Demografia urbana e políticas sociais
Introdução
A dinâmica demográfica intra-urbana constitui um enorme desafio do ponto de
vista do planejamento das políticas sociais, sobretudo num país crescentemente
metropolitano como o Brasil. Tal desafio tem sido enfrentado por administrações
municipais e estaduais dotadas de sistemas de informação muitas vezes
inadequados e envolvendo grupos técnicos com significativas deficiências no uso
e tratamento da informação disponível. Ao mesmo tempo, existe nessa área um
significativo campo de trabalho para profissionais com formação em estudos de
população e demografia, potencial precariamente preenchido, de modo geral,
pelos demógrafos brasileiros.
De fato, em que pese a continuada expectativa desses profissionais de que a
análise demográfica contribua efetivamente para o planejamento e execução das
políticas sociais, nem sempre essa contribuição se verifica, sobretudo no caso
de políticas sociais geridas em escala local. Se é verdade que no âmbito de
políticas nacionais ' como as de educação, saúde e previdência social ' a
contribuição dos demógrafos tem sido relevante, vale também destacar que, no
plano das milhares de iniciativas de planejamento realizadas anualmente no
Brasil nas escalas estadual e municipal, poucas vezes essa contribuição é
buscada, e mesmo quando verificada assume um caráter relativamente limitado,
diante da enorme demanda existente.
A baixa participação dos demógrafos brasileiros em atividades de planejamento
subnacional tem, provavelmente, diversas explicações. Por um lado, os gestores
locais possuem pouca familiaridade com as técnicas envolvidas e com a
informação demográfica, desconhecendo seu potencial e, assim, não demandando-as
adequadamente. Por outro, essas técnicas demográficas estão menos desenvolvidas
no que se refere ao problema das pequenas áreas. Além disso, muitas das
análises necessárias nessa escala passaram a requer mais recentemente a
utilização dos chamados sistemas de informação geográfica (SIG),1 que nem
sempre estão disponíveis localmente, seja porque o município ou Estado não os
desenvolveu, seja porque os órgãos estatísticos nacional e estaduais não
disseminam dados e mapas digitais compatíveis com tais sistemas (TORRES, 2002 e
2005).
Paradoxalmente, vive-se um momento de explosão na produção de indicadores
diversos, como o projeto do IDH evidencia exemplarmente. Por todo o Brasil,
agentes públicos e grupos profissionais propõem-se a construir indicadores como
subsídio a políticas públicas, muitas vezes sem conhecer mais profundamente as
restrições impostas pelos dados, as limitações relacionadas aos denominadores
populacionais adotados e o significado analítico de certas escolhas decorrentes
da produção de índices, tais como ' por exemplo ' a questão da ponderação das
variáveis consideradas (JANUZZI, 2001).
Acredita-se que uma urgente tarefa dos demógrafos brasileiros está em
compreender as condições em que se dá a demanda por informações demográficas
por parte dos gestores públicos e em produzir respostas ágeis e adequadas.
Trata-se de colocar-se no lugar dos consumidores potenciais desse tipo de
informação e pensar as condições concretas de produção dessas políticas. Por
exemplo, as decisões envolvidas são realizadas num prazo de tempo incompatível
com a elaboração de análises mais sofisticadas. Em outros casos, verificam-se
inconsistências importantes entre as unidades de análises utilizadas nos
estudos demográficos e as requeridas pelo usuário potencial.
Apesar dessas dificuldades na interpretação de informações, as administrações
locais são cada vez mais importantes na gestão das políticas sociais. A partir
da Constituição de 1988, essas políticas no Brasil têm sido crescentemente
descentralizadas. Observa-se um processo de descentralização bastante avançado
no caso das políticas de saúde e educação, mas que também vem sendo ensaiado
para políticas como as de habitação, saneamento e transferência de renda
(ARRETCHE, 1998). Nesse novo contexto, as transferências derivadas dos
processos de descentralização devem se basear em critérios sociodemográficos e
as informações sociodemográficas, nas escalas regional e local, devem
contribuir para estabelecer critérios de execução orçamentária e para monitorar
o processo a partir de indicadores de cobertura e/ou de qualidade do serviço.
Para aprofundar essa discussão, apresenta-se, inicialmente, um conjunto de dez
situações em que a informação sociodemográfica pode ser demandada no âmbito das
políticas sociais locais. A seguir, aprofunda-se esse debate refletindo sobre o
problema da desagregação espacial da informação, aspecto muitas vezes
reivindicado pelos gestores públicos que operam em grandes áreas urbanas ou
metropolitanas, mas normalmente negligenciado pelos demógrafos.
Quando a informação sociodemográfica é demandada em escala local?
Nessa seção, procura-se identificar diferentes situações em que a informação
sociodemográfica poderia ser ou vem sendo demandada em escala local. O conjunto
de situações aqui destacado não é exaustivo, sendo que os temas considerados
são principalmente fruto da experiência profissional em diversos projetos junto
a governos estaduais e municipais, realizados por organizações como a Fundação
Seade e o Cebrap, e a partir de diálogo com outros profissionais e organizações
atuantes na área.2 Apresentam-se, a seguir, os dez tipos de situação mais
comuns identificados pelo autor.
Produção de critérios para repartição de transferências governamentais entre o
governo federal e Estados e municípios
O governo federal transfere recursos fiscais para Estados e municípios. Essas
transferências, muitas delas de caráter constitucional, podem ou não ser
relacionadas à provisão de um dado serviço público. Em vários casos, a
informação populacional é crucial para a definição dos volumes alocados às
diferentes regiões. Vale advertir, porém, que qualquer critério distributivo
adotado pode produzir distorções significativas.
