Questões emergentes na análise demográfica: o caso brasileiro
Introdução
O objetivo deste artigo é levantar questões emergentes para a análise
demográfica, considerando tanto seu interesse analítico quanto suas implicações
de políticas públicas para o caso brasileiro. Dois alertas devem ser
imediatamente explicitados. Em primeiro lugar, a escolha das questões
emergentes reflete as preferências temáticas, assim como a formação do autor.
Portanto, por maior que seja a abrangência pretendida neste ensaio, as
abordagens serão sempre condicionadas às possibilidades do autor. Em segundo
lugar, o tratamento das questões obedece a um certo nível de superficialidade,
uma vez que há um limite de espaço e vários dos temas contemplados são
independentes.
A primeira parte deste ensaio faz uma breve menção sobre a dinâmica demográfica
brasileira recente, no que tange aos seus componentes, enfatizando as
principais incertezas futuras em cenários de projeções, e às implicações para a
estrutura etária da população futura. A dinâmica demográfica futura,
principalmente no que diz respeito à estrutura etária, introduz o debate das
implicações no nível macro. A segunda parte trata deste nível macro, em que
três temas serão abordados: a demografia dos efeitos de composição; o dividendo
demográfico e seu debate; e as transferências intergeracionais. A terceira
parte, à guisa de conclusão, menciona a relação dos temas anteriormente
discutidos com tópicos igualmente relevantes, mas que ficaram fora da discussão
por falta de espaço, constituindo-se, também, em agenda para estudos futuros.
A dinâmica demográfica brasileira e a estrutura etária
A dinâmica demográfica brasileira será brevemente revisada aqui, a partir da
análise da fecundidade, da mortalidade e da migração ' mais especificamente, da
migração internacional. A discussão acerca destes componentes estará mais
focada nos desafios futuros do que numa descrição detalhada das tendências e
seus determinantes, amplamente conhecidos pelos demógrafos brasileiros.
Fecundidade
O componente demográfico mais importante, em termos das implicações futuras
imediatas na estrutura etária da população brasileira, é, sem dúvida, a
fecundidade, considerada tanto em termos da sua trajetória passada quanto da
sua tendência nas próximas décadas. A fecundidade passada causa impacto nas
flutuações da estrutura etária, associando-se à chamada inércia populacional,
enquanto a fecundidade futura determina as mudanças mais imediatas na base da
pirâmide, ou seja, na participação dos grupos etários mais jovens.
O Brasil chegou ao final do século XX tendo praticamente completado a chamada
transição da fecundidade. A Taxa de Fecundidade Total (TFT), definida como o
número total de filhos que uma mulher teria ao final do período reprodutivo,
passou de 6,3 filhos por mulher, em 1960, para 2,9 em 1991 e diminuiu para 2,3
em 2000. Os resultados da PNAD de 2003 apontam uma taxa de fecundidade total de
2,1 filhos por mulher, o que representa o chamado nível de reposição. Isto quer
dizer que, se esta taxa perdurar por um período de cerca de 25 anos, o
crescimento populacional brasileiro convergirá para zero. O ponto mais
relevante é que não há evidências claras de que a taxa de fecundidade total
brasileira pararia em 2,1 filhos por mulher, fazendo com que se espere um
padrão de fecundidade brasileira abaixo do nível de reposição nas primeiras
décadas do século XXI, um resultado que poderá seguir aquele encontrado em
países europeus, principalmente Espanha, Portugal, Itália e Grécia. Foge aos
propósitos deste artigo discutir as causas deste rápido declínio da
fecundidade, cabendo abordar as possibilidades de estabilização ou não da
fecundidade no nível de reposição.
Dois pontos característicos da fecundidade brasileira corrente merecem destaque
e foram discutidos por Berquó e Cavenaghi (2004): o rejuvenescimento da
fecundidade brasileira; e os segmentos de pobreza com alta fecundidade. O
primeiro ponto será discutido aqui e o segundo ao final deste item.
O rejuvenescimento da fecundidade brasileira é mostrado pelo fato de as taxas
específicas de fecundidade de todos os grupos etários terem diminuído entre
1980 e 2000, exceto no grupo de mulheres de 15 a 19 anos. Além disso, a redução
é mais pronunciada entre a mulheres de 25 a 44 anos. Já o grupo de 15 a 19 anos
representava 9,2% da taxa de fecundidade total, em 1980, passando para 13,9%,
em 1991, e para 19,9%, em 2000. Isto quer dizer que cerca 20% da fecundidade
total de 2000 é gerada por mães adolescentes, unidas ou não.
Uma grave conseqüência desta situação é que, mantendo-se tudo o mais constante,
uma política de informação e provisão de serviços de planejamento familiar que
possa favorecer a postergação da maternidade e da união, perfeitamente
compatível com políticas universais de combate à pobreza e com os cânones de
políticas de saúde reprodutiva da mulher, tem grandes chances de favorecer um
maior declínio da taxa de fecundidade. O corolário seria uma queda desta taxa
em níveis abaixo da reposição. Caso isto ocorra, será um claro problema de
externalidade negativa, na acepção econômica do termo, que decorre do fato de
que um comportamento de adiamento da união e da primeira gravidez, por parte
das mulheres jovens, aumentaria seu bem-estar no nível micro, ao mesmo tempo em
que agravaria potencialmente o contexto macro, ao causar redução exagerada da
população jovem brasileira no futuro imediato. Como sempre ocorre nos problemas
de externalidade, não se trata de tentar manter a fecundidade das jovens
brasileiras no patamar corrente, para se evitar uma grande queda da fecundidade
abaixo da reposição. Há que se pensar em estratégias alternativas de
longuíssimo prazo. Este é um dos problemas mais complexos que desafiam a
análise e a formulação de políticas no Brasil.
Esse debate indica que já é totalmente pertinente discutir a relação entre o
quantum e o tempo da fecundidade brasileira, em uma perspectiva temporal. O
quantum da fecundidade é dado pelo número de filhos da coorte sintética,
independente do espaçamento e do efeito de composição por parturição. O tempo
da fecundidade reflete o impacto do espaçamento decorrente da mudança na idade
das progressões por parturição, sem afetar o seu quantum.
Os dados convencionais apontam rejuvenescimento da fecundidade, o que seria
indicativo de um efeito tempo negativo ' precisamente o contrário do encontrado
na literatura européia sobre fecundidade abaixo do nível de reposição. Em
outras palavras, uma correção do efeito tempo levaria a um índice de quantum
abaixo da TFT observada, enquanto, na Europa, o que se observa é um efeito
tempo positivo, que reduz a fecundidade, sugerindo um índice de quantum acima
da TFT observada. A grande dificuldade de cálculo destes índices, para o
Brasil, decorre da ausência de histórias de nascimento confiáveis,
principalmente num longo período, embora as mesmas estivessem disponíveis nas
pesquisas DHS-Bemfam de 1986 e 1996.
Um trabalho pioneiro que trata do tema, digno de menção, é o de Berquó (1980),
publicado nos Anais do II Encontro Nacional de Estudos Populacionais da Abep. A
autora baseia-se na formulação pioneira de Norman Ryder e nos trabalhos
técnicos de German Rodriguez e John Hobcraft, no contexto do World Fertility
Survey, para conduzir sua análise da Pesquisa Nacional de Reprodução Humana, do
Cebrap. A tábua de fecundidade estimada por Berquó é um instrumento muito
parecido com a estimativa do índice puro de fecundidade, construído a partir da
progressão por parturição. A tábua permite, também, a estimativa da idade média
na transição de cada parturição. Atualmente, há um grupo no Cedeplar1 que está
desenvolvendo um método para gerar histórias de nascimento a partir da
estrutura domiciliar dos censos demográficos. Uma primeira tentativa de
aplicação do método foi apresentada na Conferência da International Union for
Scientific Study of Population (Iussp), em Tours (Silva; Miranda-Ribeiro; Rios-
Neto, 2005).
Os resultados ainda não são plenamente confiáveis, uma vez que o mecanismo de
reconstrução da história de nascimentos pode ser bastante melhorado. De
qualquer forma, os resultados preliminares mostraram que dois efeitos fazem com
que a TFT observada no Brasil seja maior do que o índice puro de fecundidade
(quantum). Em primeiro lugar, o efeito tempo é negativo, embora nas estimativas
seja inferior a 10%. Em segundo lugar, há um forte efeito positivo de
composição por parturição, ou seja, a mudança na composição por parturição, ao
longo do tempo, favorece um efeito de composição na TFT, que a coloca em níveis
de fecundidade mais altos do que aqueles que serão observados no índice puro de
fecundidade. Este efeito é substancial ' em torno de 30%. É possível que a
aplicação do algoritmo de Kohler-Ortega, que corrige o efeito tempo através da
incorporação de um componente de variância na curva de fecundidade, esteja
reduzindo o efeito tempo (em termos absolutos) e aumentando o efeito
parturição. De qualquer forma, este primeiro exercício mostra que o índice puro
de fecundidade (quantum) já estava abaixo dos níveis de reposição em 1987,
quando encontrava-se em 2 filhos por mulher, tendo diminuído para 1,7 em 2000.
Estes resultados devem ser considerados com reserva, uma vez que serão
replicados com melhores reconstruções das histórias de nascimentos e variações
nos algoritmos de cálculo dos efeitos tempo, parturição e do índice puro de
fecundidade.
Um corte destes efeitos para grupos de mulheres, divididos em três níveis de
escolaridade (0 a 3 anos de estudo, 4 a 8 e 9 ou mais), indica, para 2000, um
índice puro de fecundidade praticamente igual ' em torno de 2 filhos ' para os
dois primeiros grupos, caindo para 1,4 naquele composto por mulheres com 9 ou
mais anos de estudo. Isto quer dizer que o diferencial de TFT observado entre
os três grupos (3,3; 2,6 e 1,6, respectivamente) deve-se conjuntamente aos
efeitos tempo negativo e parturição positivo. Estas distorções entre a TFT e o
índice puro são bem menores no caso das mulheres mais escolarizadas. Tal fato
reflete, provavelmente, diferenças quanto ao momento em que o declínio no
quantum e a mudança na estrutura ocorreram no tempo.
Estes resultados, associados ao índice puro de fecundidade, parecem ser
consistentes com a taxa de fecundidade total desejada. Os dois conceitos,
embora sejam calculados em bases totalmente distintas, parecem captar um efeito
similar, ou seja, o quantum da fecundidade. De fato, com base na pesquisa DHS-
Bemfam de 1996, Wong (1998) calculou a taxa de fecundidade total, a desejada e
a indesejada, para o Brasil: 2,42, 1,64 e 0,79, respectivamente. Miranda-
Ribeiro (2004) calculou as duas primeiras taxas para Belo Horizonte e Recife,
baseando-se no survey SRSR,2 realizado em 2002. A TFT girava em torno de 1,8
filho nas duas capitais, sendo que a TFT desejada era de 1,44 em Belo Horizonte
e 1,36 em Recife. Controlando-se pela escolaridade da mãe, a TFT desejada só
ficou acima do nível de reposição entre as mulheres com 0 a 4 anos de estudo em
Belo Horizonte (2,23 filhos). Em todos os outros casos, ela estava bem abaixo
do nível de reposição.
Voltando aos resultados de Silva, Miranda-Ribeiro e Rios-Neto (2005), verifica-
se uma menor diferença nas idades médias à parturição das mulheres com baixa e
média escolaridade, diferença que se acentua para o caso das mulheres com alta
escolaridade (9 anos ou mais de estudo). Se estes resultados forem confirmados
com histórias de nascimento mais bem corrigidas, isto indicaria uma diferença
de pouco mais de cinco anos entre o grupo de mulheres com menor escolaridade (0
a 3 anos de estudo) e aquele com maior escolaridade. No caso da confirmação dos
diferenciais acima, uma transição para o efeito tempo positivo fatalmente
ocorrerá quando houver um substancial aumento na prevalência de mulheres com
maior escolaridade na população. Este seria um momento de transição para os
moldes europeus da fecundidade abaixo do nível de reposição, fato que, no
presente momento, é apenas uma possibilidade.
Os dados apresentados por Berquó e Cavenaghi (2004) também são ilustrativos da
alta fecundidade nos segmentos de extrema carência. As mulheres sem instrução e
aquelas com 1 a 3 anos de estudo apresentam fecundidade total de 4,1 filhos e
3,6 filhos, respectivamente, enquanto as mulheres com 9 anos de estudo ou mais
registram TFT abaixo do nível de reposição. Resultado similar é obtido quando
se considera o rendimento domiciliar per capita. As mulheres residentes em
domicílios com rendimento per capita abaixo de um quarto do salário mínimo
apresentam taxa de fecundidade total de 4,6 filhos, enquanto aquelas em
domicílios com renda per capita acima de um salário mínimo já estão com a TFT
abaixo do nível de reposição.
Em suma, a despeito da baixa fecundidade total em 2000, os segmentos de extrema
pobreza e carência educacional ainda mostram altos níveis de fecundidade. Por
causa disso, grande parte da opinião pública ainda considera que a alta
fecundidade corrente, fruto da carência de opções efetivas de controle da
fecundidade, é a causa fundamental da pobreza e da violência urbana. Este tipo
de visão confunde correlação com causalidade. Não há dúvidas de que a presença
excessiva de crianças num domicílio reduz sua rendaper capita, mas os dois
fenômenos são gerados pelo mesmo processo, sendo difícil inferir uma relação de
causa e efeito.
