Demografia de um povo indígena da Amazônia brasileira: os sateré-mawé
Introdução
No Brasil, os estudos demográficos da população indígena, neste início do
século XXI, têm apresentado crescimento em termos de quantidade e qualidade sem
precedentes na história da pesquisa científica sobre os povos indígenas. Embora
ainda de forma tímida, a crescente diversidade das fontes de informação e sua
melhora qualitativa têm contribuído sobremaneira para o enriquecimento das
pesquisas e dos debates em torno da questão indígena.
Para o conjunto do país, a principal fonte de dados sociodemográficos
espacialmente abrangentes sobre a população indígena é o censo demográfico,
mais especificamente aqueles realizados em 1991 e 2000. Embora criticadas por
especialistas, especialmente devido ao caráter de autodeclaração da origem
(PAGLIARI et al., 2004), as informações geradas nessas fontes permitem traçar
algumas das principais características demográficas e sociais das pessoas que
se declararam indígenas nos dois censos demográficos.
Outras fontes de dados sobre a população indígena, a nível nacional, são
constituídas pelo Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e o
Sistema de Informações sobre a Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
Também no mesmo Ministério encontra-se o Sistema de Informação da Atenção à
Saúde Indígena (Siasi). Embora ainda deficientes,1 esses sistemas oferecem
perspectivas animadoras para o estudo da população indígena do Brasil. Por sua
vez, o Ministério da Educação, por meio do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), introduziu a variável cor/raça
nos censos escolares do Brasil, a partir de 2005.
Algumas instituições, em associação com organizações indígenas, têm realizado
levantamentos censitários esporádicos e localizados, de caráter participativo,
em áreas amazônicas. Por iniciativa da Federação das Organizações Indígenas do
Rio Negro (FOIRN) e de associações filiadas, foi realizado um censo indígena no
Alto Rio Negro, Estado do Amazonas, em 1992 (AZEVEDO, 1994). Já em 2002/2003,
uma parceria entre instituições governamentais, organizações indígenas e
agências das Nações Unidas permitiu a realização de outro levantamento
censitário, desta vez junto ao povo sateré-mawé, também no Estado do Amazonas
(TEIXEIRA, 2005). Uma terceira investigação de campo foi realizada na cidade de
São Gabriel da Cachoeira (AM), em 2004, pelo Instituto Socioambiental e pela
FOIRN, em parceria com as associações de bairro da cidade (AZEVEDO, 2006).
O presente estudo aborda o segundo levantamento citado anteriormente, que foi
idealizado e coordenado por seus autores. IntituladoDiagnóstico sócio-
demográfico participativo da população sateré-mawé, a pesquisa cobriu a
população sateré-mawé residente nas cidades de Maués, Parintins, Barreirinha e
Nova Olinda do Norte e nas terras indígenas do Andirá-Marau e Koatá-Laranjal,
no Estado do Amazonas, entre novembro de 2002 e outubro de 2003. No total,
foram levantados 8.500 residentes autodeclarados sateré-mawé, correspondendo a
um total de 1.759 domicílios, dos quais 228 nas áreas urbanas (com 998
moradores) e 1.531 nas terras indígenas (com 7.502 moradores).
Informações sobre a área de estudo
Nos cerca de 790 mil hectares da Terra Indígena Andirá-Marau, situada na bacia
dos Rios Andirá e Marau, existem 91 comunidades (aldeias e sítios). Essas
aldeias compõem as
áreas
2 indígenas dos Rios Andirá (49 comunidades), Marau (37 comunidades) e
Uaicurapá (quatro comunidades). Na Terra Indígena Koatá-Laranjal, pertencente
ao povo munduruku, existe outra aldeia sateré-mawé.
Das quatro cidades onde foi realizado o levantamento sociodemográfico, três
(Barreirinha, Maués e Parintins) são sedes dos municípios onde se situam os
Rios Andirá, Marau e Uaicurapá. A outra cidade, Nova Olinda do Norte, sede do
município de mesmo nome, fica próxima de Vila Batista II, aldeia situada na
Terra Indígena Koatá-Laranjal, município de Borba.3
A ampla maioria (88%) da população sateré-mawé recenseada reside nas duas
terras indígenas citadas (Andirá-Marau e Koatá-Laranjal). A população é mais
numerosa nas bacias dos Rios Andirá e Marau. Os Rios Uaicurapá e Mari-Mari (no
Koatá-Laranjal) concentram número reduzido de aldeias e de habitantes e são
destinos de fluxos migratórios relativamente recentes originários das aldeias
do Andirá (décadas de 1980, no Koatá-Laranjal, e de 1990, no Uaicurapá).
Apesar de o maior número de sateré-mawé residir em aldeias, não podem ser
desconsiderados os que moram nas cidades próximas, cuja quantidade sugere a
existência de um processo migratório significativo com destino à área urbana.
Entre as quatro cidades, merecem destaque os residentes em Parintins, que
constituem mais da metade do total da etnia naquelas áreas urbanas.
Composição por sexo e idade
Distribuição etária da população
A estrutura etária dos sateré-mawé é variável conforme o quadro domiciliar
considerado, exceto para idades a partir de 65 anos, as quais têm o mesmo peso
relativo tanto em território indígena como nas cidades próximas.
Os residentes em áreas indígenas apresentam estrutura etária típica de povos em
processo de recuperação populacional, caracterizando-se por níveis de
natalidade elevados e de mortalidade em declínio. Como reflexo da alta
natalidade em áreas indígenas sateré-mawé, mais da metade dessa população tem
idade inferior a 15 anos (Tabela_2). Tal proporção não é estranha à Região
Amazônica, para a qual diversos estudos indicam a "juventude" de uma quantidade
expressiva de povos indígenas, que retomaram altos níveis de fecundidade,
encontrando-se também em processo de recuperação populacional (FLOWERS, 1994;
SOUZA; SANTOS, 2001; PAGLIARO, 2002; PAGLIARO et al., 2001; 2003).