Um primeiro problema que se coloca diz respeito à definição do tipo de
informação populacional. Quando a repartição é realizada com base no último
censo demográfico ' como no caso do "Ley de Participación Popular" da Bolívia
(HAKKERT, QUINTANA e JOVÉ, 1999) ' podem ser produzidas distorções importantes
em períodos intercensitários, com áreas com crescimento negativo recebendo mais
do que proporcionalmente em relação àquelas com intenso crescimento
demográfico.
Outros países adotam uma repartição baseada em projeções demográficas para
municípios, como o "Fundo de Participação dos Municípios" no Brasil. Nesse
caso, além das dificuldades técnicas inerentes a estimativas populacionais para
municípios ' alguns podem ser muito pequenos ', pode existir significativa
pressão política sobre o órgão público responsável pelas estimativas. Até
recentemente, o Tribunal de Contas da União ' que responde pela repartição do
Fundo ' excluía a possibilidade de que as projeções previssem redução de
população para determinados municípios.
Outro critério de repartição diz respeito à divisão de recursos segundo o
número de procedimentos realizados no âmbito de uma dada política pública
(matrículas escolares, procedimentos médicos, etc.), o que era o critério
adotado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na década de 90. Nesse caso, o
critério de repartição também pode induzir distorções distributivas, sendo que
a maior parte dos recursos tende a ser repassada para regiões ' como as áreas
metropolitanas ' onde o serviço em questão tem uma infra-estrutura mais
organizada, com presença de hospitais ou universidades, por exemplo.
A análise sociodemográfica pode dar suporte a esse tipo de processo de decisão
de diferentes maneiras, seja produzindo estimativas e projeções como suporte a
esse tipo de prática distributiva, seja contribuindo para a análise dos efeitos
distributivos de determinadas opções de desenho operacional do programa. Alguns
desses desenhos são relativamente complexos, com critérios diferenciados para
áreas específicas (como regiões metropolitanas ou áreas rurais, por exemplo), o
que também pode implicar distorções.
Focalização de programas sociais
As políticas focalizadas ' como as de transferência de renda ' dependem em
grande medida de informações sociodemográficas, seja na definição dos grupos
populacionais a serem identificados como público-alvo, seja no processo de
avaliação desse tipo de política.
No caso da definição dos beneficiários, os critérios adotados partem de
informações censitárias ou de grandes amostras de domicílios, permitindo aos
governos o estabelecimento de linhas de pobreza a serem focadas, bem como a
análise da distribuição espacial da demanda potencial. Na avaliação da
cobertura do programa, as políticas de transferência de renda são muitas vezes
(como no caso do programa brasileiro Bolsa-Família) organizadas a partir de
cadastros municipais nos quais o usuário potencial é inscrito no programa. Isso
prescindiria ' em tese ' do recurso a informações censitárias, uma vez que as
características do beneficiário do programa foram previamente definidas. No
entanto, a comparação entre os dados cadastrais e os demográficos, para
diferentes áreas geográficas, permite ao analista identificar distorções do
programa, relacionadas ao grau de cobertura potencialmente atingido e à
distribuição geográfica da oferta do serviço.3
Em algumas situações, o programa adota algum critério de focalização geográfica
' executando a distribuição de benefícios apenas em municípios, distritos ou
setores censitários previamente selecionados, ou ainda combinando critérios
geográficos e cadastrais. Esse é o caso do Programa Oportunidades, do México,
onde o cadastramento de usuários dos programas de transferência de renda é
realizado apenas em setores censitários previamente selecionados (GONZÁLEZ DE
LA ROCHA, 2005). Assim, os dados demográficos são importantes no sentido de
identificar previamente as áreas selecionadas para a implementação do programa.
O analista deverá manipular os dados demográficos na escala desejada (setores
censitários, por exemplo), definindo critérios para a seleção das áreas a serem
beneficiadas. Para tanto, torna-se necessária a construção de indicadores nessa
escala ' como o IDH utilizado no Programa Alvorada do Brasil, na escala de
municípios ', ou o recurso à análise fatorial e de cluster, como nos estudos
que permitiram a definição das áreas a serem atingidas pelo Programa
Oportunidades, no México (GARZA, 1999).
Cabe ressaltar, no entanto, que a avaliação desse tipo de programa requer, além
de análise de cobertura, estudos sobre o impacto do programa, em que o recurso
à informação censitária é mais limitado. (FERNANDEZ e PAZELLO, 2002). Nesse
caso, análises quantitativas e qualitativas específicas devem ser realizadas.
Produção de indicadores de base territorial para diversos fins de políticas
especificas (segurança pública, saúde, etc.)