A provisão de políticas atenuantes à pobreza, através de programas de
transferência de renda, como o Bolsa Família, deve causar impactos neste
segmento. Idealmente, estes programas deveriam ser acompanhados pela oferta de
informações e serviços contraceptivos, no contexto da atenção à saúde
reprodutiva das mulheres. Ao mesmo tempo em que este componente de planejamento
familiar, no espírito de Cairo, é altamente desejável, fatalmente o corolário
desta política integrada é o aumento cada vez maior do declínio da fecundidade
para níveis abaixo do de reposição.
É claro que o efeito da transferência direta de renda pode também gerar um
incentivo adverso, indutor do aumento na fecundidade ' possibilidade teórica
que não pode ser descartada, mas que é pouco plausível, caso haja um aumento na
escolaridade dos filhos destas famílias pobres, além da provisão dos serviços
de planejamento familiar.
A agenda para os estudos sobre fecundidade consiste em saber quão rápido, e até
que nível, a fecundidade cairá abaixo do nível de reposição. No contexto deste
debate, cabe discutir as chances de o país passar por uma segunda transição
demográfica, com elevação na idade da primeira união e do primeiro filho. Cabe
também discutir o ritmo de queda na fecundidade dos segmentos mais pobres e
menos escolarizados, inclusive avaliando o impacto dos programas de
transferência de renda.
Mortalidade
A população brasileira experimentou uma queda na mortalidade antes da redução
na fecundidade, conforme indica o aumento da esperança de vida ao nascer, que
passou de 43,6 anos, na década de 40, para 53,7, na de 60. A mortalidade
continuou sua tendência de declínio nos anos 70, com a esperança de vida
passando para 59,9 anos ' um ganho de 6,2 anos apenas nesta década. Em 1980, a
esperança de vida ao nascer chegou a 62,4 anos (Carvalho, 1988). Estimativas do
Atlas Racial Brasileiro (2004) apontam para uma esperança de vida equivalente a
64,7 anos em 1990 e a 68,6 anos em 2000.
De acordo com estudo do IBGE (Tábua de Vida 2001), o diferencial de esperança
de vida por sexo vem aumentando, em parte devido ao peso das mortes por causas
externas. A esperança de vida das mulheres, em 1980, era de 66 anos, contra
59,6 anos dos homens, ou seja, 6,4 anos a mais para as mulheres. Em 2001, a
esperança de vida feminina já era 7,8 anos superior à dos homens ' 72,9 anos e
65,1 anos, respectivamente.
A sobremortalidade masculina nas idades jovens e adultas, principalmente na
faixa de 20 a 29 anos, é um dos fatores principais para o aumento da diferença
na esperança de vida por sexo. Isto se deve, principalmente, ao impacto das
mortes por causas externas (homicídios, acidentes de trânsito, suicídios,
quedas acidentais, afogamentos, etc.). O efeito diferenciado das causas
externas por sexo indica que sua retirada acarretaria um aumento de 2,5 anos na
esperança de vida masculina e de apenas meio ano na feminina.
O diferencial de mortalidade masculina é uma questão de gênero pouco enfatizada
pela literatura como tal. Não se trata de subestimar os demais diferenciais por
gênero, mas sim de destacar este fato na perspectiva de gênero, e não apenas
como uma curiosidade dos estudos de mortalidade. Várias questões
socioeconômicas estariam associadas a este diferencial.
Um ponto importante para estudos futuros refere-se à hipótese de que o
diferencial de mortalidade entre os jovens do sexo masculino e feminino afeta o
aumento no hiato de gênero, positivo para as mulheres, medido em termos de anos
completos de estudo. Soares (2005) apresenta os fundamentos econômicos para a
relação entre reduções na mortalidade e ganhos de escolaridade. O desempenho
educacional associa-se a ganhos de esperança de vida, entre outros, porque um
aumento exógeno na esperança de vida permite um maior período de tempo para as
pessoas auferirem o retorno de seu investimento, afetando, portanto, sua
estratégia de investimento em escolaridade.
Outro ponto importante, associado ao diferencial de mortalidade por sexo e
políticas públicas, refere-se ao complexo debate sobre o limite de idade para
obtenção de aposentadoria, que é menor para as mulheres, enquanto sua esperança
de vida é maior. O tema é controverso, uma vez que a concepção do que venha ser
a contribuição das mulheres fora da esfera de trabalho, principalmente no
âmbito doméstico, pode justificar tal limite. Uma discussão ponderada sobre
esta questão deve considerar os aspectos securitários e os de política social.
Para os primeiros, inclusive no caso de benefícios previdenciários privados,
este diferencial por sexo deve ser levado em conta seriamente no desenho do
equilíbrio atuarial. Este é um tema que certamente entrará na pauta futura.
Uma nova dimensão que vem sendo incorporada ao estudo sobre a esperança de vida
é a análise acerca da incapacidade. O aumento da esperança de vida faz com que
uma porcentagem maior de pessoas viva parte de sua vida em estado de
incapacidade física ou mental. Interessa saber quantos anos de vida ativa, quer
dizer, sem incapacidade, uma pessoa terá. Os dados do Censo Demográfico de 2000
apresentam medidas limitadas de capacidade ' por exemplo, a incapacidade de
enxergar, ouvir e se locomover (caminhar e subir escadas), além das
deficiências permanentes (física e mental). A esperança de vida de 68,6 anos do
brasileiro corresponde a 54 anos de vida ativa (78,7%). A esperança de vida
ativa dos homens é de 52,1 anos, equivalendo a 80,4% de sua esperança de vida,
enquanto as mulheres apresentam uma esperança de vida ativa de 55,9 anos, ou
seja, 77% de sua esperança de vida (Baptista, 2003).
A pesquisa Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento na América Latina e no Caribe
(Sabe), coordenada pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e aplicada em
um conjunto de grandes cidades da América Latina e do Caribe, inclui um
levantamento de dados sobre o município de São Paulo, em 1999.
Baptista (2003) calculou uma tábua de vida ativa para os idosos daquela cidade
e percebeu que as mulheres que chegam aos 60 anos de idade esperam viver mais
21,8 anos, dos quais 12,7 anos serão vividos com algum tipo de incapacidade
(58,2%) e 9,1 anos em estado de plena capacidade. Dos anos vividos em
incapacidade pelas mulheres, 5,3 anos serão de incapacidade moderada e 7,4 anos
em estados severos de incapacidade. Já os homens que chegam aos 60 anos de
idade possuem uma esperança de vida de 17,2 anos, menor do que a das mulheres,
mas vivem 9,5 anos sem qualquer tipo de incapacidade e 7,8 anos com alguma
incapacidade (45,1% da esperança de vida aos 60 anos). Destes, 4 anos serão
passados em estados moderados de incapacidade e 3,8 anos em estados severos de
incapacidade.
Aos 85 anos de idade, 88,7% e 77,6% do tempo de vida restante para mulheres e
homens, respectivamente, serão vividos na presença de incapacidade. As mulheres
não só passam uma maior proporção de seu tempo de vida em estado de
incapacidade, comparativamente aos homens, mas também apresentam maior
proporção de tempo de vida vivido estando no estado de incapacidade severa '
50% superior ao dos homens (Baptista, 2003).
A temática da incapacidade soma-se a vários pontos relacionados à questão do
envelhecimento, área totalmente interdisciplinar e que tem a demografia como um
de seus pilares. Será cada vez maior a interface entre a demografia, a economia
do seguro, a economia da saúde e a área da saúde. Vários temas são emergentes a
partir desta ênfase no envelhecimento: os arranjos familiares para o cuidado do
idoso; a organização do cuidado médico; os limites da sobrevivência e da
longevidade; os marcadores biológicos na pesquisa social; a epidemiologia do
envelhecimento; o desenvolvimento da gerontologia; etc.
Migração3
A questão da migração internacional é bastante complexa, englobando uma série
de dimensões extremamente relevantes. Esta questão envolve fator regional
internacional, regulação governamental, emigração, imigração e sistema de
informações.4
Em que pese a importância histórica dos fluxos imigratórios para o Brasil, a
presente análise estará voltada para a questão da emigração de brasileiros para
o exterior e seus desdobramentos, inclusive a possibilidade de retorno. Esta
ênfase decorre não só de sua importância nos últimos 30 anos do século XX, mas
também por suas implicações econômicas correntes ' por exemplo, por causa das
remessas financeiras do exterior para o Brasil e por possíveis implicações
futuras, num cenário em que pode ocorrer relativa perda de quadros qualificados
de jovens brasileiros nas próximas décadas (brain drain).
A estimativa dos fluxos migratórios para e do Brasil é muito complexa devido a
limitações de dados. Carvalho (1996) estimou o fluxo migratório líquido das
pessoas com mais de dez anos de idade, mostrando que este era negativo ' em
torno de 1,8 milhão ' nos anos 80. Infelizmente, o autor afirma que problemas
de cobertura entre os censos demográficos de 1991 e 2000 impedem uma estimativa
acurada mais recente deste fluxo migratório líquido (Carvalho, 2004). Azevedo
(2004) utiliza dados dos consulados brasileiros no exterior para sugerir que o
número de brasileiros vivendo no exterior teria passado de 1,5 milhão, em 1997,
para cerca de 2 milhões, em 2002. A Tabela_1 foi gerada no âmbito da CNPD, para
fins informativos em seminários internacionais. Com todos os problemas de
qualidade dos dados, que podem levar a uma subnumeração dos brasileiros vivendo
no exterior, os mesmos mostram maior prevalência de brasileiros residindo nos
Estados Unidos, no Paraguai e no Japão. Os emigrantes para a Europa ainda não
são tão significativos, embora haja informações de que o fluxo dirigidos para
Portugal, Espanha e Inglaterra tem aumentado muito.
As limitações destes dados não invalidam a conclusão de que a emigração de
brasileiros para o exterior está se tornando um fenômeno cada vez mais
importante, ainda que numericamente limitado no que se refere ao peso
proporcional na população brasileira total. A discussão acerca dos números de
brasileiros no exterior e do saldo migratório líquido é importante e deve ser
perseguida.
O tema das remessas financeiras dos brasileiros residentes no exterior é
emergente, atraindo interesses do sistema financeiro internacional. Na ocasião
do Encontro de Governadores do BID (Banco Inter-Americano de Desenvolvimento),
ocorrido em Okinawa, Japão, em 2005, o presidente do BID, Enrique Iglésias,
afirmou que o tema das remessas decorrentes dos fluxos migratórios
internacionais era a "Bela Adormecida" do mercado financeiro internacional. Um
estudo do BID, realizado pela empresa de pesquisa Bendixen & Associates,
estima que os brasileiros residentes no Brasil recebem, anualmente, cerca de
5,4 bilhões de dólares em remessas de brasileiros residentes no exterior. O
destinatário recebe cerca de dez remessas por ano, com um valor médio de 428
dólares. Cerca de metade das remessas é originária dos EUA, enquanto o conjunto
dos países europeus e o Japão são os dois outros grupos mais importantes. Os
brasileiros residentes no Japão (dekaseguis) não só enviam remessas
financeiras, mas também retornam com uma substancial poupança para investimento
no Brasil, conforme indica a literatura. Martes (2005) estima, a partir de uma
amostra de 235 entrevistados, uma média de 6.535 dólares enviados por
entrevistado/ano, com uma periodicidade média de 10,1 remessas por ano e um
valor médio de 646,10 dólares por remessa. Os dados do FMI (Fundo Monetário
Internacional), apresentados por Lozano-Ascencio (2005), mostram uma relativa
flutuação nas remessas computadas pelo sistema oficial, entre 1995 e 2003. De
qualquer forma, o valor das remessas para o Brasil, em 2003, é de cerca de 2
bilhões de dólares, colocando o país em sexto lugar, na América Latina, no que
se refere a esses recebimentos. Tais números são relevantes ao se considerar
que as remessas variaram entre 3% e 6% da pauta de exportações brasileiras e,
principalmente, levando-se em conta a pequena proporção da população brasileira
que reside no exterior.
A temática das remessas e a análise de seus efeitos para as comunidades locais
' por exemplo, a cidade de Governador Valadares ', além das suas implicações
macroeconômicas, devem continuar sendo agenda importante de pesquisa.
Igualmente relevante é a mensuração destas remessas, distinguindo-se o montante
que vem registrado oficialmente daquele que entra no país informalmente. O
papel das redes migratórias no envio das remessas deve ser estudado, assim como
o de agentes informais e/ou institucionalizados, que organizam o fluxo de
migração não documentada e, possivelmente, ganham também com as remessas. Outro
tópico que merece ser mais estudado é a migração de retorno internacional e a
subseqüente inserção do retornado na comunidade e no mercado de trabalho, seja
como assalariado, seja nas atividades de negócio, como empreendedor.
Em termos de agenda futura, um tema de potencial relevância é o papel da
emigração na inserção do jovem brasileiro na economia global, nos próximos
vinte anos.
Historicamente, desde os anos 80, o fenômeno da emigração está presente na
realidade brasileira. Alguém poderia especular que, se não houve fugas de
cérebros (brain drain) significativas nas duas décadas passadas, um período de
estagnação econômica, então não pareceria razoável desenhar um quadro sombrio
para o futuro. Este ponto pode ser questionado em dois aspectos. Em primeiro
lugar, cada vez mais os jovens de classe média contam com alguma experiência
internacional, via intercâmbio ou turismo, uma vez que a barreira da língua é
cada vez menor. Em segundo lugar, a demanda por mão-de-obra nos países europeus
deve aumentar substancialmente nas próximas décadas, como resultado da
fecundidade abaixo do nível de reposição e do envelhecimento populacional. O
recurso aos imigrantes africanos fica, lamentavelmente, atenuado com a
crescente barreira de discriminação racial e religiosa, além dos problemas de
contingente populacional que o continente enfrentará, num futuro próximo,
devido à mortalidade por Aids.
