêneas, que receberam grandes fluxos migratórios
compulsórios e espontâneos, de fronteiras abertas e de contatos com populações
autóctones. Que diálogo temos, por exemplo, com a ampla produção canadense,
capitaneada por Hubert Charbonneau? Ou com os trabalhos relativos à América
Hispânica de Cecília Rabell, Héctor Pérez-Brignoli, Robert McCaa, Dora Celton,
Hernan Otero, René Salinas-Meza e outros tantos pesquisadores latino-
americanos?
O I Encontro da Associação Latino-Americana de População (Alap), realizado em
Caxambu (MG), em setembro de 2004, deixou patente a inexistência de uma
interlocução. A única sessão de comunicações em demografia histórica não contou
com brasileiros, e deixou claro que os colegas latino-americanos seguem linhas
distintas das nossas, voltando-se muito mais para a demografia retrospectiva do
que para a história da população. Reforçou, além do mais, a necessidade de
travarmos esse contato, que permitiria a troca de experiências e de resultados.
Essa ausência de diálogo nos faz muita falta.
A integração torna-se possível e grandemente facilitada, na atualidade, com a
promissora criação da Alap. A implementação dos contatos entre os diversos
pesquisadores da região irá possibilitar, num primeiro momento, a
identificação, no âmbito latino-americano, de quem está produzindo o quê e
onde.
Se os desafios no âmbito internacional vão na direção da interlocução, quais
são os desafios que dizem respeito à demografia histórica brasileira? Em
primeiro lugar, faz-se urgente a viabilização de uma rede de discussão em nível
nacional, certamente através da Abep. Tal rede deveria se propor, desde o
início, a identificar pesquisadores individuais e/ou grupos, suas linhas
temáticas e sua produção, e a tornar esta acessível on-line. Também deveria ser
uma prioridade o esforço no sentido de mapear a disponibilidade de fontes
documentais específicas a cada região. Teríamos aqui a oportunidade de
realizar, progressivamente, um inventário de fontes, à semelhança do já
realizado em Portugal (Mendonça, 1993), dando conta da existência, qualidade e
disponibilidade de registros paroquiais e outras fontes seriadas em todo o
território nacional. Tal iniciativa não somente apontaria para possibilidades
de pesquisa, mas também colaboraria no sentido da preservação desse tipo de
patrimônio documental, comumente em risco de desaparecimento.
A partir desses passos iniciais, seria imperioso o estabelecimento de um
projeto, congregando pesquisadores de diversos centros nacionais, com vistas a
promover a coleta sistemática e ampla dos atos vitais em nível nacional ' ou
pelo menos onde tais fontes sobreviveram ', possibilitando alcançar, pela
primeira vez, indicadores gerais referentes à população brasileira do passado.
O levantamento sistemático de séries vitais de batizado, casamento, óbito, e
também de censos, dentre outras, permitiria que se detectassem as eventuais
variações regionais e temporais, dando subsídios mais concretos para se pensar
em sistemas demográficos no passado brasileiro e também sobre a questão
fundamental da transição demográfica no país.
Uma tentativa nesse sentido foi ensaiada há poucos anos a partir de uma
iniciativa articulada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que
pretendia estabelecer uma rede de pesquisadores em algumas universidades
brasileiras com vistas a coletar fontes seriais para o estudo da população
brasileira e disponibilizá-las on-line. Houve a previsão, inicialmente, de se
coletar, em várias regiões, registros paroquiais de batizado, casamento e
óbito, listas nominativas de habitantes, mapas de população, censos,
inventários e testamentos, processos crimes e cíveis, enfim, toda uma vasta
gama documental normalmente utilizada pelos estudiosos da população. A
proposta, no entanto, não se concretizou como havia sido prevista, ficando
restrita a três projetos, cujos primeiros resultados ainda não foram
divulgados.
À guisa de conclusão, seria importante frisar que existe, de fato, uma produção
científica considerável, centrada muito mais em história da população e
história da família do que em demografia histórica propriamente dita. Tal
produção trouxe contribuição inegável para o conhecimento da população
brasileira no passado, mas não permitiu reconstituir, com um mínimo de
segurança, os sistemas demográficos então vigentes. Assim, acreditamos ser
necessário estimular a produção de estudos de demografia retrospectiva, usando
todo o arsenal técnico-metodológico disponível ou por desenvolver, numa
perspectiva interdisciplinar, contando com a parceria tanto dos demógrafos de
formação quanto dos historiadores.