Provavelmente, a área na qual mais freqüentemente a análise demográfica tem
sido requisitada diz respeito à elaboração de indicadores de base territorial
na forma de taxas (morbidade, mortalidade, cobertura, etc.).4 O principal
aspecto dessa atividade refere-se ao tradicional esforço de produzir
denominadores que servirão de bases para construir tais taxas. No entanto, este
tipo de esforço pode implicar uma série de dificuldades nem sempre triviais,
particularmente no contexto intra-urbano:
· recortes espaciais de informações administrativas e censitárias não
coincidentes. Nem sempre dados censitários e administrativos são
organizados para as mesmas unidades de análise. Sobretudo na escala
intra-urbana, é muito comum que unidades de planejamento de saúde ou
de educação tenham recortes geográficos não consistentes com os
recortes oferecidos pelo censo demográfico, impedindo a produção das
taxas desejadas. Em alguns casos, o tratamento dessa dificuldade
requer a constituição de uma boa cartografia de pequenas áreas e de
SIG, que permitam organizar em um mesmo sistema de dados de origens
diversas (demográficos e administrativos). Esses sistemas oferecem
algumas técnicas que auxiliam o analista a ajustar os diferentes
recortes geográficos, como o chamado overlay;
· problemas de consistência entre fontes de dados censitários e
aqueles referentes à oferta dos serviços em questão (dados
administrativos numa escala de pequenas áreas, e produção de taxas de
cobertura). Tais indicadores devem oferecer informações sobre locais
com problemas de cobertura, produzindo indicações para a expansão de
equipamentos ou extensão da rede. Essas inconsistências têm
diferentes naturezas relacionadas à forma de coleta da informação,
qualidade do registro, etc., além das dificuldades de
compatibilização dos recortes geográficos mencionados anteriormente;
· necessidade de estimativas populacionais para períodos
intercensitários. Longe dos períodos censitários, o recurso a
estimativas populacionais pode auxiliar substancialmente a construção
de indicadores intra-urbanos. Existem várias alternativas de técnicas
nesse caso, inclusive a possibilidade do recurso a indicadores
sintomáticos (por exemplo, distribuição de energia elétrica). Em
quase todos esses exercícios, distorções são produzidas e o analista
tem que interpretar o seu significado para o indicador em questão;
· realização de projeções demográficas para pequenas áreas. Embora
esse tipo de projeção seja freqüentemente mencionado na literatura,
sua utilização prática para áreas intra-urbanas tem sido pequena,
sobretudo em função das dificuldades de prever fenômenos pouco
previsíveis, tais como mudança nas regras de zoneamento urbano,
abertura de uma nova rodovia ou seu alargamento, implantação de
grandes equipamentos urbanos numa dada localidade (indústrias,
hospitais, etc.) (JANUZZI, 2002).
Vale destacar que, em alguns casos, o analista precisa produzir ' na ausência
de alternativas ' indicadores relativamente precários, bem como ser capaz de
interpretar os erros e vieses possivelmente incorridos nas diferentes regiões
em função do uso desses indicadores. Se, por exemplo, para um determinado
período intercensitário, o numerador refere-se a dados administrativos
relativos ao meio do período e o numerador corresponde à data do censo, o
analista tem que ser capaz de prever a subestimação do indicador em áreas de
intenso crescimento populacional e a superestimação do mesmo em áreas de perda
populacional.
Algumas vezes, torna-se necessário construir indicadores ainda mais
problemáticos, como aqueles em que os numeradores e os denominadores não
correspondem a indivíduos do mesmo universo. Por exemplo, isso se dá em alguns
indicadores intra-urbanos de criminalidade. As vítimas das ocorrências
verificadas numa dada localidade podem não ser residentes naquela localidade,
como no caso das áreas centrais das maiores cidades. Assim, para a obtenção de
indicadores mais adequados do nível de criminalidade, seria necessário estimar
a chamada "população flutuante", um tipo de medida relativamente complexa do
ponto de vista técnico, envolvendo o recurso a informações sobre fluxos de
passageiros e de veículos, nem sempre disponíveis.
Esse tipo de prática pouco convencional para os demógrafos faz muitas vezes
parte do dia-a-dia da gestão pública, seja por falta de experiência técnica por
parte do gestor, seja em função do timing da política pública em questão.
Evidentemente, a melhor estratégia seria contar com estimativas populacionais
mais precisas para as diferentes áreas consideradas. Na prática, nem sempre
isso é possível, seja devido à ausência de condições técnicas, seja em razão da
escassez de tempo ou de recursos (TORRES, 2005).
Planejamento das políticas de infra-estrutura e habitação
Embora a chamada "área de planejamento" encontre-se em crise em diferentes
administrações locais e a chamada crise do planejamento tenha se tornado um
tema clássico no debate a esse respeito (FRIEDMANN, 1995), existem alguns
aspectos do planejamento, particularmente aquele relacionado à oferta de infra-
estrutura, que continuam a existir em escala local, embora sob diferentes
modalidades e arranjos institucionais. Trata-se, nesse caso, de planejar a
expansão de redes de infra-estrutura urbana, bem como no que diz respeito ao
volume e à localização dos novos investimentos habitacionais.
Além da análise das tendências do crescimento urbano propriamente dito, a
temática da migração pode desempenhar papel significativo. Trata-se de
identificar tendências de crescimento demográfico e de fluxos de pessoas
(migração pendular) que se traduzam, por um lado, em maior demanda por
habitações e, por outro, em pressões sobre o sistema viário. Vale destacar os
seguintes elementos:
· no caso da infra-estrutura urbana, decisões sobre o investimento
público em transporte e obras de estrutura viária têm que ser
tomadas. Alguns desses investimentos têm prazo de maturação (em
termos de taxa de retorno do projeto) relativamente longo. Nesse
caso, estimativas e projeções demográficas sobre a demanda futura
podem exercer papel crucial, permitindo ao gestor identificar as
áreas que ' de fato ' apresentam taxa de retorno significativa;
· para a questão habitacional, o gestor precisaria contar com
projeções de domicílios e de demanda futura por domicílios, capazes
inclusive de prever as áreas de expansão mais prováveis numa escala
regional e local. Infelizmente, em muitas áreas urbanas da América
Latina, o setor de habitação não se encontra em condições de
antecipar tendências de expansão urbana, agindo de forma meramente
reativa às tendências de expansão urbana "não-antecipadas".5
Expansão e manutenção de redes de serviços públicos ou privados ' água, esgoto,
eletricidade, telefonia, TV a cabo, etc.