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Nas cidades pesquisadas, a composição etária dos sateré-mawé estaria refletindo
o efeito de níveis de fecundidade e de natalidade menores do que os observados
nas terras indígenas, muito embora os altos valores da natalidade ainda
persistentes nas cidades (32,1 óbitos por mil nascidos vivos) sejam bem mais
elevados do que os do Brasil urbano (21,1 por mil nascidos vivos). Existe
também um expressivo componente migratório na distribuição etária da população
das cidades estudadas, o qual ocorre em todas as idades, especialmente nos
segmentos de adultos e idosos. Com efeito, entre os moradores com 30 anos e
mais de idade, 95% são migrantes.
Devido à elevada fecundidade existente entre os sateré-mawé, crianças e
adolescentes são maioria absoluta nas terras indígenas (52,6% do total) e
correspondem a 45% da população indígena das cidades. É interessante notar que
o forte peso do número de crianças e adolescentes em território indígena
reflete o que se observa no rural específico4 do Brasil e, em particular, na
população indígena residente na zona rural do Estado do Amazonas.
Os sateré-mawé com 65 anos ou mais de idade respondem por 4,2% da população
total, tanto nas cidades quanto nas terras indígenas. Esta proporção é
equivalente à do total de indígenas nesta faixa etária residentes em áreas
rurais ou no rural específico do Brasil, mas é inferior àquela referente à
população urbana indígena do país, em que os idosos representam cerca de 7%.
Observando-se a pirâmide etária dos sateré-mawé residentes em áreas indígenas
(Gráfico_1), percebe-se que, a partir dos 40 anos, a pirâmide se afunila para
apresentar, em seguida, um "excesso" de população (aproximadamente dos 55 aos
65 anos para as mulheres e dos 60 a 69 anos para os homens). Uma primeira
hipótese de explicação para o fenômeno poderia referir-se a problemas na
declaração de idade, por desconhecimento do ano do próprio nascimento. Embora
seja corrente entre as populações idosas em zona rural, a hipótese parece
improvável neste caso dos sateré-mawé, já que a irregularidade localiza-se em
grupos etários específicos e já se manifestara três anos antes, no Censo
Demográfico de 2000.5 Ademais, tal comportamento não é generalizado no Estado
do Amazonas, apesar de ser observado em outras terras indígenas amazonenses.
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Outra hipótese de explicação para as irregularidades nas faixas etárias
superiores poderia estar relacionada com algum evento demográfico dos últimos
60 anos que tivesse levado a essa "desestruturação" da composição etária dos
sateré-mawé. Faltam, todavia, informações e registros que possam ser utilizados
para confirmar uma situação como essa.
Resta levar em consideração o pressuposto de que os entrevistados tenham
deliberadamente declarado a idade errada. Caso tenha ocorrido, esse fato
poderia estar relacionado à necessidade que teriam as pessoas de se mostrar
legalmente aptas a adquirir o status de aposentadas antes de completar a idade
referida em lei.6 Tal situação parece estar se verificando, em escala menor, em
algumas áreas específicas do Estado do Amazonas e da Região Norte. Com uma
proporção de aposentados próxima à dos sateré-mawé, os povos indígenas do Alto
Solimões (AM) também apresentam essa "irregularidade" da distribuição etária
nas idades avançadas, embora menos acentuada.
Nas áreas urbanas, percebe-se uma relativa redução dos efetivos do primeiro
grupo etário (Gráfico_2). Entre as hipóteses de explicação para o fato, podem
ser citadas a natalidade decrescente e a não-declaração das crianças pelos pais
(no caso dos menores de dez anos, principalmente). A ocorrência de
subdeclaração de crianças parece constituir, aliás, um fenômeno corrente nas
populações indígenas brasileiras residentes em áreas urbanas (IBGE, 2005,
p.45).7 No caso dos sateré-mawé, essa característica afeta preferencialmente os
meninos, já que eles são minoria (139, contra 168 meninas) nos dois primeiros
grupos etários nas cidades em estudo. Dada a falta de uma explicação plausível
para a situação, não se pode descartar a ocorrência de flutuações aleatórias
nos dados.
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Repartição por sexo
No total (terras indígenas mais área urbana), a população masculina sateré-mawé
é superior à feminina (Tabela_3). No entanto, considerando-se a situação de
domicílio, verifica-se que há mais mulheres do que homens nas cidades e mais
homens do que mulheres nas terras indígenas, o que reproduziria padrão de
distribuição urbano-rural do país. A razão de sexo em área indígena é de 103,3
homens para cada 100 mulheres, bastante superior ao que se verifica nas cidades
(91 homens para 100 mulheres). Tais valores poderiam estar indicando uma
migração feminina para as cidades superior à masculina.
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Na área indígena não parece haver diferença numérica significativa entre homens
e mulheres até aproximadamente 30 anos de idade. A partir daí, a participação
masculina passa a ser superior até os 80 anos de idade, com exceção do grupo
etário 55-59 anos e início do grupo 60-64 anos, em que as mulheres são
amplamente superiores. Assim, aparentemente, a longevidade das mulheres sateré-
mawé vai aparecer apenas em idades muito avançadas.
Já nas cidades, a superioridade numérica das mulheres a partir de 25 anos de
idade, que se pode notar no Gráfico_2, está relacionada à maior migração
diferencial das mulheres, nessas idades, com destino às cidades, o que
explicaria a menor população feminina, nas idades correspondentes, em
território indígena. Na área indígena, os homens são maioria nas idades idosas
(70 anos e mais), o que não deveria ocorrer devido à sobremortalidade
masculina, a não ser que as mulheres tenham migrado mais do que os homens
também em tempos pretéritos. Nas áreas urbanas, a quantidade de mulheres nas
idades mencionadas é superior à dos homens e quase todas são migrantes, mas,
nesse caso, a explicação poderia estar mais na mortalidade diferencial do que
na maior migração feminina.