Neste contexto, do ponto de vista dos países europeus, o perfil do imigrante
latino-americano é bastante atrativo. Se isto for verdadeiro, então a
possibilidade de se perder um segmento dos jovens qualificados brasileiros
(ensino médio ou mais) para o mercado de trabalho internacional é algo bastante
concreto, o que coloca o brain drain na pauta de estudos futuros.
A dinâmica demográfica e a estrutura etária
O crescimento da população e as mudanças em sua estrutura etária são
primordialmente afetados pelas tendências da fecundidade e da mortalidade e, em
alguma medida, pelo saldo migratório internacional. A queda na mortalidade e os
ganhos de esperança de vida pouco afetam a estrutura etária, num país que
apresenta altas taxas de crescimento populacional. Sendo assim, durante um
longo período, os ganhos de esperança de vida aumentaram a longevidade das
gerações de nascimento, mas não envelheceram a população brasileira. Por outro
lado, a queda na taxa de fecundidade total afeta bruscamente a estrutura etária
da população, levando a uma redução na proporção de dependentes (crianças de 0
a 14 anos) e a um crescente envelhecimento da população (idosos de 60 anos e
mais).
Um ponto importante para a relação entre estrutura etária e projeção
populacional, a ser discutido a seguir, refere-se ao fato de que os ganhos
futuros de esperança de vida ainda terão impacto relativamente pequeno sobre a
estrutura etária populacional. Por outro lado, o impacto da fecundidade futura
tenderá a ser mais diluído, dada a baixa fecundidade já alcançada. Dessa forma,
grande parte da mudança na estrutura etária futura será afetada pela inércia
populacional, que possui grande componente alicerçado na fecundidade passada.
A projeção populacional do IBGE e a estrutura etária
O documento base deste item é uma revisão da projeção populacional do IBGE até
2050, divulgada por meio eletrônico no site do IBGE, em outubro de 2004. Não se
pretende discutir a metodologia de projeção do IBGE, nem mesmo sua precisão. O
objetivo é tomar uma fonte oficial para discutir a tendência futura da
estrutura etária. De qualquer forma, alguns alertas sobre os pressupostos desta
projeção devem ser emitidos.
A projeção toma por base a população enumerada no Censo Demográfico de 1980,
assumindo que a cobertura do Censo Demográfico de 2000 é a ideal. O documento
argumenta que a base em 1980 permite uma projeção ligeiramente superior à
população do censo de 1991 e à contagem de 1996, mas uma projeção bastante mais
próxima da população total e por idade do censo de 2000.
Sem entrar em maiores detalhes sobre as estimativas de mortalidade da projeção
populacional, cumpre destacar que a tábua de mortalidade utilizada para 2000
pressupõe uma esperança de vida ao nascer de 70,4 anos para ambos os sexos, um
pouco acima dos 68,6 anos apresentados pela estimativa Pnud/Cedeplar mostrada
anteriormente. De qualquer forma, diferenças na esperança de vida e na tábua de
mortalidade devem afetar a estrutura etária da população projetada em menor
proporção do que diferenças nas projeções da taxa de fecundidade total.
Uma questão cada vez mais importante nos próximos anos será a confiabilidade
nas estimativas de mortalidade, principalmente no que tange às estimativas de
mortalidade adulta. Mais importante do que o papel destas estimativas nas
projeções populacionais é o seu papel nos cálculos atuariais dos fundos de
pensão e dos seguros, tanto para o setor público quanto o privado. Fontes de
dados e metodologias alternativas devem ser cada vez mais incentivadas.
A projeção da taxa de fecundidade total é bastante conservadora, quando se tem
conta que a estimativa da mesma em 2000 era de 2,4 filhos por mulher, com base
no censo demográfico, sendo que esta taxa chega a 2,1 filhos por mulher (nível
de reposição) na PNAD de 2003. A projeção de fecundidade utilizada pelo IBGE
assume que o nível de reposição só será alcançado entre 2015 e 2020. A reflexão
acerca da fecundidade futura, realizada anteriormente, mostra claramente que a
fecundidade bem abaixo do nível de reposição não está fora de questão. Uma
estimativa mais alta da fecundidade tem implicações tanto na estrutura etária
quanto no tamanho da população total no século XXI. A despeito das questões
anteriormente mencionadas, conclama-se a necessidade do desenho de projeções
com cenários alternativos para o comportamento da taxa de fecundidade total,
entre 2005 e 2030, mas opta-se por utilizar estas projeções oficiais
disponíveis apenas para realçar as tendências básicas de mudanças na estrutura
etária.
Um outro pressuposto delicado na referida revisão de projeção é o de população
fechada. O saldo migratório líquido negativo, indicado pela literatura
específica, dificilmente cairia a zero nos anos 90. O pressuposto de um saldo
migratório nulo ou de uma população fechada pode se justificar na argumentação
de ajustes da projeção ad hoc para a estrutura etária entre os períodos
censitários, mas provavelmente reflete problemas na qualidade das estimativas
de mortalidade adulta (eventualmente subestimadas). O ajuste, sem o devido
realismo dos componentes, pode gerar conseqüências nas estimativas da população
total futura.
O Gráfico_1 mostra a descrição clássica da razão de dependência total (jovens
mais idosos), jovens (0-14/15-64) e idosos (65 e mais/15-64) entre 1980 e 2050.
A razão de dependência de jovens refere-se, mais apropriadamente, à
participação do segmento infantil na população ativa, que declina durante quase
todo o período descrito, mas com maior queda precisamente nos anos 90. O
crescimento mais acentuado da razão de dependência dos idosos se dará a partir
de 2010. A razão de dependência total apresenta maior queda entre 1980 e 2000 e
menor declínio até 2025, ponto a partir do qual esta razão começa a aumentar,
como resultado do peso da razão de dependência dos idosos. Esta descrição
clássica da projeção da razão de dependência já foi por demais descrita pela
literatura que trata das implicações da dinâmica demográfica sobre a estrutura
etária. Um refinamento da participação de segmentos da população em idade ativa
sobre a população total pode ser esclarecedor.
A Tabela_2 mostra o aumento da participação da PIA sobre a população total,
entre 1980 e 2025. O crescimento é substancial entre 1980 e 2000, sendo bem
menor até 2025. O chamado segmento jovem da PIA, definido pela população de 15
a 24 anos, apresenta ligeiro declínio da participação na população total entre
1980 e 2000, diminuindo mais intensamente até 2015 e de forma mais leve até
2050. O segmento adulto da PIA, que compreende o grupo etário de 25 a 44 anos,
é composto pelas pessoas que auferem os ganhos de experiência nos seus
rendimentos, além de passarem pela fase do ciclo de vida associada à
constituição da família e criação dos filhos. Este segmento cresce entre 1980 e
2000, aumentando ligeiramente sua participação na população total até 2010 e
declinando um pouco a partir deste período. O segmento que mais cresce entre
2000 e 2020 é o da PIA madura, compreendendo aqueles com 45 a 64 anos de idade.
Em termos gerais, esta PIA madura já apresenta decréscimo de rendimento médio,
se comparada ao grupo etário anterior. O pico da curva de rendimento por idade
tende a ser atingido entre os 40 e 50 anos de idade. Há, hoje, um amplo debate
sobre o potencial de produtividade da PIA madura no mundo desenvolvido de baixa
fecundidade e envelhecimento populacional, tema cada vez mais relevante para o
país. O decréscimo da participação da PIA jovem e o crescimento da participação
da PIA madura são os fatos novos ditados pela dinâmica demográfica na primeira
metade do século XXI, com uma relativa constância (sanduíche) do segmento da
PIA adulta.
Um outro ponto relacionado com a estrutura etária refere-se à dinâmica da razão
de sexos nos segmentos etários relevantes para o mercado de casamento, que tem
o número de homens de 20 a 29 anos de idade no numerador e o de mulheres de 15
a 24 anos no denominador. Esta razão apresenta uma defasagem de cinco anos
entre o intervalo masculino e feminino para indicar a demanda média por
casamentos/uniões, na qual, geralmente, o parceiro do sexo masculino é mais
velho. Por causa desta defasagem etária, espera-se que as flutuações
demográficas de curto prazo, ditadas pela existência de uma grande coorte de
jovens nos anos 90 e de um declínio da mesma nas duas primeiras décadas do
século XXI, imporão uma flutuação no mercado de casamento. O Gráfico_2 indica
que esta razão era próxima a 80% em 1980, aumentou para 95% em 1990, se
estabilizou com um ligeiro declínio entre 1990 e 2000, voltando a subir para
96% em 2005 e para 105% em 2010. Haverá um ligeiro decréscimo entre 2010 e
2020, mas a razão de sexo voltará a subir acima de 100% entre 2030 e 2050. Este
maior aquecimento no mercado de casamento não corresponde ao padrão histórico
brasileiro, com razão de sexos para casamento abaixo de 100%. A experiência do
qüinqüênio 2005-2010 deve ser observada com atenção, pois mostra um grande
aquecimento neste mercado.
Um tópico bastante importante para investigação será relacionar este
aquecimento no mercado de casamento com a idade mediana de formação da união, a
qual tem se mantido praticamente constante ao longo das gerações de mulheres
brasileiras ' em torno de 21 anos. Estudo feito para Belo Horizonte, comparando
duas coortes de mulheres ' 20 a 29 anos e 50 a 59 anos ', sugere que não há
diferenças na idade por ocasião da primeira união das mulheres das duas
gerações. Ao longo dos 20 a 30 anos que separam estas coortes, a idade mediana
na primeira união, naquela capital, permaneceu em torno de 23 anos (Simão et
al., no prelo).
O debate sobre a eventual operação de um efeito tempo positivo na fecundidade
brasileira, causando queda ainda maior abaixo do nível de reposição, trata da
possibilidade de emergência do chamado padrão europeu, marcado pelo aumento da
idade de casamento ou de primeira união, além do adiamento do nascimento do
primeiro filho. Se a razão de sexo aquecer o mercado de casamento nos próximos
anos, então as chances de a idade na primeira união aumentar são reduzidas. É
possível que até mulheres com mais de 30 anos de idade, ainda solteiras, sejam
atraídas para o mercado de casamento com homens mais jovens, em decorrência do
"marriage squeeze"5 previsto pela razão de sexo.
Uma possibilidade de se observar a operação do efeito tempo decorreria da
eventualidade de um adiamento do nascimento do primeiro filho, mesmo que dentro
de uma união já formada. Esta possibilidade não é plausível até o presente, uma
vez que a concentração da fecundidade se dá nas idades mais jovens, entre 15 e
24 anos, precedida ou não pela primeira união.
Um tema da maior relevância para o futuro imediato será cotejar a relação entre
a tendência de adiamento do casamento e do primeiro filho, como decorrência do
prolongamento do período devotado à freqüência escolar, visando o aumento da
escolaridade, e a tendência de casamento imediato, como resultado do
aquecimento no mercado de casamentos.
Implicações da dinâmica demográfica no nível macro
Nesta segunda parte, faz-se a ligação entre a dinâmica demográfica recente e
suas perspectivas, neste início de século, com três conjuntos de questões: a
demografia dos efeitos de composição; o dividendo demográfico; e as
transferências intergeracionais.
A demografia dos efeitos de composição
Os efeitos de composição podem ser afetados pela dinâmica demográfica, com
implicações claras para as políticas públicas. Os níveis de fecundidade
discutidos anteriormente mostram altos diferenciais por escolaridade materna e
renda per capita domiciliar. Não há dúvidas de que a alta fecundidade observada
nas famílias com mães menos escolarizadas e com renda per capita domiciliar
baixa afeta o bem-estar destas famílias. Não há nada de "neomalthusiano" nesta
constatação. Existe, simplesmente, a diluição dos parcos recursos disponíveis
para estas famílias numerosas.
Se, por um lado, o declínio generalizado da fecundidade no Brasil, apresentado
anteriormente, implica um maior grau de flexibilidade das famílias para se
adaptarem às pressões de recursos, por outro, o diferencial de fecundidade
observado indica segmentos de famílias menos dotadas (em educação e/ou renda),
provavelmente enfrentando dificuldades de ajustes às pressões por recursos. É
possível imaginar uma crescente participação relativa dos nascimentos de filhos
de mães menos escolarizadas e de famílias mais pobres no total de nascimentos.
Isto significa que as coortes de nascimento, ao serem observadas num futuro de
15 a 20 anos, poderiam apresentar maior participação de jovens oriundos de
famílias menos dotadas em escolaridade e renda domiciliar per capita. Se isto
ocorresse, teríamos, claramente, um problema social marcado pelo aumento da
carência de background das coortes futuras brasileiras. Este tipo de cenário
demandaria políticas sociais ativas para compensar a deficiência de background
familiar.
Há um problema de raciocínio na extrapolação acima. O diferencial de taxas de
fecundidade por atributos de escolaridade materna e renda domiciliar per capita
seria determinante da composição social de uma coorte no período futuro, mas
isto só ocorreria se a composição das mães por escolaridade e renda ficasse
inalterada.
Uma análise da coorte de 0 a 4 anos em diferentes períodos (captada por
pesquisa domiciliar) refletirá, grosso modo, os nascimentos no período de
análise. A composição social desta coorte de 0 a 4 anos, nos vários períodos,
representa a interação entre o diferencial de fecundidade por atributos e o
número de mães por escolaridade ou renda familiar per capita. Além disso, na
ausência de mobilidade, essa coorte representará a composição de jovens de 15 a
19 anos de idade, 15 anos mais tarde. Em outras palavras, a análise das
crianças de 0 a 4 anos por background familiar simula a população de jovens de
15 a 19 anos, 15 anos depois, controlada pelo background familiar quando no
momento do nascimento, o qual, por suposição, permanece constante.