Uma das áreas em que a informação demográfica é mais demandada no setor público
é aquela relacionada às redes de serviços. Muitas dessas redes (como a de
saneamento básico, por exemplo) demandam notável volume de investimento e sua
expansão tende a ser planejada com relativa antecedência. Em geral, tais redes
são administradas por empresas públicas ou privadas que têm em perspectiva
algum tipo de retorno financeiro para o investimento.
A expansão da rede de serviços públicos, quando produzida segundo critérios
exclusivamente econômico-financeiros por parte das operadoras do serviço, leva
em conta três parâmetros principais: tamanho e densidade populacional da área
onde o serviço será oferecido; capacidade de pagamento da população local; e
dificuldades técnicas envolvidas (proximidades das redes preexistentes,
topografia e outras condições do terreno, situação legal da terra, etc.), com
implicações para o custo da expansão projetada e a capacidade de retorno do
investimento.
Em certos casos, operadoras públicas trabalham segundo critérios extra-
econômicos, considerando aspectos de justiça (direito ao serviço), saúde
pública (riscos sanitários) e relacionados a reivindicações e pressões
comunitárias. Mesmo nesse caso, a definição de prioridades para a expansão dos
serviços tende a ser hierarquizada segundo critérios demográficos, numa
tentativa de racionalizar o serviço e reduzir perdas financeiras. As principais
demandas por informações e técnicas sociodemográficas nesse caso implicam:
· consistência entre fontes de dados de origens diferentes;
· estimativas de população para pequenas áreas (períodos
intercensitários), incluindo aquelas referentes a número de domicílio
e tamanhos populacionais, e números de domicílios desagregados por
grupos de renda;
· identificação de áreas de expansão demográfica recente, sem acesso
a serviços e não necessariamente captadas pelo último censo;
· produção ' para pequenas áreas ' de indicadores sintomáticos
indicativos da ausência de determinado serviço, como, por exemplo,
taxas de mortalidade infantil e de morbidade por doenças de
veiculação hídrica;
· projeções demográficas para pequenas áreas, de modo a subsidiar o
planejamento do investimento no longo prazo;
· elaboração de metodologias para estimativa de perdas com ligações
clandestinas de água e energia elétrica, por exemplo, através de
análises de regressão.
Identificação de locais para a instalação de equipamentos públicos
Ao contrário das redes de serviços públicos, os equipamentos públicos como
escolas, postos de saúde, creches e centros comunitários não têm, na lógica de
sua implantação, a perspectiva do retorno monetário por parte dos usuários. Em
tese, são serviços de caráter distributivo e que levam para sua implantação, em
geral, aspectos relacionados à distribuição espacial dos usuários potenciais.
Em outras palavras, o desafio aqui está em identificar locais com demanda
potencial não atendida e/ou com escolas superlotadas, independentemente da
capacidade de pagamento do público-alvo. A rigor, as informações e técnicas
sociodemográficas demandadas para auxiliar a implantação desses equipamentos
são relativamente distintas das requeridas pelas redes de serviços.
Em primeiro lugar, destaca-se o problema de se definir precisamente a área de
influência de um dado equipamento público, para fins de estimativas do tamanho
da demanda por esse equipamento. Em alguns países, como nos Estados Unidos,
vigora a figura do distrito educacional definido institucionalmente, que obriga
o aluno a estudar em escolas do distrito onde reside. Assim, a compatibilização
entre oferta e demanda por serviços educacionais é realizada distrito a
distrito e são empreendidos esforços para a produção de indicadores
demográficos para essa unidade de planejamento. Em outros casos, como no
Brasil, não há obrigatoriedade de escolha pela escola existente no distrito. A
identificação da área de influência tende a ser relativamente arbitrária,
embora algumas técnicas associadas à utilização de sistemas de informação
demográfica venham sendo crescentemente utilizadas com esse fim:
· identificação da população residente num raio fixo de distância ao
equipamento (por exemplo, num raio de 500m da escola). Tal tipo de
estimativa implica a existência de dados censitários numa escala
bastante detalhada (como setores censitários). Além disso, a
estimativa pode ser realizada seja considerando, como parte do raio
de influência, os setores censitários cujo centro geográfico
(centroid) esteja dentro desse raio, seja através de técnicas que
permitam a repartição da população daqueles setores que não se
encontram totalmente dentro desse raio. A técnica mais utilizada,
nesse caso, é o chamado overlay, em que dados do setor censitário são
atribuídos ao raio de influência, na proporção em que a área do setor
coincide com a superfície do raio de influência.6 Trata-se
evidentemente de um recurso limitado, que só deve ser utilizado
quando o número de setores censitários contidos dentro do raio for
relativamente grande, fazendo com que o recurso à repartição da
população seja aplicado num número limitado de setores e permitindo a
ocorrência do processo de "compensação de erros" nesses casos;
· utilização de recursos automáticos como o "algoritmo de Voronoy",
que estima a área de influência a partir da distância relativa dos
diversos equipamentos de uma dada rede. Vários softwares de SIG
dispõem dessa funcionalidade, apesar de se tratar de um ferramenta
relativamente limitada, uma vez que as áreas construídas a partir
desse recurso não levam em conta barreiras físicas (rios, estradas,
etc.), nem os percursos urbanos efetivamente percorridos pela
população.7 Estimativas de população podem ser realizadas de modo
semelhante ao mencionado no caso do raio de influência, consideradas
as mesmas restrições apontadas.