Fecundidade e reprodução
Para o total dos sateré-mawé, a taxa bruta de natalidade foi estimada em 48,6
nascidos vivos por mil habitantes (Tabela_4). Os residentes no território
indígena apresentavam maior nível de natalidade do que os das cidades. Apesar
de haver efeito dos pequenos números na estimativa das zonas urbanas (apenas 28
nascimentos informados), o que aumenta a imprecisão do resultado, deve ser
levada em conta a expressiva diferença, de 18,6 nascimentos por mil habitantes,
entre a natalidade na área indígena e na cidade.
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Quando consideradas as localidades que compõem as áreas indígenas, constata-se
que também ali existem diferenças nos níveis de natalidade, embora menos
significativas do que aquelas observadas entre o território indígena e as
cidades vizinhas. Marau apresentou 53,5 nascimentos por mil habitantes,
enquanto Andirá contou com 46,9. Esses indicadores sugerem que talvez haja
comportamentos reprodutivos diversos, apesar de essas áreas apresentarem
grandes semelhanças quanto às características sociais, econômicas e culturais.
Em consonância com a alta natalidade, são especialmente elevados os níveis de
fecundidade dos sateré-mawé, que atingem taxas em torno de oito filhos por
mulher. Esses resultados são tão expressivos que superam até a elevada média de
6,2 filhos das mulheres indígenas residentes nas áreas rurais dos municípios
brasileiros onde existem terras indígenas. Porém, aproximam-se de
comportamentos reprodutivos adotados por outras sociedades indígenas do país,
como os kaiabi (PAGLIARO, 2002), xavante (SOUZA; SANTOS, 2001), waurrá-xingu
(PAGLIARO et al., 2001), entre outros.
Da mesma forma como ocorre para a natalidade, constata-se que os níveis de
fecundidade variam bastante entre terras indígenas e áreas urbanas e que entre
o Andirá e o Marau a variação é pequena. Assim, se as áreas urbanas e as
terras indígenas apresentam formas distintas de realizar o potencial
reprodutivo das mulheres sateré-mawé, parece que entre as duas maiores subáreas
também existem essas diferenças.
A diferença de fecundidade entre as terras indígenas e a área urbana é de três
filhos por mulher. Apesar disso, a fecundidade das mulheres sateré-mawé
residentes na zona urbana apresenta-se ainda em patamares elevados (5,1 filhos
por mulher), sendo acompanhada por aquela das moradoras urbanas não-indígenas
(4,3 filhos por mulher), o que não chega a surpreender, dada a mesma origem
rural (e a mesma recente imigração) da maioria das moradoras das cidades em
foco.
Por outro lado, se confrontados com o nível de fecundidade das áreas indígenas,
esses dois valores urbanos da fecundidade estariam a indicar uma forte
influência da cultura urbana sobre o comportamento reprodutivo das mulheres
indígenas habitantes da cidade, não obstante o tempo médio relativamente
reduzido em que aí residem (como se verá no item referente às migrações).
Nas áreas indígenas, a idade média à fecundidade das mulheres sateré-mawé é de
29,1 anos.8 Elas começam a ter filhos cedo e continuam a tê-los por muito
tempo, muitas delas até idades próximas de 50 anos. A área do Rio Andirá, cuja
fecundidade é inferior àquela verificada na região do Rio Marau, apresenta
maior idade média à fecundidade.
É significativa a gravidez em idades precoces nas terras indígenas, onde foram
encontradas mães com idade inferior a 15 anos. Tal situação é relativamente
comum em outras sociedades indígenas, como, por exemplo, os kaiabi e os xavante
(SOUZA; SANTOS, 2001; PAGLIARO, 2002).
Já na área urbana, a idade média à fecundidade das mulheres sateré-mawé (31,4
anos) é superior à das terras indígenas. O fenômeno repete-se quando se
comparam as áreas urbanas e indígenas do Brasil, e está relacionado aos
diferenciais de fecundidade entre esses dois contextos geográficos.
Migração9
No Levantamento sócio-demográfico participativo, considerou-se migrante a
pessoa com dez anos ou mais de idade que tenha feito algum deslocamento
espacial (aldeia x aldeia, aldeia x cidade ou vice-versa) e fixado moradia no
local onde se encontrava residindo no momento da coleta de campo, qualquer que
tenha sido o período em que este deslocamento se realizou. Desta forma, é
possível identificar as mudanças ocorridas dentro das áreas indígenas ou entre
as áreas indígenas e as cidades.10
Os sateré-mawé apresentam expressiva mobilidade espacial, tanto no interior das
terras indígenas como em direção às cidades situadas nas proximidades, às áreas
rurais próximas ou a cidades mais distantes (neste último caso está Manaus,
capital do Amazonas). Com efeito, 56,5% de todos os moradores entrevistados já
fizeram algum movimento migratório. Nas áreas urbanas, a proporção de migrantes
entre os sateré-mawé eleva-se para 87%, aqui incluídos os que nasceram na
cidade e passaram algum tempo morando em outro local (2,9%). Nas terras
indígenas também se verificam movimentos migratórios importantes entre as
comunidades, os quais envolvem a metade da população (50,2%). Esses movimentos
parecem mais intensos no Marau (56,5% de migrantes) do que no Andirá (42,4%).
Fluxos migratórios no interior das terras indígenas
As mudanças de residência nas áreas indígenas constituem fenômeno frequente e
ocorrem de uma aldeia para outra dentro da mesma área (Marau, por exemplo),
entre áreas diferentes da mesma terra indígena (do Andirá para o Marau, do
Marau para o Uaicurapá ou outro fluxo) ou, ainda, entre terras indígenas
(Andirá-Marau para Koatá-Laranjal ou vice-versa). Todavia, suas características
podem variar segundo a área indígena considerada ou de acordo com o tempo
histórico em que esses movimentos se dão, tendo, como determinações, fatores
sociais, culturais e econômicos diversos.