Os dados do Gráfico_3 indicam que a persistência do diferencial de fecundidade
por escolaridade materna, discutida anteriormente, não causou concentração de
nascimentos originados por mães de baixa escolaridade, pois houve um efeito de
composição compensador. A porcentagem de crianças de 0 a 4 anos de idade,
geradas por mães que tinham de 0 a 3 anos de estudo completos, representava
cerca de 48% do total de nascimentos em 1983. Em 2003, após uma queda
monotônica, a participação chega a cerca de 21%.
Os dados do Gráfico_4 confirmam que este resultado decorre de um efeito de
composição, marcado tanto pelo notável declínio no número de mães com baixa
escolaridade (0 a 3 anos de estudo) quanto pelo aumento no número de mães com
mais alta escolaridade (9 anos ou mais de estudo). Este resultado sugere que a
dinâmica demográfica recente favorecerá a melhoria no desempenho escolar dos
jovens de 15 a 19 anos, no futuro. Enquanto 47,9% das crianças de 0 a 4 anos,
em 1983, eram filhos de mães com baixa escolaridade, representando as condições
dos jovens de 15 a 19 anos em 1998, esta porcentagem passa para 34,3% dos
jovens de 15 a 19 anos, em 2008, e para 21% em 2018. Aceitando-se a proposição
de que filhos de mãe com escolaridade mais alta têm um melhor desempenho
escolar, estes dados mostram que, do ponto de vista do desempenho educacional
dos jovens nos níveis educacionais mais elevados (ensino médio e superior), as
condições demográficas futuras favorecem a política educacional. Sendo assim,
uma política governamental de transferências de recursos, voltada para os
objetivos de desempenho educacional dos jovens, deveria ser focalizada naquele
segmento de filhos de mães com baixa escolaridade. Um exemplo de política nesta
área seria a provisão de ensino em tempo integral para os filhos de mães com
baixa escolaridade.
Os dados do Gráfico_5 mostram que a distribuição das crianças de 0 a 4 anos,
por renda familiar per capita, se alterou entre 1983 e 2003. Tais mudanças, no
entanto, não foram de uma forma tão radical quanto as observadas nas
características educacionais das mães. Houve um declínio no porcentual de
filhos nas famílias com renda per capita de até ¼ de salário mínimo, que foi
compensado pelo aumento no número de filhos em famílias com esse rendimento
entre ½ e 1 salário mínimo, mais do que proporcionalmente ao aumento nos demais
estratos de renda familiar per capita, superiores a um salário mínimo.
O contraste do dinamismo entre o crescimento da porcentagem de jovens nascidos
de mães com maior escolaridade e a relativa estabilidade da proporção de filhos
nascidos por estratos de renda familiar per capita coloca um claro efeito na
estrutura de composição, que pode afetar o planejamento de políticas futuras
para os jovens, principalmente no foco de políticas educacionais.
Claramente, as famílias de renda mais baixa possuem restrições de crédito para
investir na educação de seus filhos. A melhoria na escolaridade das mães
desloca para cima a demanda por educação nestes segmentos, mas a menor
mobilidade de renda familiar no tempo mantém as restrições de crédito. As
famílias mais pobres possuem restrições de crédito, que levam a um
subinvestimento em capital humano.
Vários estudos de nível micro demonstram que a renda familiar per capita é
importante determinante da escolaridade média dos filhos. Sendo assim, a
mobilidade educacional da mãe e a relativa estagnação da renda familiar per
capita confirmam a necessidade de se continuar com políticas de transferência
de renda, condicionadas ao desempenho escolar. Programas nos moldes do Bolsa
Família, ora em vigor no país, devem ser pensados até mesmo para níveis maiores
de escolaridade, como o ensino médio, tendo em vista o impacto negativo das
restrições de crédito acima discutidas.
Concluindo, esta análise da demografia dos efeitos de composição resulta em
duas proposições de políticas públicas. Em primeiro lugar, há uma carência de
políticas públicas focadas nos filhos de mães com baixa escolaridade, cujo
segmento representa um quinto dos nascimentos em 2003 e será a população de 15
a 19 anos em 2018. Apenas uma política de transferência de renda, acompanhada
pela provisão de atenção integral na escola, permitiria alguma melhoria
substancial na escolaridade deste segmento. Em segundo lugar, há aumento na
demanda por escolaridade elevada, ditada pelo aumento de filhos nascidos de
mães com média e alta escolaridade; uma parcela relevante destas mães é
composta por pobres, uma vez que a variação da porcentagem de mães por renda é
bem menos clara. Isto significa que o aumento de escolaridade da mãe,
acompanhado menos que proporcionalmente pelo aumento de renda per capita
domiciliar implica uma potencial restrição de crédito. Apenas políticas que
afetem as restrições de crédito das famílias pobres permitirão que esta
virtuosidade potencial se materialize em maior escolaridade das gerações
futuras do país.
O dividendo demográfico
O chamado "dividendo demográfico", também denominado de "janela de
oportunidades", quando discutido por literatura menos economicista, é um
fenômeno benéfico para a sociedade em termos econômicos, associado às
conseqüências diretas do declínio da fecundidade sobre a estrutura etária
durante e imediatamente após a transição demográfica. Estas mudanças na
estrutura etária, discutidas anteriormente para o caso brasileiro, trazem
conseqüências sobre o crescimento econômico e a estrutura de gastos públicos.
Várias vertentes fazem uso desta noção de dividendo demográfico, muitas vezes
entendida como uma mera "apologia controlista" de cunho "neomalthusiano" para
justificar o planejamento familiar "controlista". A vertente "neomalthusiana"
vê o dividendo demográfico como uma rationale para que se defenda o controle
populacional, implementado por intermédio de uma política dirigida de
planejamento familiar, conforme formulado originalmente por Coale e Hoover,
para o caso da Índia, e seguido por aplicações mais diretas de modelos de
crescimento econômico, como o de Solow. Outras vertentes identificam o
"dividendo demográfico", ou "janela de oportunidades", como uma potencialidade
lógica, decorrente das conseqüências diretas do declínio da fecundidade sobre a
estrutura etária.
Esta potencialidade lógica pode ser aproveitada ou não pelos países durante o
período de transição demográfica. O seu aproveitamento dependerá de vários
aspectos, tais como as condições econômicas, institucionais de Estado, de
operação do setor financeiro e de comportamento da família, entre outras. A
coleta deste dividendo não é mecanicamente determinada pelas condições
demográficas.
Num caso como o brasileiro, cujo declínio da fecundidade no século XX chegou
praticamente à beira do nível de reposição, não faz mais sentido discutir o
debate sobre o dividendo demográfico como sendo uma rationale para algum tipo
de política "controlista". Não há como pensar planejamento familiar, hoje, em
termos de controle do crescimento populacional, uma vez que ele atende a outras
demandas na área de saúde reprodutiva, dentro dos preceitos da Conferência de
Cairo.
Uma vez desqualificada a discussão sobre o dividendo demográfico como parte da
esfera "controlista", o que resta do debate? Resta discutir o dividendo
demográfico, tendo em vista o planejamento das políticas de Estado que
incorporem o componente populacional, visando o desenvolvimento econômico e
social do país. A agenda sobre o dividendo demográfico consiste na
identificação de pontos de estrangulamento e oportunidades geradas pela
dinâmica presente e futura da estrutura etária, podendo ser analisado na
perspectiva macro ou micro. Aqui, apenas os aspectos macro serão considerados.
Um debate macro antigo, associado ao que hoje se denomina dividendo
demográfico, mas que tradicionalmente era "neomalthusiano" e, em algum momento,
virou "janela de oportunidades", refere-se ao impacto da razão de dependência
jovem (ou infantil) sobre o gasto com educação.
Riani (2001) estuda o impacto da razão de dependência sobre a taxa de
matrícula, taxa de cobertura, taxa de eficiência e razão professor/aluno, entre
outras variáveis dependentes associadas com o gasto público com educação. O
tamanho da coorte em idade escolar afeta negativamente indicadores de
quantidade e de qualidade (repetência) escolar. Estes resultados confirmam a
operação de um certo dividendo demográfico na área de educação. Em sua tese de
doutoramento, utilizando modelos hierárquicos, Riani (2005) confirma o papel da
razão de dependência macro (no município) sobre o comportamento de quantidade e
qualidade do ensino no nível micro ou familiar. É possível concluir que o
crescimento espetacular da matrícula e da cobertura escolar, nos anos 90, deve-
se, em parte, ao papel do Fundef (Fundo de Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Professor) e às prioridades governamentais, mas
é inegável a importância da grande queda na razão de dependência para facilitar
o estrondoso aumento na cobertura escolar observado no período. Relatórios de
projeção conduzidos pelo autor deste trabalho indicam que o crescimento da
matrícula escolar, no futuro, decorrerá muito mais do crescimento na taxa de
matrículas por série e idade do que do aumento da população em idade escolar.
Os grupos etários da população em idade escolar apresentam flutuações positivas
e negativas até 2020, mas, do ponto de vista total, não há pressão de
crescimento da população em idade escolar.
Uma identidade básica que define a renda per capita ajuda a explicitar a base
da hipótese macroeconômica do dividendo demográfico. A referida identidade é
descrita na equação (1) e norteia a literatura sobre crescimento e renda per
capita.
Y/P = (Y/O) x (O/P) (1)
Definindo-se:
Y/P=y = renda per capita
Y= renda nacional
P= população total
O= número de ocupados
Definindo-se D como a variação no tempo para todos os parâmetros de (1), tem-
se:
Dy = Dyº + D0 - DP(2)
Definindo-se:
Dy = crescimento da renda per capita
Dyº = crescimento da produtividade
D0 = crescimento dos ocupados
DP = crescimento populacional
A literatura econômica enfatiza o estudo sobre a produtividade econômica,
principalmente tendo por base os modelos de crescimento, a maioria dos quais
considerava o total de ocupados e a população sem distinção, pressuposto que
faz sentido no longo prazo, em que a população é estável e, por isto mesmo,
apresenta todos os segmentos etários crescendo na mesma proporção. A
incorporação da diferença entre o crescimento dos ocupados e o aumento
populacional é a preocupação central que trouxe o debate sobre o dividendo
demográfico para a discussão econômica.
O crescimento dos ocupados é determinado pela elevação da população em idade
ativa e a taxa de ocupação (que é a diferença entre a taxa de participação na
PEA6 e a de desemprego). A literatura sobre o dividendo demográfico enfatiza o
crescimento da população em idade ativa como principal determinante do aumento
dos ocupados. Nesta linha, em termos da equação 2, controlando-se pelo
crescimento da produtividade, objeto central da preocupação dos economistas, e
assumido independente da estrutura etária, o dividendo demográfico seria um
bônus extra, causado pela diferença entre o crescimento da população em idade
ativa (PIA), utilizada como proxy para a expansão dos ocupados, e o crescimento
populacional.
A diferença positiva entre o crescimento da PIA e a elevação populacional
ocorre precisamente durante o período da transição demográfica, e tende a
perder força à medida que a inércia populacional é reduzida e a população se
aproxima da estabilidade populacional. O Gráfico_2 mostra que, potencialmente,
a fase mais dinâmica do dividendo demográfico no Brasil ocorreu entre 1980 e
2000. Há uma previsão de sua operação até 2025, mas com um crescimento em
ritmos bem menores.
Um primeiro exercício de mensuração do impacto do dividendo demográfico sobre o
crescimento da renda per capita brasileira é apresentado a seguir. As
estimativas seguem o debate econômico sobre a convergência de renda e as
especificações econométricas dos modelos de crescimento da renda, discutidas no
livro Population Matters, editado por Birdsall, Kelley e Sinding (2001). O
teste utiliza a renda per capita domiciliar média dos municípios brasileiros,
tendo por base os dados do IBGE apresentados no Atlas do Desenvolvimento Humano
do Brasil (PNUD), 2003.
A variável dependente:
yr = taxa de crescimento anual da renda per capita entre 1991 e
2000, medida em termos de renda individual coletada nos censos
demográficos.
As variáveis independentes são:
Lny91 = o logaritmo da renda per capita municipal em 1991;
Educadu = a média de anos de estudo da população adulta no
município em 1991;
Lnpiapop = o logaritmo da razão entre a população em idade ativa e
a população total em 1991;
Difgrpp = a diferença entre o crescimento da PIA e o aumento
populacional entre 1991 e 2000.
A elevação da renda per capita, nos anos 90, foi afetada negativamente pelo
nível desse rendimento nos municípios, no início da década, um resultado que
conforma com a hipótese da convergência da renda. A proporção da população
total em idade ativa afeta positivamente e de forma significante o crescimento
da renda per capita na década de 90, conforme previsto pela hipótese do
dividendo demográfico (Tabela_3). A causalidade destas estimativas poderia ser
questionada, principalmente, devido ao possível viés de simultaneidade da
equação. Estimativas utilizando variáveis instrumentais são apresentadas na
Tabela_4, confirmando tanto a convergência da renda per capita municipal quanto
o efeito positivo do dividendo demográfico.
O Gráfico_6 indica a importância da convergência da renda municipal no modelo
do crescimento da renda per capita municipal. Já o Gráfico_7 confirma a força
do dividendo demográfico no crescimento da renda per capita municipal. O
impacto da variável Lnpiapop é positivo e substancial ' flutuações razoáveis e
esperadas na variável entre os municípios podem causar crescimento a mais na
renda per capita de um a dois pontos porcentuais. A expectativa do dividendo
demográfico também é confirmada com a variável Difgrpp.