Uma vez identificadas as áreas de influência de um dado equipamento público,
coloca-se o problema de produzir estimativas populacionais intercensitárias e
projeções para áreas com recortes geográficos não convencionais, isto é, não
necessariamente consistentes com o recorte geográfico original dos setores
censitários, distritos e municípios, o que implica, como mencionado, o recurso
a técnicas de repartições de dados. Realizadas essas etapas, as questões em
geral são similares àquelas observadas anteriormente:
· consistência entre fontes de dados censitários e os relativos à
oferta dos serviços para cada área de influência, e produção de taxas
de cobertura;
· estimativas de população para pequenas áreas (períodos
intercensitários), inclusive para grupos etários específicos, tais
como crianças, no caso de equipamentos de educação, ou idosos, no que
se refere a equipamentos de saúde. Muitas vezes análises de coorte
são necessárias particularmente em situações de descontinuidade
demográfica ou de crescimento demográfico substancial;
· identificação de áreas de expansão demográfica recente, sem acesso
a serviços e não necessariamente captadas pelo último censo. Isso
pode ser realizado através de indicadores sintomáticos (nascimentos,
por exemplo) ou com recurso a fotografias aéreas e imagens de
satélite;
· produção ' para as áreas de influência dos equipamentos ' de
indicadores sintomáticos indicativos da ausência de determinado
serviço, como, por exemplo, taxas de analfabetismo juvenil e taxas de
morbidade;
· projeções demográficas para áreas de influência, de modo a
subsidiar o planejamento do investimento no longo prazo.
Caracterização de áreas de assentamentos precários (bairros, favelas,
loteamentos clandestinos)
Uma outra questão importante na gestão urbana de grandes cidades de países em
desenvolvimento refere-se à identificação e caracterização dos chamados
assentamentos precários, que são áreas de expansão urbana fora da lógica do
planejamento urbano oficial. Algumas dessas áreas constituem invasão de terra
pública ou privada; outras correspondem a loteamentos urbanos fora dos
parâmetros legais definidos pela administração municipal. Alguns autores
estimam que essas modalidades de uso do solo abrangem 30% do total de
domicílios das principais cidades latino-americanas (LIM, 1995).8
Uma primeira questão diz respeito à identificação desse tipo de assentamento
urbano. Crescentemente, as administrações municipais têm recorrido a fotos
aéreas e imagens de satélite para a identificação dessas localidades, que, por
suas características urbanísticas, são de fácil observação. No entanto, mesmo
quando identificadas, as estimativas de população desse tipo de assentamento
envolvem aspectos particularmente complexos, relacionados ao pequeno tamanho
dessas áreas e às altas densidades existentes.
Muitas vezes, o censo demográfico não é capaz de identificar essas áreas
adequadamente, uma vez que o conceito de setor censitário subnormal ' voltado
para o planejamento operacional do censo ' é relativamente limitado. Além de
problemas de cobertura, os subnormais são problemáticos sobretudo quando as
favelas ou formas análogas de ocupação têm uma dimensão geográfica muito
pequena, inferior ao tamanho médio do setor censitário. No caso de São Paulo,
por exemplo, o município buscou fontes alternativas e realizou estimativas da
população em favelas, a partir de pesquisas amostrais com resultados muito
controversos.9
Uma alternativa utilizada por alguns autores foi o recurso a estimativas
baseadas em hipóteses sobre a densidade demográfica, uma vez que as áreas com
este tipo de ocupação podem ser bem estabelecidas no âmbito de um SIG, a partir
das fotos aéreas e imagens de satélite. Assume-se nesse caso, por exemplo, que
a densidade demográfica de uma pequena favela identificada por meio de imagem
de satélite é similar àquela do setor censitário subnormal mais próximo, cuja
população foi adequadamente estimada pelo censo (MARQUES, TORRES e SARAIVA,
2003).
Avaliação do impacto de obras de infra-estrutura
Obras de infra-estrutura, como estradas, aeroportos, hidroelétricas, etc.,
provocam muitas vezes um significativo impacto sobre a vida de populações
locais. Em muitos casos, populações têm que ser deslocadas. Isso tem sido
objeto de sucessivos conflitos entre governo e movimentos sociais por toda a
América Latina. Em outras situações, legislações nacionais obrigam o governo
nacional ou o executor da obra a apresentar um estudo de impacto, inclusive
estabelecendo as chamadas "ações mitigadoras", isto é, aquelas destinadas a
reduzir ou atenuar o impacto causado.
Estimativas de impacto desse tipo são relativamente complexas, sobretudo quando
envolvem dinâmicas relacionadas ao mundo natural. Por exemplo, uma obra
hidroelétrica pode alterar as condições de pesca em um rio a dezenas de
quilômetros abaixo da obra, afetando as condições de vida de uma população
ribeirinha. Assim, esses estudos normalmente envolvem grupos
interdisciplinares, com biólogos, epidemiólogos, geólogos, geógrafos,
profissionais de engenharia e cientistas sociais.
O primeiro desafio analítico diz respeito à definição da área de influência do
projeto. Embora esse procedimento seja, em muitos casos, realizado de modo ad-
hoc, aspectos técnicos diversos ' tais como dados epidemiológicos e informações
relativas à densidade e distribuição da população ' podem contribuir
significativamente para esse tipo de tomada de decisão. Uma vez definida a área
de influência, a análise sociodemográfica envolvida implica uma série de
atividades distintas:
· estimar o tamanho da população atingida, o que significa recorrer a
estimativas populacionais para recortes geográficos não convencionais
(mencionadas anteriormente), facilitadas pelo recurso ao SIG;
· gerar indicadores de modo a avaliar as condições de vida dessa
população, inclusive os aspectos relacionados a saúde e trabalho, no
sentido de garantir, na nova situação (com ou sem remoção), a não-
deterioração das condições de vida;
· estimar os custos das indenizações a serem pagas (em caso de
remoções e desapropriações), bem como assegurar que o projeto de
assentamento dos removidos garanta condições adequadas para essas
populações.