De acordo com os dados levantados e depoimentos colhidos nas comunidades
sateré-mawé, as migrações no interior da Terra Indígena Andirá-Marau ocorrem há
muito tempo e continuavam a ocorrer quando foi realizado o Diagnóstico sócio-
demográfico. Cerca de 60% do total de migrantes fizeram sua migração dez anos
ou mais antes do levantamento realizado. Os outros 39% realizaram seu último
movimento migratório há menos de dez anos, indicando que a migração é intensa
nos tempos atuais.
O Gráfico_3 mostra o contingente de migrantes que fizeram seu último movimento
dentro das áreas indígenas, segundo o tempo de migração. Sua observação sugere
que os fluxos migratórios recentes são compostos por população jovem e adulta-
jovem e confirma o caráter antigo da migração dentro das terras indígenas, já
que existem contingentes importantes de migrantes em todas as faixas etárias,
inclusive de idosos. Ressalte-se ainda que a quantidade significativa de
migrantes com idade inferior a 25 anos naqueles fluxos migratórios ocorridos há
dez anos ou mais (portanto, com menos de 15 anos de idade quando migraram) pode
estar indicando um componente familiar importante nesses deslocamentos (Gráfico
3).
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Se não for levado em conta o tempo de residência, os homens são maioria entre
os migrantes da área indígena, embora em pequena escala. Porém, quando se
considera a idade dos migrantes, fica mais clara a dimensão de gênero nos
deslocamentos dos sateré-mawé. Com efeito, nas migrações mais antigas, as
mulheres eram minoritárias em praticamente todas as faixas etárias. Já nos dez
anos que antecederam a pesquisa, a quantidade de homens e mulheres praticamente
se equiparou, sendo as mulheres numericamente superiores até aproximadamente os
30 anos de idade, para, depois, tornarem-se minoria.
Razões diversificadas levam o sateré-mawé a migrar de uma comunidade para
outra, situada ou não numa mesma área indígena. Excetuando-se o acompanhamento
de familiares (48,3% dos casos), os motivos mais comuns associados a esses
fluxos migratórios "internos" são a constituição de família (28,9%), os
conflitos na comunidade (6,0%), a transferência/procura de trabalho (4,8% dos
casos) e a educação dos filhos (3,2%) (Tabela_5).
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Os que declararam ter mudado de aldeia para constituir família são aqueles que
passaram a viver na comunidade de residência do cônjuge após o casamento. Esse
contingente é constituído, em sua maioria, por mulheres.11 Na área do Marau
convém observar que, se as mulheres com menos de 50 anos de idade, que migraram
em período mais recente e por motivo de casamento, correspondem a quase o dobro
dos homens nas mesmas condições, essa vantagem é reduzida quanto se trata de
mulheres mais velhas e com migração mais antiga.
Os deslocamentos por motivo de trabalho tornaram-se mais frequentes nos últimos
anos, devido ao assalariamento crescente nas áreas indígenas, relacionado
principalmente à criação e expansão de serviços de educação e saúde nas
comunidades. Os professores indígenas são os que mais se deslocam por motivo
profissional, especialmente ao assumir o cargo ou ao substituir um colega em
outra comunidade. De fato, 90 dos 142 professores (63,4%) não nasceram nas
aldeias em que residiam na época da entrevista, sendo a maioria deles
constituída de migrantes recentes, com menos de dez anos naquelas comunidades.
Metade destes últimos declarou a transferência de trabalho como causa da
migração. Para aqueles de migração mais antiga, menos de 10% declararam razões
de trabalho para a sua mudança de comunidade.
A mudança de comunidade por motivo de trabalho não ocorre para os agentes
indígenas de saúde (AIS), que formam, juntamente com os professores indígenas,
os dois mais importantes grupos profissionais nas áreas indígenas estudadas. A
maioria dos 69 agentes de saúde em atividade é constituída por migrantes
antigos, que se deslocaram por motivos pouco relacionados com a transferência
ou a procura de emprego. Na realidade, o trabalho dos AIS, contrariamente ao
dos professores indígenas, costuma ser desenvolvido junto à própria comunidade
onde ele já residia.12
Merece destaque a mudança de aldeia por motivo de conflitos na comunidade.
Entre os sateré-mawé, algumas comunidades foram criadas a partir da ocorrência
desses desentendimentos nas aldeias de origem. Um desses conflitos, ocorrido na
Terra Indígena Andirá-Marau, merece ser lembrado por suas consequências. Os
fatos deram-se na comunidade de Araticum Novo, no Andirá, no fim dos anos 1970,
e fizeram com que várias famílias (cerca de 40 pessoas) acabassem por se fixar
em terras do povo munduruku, no Koatá-Laranjal, ali fundando uma aldeia sateré-
mawé (BATISTA, 2001). Posteriormente (por volta de 1990), por desentendimentos
internos, uma parte dos migrantes e suas famílias regressaram ao Andirá-Marau,
fundando outra comunidade (Vila Batista I) às margens do Uaicurapá, a alguns
quilômetros de distância de sua aldeia original, o Araticum Novo.
Embora com pequena redução, deslocamentos a partir das áreas antigas continuam
no presente: dos migrantes recentes, 26,5% saíram das áreas antigas para as
novas, proporção essa ainda bastante superior ao peso numérico das áreas
antigas no total da população (18,2%).