O Gráfico_8 ilustra este impacto ' uma diferença de 0,3% no crescimento da PIA
em relação à população gera um aumento anual na renda per capita de cerca de
3%, isto líquido do efeito Lnpiapop, que é o outro determinante do dividendo
demográfico.
Os resultados apresentados demonstram, inequivocamente, a operação do dividendo
demográfico nos anos 90. Se a impressão de vários especialistas foi de que a
estagnação econômica não teria viabilizado este dividendo, a evidência
econométrica, a partir dos dados municipais, mostra a operação do dividendo,
implicando que a estagnação na renda per capita seria muito mais dramática caso
o dividendo demográfico não tivesse operado.
Geralmente, os especialistas latino-americanos criticam a hipótese econômica do
dividendo demográfico, ao argumentarem que a mesma seria mais válida para o
contexto do leste asiático, sendo que a deterioração do mercado de trabalho na
América Latina, com o crescimento do setor informal e da taxa de desemprego
aberto nos anos 90, seria exemplo claro do fracasso da hipótese do dividendo
demográfico. Esta peculiaridade dos casos brasileiro e latino-americano, no que
tange ao mercado de trabalho, deve ser considerada, mas não pode servir para
desqualificar argumentos testáveis.
Uma análise mais profunda das décadas de 80 e 90 pode sugerir pistas sobre
falhas institucionais, no mercado de trabalho e em outras instituições, que
explicariam a não apropriação total deste dividendo demográfico. Estes
componentes estruturais podem ser incorporados na análise do dividendo
demográfico, como se verá a seguir. Entretanto, o resultado econométrico
disponível no momento já mostra que a participação da população em idade ativa
na população total afeta positivamente a renda municipal per capita, a despeito
de qualquer dos problemas estruturais anteriormente mencionados.
Mason (2005) define o dividendo demográfico como sendo o resultado do impacto
direto do crescimento na razão de suporte econômico, que é definida,
grosseiramente, como a razão entre a população em idade ativa e a população
total, ou seja, a razão entre produtores e consumidores (esta foi a variável
utilizada nas regressões acima). O autor denomina este dividendo demográfico
tradicional de "primeiro dividendo demográfico", em contraste a um segundo por
ele definido, a ser mencionado posteriormente.
Mensurações do dividendo demográfico fora da esfera dos modelos de crescimento
podem utilizar medidas mais refinadas da razão de suporte. No caso do
numerador, a população em idade ativa pode ser ponderada pela taxa de atividade
por sexo e idade, ou até mesmo por esta taxa e o perfil de rendimentos por
idade. No caso do denominador, os consumidores podem ser ponderados por uma
taxa de consumo por idade. Uma análise a ser feita no futuro deveria incorporar
o papel da educação na razão de suporte econômico, ou seja, em que medida a
escolaridade das coortes mais jovens retardaria o problema de declínio na razão
de suporte.
Um exercício estilizado, que se baseia em variações na razão de suporte
econômico, foi realizado por Turra e Queiroz (2005b), ao analisarem o potencial
demográfico do sistema de seguridade social brasileiro. Os autores aplicam a
ponderação no numerador pela taxa de participação na PEA por sexo e idade, bem
como as taxas de contribuição e de beneficiários no total de dependentes
idosos. O exercício permite uma decomposição da razão de suporte, avaliando-se
o impacto da evasão de contribuição (efeito "evasão") e do aumento na taxa de
beneficiários (efeito "generosidade" da constituição). No caso da seguridade
social brasileira, a combinação dos efeitos "evasão" e "generosidade" diluiu
parte dos benefícios causados pelo dividendo demográfico.
Uma outra possível causa para o primeiro dividendo demográfico é a mudança na
taxa agregada de poupança decorrente de um efeito de composição. O perfil
poupança-idade atinge os pontos mais elevados no auge da população ativa (40 a
50 anos). Assim, um aumento na participação deste segmento no total da
população causaria elevação na taxa de poupança. Mason (1988) trata deste
aspecto no modelo de taxa de crescimento variável, o qual permite, também, uma
mudança no perfil de poupança-idade, como decorrência da queda na razão de
dependência familiar.
Mason (2005) define o segundo dividendo demográfico como algo que relaciona o
envelhecimento populacional com a riqueza acumulada, o que decorre de efeitos
tanto de composição como comportamental. O efeito de composição é causado pelo
impacto do envelhecimento da PEA, acarretando maior concentração de riqueza
acumulada, por se aproximar da idade de entrada na aposentadoria. O efeito
comportamental é provocado pelo impacto dos ganhos de esperança de vida sobre a
acumulação de riqueza individual, de forma que o aumento do período em que as
necessidades de consumo serão maiores do que a capacidade produtiva demandará
maior acumulação de riqueza.
O estoque de riqueza pode ser dividido em dois componentes: transferências
(familiares e governamentais); e estoque de capital. Apenas este último
componente conta para o segundo dividendo demográfico, por causar o crescimento
na renda per capita como decorrência da operação do efeito produtividade do
trabalho, o qual, por sua vez, é afetado pelo aumento na relação capital/
trabalho, que decorreria do aumento observado no investimento (capital
deepening), conforme as identidades (1) e (2), discutidas anteriormente.
Reformas institucionais que afetem o papel da família e do Estado nas políticas
de transferências intergeracionais, aumentando o papel da capitalização
financeira para as alocações intertemporais, aumentam o potencial de coleta do
segundo dividendo demográfico.
Sob a ótica da estrutura etária brasileira de momento, reformas institucionais
que favoreçam a capitalização ainda permitem uma coleta razoável do segundo
dividendo demográfico, sendo esta uma agenda para estudos futuros.
Um ponto central na distinção entre os dois dividendos demográficos,
relacionando-a com as identidades (1) e (2), seria que o primeiro dividendo
demográfico prioriza o efeito razão de suporte (diferença entre crescimento da
PIA e aumento populacional), enquanto o segundo prioriza o efeito produtividade
do trabalho, por meio da acumulação de capital.
Uma via para se introduzir a heterogeneidade do mercado de trabalho no debate
sobre o primeiro dividendo demográfico seria através da construção de uma razão
de suporte com componentes heterogêneos e realistas, assim como Turra e Queiroz
(2005b) fizeram para a seguridade social. Neste caso, a heterogeneidade estaria
sendo totalmente captada pelos diferenciais da razão de suporte, o que seria
feito de forma decomponível.
Outra possibilidade seria tentar desenhar um modelo mais estruturalista, em que
parte do dividendo causado pela diferença entre o crescimento dos ocupados e o
da população não seria totalmente auferida, uma vez que haveria uma dualidade
estrutural no mercado de trabalho. O efeito "dualismo-negativo" do dividendo
demográfico pode ser demonstrado num cenário extremo, em que há dois setores de
ocupação (formal e informal), com produtividade média dos ocupados no setor
formal superior àquela no informal, sendo que ambas as produtividades não
variam no tempo, ou seja, o mesmo pressuposto de que a produtividade dos
ocupados é constante no tempo, feito no exercício com as identidades (1) e (2),
só que, agora, a composição ocupacional varia no tempo, em favor do setor
informal, de tal forma que o crescimento dos ocupados ocorre em maior proporção
no setor informal do que no formal.
Y/P = [(Yf/Of)x(Of/O) + (Yi/Oi)x(Oi/O)]x[Of/O)x(O/P) + (Oi/O)x(O/P)] (3)
Definindo-se:
Y/P = y = renda per capita;
Yf/Of = yf = produtividade no setor formal, assumida constante no tempo;
Yi/Oi = yi = produtividade no setor informal, assumida constante no tempo.
Onde, yf > yi.
Of/O = af = participação dos ocupados no setor formal;
Oi/O = ai = participação dos ocupados no setor informal;
Onde, af + ai = 1 .
A identidade (3) pode ser expressa, então, como:
y = (afyf + aiyi) x [(af + ai) x (O/P)] (3')
Definindo-se D como a variação no tempo para todos os parâmetros de (3'), tem-
se:
D y = Dafxyf +Daixyi + DO - DP (4)
O efeito "dualismo negativo" é gerado pela equação (4), em combinação com as
hipóteses do modelo, particularmente a expressão (-Daf= Dai), ou seja, quando
os ganhos porcentuais de ocupados informais correspondem às perdas porcentuais
de ocupados formais no total de ocupados. Além disso, como yf > yi, por
definição, fatalmente a soma dos dois primeiros termos da equação (4) será
negativa, o que diminui os benefícios do dividendo demográfico medido pelos
dois últimos termos da equação, podendo, inclusive, torná-lo negativo.
Outra alteração na discussão sobre o primeiro dividendo demográfico decorre da
possibilidade de se incorporar um novo elemento no debate: o possível impacto
da estrutura etária na produtividade do trabalho diretamente. No caso das
identidades (1) e (2), discutido anteriormente, esta possibilidade foi
descartada por um pressuposto de independência dos dois componentes. Por causa
do envelhecimento populacional nos países desenvolvidos, este pressuposto vem
sendo questionado por várias vertentes e pode-se aprofundar, na discussão sobre
o primeiro dividendo demográfico, a questão sobre um "efeito produtividade".
Prskawetz e Fent (2005) analisam o efeito do envelhecimento populacional sobre
a PEA austríaca, do ponto de vista tanto de tamanho como de composição etária.
O impacto, segundo a razão de suporte, seria claramente negativo, devido ao
declínio da razão entre produtores e consumidores causado pelo envelhecimento
populacional.
Entretanto, os autores estão interessados no efeito da estrutura etária sob a
produtividade do trabalho, esta última cotejada no que concerne aos efeitos de
uma projeção da PEA, um perfil de produtividade idade para os ocupados e
pressupostos sobre o grau de "substitutibilidade" entre os vários segmentos
etários dos ocupados. Para melhor detalhar esses pressupostos, os autores focam
a análise numa "economia do trabalho pura", desconsiderando, nos modelos de
crescimento, a formação de capital e da família.
Os cenários de projeção populacional e da PEA austríaca mostram que o
envelhecimento da PEA, medido por sua idade média, pode ser prolongado num
contexto de mudanças na taxa de participação na PEA ao longo do processo de
envelhecimento populacional. Os autores mostram que o declínio na razão de
suporte causado pelo envelhecimento populacional é substancial, e que só um
aumento na produtividade poderia compensar este decréscimo.
Eles afirmam que um perfil etário de produtividadeidade horizontal, combinado
com perfeita "substitutibilidade" entre ocupados por idade, implica total
independência da produtividade do trabalho com relação a tamanho e composição
etária da ocupação. Quando os autores relaxam o pressuposto de perfeita
"substitutibilidade" entre os ocupados por idade e aplicam uma função de
produção CES (constant elasticity of substitution), verificam que o
envelhecimento dos ocupados causaria aumento no crescimento da produtividade do
trabalho.
Ao compararem o perfil etário de produtividade horizontal com um parabólico por
idade e outro declinante por idade, os autores concluem que os dois últimos
perfis causam declínio na produtividade total do trabalho, para o caso de
perfeita "substitutibilidade", mas a produtividade total do trabalho é
crescente em todos os casos quando a elasticidade de substituição é meio Este
resultado e metodologia são bastante promissores para estudos futuros, com
aplicações para o caso brasileiro.
Esses autores revisam as evidências micro e macro a respeito do papel do
envelhecimento sobre a produtividade e concluem que as primeiras são ambíguas:
o efeito do envelhecimento da força de trabalho pode ser negativo, porque os
idosos seriam menos empreendedores ou menos ambiciosos, mas também pode ser
positivo, pois uma força de trabalho madura possui estoque de capital humano
acumulado maior, principalmente por causa do impacto da experiência e seniority
no emprego. Para os autores, o maior problema dos estudos micro é a dificuldade
de separar os efeitos de confundimento associados com idade, período, ciclo de
vida, processos organizacionais na empresa, etc.
No caso dos estudos macro, Beaudry, Collard e Green (2005) e Beaudry e Collard
(2003) analisam o impacto da expansão da PIA sobre a produtividade do trabalho
dos países industrializados, na linha dos modelos de crescimento de Solow. Eles
concluem que o impacto do crescimento da PIA (15 a 64 anos) não era
estatisticamente significante no período 1960-1974, mas passou a ser negativo e
importante sobre a produtividade do trabalho entre 1975 e 1997. Os autores
sugerem que a introdução de uma mudança tecnológica acarreta adaptações
diferentes entre os países, dependendo da taxa de crescimento da sua população
adulta. Países com menores taxas se adaptariam mais rápido ao processo de
acumulação de capital (capital deepening).
Numa perspectiva que leva a um resultado totalmente diferente, Feyrer (2002)
utiliza a estrutura etária como determinante da produtividade, medida como o
resíduo na equação de Solow, captando fatores não associados com a acumulação
de fatores. Um ponto importante para o papel da estrutura etária no resíduo
refere-se ao fato de que a estrutura etária da ocupação é claramente
predeterminada. O autor evidencia que o trabalho não está preocupado com a
relação entre a PIA e a população total, como nas estimativas do dividendo
demográfico, mas sim, especificamente, com a composição etária da ocupação. A
focalização do trabalho na produtividade, em vez do produto, permite que o
autor separe o efeito sobre a produtividade daquele sobre a acumulação de
fatores. O autor se inspira no papel da experiência, obtido na maioria das
estimativas microeconômicas de equações mincerianas de rendimento, para
justificar o impacto macro da estrutura etária na produtividade. Ele estima o
log da produtividade de resíduo como função de um vetor de variáveis, medido
pela proporção de pessoas ocupadas de 10 a 19, 20 a 29, 30 a 39, 50 a 59 e 60 a
69 anos, sendo omitido o grupo etário de 40 a 49 anos.