Identificação de populações em situações de "perigo"
Existem, nas áreas urbanas e rurais, vários perigos (hazards) relacionados a
fenômenos naturais, tais como inundações, terremotos, deslizamentos, etc. Há
também problemas sanitários referentes à proximidade do domicílio a locais com
vetores de doenças transmissíveis (cursos d'água, lixões, indústrias poluentes,
etc.). Na verdade, os riscos incorridos pelos diferentes grupos populacionais
dependem não apenas das condições ambientais do local de moradia (topografia,
condições geológicas, ventos, etc.), mas ' principalmente ' do nível de
informação da população em situação de risco e das qualidades construtivas do
domicílio. De modo geral, domicílios improvisados e malconstruídos são muito
mais vulneráveis a riscos desse tipo do que aqueles bem protegidos e
construídos (TORRES, 2000).
Em vista desses elementos, um projeto de identificação de populações em
situação de perigo envolve as seguintes etapas:
· identificação de um fenômeno ambiental "perigoso";
· identificação de áreas com elevada probabilidade de
ocorrência (ou de alta intensidade) de tal fenômeno;
· estimativa da população residente nesses locais.
Novamente, há que se pensar aqui ' como nos itens
anteriores ' na estimativa populacional para áreas com
recortes populacionais não convencionais;
· identificação das características sociodemográficas dessa
população, bem como das características dos domicílios;
· elaboração de um plano de redução de riscos, que pode
envolver, em alguns casos, a remoção de população.
Geração de indicadores de alerta (early warning indicators)
Nas áreas urbanas de crescimento rápido é comum o surgimento de ocupações não
detectadas pelo último censo. Essas áreas implicam significativo desafio para o
planejamento, que muitas vezes sequer consegue registrar oficialmente sua
existência. Por isso mesmo, são menos providas de infra-estrutura básica, bem
como de escolas e postos de saúde (BANERJEE, 1996).
Nessas circunstâncias, os chamados indicadores de alerta (early warning
indicators) propõem-se a advertir o sistema de planejamento a respeito da
ocorrência de expansões urbanas inesperadas. Na verdade, indicadores de alerta
são aqueles constituídos com o objetivo de apontar mudanças bruscas no tamanho
populacional de um dado local no curto prazo (BANERJEE, 1996). Trata-se, por
exemplo, do caso da invasão de áreas urbanas periféricas e/ou de unidades de
conservação, que quando percebidas pelo setor público já se tornaram fatos
consumados.
Para tanto, o analista terá que recorrer às diferentes fontes de dados
secundárias a seu dispor, bem como a outras informações menos convencionais,
como fotografias aéreas e imagens de satélite. Quando possível, dados como os
proporcionados pelo registro civil permitem também produzir evidências a
respeito do tamanho populacional desses locais. Outras fontes de dados, como o
consumo de energia elétrica e de gás, quando disponíveis, também podem ser
utilizadas com essa finalidade.
Nesse contexto, requerem-se as seguintes informações e tratamento do dado
sociodemográfico:
· sobreposição cartográfica (no âmbito de um SIG) de imagens de
satélite ou fotos aéreas com dados sobre distribuição e densidade
demográfica dos setores censitários. Tais procedimentos permitem ao
analista identificar áreas atualmente existentes e não-cobertas pelo
último censo;
· geocodificação de registros civis e/ou de outras fontes de dados,
tais como aquelas relativas ao consumo de energia elétrica e gás;
· produção de estimativas populacionais para essas áreas, a partir
dessas fontes ou de hipóteses relacionadas à densidade demográfica
média das áreas observadas.
A questão da desagregação espacial da informação
A lista de problemas discutida anteriormente aponta claramente para a
necessidade de pensarmos com cuidado a questão da desagregação espacial da
informação em grandes áreas urbanas. Nas cidades de pequeno porte, os gestores
locais têm condições de inspecionar pessoalmente cada escola e posto de saúde,
bem como podem conversar com a população local, tendo capacidade de identificar
facilmente as situações mais problemáticas. No entanto, esta questão torna-se
muito mais complexa nas grandes áreas urbanas, uma vez que tal gestão pode
envolver milhares de escolas, centenas de hospitais e postos de saúde, bem como
uma área urbana em permanente expansão.
Tal fenômeno leva a que, crescentemente, o tratamento da informação para
políticas sociais tenha que assumir um caráter intra-urbano. Em outras
palavras, os dados censitários e demais indicadores municipais,
tradicionalmente produzidos pelas agências estatísticas para fins de
planejamento público, são claramente insuficientes do ponto de vista da gestão
urbana de grandes metrópoles. Nesses locais, os indicadores sociais precisam
ser desagregados territorialmente, por várias razões:
· as significativas desigualdades intra-urbanas, longamente
documentadas na literatura sobre a área urbana na América Latina
(MARQUES e TORRES, 2005; MARTINE, 2001; GUGLER, 1996; MASSEY, 1996;
STEIN, 1992; SCHTEINGART, 1989), implicam a existência de importantes
diferenciais em termos de indicadores, tais como taxa de mortalidade
infantil, taxa de gravidez na adolescência e outros. Isso faz com que
seja particularmente importante dotar o Estado da capacidade de
identificar esses diferenciais, de modo a atuar mais eficientemente
em cada situação encontrada. Infelizmente, a produção de dados e
indicadores na escala intra-urbana está muito pouco desenvolvida,
embora algum avanço recente esteja ocorrendo em função da emergência
dos SIGs;
· a existência de significativos níveis de irregularidade fundiária '
estimados para a América Latina como algo em torno de 30% nas mais
importantes áreas urbanas (LIM, 1995) ' faz com o Estado tenha pouca
informação sobre esses locais. Em muitas administrações municipais, a
principal fonte de dados sobre a evolução e distribuição da população
(e de seus domicílios) corresponde aos chamados cadastros
imobiliários, utilizados para fins de arrecadação fiscal. Como esses
cadastros não registram as áreas de ocupação irregular, muitas vezes
essa população torna-se invisível para as políticas públicas urbanas.