As informações levantadas sugerem que, anteriormente, muitas famílias
deslocavam-se para áreas mais favorecidas em busca de oportunidades de educação
para as crianças ou de serviços de saúde pública, geralmente concentrados em
alguns locais da área indígena. Tais deslocamentos, de modo geral, eram feitos
da cabeceira dos rios ' áreas do povoamento original ' para locais mais
próximos à foz, isto é, próximos às cidades vizinhas. Uma das causas desse tipo
de deslocamento seria, provavelmente, a oportunidade de residir em aldeias mais
favorecidas por alguns dos serviços públicos essenciais e por local de
comercialização dos produtos agrícolas e de coleta e de compra de suprimentos
para a família. Na opinião de Lorenz (1992), a proliferação de aldeias situadas
nas margens dos Rios Marau e Andirá, desde as primeiras décadas do século XX,
deve-se à interferência de diferentes instituições na vida tradicional dos
sateré-mawé, como as missões religiosas, o extinto SPI (atual Funai), os
regatões, além das epidemias.
Os moradores que indicaram a procura de melhores condições de educação como
motivo para migrar de uma aldeia para outra se diferenciam segundo a época em
que mudaram de residência. A migração com este tipo de motivação tornou-se mais
intensa nos dez anos anteriores à pesquisa. Não se dispõe de informações sobre
a cobertura e a qualidade do ensino nas áreas indígenas nas décadas anteriores
à realização do Diagnóstico sócio-demográfico, mas certamente as dificuldades
de acesso físico à escola deviam ser enormes, o que justificaria a migração de
famílias para aldeias onde ela existia. Tais dificuldades existiam
provavelmente tanto no Andirá como no Marau, já que os deslocamentos motivados
pela busca de condições melhores de educação referem-se a proporções idênticas
de migrantes nessas duas áreas indígenas.
Não são muitos os que migraram à procura de melhores condições de saúde,
estando mais presentes no Marau do que no Andirá, de forma geral. Em anos mais
próximos à época da pesquisa, porém, as duas áreas se equiparam e apresentam
pouquíssimos migrantes que mudaram por esse motivo, o que estaria a indicar a
tendência ao desaparecimento dessa causa da migração nas duas áreas.
Provavelmente, uma das principais razões do arrefecimento migratório por motivo
relacionado à saúde do migrante ou de um familiar seu esteja na expansão dos
serviços públicos em toda a Terra Indígena Andirá-Marau, nos últimos anos, por
meio, individualmente, da presença do agente indígena de saúde e da razoável
mobilidade das equipes de saúde no interior do território indígena.
Migração para as cidades próximas
Sob um ângulo econômico e social, o processo de migração da terra indígena para
a cidade não se difere muito, quanto a seus determinantes, daquele vivido pelos
ribeirinhos não-indígenas. Procurando sobreviver num mundo em que se esgotam as
fontes naturais de subsistência, especialmente a pesca e a caça, percebendo a
falta de solução para seus problemas alimentares e carentes de bons serviços de
atendimento à saúde e de educação formal para os filhos, tudo isso num ambiente
de crescente monetarização e de influência cotidiana da vida e da cultura
urbanas, os moradores das terras indígenas veem desenvolver-se a perspectiva de
viver na cidade.
Entre os indígenas, é forte a relação com os "parentes" urbanos, e as visitas
mútuas acontecem com frequência. Os filhos que vão estudar nas cidades próximas
mantêm um vínculo permanente e intenso com suas famílias residentes nas terras
indígenas, embora muitos acabem por não regressar após o término dos estudos.
Todavia, para todos eles, a terra que deixam continua sendo sua, e o retorno
mantém-se sempre como possibilidade.
Dos 678 moradores urbanos sateré-mawé com dez anos e mais de idade
entrevistados, 570 não nasceram nas cidades em que estavam vivendo e, entre
esses, 78,5% nasceram em território indígena (Andirá-Marau e Koatá-Laranjal).
Parcela significativa dos migrantes residentes nas cidades (12,6%) nasceu em
áreas rurais próximas às terras indígenas, no interior dos municípios
investigados.
Idade, sexo e motivo da migração
Uma expressiva quantidade de migrantes das cidades investigadas é composta de
adolescentes e jovens. Entre os migrantes, 56,2% têm menos de 25 anos. Todavia,
como se pode ver no Gráfico_4, apesar da redução do número de migrantes a
partir dos 25 anos, é muito elevada a quantidade daqueles em idades superiores,
inclusive de idosos. Dos 231 moradores urbanos com 30 anos ou mais de idade,
220 (95%) não são naturais das cidades de residência, como já foi visto. A
proporção sobe para 97% quando se trata de moradores com 50 anos e mais.
[/img/revistas/rbepop/v28n2/a11graf04.jpg]
As mulheres sateré-mawé migram mais para as cidades do que os homens, mas sua
superioridade numérica não se verifica em todos os grupos etários. Os homens
são majoritários nas idades inferiores a 25 anos, a partir do que as mulheres
passam a superá-los em número. A forma da pirâmide etária (Gráfico_4) permite
afirmar que a relevância do número de adultos e idosos entre os migrantes deve-
se ao caráter preponderantemente feminino da migração nessas idades. A
emigração de população feminina de áreas rurais para centros urbanos é um
padrão bastante conhecido em estudos populacionais, especialmente a distâncias
consideradas pequenas, como a observada entre as comunidades indígenas
estudadas e as cidades circunvizinhas. No entanto, essa modalidade migratória
apresenta algumas especificidades quanto às suas motivações, no caso dos
sateré-mawé.
Coerentemente com a reduzida idade da maioria dos imigrantes residentes nas
cidades, a principal motivação citada para a migração com destino urbano seria
a procura de melhores condições de educação. Este motivo refere-se, certamente,
à busca de estabelecimentos educacionais para os adolescentes continuarem os
estudos iniciados na terra indígena, que não vão além da quarta série do ensino
fundamental. A segunda razão em relevância para a migração relaciona-se às
atividades de trabalho (transferência e procura de emprego), tendo sido alegado
por 10% dos moradores entrevistados.