O resultado da regressão estimada para 85 países e sete períodos indica que a
curva de produtividade é parabólica com relação à estrutura etária da ocupação,
adquirindo valores máximos no grupo etário ocupacional omitido (40-49 anos). O
autor contrasta o impacto da estrutura etária na acumulação de fatores (capital
e capital humano) com aquele ocorrido na produtividade, chegando à conclusão
que este último é dominante.
Concluindo os dois últimos aspectos teóricos aqui revisados, o debate sobre o
impacto da estrutura etária pode ser enriquecido pela incorporação dos efeitos
sobre a produtividade ocupacional e pela análise específica do mercado de
trabalho. A discussão a respeito tanto do efeito "dualismo negativo" quanto
daquele referente à produtividade-idade deve ser perseguida em análises
futuras.
A agenda de estudos sobre dividendo demográfico deve, portanto, contemplar
várias dimensões. Em primeiro lugar, é preciso aprofundar o debate clássico
sobre o impacto do dividendo demográfico na renda per capita, no contexto dos
modelos clássicos de convergência de renda. Em segundo lugar, devem ser
aprofundados os exercícios baseados na razão de suporte, com ênfase naqueles
que levam em conta o perfil etário da educação e a relação entre educação e
renda numa perspectiva de idade. Em terceiro lugar, é necessário incentivar a
análise de modelos voltados para o mercado de trabalho, com ênfase nos modelos
segmentados e nos estudos da relação entre produtividade e idade. Neste caso
último, a análise das tendências observadas na Tabela 8 será importante,
apontando para o decréscimo relativo da ocupação para pessoas de 15 a 24 anos,
crescimento relativo para aquelas de 45 a 64 anos e constância para o segmento
de 25 a 44 anos, caso a tendência da PIA seja um bom indicador para a ocupação.
Transferências intergeracionais na família e no Estado
Em termos gerais, as relações entre gerações podem se dar por intermédio do
Estado ou da família, mecanismos institucionais que viabilizam a troca de
recursos no tempo. O mercado é o terceiro mecanismo de alocação intertemporal
de recursos, servindo como alternativa aos dois mecanismos institucionais
mencionados. Restrições de créditos, assimetrias de informação, risco moral,
miopia intertemporal, entre outros aspectos, acabam afetando a eficácia do
mercado para substituir a família e o Estado. Família, Estado e mercado
configuram o que a literatura convencionalmente chama de três pilares da
geração de bem-estar social. Como, no caso brasileiro, as restrições de
crédito, imperfeições na posse de ativos que sirvam de colaterais para
empréstimos e uma eventual elevada taxa de desconto intertemporal são
restritivas ao papel do mercado, a presente análise estará centrada nas
relações entre família e Estado, vistas como mecanismos de geração das
transferências intergeracionais.
Família é um tipo de instituição que viabiliza uma série de trocas entre os
indivíduos que são seus membros, envolvendo custos, benefícios, altruísmo,
cooperação, conflito, externalidades, identidade, baixa assimetria de
informação, entre outros aspectos. A economia da família e a do domicílio
possuem grande interseção, embora claramente a primeira seja mais ampla, por
permitir relações intergeracionais que não exijam co-residência, ou até mesmo
por permitir relações dinásticas (que perpetuam a família por mais de três
gerações). Foge aos propósitos deste trabalho discutir os aspectos micro das
relações familiares, uma temática relevante, em que é tratada uma série de
questões importantes, como, por exemplo, a relação entre conflito e cooperação,
questões de gênero, a alocação intra-domiciliar do consumo, herança, questões
entre gerações, a transição do jovem para a vida adulta, o divórcio e
separação, etc. Os aspectos micro só serão mencionados aqui à medida que ajudem
a descrever o papel da família como mecanismo de transferência intergeracional.
Talvez o melhor caso para se discutir o papel da família na transferência
intergeracional de recursos seja o debate sobre os determinantes da educação
dos filhos. Este caso é importante porque praticamente todas as teorias na área
de ciências humanas reservam um papel crucial para a família, na determinação
da educação tanto formal quanto informal dos filhos. A educação é importante
também porque os serviços demandados pela família são prestados ou pelo Estado
(mediante transferências governamentais e ensino gratuito) ou pelo mercado,
trazendo à baila a interação da família com os dois outros pilares.
Um outro exemplo clássico de serviços intergeracionais prestados pela família é
o caso da segurança na velhice, em que membros familiares cuidam de seus idosos
e provêm transferências de renda intrafamiliares. Todo demógrafo já ouviu
falar, alguma vez, da hipótese da segurança na velhice como importante
determinante da alta fecundidade em sociedades tradicionais. Estes são dois
exemplos interessantes porque enfatizam a relação dos membros familiares com os
dois extremos da pirâmide etária ' as crianças e os idosos.
O modelo de Becker e Tomes (1986) é ilustrativo ao mostrar um grande problema
de ineficiência por parte das famílias, no que tange ao investimento em capital
humano. Neste modelo, as famílias investem no capital humano dos seus filhos,
mas também transferem recursos econômicos para eles ' por exemplo, através de
herança. Como os filhos possuem habilidades de aprendizado diferentes, a
combinação entre herança e investimento em educação não será igual entre eles,
com a família agindo de maneira compensatória. O problema de ineficiência
apontado pelos autores surge no caso das famílias pobres, uma vez que a
limitação orçamentária e as restrições de crédito impedirão as transferências
de herança (configurando uma "solução de canto") e, pior ainda, a escolha ótima
de educação será ineficiente, no sentido de que a taxa de retorno para
investimento em educação será maior do que a taxa de retorno para aplicações
financeiras no mercado.
Esta ineficiência quer dizer que as famílias pobres investiriam mais nos filhos
se não tivessem limitações de renda e de crédito. Esta seria uma das
explicações para a robusta correlação negativa observada entre a renda
domiciliar per capita e o desempenho escolar das crianças residentes no
domicílio.
Uma explicação para que o Estado efetue transferências universais na área de
educação é a hipótese da eficiência, ou seja, a transferência intergeracional
para as crianças, por intermédio dos gastos em educação, levaria a um
melhoramento de Pareto, uma vez que reduziria o investimento ineficiente em
capital humano por parte das famílias com restrição orçamentária alta e solução
de canto (famílias pobres). Um programa de transferência direta de renda como,
por exemplo, o Bolsa Família poderia também melhorar esta eficiência. Becker e
Murphy (1988), no trabalho clássico Família e Estado, utilizam esta lógica
sobre a ineficiência familiar na esfera da educação, combinada com os problemas
de provisão de segurança na velhice, para justificar um pacto intergeracional
de eficiência efetuado pelo Estado por parte das transferências governamentais
em educação e seguridade social. No caso de um modelo de três gerações, os
contribuintes ativos financiariam os gastos públicos educacionais na base da
pirâmide, com a expectativa de que a taxa de retorno do investimento em capital
humano, ao ser materializada nas folhas de salários das antigas crianças,
quando estas entrarem no mercado de trabalho, seria suficiente para pagar a
aposentadoria dos antigos contribuintes ativos que, agora, acabariam de se
tornar aposentados. Esta hipótese sugere que a seguridade social baseada em
transferências governamentais, no regime de repartição simples, é uma resposta
eficiente ao problema de investimento em educação no âmbito da família. Neste
caso, não há conflito entre gastos com seguridade social e outros programas
sociais, pois o primeiro não reduz os demais (ausência de crowding out7 dos
outros programas pela seguridade social). Também não faz sentido falar de
redistribuição de recursos entre coortes, dos jovens para os idosos.
A argumentação de Becker e Murphy (1988) não é a única explicação econômica
baseada na hipótese da eficiência, mas sim a explicação de eficiência
correlacionada com investimentos em capital humano e transferências
intergeracionais. Mulligan e Sala-i-Martin (1999b) citam oito teorias de
ineficiência de mercado, em que a seguridade social é considerada uma maneira
para atingir eficiência: ótima redistribuição ou divisão de riscos;
espraiamento de capital humano; ótimo seguro de aposentadoria; prodigalidade
paternal; extração keynesiana da poupança; ótimo seguro de longevidade; retorno
ao capital humano; e economias de escala administrativas. Além do trabalho de
Becker e Murphy, os autores afirmam que Pogue e Sgontz (apud Mulligan e Sala-i-
Martin, 1999b) também formularam a hipótese da eficiência no caso do retorno ao
capital humano.
Mulligan e Sala-i-Martin (1999a) dividem as teorias positivas de seguridade
social em dois grupos: as de eficiência e as políticas. As primeiras foram
discutidas anteriormente, enquanto as teorias de políticas consideram a
seguridade social o resultado de uma disputa política distributiva. Os cidadãos
se articulam em dois grupos políticos, com o intuito de apropriar os recursos
do Estado, sendo que um grupo será o vencedor. Se a teoria prevê que os idosos
representam um grupo e eles ganham a disputa, então esta é uma teoria política
de seguridade social. Como conseqüência da redistribuição dos recursos dos
jovens para os idosos, os gastos em seguridade social reduzem os demais gastos
sociais (crowding out dos outros programas pela seguridade social). Os autores
dividem as teorias políticas em dois grupos: as de voto racional da maioria e
as de grupos de pressão.
As teorias do voto racional da maioria entendem a seguridade social como o
prêmio final de uma luta. Quando aplicadas para regimes democráticos, estas
teorias prevêem os resultados de uma eleição na qual os grupos votam no seu
interesse próprio. Uma primeira versão destas teorias, formulada por Tabellini
(apud Mulligan e Sala-i-Martin, 1999a), sugere que os idosos fazem uma coalizão
com outro grupo de eleitores (os pobres), para vencer os eleitores jovens e
ricos. Mulligan e Sala-i-Martin concluem que o modelo tem problemas para
explicitar os ganhos dos idosos e dos jovens pobres na coalizão, além de não
gerar uma série de predições que explicariam fatos estilizados da seguridade
social.
Uma segunda versão sugere uma eleição feita uma vez e para sempre, realizando
uma coalizão com os grupos etários intermediários. A idéia seria de que o
programa, apesar de afetar os interesses imediatos dos grupos etários
intermediários, beneficia-os no longo prazo, pois, em algum momento, eles se
tornam idosos. Mulligan e Sala-i-Martin concluem que o modelo tem os mesmos
problemas da versão anterior, além de apresentar dificuldades para explicar
votos num período posterior, quando uma suspensão temporária do programa
poderia ser votada por alguns grupos etários de interesses distintos dos
idosos.
Na linha dos modelos de grupos de pressão, Mulligan e Sala-i-Martin desenvolvem
um modelo de competição política entre jovens e idosos, denominado "competição
política intensiva em tempo", uma vez que os grupos, cujos membros trabalham
menos, terão mais tempo para defender seus interesses, como o de aposentados. O
modelo mostra como os idosos enfrentam menos resistência para o sucesso
político do que os grupos de baixo salário, uma vez que todos os grupos serão
idosos um dia, enquanto a mobilidade entre os grupos de baixo e alto salário
não é grande.
Um outro modelo de grupos de pressão é o de proteção do contribuinte,
desenvolvido por Becker e Mulligan (apud Mulligan e Sala-i-Martin, 1999a). O
modelo afirma que impostos e subsídios ineficientes são formas de reduzir o
tamanho do governo, ao desestimularem o lobby dos grupos de pressão. O modelo
assume que os jovens e os idosos fazem pressão política no que concerne à
implementação de um programa de seguridade social. Os impostos pagos pelos
jovens equivalem aos benefícios recebido pelos idosos, determinando o tamanho
do programa de seguridade social. A pressão de cada um dos dois grupos depende
do volume de recursos gastos por eles com o exercício da pressão política.
O modelo prevê que os benefícios per capita dos idosos serão substanciais,
mesmo quando a fração de idosos na população total for pequena. Os
contribuintes favorecem distorções no sistema de tributo para limitar o tamanho
do programa de seguridade social.
Mulligan e Sala-i-Martin (1999a e 1999b) fazem uma revisão mais economicista,
mesmo quando falam de teorias políticas, concluindo que estas se ajustam mais
aos fatos estilizados do que as teorias de eficiência, o mesmo ocorrendo no que
tange às possibilidades de ajustes na seguridade social, com vistas a reformas
do sistema.
Na esfera demográfica, o seminal Presidential addres, de Samuel Preston, como
presidente da Population Association of America (PAA), em 1984, menciona o
conflito entre idosos e crianças. Ele usa como um dos argumentos centrais o
baixo poder de votos e lobby por parte das crianças, em contraste com o alto
poder de mobilização dos idosos (gray power), nos Estados Unidos. Segundo o
autor, estas mudanças geracionais estariam afetando a distribuição de recursos
públicos no país.
As diferenças principais entre as teorias de eficiência e as teorias políticas
podem ser sintetizadas, no sentido de ajudar no mapeamento do papel heurístico
de cada teoria para análises do caso brasileiro. As teorias de eficiência são
aqui representadas pelo modelo de Becker e Murphy (1988), embora outros modelos
de eficiência de gerações superpostas também explicam o mesmo tipo de resultado
sinérgico entre educação e pensões (Boldrin e Montes, 2004).