Dados censitários podem minorar esses problemas apenas quando são
disponibilizados em escala bastante desagregada (como setores
censitários) e tratados a partir de SIG, permitindo ao gestor
identificar os locais sub-registrados pelos cadastros imobiliários;
· mesmo áreas que registram taxas de crescimento relativamente
moderadas ou negativas, como o caso das cidades do Rio de Janeiro e
de São Paulo, podem apresentar ' na escala intra-urbana ' dinâmicas
demográficas relativamente "selvagens", com perda populacional nas
áreas centrais e forte crescimento demográfico naquelas periféricas
(MARQUES e TORRES, 2005). E esse tipo de dinâmica urbana pode
constituir um importante desafio para a gestão pública. Mesmo que,
por exemplo, exista teoricamente uma oferta adequada de serviços de
saúde, compatível com o tamanho da população existente, esse tipo de
dinâmica induz a ocorrência de posto de saúde subutilizados nas áreas
centrais e postos superlotados em periferias de forte crescimento
demográfico, pois oferta e demanda não estão necessariamente
ajustadas numa escala intra-urbana.
Outro problema freqüentemente observado nas políticas sociais intra-urbanas diz
respeito a problemas de compatibilidade entre os recortes geográficos relativos
a divisões administrativas propostas por uma dada política (por exemplo, o
distrito sanitário) e os recortes geográficos relevantes do ponto de vista da
identificação da demanda efetivamente existente. Nas políticas sociais intra-
urbanas, os gestores públicos demandam, com freqüência, dados para recortes
geográficos não necessariamente compatíveis com os permitidos pelo Censo
Demográfico e com aqueles utilizados por outras fontes de dados
administrativas: área de influência de escolas; distritos de saúde; unidade de
planejamento policial; conjuntos habitacionais; etc. Embora os SIGs modernos
ofereçam algumas alternativas técnicas para contornar esse tipo de problema,
tais como o algoritmo de Voronoy e as técnicas de overlay, muito pouca
discussão a respeito dessas técnicas e de suas conseqüências analíticas tem
sido feita pela comunidade de produtores de informação. Além disso, poucas
administrações públicas dispõem desses sistemas com qualidade e sofisticação
necessárias e com competência para utilizá-los adequadamente.
Em tese, bases de dados com informações ponto-a-ponto, como o registro civil e
outros cadastros relevantes, podem ser endereçadas automaticamente (address
matching) por meio de SIG, o que permitiria ao analista dispor de informações
adequadas para qualquer recorte geográfico desejado. Infelizmente, além dos
problemas técnicos relativos à qualidade dos dados cadastrais ' quase sempre
problemáticos (TORRES, 2005) ', o endereçamento automático implica a existência
de mapas eletrônicos de ruas com cobertura adequada, incluindo mais
extensamente as áreas mais pobres. Embora o Censo Demográfico de 2000 tenha
avançado substancialmente na produção de cartografias eletrônicas para pequenas
áreas, como setores censitários, o IBGE não produz e atualiza um mapa de ruas
passível de permitir a geocodificação. Quando existente, este tipo de
cartografia é elaborado por empresas privadas, não necessariamente preocupadas
com a cobertura das áreas mais pobres e das ocupações irregulares. Como
conseqüência, o recurso ao endereçamento eletrônico pode acarretar distorções
importantes, sobretudo no que diz respeito ao sub-registro da população
cadastrada nas áreas mais pobres da cidade. Também nesse caso, trata-se de uma
ferramenta poderosa, que demanda usuários treinados e analistas competentes
para lidar adequadamente com o possível sub-registro.
Discussão
A rigor, a informação desagregada espacialmente permite ao analista refletir
sobre um dos mais complexos problemas da gestão urbana: o de onde agir.
Tradicionalmente, essa questão tem sido resolvida pela intermediação de
representantes políticos ou de movimentos sociais. Segundo esse modelo de
administração da demanda, recebem investimentos públicos aquelas áreas (e
grupos) que fazem suas reivindicações serem ouvidas pelo governo local.
Obviamente, esta forma de atendimento da demanda por serviços públicos pode ter
impactos distributivos importantes. Os segmentos populacionais menos informados
e menos organizados têm, em geral, muito menos chances de reivindicarem suas
demandas e fazê-las chegar aos gestores governamentais.
Com informações e indicadores adequados, o gestor tem condições de identificar
a demanda por meios próprios, independentemente de terem sido verbalizadas ou
não, bem como de priorizá-las segundo critérios técnicos. Lidar com o problema
de "onde agir" implica pensar quatro dimensões distintas:
· equipamentos públicos nem sempre estão localizados onde eles são
mais necessários. Por causa dos diferentes ritmos de crescimento
intra-urbano e intra-regional, é possível, por exemplo, identificar
escolas com vagas não preenchidas e locais, no mesmo município, com
crianças sem escola (mesmo quando a taxa de cobertura do município é
próxima de 100%). Isso ocorre em parte porque os equipamentos sociais
são caros, e professores e médicos resistem em trabalhar em locais
pobres e distantes das maiores aglomerações urbanas. Por outro lado,
os custos de transporte são mais elevados para os mais pobres e as
pessoas acabam buscando serviços próximos, mas não necessariamente os
mais adequados. Sistemas de informações desagregadas espacialmente
permitem aos gestores direcionar recursos para áreas efetivamente
necessitadas;
· em extensas regiões metropolitanas, a estrutura etária pode variar
substancialmente nas diferentes localidades da cidade, com populações
mais idosas geralmente residindo em áreas centrais e segmentos
bastante jovens e altas proporções de crianças vivendo nas áreas de
ocupação recente ' muitas vezes localizadas na periferia urbana. Tais
variações têm importantes impactos para as políticas de saúde e
educação ' bem como para políticas e projetos de intervenção urbana
em geral ' e precisam ser identificadas de modo adequado, para que
possam informar tais políticas. Em outras palavras, a distribuição de
serviços e de benefícios sociais precisa ser consistente com a
distribuição da população-alvo das políticas, como idosos e crianças.