Até os 25 anos de idade, os homens são maioria entre os que migraram à procura
de melhores condições de ensino, embora um número expressivo (63) de mulheres
jovens também tenha declarado o mesmo motivo para migrar. Não parece existir, a
priori, uma explicação satisfatória para esse comportamento diferenciado em
relação à migração. É provável que, na concepção da família, o rapaz tenha mais
condições do que a jovem de se adaptar a um ambiente desconhecido e adverso, em
muitos sentidos. Talvez, justamente por não terem a oportunidade de se mudar
para a cidade quando jovens, muitas mulheres o fazem mais tarde ' e o fazem
mais do que os homens ', mas já não tanto em busca de uma escola para continuar
os estudos, e sim, em vários casos, à procura de uma ocupação pela qual possam
sobreviver.
Conforme indicam os dados levantados, a migração por motivo de trabalho seria
diferenciada segundo o sexo do migrante, com maioria feminina (18 mulheres e
sete homens). Não há nenhum homem entre os moradores com menos de 25 anos de
idade que emigraram para as cidades à procura de trabalho.
Embora não constitua regra geral, as mulheres indígenas migrantes, até a época
da realização da pesquisa, ainda tinham pouco acesso às atividades do trabalho
formal, haja vista sua reduzida migração motivada por transferência de
trabalho.
Tempo de residência nas cidades
O principal destino dos sateré-mawé que deixam a área do Andirá para residir na
área urbana corresponde às cidades de Parintins e Barreirinha, as mais próximas
daquela área indígena. Maués, por sua vez, constitui a referência principal
dos sateré-mawé do Rio Marau para a migração com destino urbano.
É recente a migração em direção às cidades próximas das terras indígenas. Em
2002/2003, dois terços dos imigrantes dessas cidades tinham menos de dez anos
de residência e, entre estes últimos, outros dois terços haviam fixado
residência menos de cinco anos antes daquele período. A julgar pelos dados
disponíveis, o grosso da migração dirigia-se, no início, para Barreirinha e
Parintins, mas, com o tempo, Maués foi ganhando importância. A participação dos
imigrantes dessa cidade no total da migração com destino urbano aumenta de
8,4%, entre os mais antigos (dez anos ou mais de residência), para 29%, entre
os mais recentes. Quase 90% do total de imigrantes de Maués chegaram à cidade
nos últimos dez anos, o que a situa como a de migração mais recente entre as
quatro cidades estudadas.
Além de mostrar uma perda aparentemente crescente de população da área do
Marau, em benefício da cidade de Maués, os dados disponíveis mostram um volume
migratório ainda maior com destino a Parintins e Barreirinha, com origem na
área do Rio Andirá, o que aponta para uma situação de esvaziamento gradativo
daquela área. Ressalte-se que essa situação não se deve unicamente à migração
para cidades próximas. Mesmo apresentando saldo migratório positivo em relação
ao Marau, o Andirá é origem das migrações intensas que determinaram o
povoamento das aldeias do Rio Uaicurapá e do Koatá-Laranjal, sem contar os
significativos fluxos migratórios com destino a Manaus, capital estadual do
Amazonas. Excluindo-se Manaus, as cidades e as áreas indígenas sateré-mawé
"receberam" 556 migrantes provenientes da área do Andirá, contra apenas 291 do
Marau. Somente da aldeia de Ponta Alegre, no Andirá, saíram 69 dos 160
migrantes de Barreirinha e 168 dos 296 de Parintins. Esses dois valores,
somados, perfaziam 60% dos 397 moradores daquela comunidade em 2002/2003.
Mortalidade infantil
A rigor, os níveis de mortalidade indígena no Brasil não são bem conhecidos. As
principais fontes de dados para calculá-los dependem da disponibilidade e da
qualidade das informações específicas do Sistema de Informações sobre a
Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc),
ambos do Ministério da Saúde (CARDOSO et al., 2005). Também pertencente ao
Ministério da Saúde, o Sistema de Informações de Atenção à Saúde Indígena
(Siasi) apresenta limitações de diferentes ordens, que vão desde a concepção do
formulário de pesquisa até a sua divulgação junto ao público, passando pelas
dificuldades de levantamento de campo (SOUSA et al.,2007). Devido a essa
situação, como ocorre em relação a populações para as quais não há informações
completas ou confiáveis, costuma-se recorrer a técnicas indiretas de estimação
dos níveis de mortalidade (BRASS; COALE, 1968).
Embora ofereçam estimativas aceitáveis de indicadores de mortalidade para o
conjunto da população (indígenas e não-indígenas), os resultados obtidos com a
utilização de técnicas indiretas13 têm gerado, para a população indígena,
níveis de mortalidade de qualidade duvidosa, com tendência à subestimação, em
especial no que se refere à mortalidade infanto-juvenil.14
A mortalidade infantil estimada com dados do Diagnóstico sócio-demográficode
2002/2003 é de 70,3 óbitos por mil nascidos vivos. Diante do caráter
específico e localizado desse levantamento, do maior tempo disponível para sua
realização e do fato de os entrevistadores terem sido os professores indígenas
(TEIXEIRA, 2005), bem como tendo-se em conta problemas existentes com a
utilização de dados censitários na estimação da mortalidade infantil, é
razoável considerar que os resultados do Diagnóstico sócio-demográfico se
aproximam mais do nível de mortalidade infantil dos sateré-mawé do que as
informações censitárias.
Entre os fatores que explicariam o nível elevado da mortalidade infantil dos
sateré-mawé, poderia estar a precariedade da situação nutricional na área
indígena. Segundo relatos de alguns chefes de domicílio nas comunidades, o povo
sateré-mawé residente nas áreas indígenas do Andirá-Marau vem sofrendo
consideravelmente com a escassez de peixes em sua dieta elementar. Essa
carência de sua principal fonte tradicional de proteínas poderia obviamente ser
suprida pela compra do peixe em outros locais, o que seu poder aquisitivo não
permite. A substituição por outros alimentos, como a carne bovina, suína ou
outra, também não encontra respaldo na capacidade de compra dos sateré-mawé.