No caso das relações entre políticas de educação e seguridade social, as
teorias de eficiência indicam a ausência de conflitos intergeracionais, sendo
que o sistema de seguridade social por repartição simples viabiliza as
restrições de crédito dos jovens e garante o pagamento futuro das pensões e
aposentadorias. Nesta teoria, não há crowding out de gastos educacionais
motivados pelo crescimento da seguridade social, uma vez que este aumento
depende do retorno dos investimentos em educação pública. Finalmente, nesta
teoria, não há necessidade de reforma do sistema de seguridade social.
Nas teorias políticas, espera-se mais ou menos o oposto. Mesmo como
exemplificado no caso de Preston (1984), há conflitos intergeracionais,
crowding out dos gastos educacionais decorrentes do crescimento da seguridade
social e necessidade de reforma do sistema de seguridade social.
A reflexão sobre as relações intergeracionais no contexto brasileiro deverá
levar em conta estes dois paradigmas opostos, com um foco privilegiado na
questão entre educação e seguridade social.
Uma vertente da contabilidade nacional de transferência, que incorpora o
componente demográfico na análise das transferências intergeracionais, consiste
numa metodologia desenvolvida por Ronald Lee e colaboradores (Mason, Lee, Tung,
Lai e Miller, 2005). A adoção deste arcabouço independe da escolha de um modelo
teórico de eficiência ou de um modelo político de transferências
intergeracionais, no contexto da discussão anterior. Como o próprio nome diz, o
objetivo é medir o conjunto de transferências ou realocações entre os diversos
grupos etários.
Lee e colaboradores aplicam a contabilidade de transferências públicas para o
caso das gerações norte-americanas nascidas entre 1850 e 2090 (Bommier, Lee,
Miller, Zuber, 2005). A análise combinada dos benefícios líquidos de
transferências para os jovens, via gastos com educação, e de transferência para
os idosos, via gastos com seguridade social e saúde (medicare), é medida para
as diferentes gerações. O valor presente do benefício líquido no nascimento,
obtido para as três transferências governamentais, é positivo para a maioria
das gerações observadas entre 1850 e 2050.
As coortes nascidas entre 1850 e 1879 apresentaram valor presente líquido
negativo, devido à expansão do sistema público de educação nos Estados Unidos.
As coortes nascidas entre 1930 e 1947 também experimentaram valor presente
líquido negativo, fato igualmente causado por nova expansão do sistema
educacional. A coorte de 1914 recebeu o maior retorno, equivalente a cerca 5,3%
do seu rendimento de ciclo de vida, em função do início do sistema de
seguridade social. As coortes de 1992 e 1993 também tiveram um pico de retorno
equivalente a 5,8% do seu rendimento de ciclo de vida, neste caso provocado
pelo retorno do sistema educacional, viabilizado pelo financiamento das
gerações prévias.
Os autores concluem que o financiamento do sistema público de educação é caro,
apesar de o capital humano ser um dos principais determinantes do crescimento
econômico. De qualquer forma, os retornos calculados para as coortes são
consistentes com a hipótese de eficiência de Becker e Murphy, a despeito de os
valores sugerirem que as transferências para os idosos não sejam apenas para
compensar os investimentos feitos em educação, pois chegam a atingir valores
bem maiores.
Passando da discussão teórica para o caso brasileiro, a contabilidade
geracional no Brasil é apresentada em Turra (2000), que usa perfis etários de
utilização de serviços públicos e de renda e de consumo por idade, gerados a
partir da Pesquisa de Padrão de Vida (PPV ' 1996-1997), realizada pelo IBGE, em
combinação com dados agregados sobre gastos sociais nas três esferas públicas.
A atribuição de valoresper capita (em reais de dezembro de 1996), por idade,
permitiu a montagem final da contabilidade geracional.
A elaboração do diagrama de setas, representando a direção das transferências
intergeracionais, é dada pela diferença entre a idade de pagamento (base da
seta), a idade de recebimento (ponta da seta), o fluxo anual per capita
(largura da seta) e a riqueza anual per capita (área da seta). As despesas com
INSS, previdência dos servidores e saúde favorecem aos idosos, enquanto os
gastos com educação favorecem crianças e jovens. O conjunto das transferências
públicas é, inegavelmente, favorável aos idosos. As transferências domiciliares
são favoráveis às crianças e aos jovens, enquanto as intradomiciliares são
maiores e associadas à criação dos filhos. As interdomiciliares referem-se às
heranças. O conjunto das transferências públicas (favorável aos idosos)
contrasta com o das transferências domiciliares (favorável às crianças e
jovens). Considerando-se a riqueza anual per capita, as famílias mais que
compensam as transferências públicas favoráveis aos idosos, ao investirem na
criação dos filhos (consumo, educação, etc.).
O importante trabalho de Turra e Queiroz (2005a) estende a discussão anterior
para uma análise que incorpora as desigualdades sociais, medidas por quatro
estratos de escolaridade do responsável pelo domicílio. O estudo está centrado
nas transferências dos gastos governamentais com educação, saúde e seguridade
social, além de descrever as transferências inter-vivos (inter e intra
domiciliares).
A análise baseia-se na perspectiva de diferenciais cross section, ou seja, de
período. Os próprios autores reconhecem, no artigo, que a limitação da base de
dados impediu um estudo adequado de outras hipóteses, particularmente a análise
histórica da formação do sistema de transferências públicas no Brasil. No caso
dos gastos governamentais com educação, o valor per capita é maior para o
segmento com famílias no estrato com maior escolaridade (nível superior) do que
nos demais, sendo que a transferência ocorre em idades mais avançadas (20 a 29
anos), o que contrasta com as demais classes, em que o peso é maior no grupo de
10 a 19 anos. Isto ocorre porque esta transferência está mais associada ao
ensino superior.
Quando os gastos com educação são padronizados pelo nível de consumo de cada
classe de escolaridade do responsável, a participação dos gastos em educação é
maior para as classes menos favorecidas e no ensino básico. Os gastos com saúde
apresentam maiores valores para as idades mais avançadas, principalmente no
caso da classe social menos favorecida. Segundo o perfil etário, o gasto com
seguridade social também é crescente à medida que aumenta a idade, embora
indique uma certa precocidade na coleta do benefício previdenciário. Quando
padronizados pelo consumo, os diferenciais por classe são relativamente menos
importantes neste grupo de gastos governamentais. Já as transferências privadas
propiciam as crianças, principalmente no caso das duas classes mais
favorecidas.
Turra e Queiroz (2005a) concluem que as transferências governamentais favorecem
menos as crianças pobres, uma vez que as transferências para os idosos são
menos diferenciadas por classes de educação do que aquelas para as crianças.
Este resultado traz para o debate a ligação entre as transferências
intergeracionais e a focalização de políticas sociais no combate à pobreza.
Claramente, as políticas de transferências governamentais estão aliviando mais
a pobreza dos idosos do que a das crianças. Os autores colocam uma explicação,
inspirada na hipótese de Preston, que neste trabalho é classificada como teoria
política, em contraste com a teoria de eficiência. Eles sugerem quatro grupos
de pressão, marcados pelas divisões geracional (adultos e crianças) e de
classes (alta e baixa). As crianças de classe alta não têm interesse no jogo,
pois seus pais transferem recursos na esfera privada. Os adultos de classe alta
têm interesse na seguridade social, e buscam aliança com os adultos de classe
baixa. Como as crianças de classe baixa não têm poder de voto, a coalizão entre
adultos de ambas as classes para favorecer políticas que beneficiem os idosos
parece robusta.
Barros e Carvalho (2003) argumentam que os programas sociais brasileiros são
mal focalizados, uma vez que falham em repartir os recursos com os mais pobres.
Os autores utilizam o viés intergeracional para contrastar os problemas de
focalização, comparando a previdência rural e o BPC (Benefício de Prestação
Continuada) com o programa Bolsa-Escola, em vigor até 2003. Os dados mostram
que a redução da pobreza, em decorrência dos programas, ocorre mais fortemente
nas idades mais avançadas do que nas mais jovens. Estes resultados são
compatíveis com a explicação sugerida por Tuma e Queiroz.
A explicação ou hipótese sugerida anteriormente por Turra e Queiroz (2005a)
deve ser considerada uma forte possibilidade. Entretanto, à luz do debate
teórico anteriormente revisado, ainda não é possível descartar considerações
acerca da hipótese da eficiência em capital humano, aplicada ao contexto
brasileiro. A discussão da hipótese da eficiência requer aplicação de uma
perspectiva histórica, sendo que a análise das transferências, na perspectiva
de coorte, é limitada pela disponibilidade dos dados no Brasil. Esta é, talvez,
a questão mais importante para a agenda de futuras pesquisas na área de
transferências intergeracionais. A Nota de pesquisa, de Turra e Queiroz (no
prelo), aponta, precisamente, para a necessidade do contraste entre estas duas
hipóteses.
Uma inspeção inicial e superficial nas estatísticas históricas de gastos
públicos pode fornecer pistas sobre os problemas encontrados pela abordagem da
eficiência no Brasil, em contraste com a experiência americana, reportada por
Lee e colaboradores. No caso americano, a revolução educacional antecede a
implantação da seguridade social, sendo que o processo tem início em meados do
século XIX. Neste caso, a hipótese da eficiência de Becker e Murphy ocorre na
gênese das transferências intergeracionais governamentais. No caso brasileiro,
a gênese dos gastos sociais é relativamente recente, ocorrida apenas na segunda
metade do século XX.
Para os gastos públicos com previdência social, Andrade (1999) apresenta
excelente reconstituição histórica. Criada pela Lei Elói Chaves em 1923, a
previdência brasileira só foi unificada no pós-guerra, passando por uma série
de regulamentações nas décadas seguintes, até a reforma constitucional de 1988,
que estabeleceu o contexto institucional atual da seguridade social, com a
ampliação dos benefícios e da cobertura, além dos problemas de equacionamento
do seu financiamento.
A série histórica elaborada pela autora mostra que a despesa previdenciária
corrente é inferior à receita corrente desde a unificação até meados dos anos
60, passando por um período de relativo equilíbrio, sendo superavitária
novamente na década de 80, voltando a uma situação de equilíbrio e em seguida
de déficit a partir dos anos 90. Este período de implantação e expansão da
previdência social unificada marca uma grande virtuosidade, dada pela elevada
razão de suporte.8
O exercício de capitalização dos saldos positivos do sistema previdenciário,
entre 1945 e 1980, chega a valores exorbitantes, segundo cálculos de Andrade
(1999). Cabe, então, estabelecer a natureza do pacto de finanças públicas,
realizado historicamente, tendo em vista esta enorme arrecadação pública, assim
como as expectativas da hipótese de eficiência no capital humano.
A história da educação no Brasil é bem menos auspiciosa do que a da previdência
social, o que se reflete nos péssimos indicadores educacionais prevalentes na
maior parte do século XX. Um marco regulador na política educacional é a
determinação do ensino primário obrigatório (até quatro anos de estudo
completos), na Constituição de 1946, cabendo à União o poder de legislar sobre
esta área.9
Em 1953, o Ministério da Saúde foi criado e se separou da pasta, sendo
implantado, então, o Ministério da Educação e Cultura. Em 1971, regulamentou-se
o ensino de primeiro e segundo graus, aumentando a obrigatoriedade escolar para
oito anos. Em 1982, foi tentada a primeira experiência de ensino em tempo
integral no país, no Estado do Rio de Janeiro, por iniciativa de Darcy Ribeiro,
visando atender até mil crianças em dois turnos de atividades nos chamados
Cieps (Centros Integrados de Educação Pública). Esta iniciativa precedeu a
universalização da matrícula e do atendimento escolar, sendo prematura e, por
isso mesmo, criticada por competidores políticos. Em 1983, foi aprovada a
vinculação constitucional de recursos para educação (Emenda João Calmon),
objetivando a manutenção e desenvolvimento do ensino em patamares mínimos de
investimento público.
O projeto de lei da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) foi
encaminhado à Câmara Federal em 1988, mas só foi sancionado em 1996. Em 1995, o
governo federal enviou uma emenda constitucional e criou o Fundef, que se
tornou instrumento fundamental para a busca da universalização do atendimento
escolar. Finalmente, em 2001, o Programa Bolsa-Escola, federal, foi criado por
Medida Provisória e aprovado pelo Congresso Nacional.
Um documento do Banco Mundial (2003) afirma que a LDB e o Fundef foram
fundamentais para estabelecer uma divisão de responsabilidades nas diversas
esferas de governo. As administrações municipais seriam responsáveis pela
educação infantil, os governos estaduais pelo ensino médio e ambos deveriam
cooperar entre si na responsabilidade pelo ensino fundamental. Houve aumento
marcante nos gastos com educação, que passaram de 4,2% do PIB, em 1995, para
5,6%, em 2000. Um aspecto interessante no mecanismo de operação do Fundef é o
fato deste Fundo arrecadar recursos oriundos dos governos estaduais e
municipais e depois redistribuir de acordo com a matrícula efetiva em cada
esfera governamental, gerando um incentivo para a expansão da cobertura
escolar.
Do ponto de vista de indicadores escolares, os dados dos censos demográficos
mostram crescimento na taxa de atendimento das pessoas de 7 a 14 anos
(matrículas, desta faixa etária, em todos os níveis de ensino, divididas pela
população total na mesma faixa etária), que passou de pouco mais de 60%, em
1970, para 68%, em 1980, chegando a 80%, em 1991, e a quase 95%, em 2000. Os
dados das PNADs do IBGE mostram uma evolução ainda mais radical da taxa de
atendimento escolar do grupo de 7 a 14 anos, passando de cerca de 78%, em 1981,
para 82%, em 1991, e atingindo 97%, em 2002.