O mesmo argumento se aplica à distribuição heterogênea no espaço das
pessoas de baixa renda;
· indicadores sociais negativos são cumulativos territorialmente. É
possível encontrar pessoas vivendo em áreas que apresentem,
simultaneamente, risco ambiental ' como as próximas a lixões ' e
falta de saneamento adequado, equipamentos de educação e serviços
sociais. Muitas vezes essas áreas possuem altas concentrações de
crianças e de mulheres responsáveis pelo domicílio. Este tipo de
circunstância desafia o enfoque tradicional da oferta de serviços
públicos, baseado em diferentes instâncias administrativas que não
necessariamente trocam informações entre si;
· a segregação residencial pode ter impactos relevantes para as
políticas públicas. Segundo a literatura sobre o tema, áreas
segregadas não são apenas aquelas com altas concentrações de pobres.
Técnicas estatísticas, como o "Moran Local", permitem facilmente
identificar as regiões mais claramente segregadas no âmbito de
parâmetro selecionado (renda, escolaridade, etc.). Residir em tais
localidades afeta de diferentes formas as perspectivas de vida desta
população, induzindo diversas distorções: riscos para a saúde, com
impacto sobre a capacidade de trabalho e renda; custo de moradia como
proporção da renda, afetando a renda disponível para o consumo; pior
acesso ao mercado de trabalho; pior performance escolar, mesmo quando
controlada por renda e outras características socioeconômicas. Estes
efeitos também são denominados de "externalidades negativas"
derivadas do tipo de local de moradia (YIENGER, 2001; EASTERLY e
LEVINE, 2001; TORRES, 2004).
Informações desagregadas territorialmente permitem ao analista bem treinado
identificar tanto as áreas com maiores distorções entre oferta e demanda por
serviços como aquelas que apresentam cumulatividade de indicadores sociais
negativos ou que são segregadas em termos residenciais. Evidentemente, tais
informações precisam ser organizadas em um SIG, principalmente em áreas urbanas
de grande porte.
Em síntese, os SIGs permitem realizar uma série de procedimentos relativamente
problemáticos em formatos analógicos, tais como trabalhar com uma escala
geográfica muito detalhada (pontos, setores censitários, etc.). Sistemas desse
tipo também permitem ao analista trabalhar com bases de dados de origens
distintas, numa escala geográfica detalhada, compatibilizando, por exemplo, o
número de alunos numa dada escola com o de crianças nos setores censitários
mais próximos. Finalmente, esses sistemas possibilitam ao analista introduzir
num banco de dados tradicional informação "geográfica" anteriormente não
disponível, tais como a distância média de um determinado setor censitário à
escola mais próxima, o que permite a construção de novos indicadores de acesso
a serviços públicos não disponíveis anteriormente e de grande utilidade
operacional.
Lidar com essas questões coloca uma série de desafios para a demografia
enquanto disciplina. Em primeiro lugar, é importante que esta área de estudo
seja capaz de desenvolver e/ou disseminar métodos demográficos de estimativas
populacionais para regiões intra-urbanas (distritos, etc.) em períodos
intercensitários, que sejam práticos e passíveis de produção de modo compatível
com o timing dos processos de tomada de decisão. Métodos que considerem a
utilização de registros civis, por exemplo, somente têm utilidade nos locais
onde esses registros são desagregáveis em escala intra-urbana. No entanto, a
utilização de ferramentas de SIG com esse fim, como o endereçamento automático
(address matching) do registro civil, encontra barreiras significativas em
função dos mapas de ruas existentes na maior parte das cidades do Brasil.
Nesse sentido, é também preciso, em segundo lugar, estimular as agências
estatísticas nacional e estaduais a produzirem e atualizarem mapas de ruas por
ocasião da realização dos censos nacionais ou outras pesquisas de grande porte.
Embora possa existir cartografia disponível em nível local, essa cartografia é
normalmente do tipo analógico e não cobre todas as áreas habitadas, sendo
particularmente deficientes naquelas invadidas ou de ocupação irregular. No
caso do Censo, essa atividade pode ser realizada de modo paralelo à produção
dos dados digitalizados por setores censitários. Além de sua óbvia utilidade do
ponto de vista da gestão local, mapas de ruas digitalizados adequadamente podem
facilitar sobremaneira a própria realização dos censos.
Em síntese, o desenvolvimento da área de demografia aplicada a políticas
sociais precisa superar diferentes obstáculos pertinentes tanto à tradição
profissional da demografia, quanto à produção de dados adequados para esse fim.
Embora esse campo seja pouco desenvolvido em nosso universo profissional,
milhares de gestores urbanos em todo o país tratam de tomar decisões sobre a
alocação de recursos públicos, localização de equipamentos, montagem de redes
de serviços, etc. Contribuir para a ação desses gestores é provavelmente um dos
principais desafios dessa disciplina nos próximos anos.