A redução de peixe na dieta da população sateré-mawé, sem um substituto com
mesmo valor proteico, certamente tenderá a prejudicar o estado nutricional das
mães, o que influirá na saúde dos filhos desde a concepção, levando
provavelmente a uma redução de seu peso ao nascimento, podendo continuar a
afetar sua saúde posteriormente, caso sejam alimentados com leite pobre em
proteínas nos primeiros meses de vida. Evidentemente, para essa criança, o
risco de morrer é sempre maior do que o de outra bem nutrida.
Como um dos fatores que levam à cura da doença, ou à morte provocada por ela, a
atividade das instituições encarregadas de zelar pela saúde dos povos indígenas
merece enfoque particular, já que de seu funcionamento e organização dependerão
a qualidade dos serviços que oferecem e, por extensão, a situação de saúde da
população a que elas atendem.
Objetivamente, o atendimento à saúde nas áreas indígenas habitadas pelos
sateré-mawé não era de boa qualidade na ocasião em que foi realizado o
levantamento de campo do Diagnóstico sócio-demográfico. Partindo da ótica do
usuário, a pesquisa procurou verificar vários aspectos desse atendimento, tendo
seu relatório apontado a existência de deficiências generalizadas no serviço
realizado, em especial nos que se referiam à saúde reprodutiva, cujo
atendimento pela instituição encarregada do Distrito Sanitário deixava a
desejar (TEIXEIRA, 2005).
Seja pela ausência de profissionais capacitados, seja pela estruturação
deficiente do trabalho na área indígena, a organização dos serviços, de modo
geral, é fortemente apoiada no trabalho do agente indígena de saúde (AIS), o
qual tem pouca capacidade resolutiva dos agravos.
A situação mostra-se especialmente inquietante quando se examina a cobertura
dos serviços de saúde para a mulher indígena grávida. Entre as mulheres sateré-
mawé que haviam engravidado no ano anterior à pesquisa, menos de 40% declararam
ter procurado o serviço de saúde. No entanto, o que chama a atenção é a
precariedade de atendimento à mulher grávida no que se refere aos procedimentos
que devem ser adotados no acompanhamento da gravidez.
De fato, apenas nove mulheres, entre as 141 que foram atendidas pelo serviço,
fizeram a quantidade de consultas recomendada (quatro ou mais). A realização de
exames de pré-natal pelas mulheres que procuraram o serviço é também muito
abaixo do esperado. O exame realizado em maior quantidade (urina) foi feito por
75% das mulheres atendidas, quando o recomendável é 100%. Para o restante dos
exames de pré-natal (sangue, pressão arterial, peso), a cobertura é ainda
menor.
As mulheres grávidas atendidas pelo serviço de saúde foram vacinadas em sua
quase totalidade. No entanto, das 130 grávidas vacinadas, apenas 23 receberam o
número de doses preconizadas pelas orientações correntes de atenção à gravidez.
Se for considerado o número total de mulheres que ficaram grávidas no ano, a
cobertura vacinal cai para 5,8%. Cumpre ressaltar que a cobertura na área
urbana, muito embora ainda insuficiente, é de 40%.
Assim, não chega a surpreender a persistência de elevados níveis de mortalidade
infantil entre os sateré-mawé. De um lado, a má cobertura e a ineficiência na
assistência pré-natal e ao recém-nascido irão influir nas taxas de mortalidade
perinatal e, de outro, a elaboração de diagnósticos e a prescrição de
medicamentos por pessoas mal treinadas podem conduzir a erros na detecção e
cura de doenças como as infecciosas, as parasitárias e as pulmonares, que
correspondem a 80% de todos os óbitos de menores de um ano do Estado do
Amazonas (DATASUS, 2003/2005) e, certamente, também dos sateré-mawé.
Como um dos determinantes socioeconômicos na mortalidade infantil, o saneamento
básico deficiente contribui para os níveis elevados das doenças infecciosas e
parasitárias, especialmente das diarreicas. Nas terras dos sateré-mawé, as
condições do abastecimento de água e do destino dos dejetos humanos não
contribuem para assegurar um padrão desejável de saúde para a população. Ao
contrário, a água utilizada para o consumo das famílias tem como fontes, em
quase 90% dos casos, os rios e igarapés que banham as comunidades, os quais são
também utilizados para os banhos diários, a lavagem de roupa, o lazer da
população, o transporte fluvial em barcos que são verdadeiras fontes de
poluição e de dejetos diversos. Os poços artesianos e as cacimbas comunitárias
eram utilizados, em 2002/2003, por 20% dos domicílios da área do Marau e em
apenas seis domicílios no Andirá.
Quanto ao destino dos dejetos humanos, as comunidades de todas as quatro áreas
estudadas são servidas, de forma satisfatória, pelas privadas externas. É
necessário frisar, no entanto, que, entre os 76 domicílios que não são servidos
por esse tipo de escoamento, 60 encontram-se no Marau. Desses últimos, 55%
estão concentrados nas comunidades situadas próximas às nascentes do Rio Marau,
cuja população não passa dos 25% do total dos habitantes dessa área indígena.
Outra característica dessas nascentes está na falta de escolarização de grande
parte das crianças que aí residem. Em 2002/2003, era reduzida a proporção de
crianças fora da escola na Terra Indígena Andirá-Marau. Todavia, nas cinco
comunidades mais próximas às nascentes da área do Marau, apenas 64% das
crianças em idade escolar estavam matriculadas, ao passo que nas demais
comunidades da mesma área a proporção correspondente ultrapassava os 90%.