Estes dados apontam para uma virtual universalização do atendimento escolar na
década de 90. A universalização da matrícula escolar é só o início da revolução
necessária para o investimento em capital humano. É preciso ampliar a cobertura
no ensino médio e melhorar a qualidade do ensino, não só reduzindo a defasagem
entre idade e série, mas também melhorando a proficiência escolar, sendo ambos
indicadores de qualidade da educação.
O trabalho de Sochaczewski (2003) sobre as finanças públicas brasileiras no
século XX mostra que, desde 1930, os gastos com infraestrutura foram superiores
a 2% do PIB ' mais especificamente entre 1930 e 1940, 1956 e 1964, 1968 e 1970
e de 1986 a 1988. Estes gastos só se tornaram inferiores a 1% do PIB após 1990.
Três picos do gasto com infra-estrutura, em anos simples, merecem destaque:
cerca de 2,7% do PIB em 1957; 3% em 1963; e 2,6% em 1968-1969. Já os gastos
sociais foram inferiores a 1% do PIB até 1950, girando em torno de 1% até 1968,
declinando novamente até 1974, recuperando posição para o patamar de 1% até
1984 e depois subindo de 1% para 2%, entre 1985 e 1990.
No período de 1976 a 1988, os gastos com infra-estrutura e sociais evoluíram no
mesmo patamar e em idêntico ritmo de crescimento. Na década de 90, os gastos
sociais explodiram, até chegarem a 6% do PIB em 1994, enquanto aqueles
realizados com infra-estrutura despencaram para cerca de 0,2% do PIB neste
período. Entre 1996 e 2000, os primeiros estabilizaram-se pouco acima de 3% do
PIB e os referentes à infra-estrutura permaneceram no patamar de 0,2% do PIB.10
Voltando ao debate teórico acerca do contraste entre a hipótese do conflito
político intergeracional e a da eficiência entre os gastos com educação e
seguridade social, a pequena revisão apresentada anteriormente, sobre as
políticas sociais clássicas, sugere que a política de transferências
governamentais brasileiras na área social remonta, no máximo, ao período pós-
guerra. Também fica claro que os gastos de transferências previdenciárias e com
saúde precederam as despesas com educação. Neste sentido, a gênese da política
social universal brasileira não apresenta quadro compatível com a hipótese da
eficiência em gastos com capital humano.
Resta saber se o modelo político implantado no pós-guerra era simplesmente
motivado por um pacto dos idosos ricos e pobres contra os jovens pobres, ou se
havia outros componentes no processo. A série de gastos com infra-estrutura
mencionada anteriormente oferece uma pista na direção de um pacto de
complementaridade entre investimento em capital físico, via infra-estrutura, e
transferência futura de recursos para os idosos. A realocação de ativos em
infra-estrutura pública proporciona uma perspectiva de transferência de
recursos presentes para recursos futuros, com uma determinada taxa de retorno,
sendo os recursos presentes gerados com a expansão do sistema de previdência
social, tal qual discutido por Andrade (1999).
Nos moldes dos anos 50 e 60, o retorno mais rápido ao investimento em infra-
estrutura (capital fixo)11 constituiu opção mais atrativa do que a parceria
entre educação e seguridade social propugnada pela hipótese da eficiência em
capital humano. Se este arranjo, por um lado, viabilizou, historicamente, o
chamado milagre econômico brasileiro, por outro, aumentou a desigualdade de
rendimentos, ao criar uma demanda por capital humano sem ter viabilizado sua
oferta, conforme foi bem descrito por Carlos Langoni na época. O resultado foi
um aumento no prêmio à educação, o qual que tem sido uma marca da desigualdade
de rendimentos da PEA brasileira.
É justamente a alta histórica taxa de retorno à educação no Brasil que torna o
modelo de Becker e Murphy, da eficiência em capital humano, um paradigma ainda
relevante para a política pública no Brasil. Por um lado, as evidências
empíricas micro confirmam a existência de restrições de crédito por parte das
famílias pobres brasileiras, redundando numa ineficiência em termos de
escolaridade. O programa Bolsa-Escola, anteriormente mencionado, e a sua mais
recente transferência para o Bolsa-Família refletem um esforço de políticas
públicas para aliviar esta restrição de crédito. Por outro lado, o novo patamar
recente de gastos sociais como porcentagem do PIB, descrito anteriormente,
indica um esgotamento do financiamento da previdência social no país, algo que
ocorre num momento especial, quando parte do potencial gerado pelo dividendo
demográfico já foi desperdiçado. O crescimento e o aumento da eficiência no
gasto educacional, observados no final dos anos 90, são positivos, mas
provavelmente ainda não suficientes. Tendo em vista as relações
intergeracionais no século XXI, no contexto do debate sobre o dividendo
demográfico aqui realizado, o arranjo político nos moldes da hipótese da
eficiência em capital humano parece ser não somente um melhoramento de Pareto,
em termos de eficiência, mas também a melhor saída para elevar a razão de
suporte econômico. A solução deste dilema dependerá do teste da realidade,
indicando se a cooperação da eficiência é politicamente mais viável do que a
aliança do modelo de conflito intergeracional.
Se o modelo de Becker e Murphy prevalecer no caso brasileiro, este ficará
marcado como um exemplo de modelo em que a implantação da seguridade social e
sua posterior universalização precedem a revolução na educação, gerando um
aumento na desigualdade intra e intergeracional. O pacto posterior, que ainda
não é realidade, visando salvar a crise na previdência social por intermédio do
aumento no investimento público em capital humano, pode viabilizar uma maior
eqüidade intra e intergeracional.
Comentários finais: à guisa de conclusão
A falta de espaço fez com que uma série de tópicos não fosse abordada. A opção
pela relação da dinâmica demográfica com as conseqüências macro, associadas à
estrutura etária, explica parte destas omissões, tais como a ausência de
discussão sobre o comportamento micro da família, principalmente no que tange
ao processo de tomada de decisões de seus membros, contrastando conflito com
cooperação. Este contraste aplica-se tanto a aspectos de gênero quanto a
conflitos geracionais, nas relações entre pais e filhos.
A respeito desta complexa temática, cumpre destacar o excelente capítulo de
Goldani (2004), no volume sobre idosos, organizado por Camarano (2004). A
autora questiona a dicotomização macro e micro das esferas sociais. Segundo
ela, o âmbito micro pressupõe uma família solidária entre seus membros, com
predominância do elemento feminino na provisão de serviços domiciliares. O
questionamento desta visão solidária não é privilégio daqueles que adotam uma
perspectiva de gênero, a partir de abordagens sociológicas.
Também os economistas admitem, atualmente, que os membros familiares possuem
conflitos de alocação de recursos, no interior do domicílio (intrahousehold
allocations), que são distribuídos de acordo com o poder de barganha de seus
membros. Há vasta documentação, em trabalhos no âmbito do Banco Mundial,
advogando que as transferências monetárias e de outros ativos (título de
propriedade de terrenos ou casas) sejam efetuadas para as mulheres (na maioria
dos casos, mães), que seriam mais comprometidas com transferências e alocações
familiares voltadas para as crianças.
No caso do modelo econômico de família, além da ausência do debate sobre
cooperação e conflito, faltou uma discussão a respeito do conceito de altruísmo
familiar, em que o teorema do Rotten Kid12 coloca um papel fundamental. Não foi
discutido o paradigma da equivalência ricardiana de Barro (1974), que levanta a
possibilidade da família com preocupação dinástica de compensar prováveis erros
de transferência realizados pelo governo.
A proposta de Barro é discutida no contexto da relação entre déficit público,
riqueza e poupança familiar. No caso de políticas de transferência, como a
aposentadoria rural, estratégias compensatórias familiares, atraindo os netos
para o consumo de transferências intradomiciliares, poderiam ser interpretadas
no contexto da hipótese de Barro.
O debate sobre políticas públicas e transferência de renda centrou na relação
entre gastos com educação e com seguridade social. Como ambas as políticas são
de cunho universal, o debate entre focalização e universalização de políticas
públicas não foi realizado. Considerando-se o conflito intergeracional de forma
stricto sensu, mesmo estas políticas envolvem uma focalização por idade. Tal
ponto mostra quão relativo este debate pode ser. Ao perguntar "qual Estado de
Bem-Estar", Goldani (2004) associa a discussão sobre conflito intergeracional
àquele entre focalização e universalização das políticas públicas.
Foge aos propósitos desta conclusão reproduzir aqui o debate. Não se discute
que a universalização de políticas sociais clássicas, como educação, saúde e
previdência, deve ser almejada. Há fatores que limitam a progressividade da
igualdade de provisão governamental oriunda de uma universalização levada a
ferro e fogo ' por exemplo, o passado de extrema desigualdade da sociedade
brasileira, que remonta a uma nação que esteve entre as últimas a banir a
escravidão, ou os limites de inserção ocupacional de boa qualidade, ligados a
problemas de demanda e de oferta no mercado de trabalho. É este o contexto que
justifica políticas focalizadas de transferências de renda, voltadas para o
atendimento de segmentos populacionais abaixo da linha de pobreza, assim como
as políticas de cotas para pobres e negros.
Um exemplo de política focalizada, no contexto da universalização gerada pela
política educacional, é o caso do programa Bolsa-Escola e da sua versão
atualizada no Bolsa-Família. A discussão no item anterior mostra que as
restrições de crédito se limitam ao segmento de famílias pobres, o que leva a
uma ineficiência na demanda por escolaridade das famílias mais pobres, fato
comprovado pelo importante papel da renda per capita domiciliar na determinação
da escolaridade das crianças e jovens vivendo nos domicílios. Sendo assim, a
mera alocação de recursos públicos para a oferta de escolas e professores pode
ser insuficiente para gerar o desempenho escolar desejado. No caso, a
transferência de renda, condicionada ao comportamento familiar, é instrumento
importante de focalização. Outro exemplo complementar e na mesma direção
refere-se aos limites de acompanhamento do desempenho familiar fora de sala de
aula, por parte das famílias com mães de baixa escolaridade. Neste caso, a
oferta de escolas de tempo integral não deve jamais almejar uma universalização
imediata, sendo mais eficiente a provisão da escola de tempo integral para as
famílias com mães de baixa escolaridade, sendo elas as mais pobres ou não.
Goldani (2004) também pergunta: "Qual família?" Esta questão é totalmente
pertinente. Os arranjos domiciliares e familiares são diversos. Famílias com
crianças não são exclusivamente as nucleares biparentais, que fazem parte do
imaginário. Há, também, as famílias monoparentais, principalmente aquelas de
responsabilidade feminina. Algumas crianças estão em famílias extensas, muitas
das quais são, na realidade, compostas por mãe jovem e criança, vivendo com os
pais da mãe.
A "diversidade e fluidez" dos arranjos familiares (na expressão de Goldani)
dificultam a formulação de políticas para a família, que partam de pressupostos
simplistas. Acrescenta-se, aos pontos mencionados por Goldani, o fato de que
políticas focalizadas podem servir de incentivos não-intencionais a novos
arranjos familiares, como se observa no debate norte-americano acerca do
impacto de políticas de "welfare" sobre a gravidez na adolescência. Estes
aspectos e complexidades não devem servir de barreira ao foco na família,
entendida como a agregação de todos os arranjos possíveis, congregando, de
forma conflituosa, uma ou mais gerações no seu interior. Questões de
desigualdade de ativos (ou classe, ou estratificação social), de gênero e de
raça são dimensões que perpassam estes arranjos.
Neste sentido, faltou um maior detalhamento das questões macro e micro de
gênero, em que não só se destaca a saúde reprodutiva, mas também a
sobremortalidade masculina dos jovens, bem como o hiato de gênero na educação
(escolaridade feminina maior do que a masculina).
No caso dos jovens, faltou uma discussão sobre a transição para a vida adulta,
em que a correlação entre decisões na esfera de escolaridade, mercado de
trabalho, formação de um novo arranjo familiar, fecundidade e sexualidade é
componente crucial. Os idosos são um caso à parte, tanto para os arranjos
familiares quanto na questão do envelhecimento sem incapacidade e com
autonomia. A questão racial é primordial na interação com os diferenciais
observados nas outras dimensões, sendo importante tanto para a análise das
carências de políticas públicas e no debate universalização versus focalização,
quanto no caso de estratégias diferenciais de arranjos familiares, para jovens
e idosos.
A despeito das limitações aqui apontadas, é possível concluir que a dinâmica
demográfica brasileira, principalmente no que concerne à sua estrutura etária,
oferece uma série de oportunidades e desafios para o planejamento do
desenvolvimento humano no país nas próximas décadas.
Os efeitos de composição, dividendo demográfico e transferências
intergeracionais são apenas exemplos de tópicos a serem perseguidos em estudos
futuros, bem como em suas aplicações e formulações de políticas públicas.
Um ponto comum nestes três tópicos refere-se ao papel crucial conferido à
educação na dinâmica futura. A análise sobre o efeito de composição mostrou que
existe significativo aumento na escolaridade materna, processo este que
favorece ao crescimento da demanda por escolaridade e à melhoria no desempenho
escolar. Por outro lado, o debate sobre o dividendo demográfico mostrou que a
redução na razão de dependência demográfica na infância, durante os anos 90,
foi fundamental para que a política governamental de expansão da cobertura
escolar fosse bem-sucedida. Além disso, o aumento futuro na escolaridade da PEA
é motivo essencial para se evitar um declínio na razão de suporte.
Finalmente, se a seguridade social foi implantada anteriormente a um aumento no
gasto público com educação, sua viabilidade futura num sistema de repartição
dependerá de uma verdadeira revolução na política pública de educação, algo que
é compatível com a hipótese de eficiência, mas, por enquanto, é só uma
possibilidade.