Salvo alguma deficiência nos dados apresentados, a combinação de algumas das
características socioeconômicas e espaciais (segurança alimentar, saneamento
básico, educação e outras) das comunidades próximas às nascentes do Rio Marau
as situam como as mais carentes e desassistidas da Terra Indígena Andirá-Marau.
Como consequência direta ou indireta, essas comunidades, que têm pequeno peso
na população total do Marau, detêm cerca de 40% de todos os óbitos de filhos de
mulheres com menos de 25 anos de idade nessa área indígena. Na Tabela_6, que
mostra as estimativas dos níveis de mortalidade infantil nas terras indígenas,
observam-se os diferenciais francamente desfavoráveis aos moradores da área
próxima às nascentes, no Marau. Note-se também que, nas nascentes do Andirá, a
mortalidade infantil é superior à do restante da área do mesmo nome, porém, as
diferenças são significativamente menores do que no Marau.
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Os resultados aqui expostos parecem indicar que a situação das áreas de
nascente situadas na bacia do Rio Marau explicaria uma parcela significativa do
diferencial de mortalidade existente entre aquela área indígena e o Andirá,
muito embora a população, nessas nascentes, seja pouco representativa no Marau.
Uma análise da mortalidade infantil, mais detalhada, poderia ser realizada a
partir de informações levantadas em pesquisa de campo específica, que buscasse
concentrar-se nos possíveis determinantes da elevada mortalidade do Andirá-
Marau e dos diferenciais em seu interior.
Considerações finais
Os sateré-mawé são um povo indígena que, em 2002/2003, era constituído de mais
de nove mil homens e mulheres, habitando principalmente uma região que engloba
parte do Estado do Amazonas e parte do Pará, a Terra Indígena Andirá-Marau.
Estão também distribuídos pelas áreas rurais circunvizinhas e por várias
cidades da região, além da capital do Estado do Amazonas, Manaus, e em uma
comunidade situada em território Munduruku, a Terra Indígena Koatá-Laranjal.
Um levantamento censitário e participativo nas duas terras indígenas
mencionadas e em quatro cidades das proximidades, realizado em 2002/2003,
contabilizou 7.502 sateré-mawé nas duas terras indígenas e 998 naquelas áreas
urbanas, possibilitando obter informações demográficas e socioeconômicas sobre
esse povo indígena.
O povo sateré-mawé apresenta uma distribuição etária jovem. Nas áreas
indígenas, a distribuição etária segue os padrões populacionais em que a
fecundidade e a mortalidade na infância são elevadas. Ali, o número de mulheres
é inferior ao dos homens nos primeiros grupos etários adultos, presumivelmente
devido a uma maior emigração feminina com destino urbano. Há uma concentração
incomum de população em torno das idades entre 55 e 60 anos, que pode estar
relacionada a problemas na declaração de idade dos entrevistados, por conta de
fatores como a aposentadoria por idade (55 anos para as mulheres e 60 para os
homens). Nas cidades, a população é, em sua maioria, jovem, devido a uma
fecundidade relativamente elevada e a uma população imigrante também jovem, em
busca de trabalho e de continuação dos estudos iniciados nas áreas indígenas.
Os sateré-mawé estão entre os povos indígenas com os maiores níveis de
fecundidade do Brasil, seja em área indígena, seja nas cidades. A taxa de
fecundidade das terras indígenas encontra equivalentes nas de outros povos do
Estado do Amazonas e mesmo, em alguns casos, em outros locais do Brasil. O
nível urbano está em patamares relativamente elevados devido, também, em grande
parte, ao caráter recente da migração para as cidades. O padrão de fecundidade
das mulheres sateré-mawé é jovem, mas a gravidez na adolescência é um fenômeno
menos frequente do que no restante do Brasil.
Existe uma elevada mobilidade populacional tanto no interior das terras
indígenas como dessas para as cidades próximas. Os motivos para migrar, entre
os sateré-mawé, variam conforme o tempo em que a migração ocorreu. Um tipo de
migração que existe desde os tempos antigos é o das pessoas que se casam, sendo
necessário que um deles vá morar na aldeia do outro. Este tipo de migração era
e é feito majoritariamente por mulheres. A migração por motivo de trabalho tem
se desenvolvido e é realizada, principalmente, pelos professores indígenas.
Outra causa da migração é dada pelos conflitos nas comunidades, em que famílias
saem de suas aldeias e vão criar novas comunidades em outras áreas sateré-mawé.
Na área urbana, é migrante a quase totalidade dos sateré-mawé com mais de 30
anos de idade. Os homens são maioria no que se refere à mudança por motivo de
estudos e até os 25 anos de idade. Daí em diante, as mulheres passam a ser
majoritárias e têm como um dos principais motivos de migração a procura de
trabalho.
Constata-se que a área indígena estudada apresenta mortalidade infantil
elevada. Alguns elementos de explicação para essa situação estariam
relacionados com características socioeconômicas, de infraestrutura e
nutricionais do povo sateré-mawé. Um deles refere-se ao desaparecimento do
peixe, alimento básico, em importantes áreas, comprometendo uma relevante fonte
de proteínas para as mães e seus filhos recém-nascidos. O outro está
relacionado com o atendimento à saúde na área indígena, com um quadro indicando
má cobertura e deficiências e carências operacionais.
Num outro nível de abordagem, percebeu-se que a mortalidade infantil apresenta
diferenciais espaciais significativos no território indígena, tanto entre a
área do Andirá e a do Marau como entre as comunidades desta última área. Nas
comunidades próximas às nascentes dos rios que banham a área do Marau, ela é
extremamente elevada, chegando a 95,6 óbitos por mil nascidos vivos (contra uma
média de 71,6 das duas áreas). A constatação de mal atendimento em termos de
infraestrutura (educação e saneamento) nessas aldeias sugere que as más
condições de vida, aí refletidas, devem constituir importante fator de
determinação dos altos índices de mortalidade infantil nessa subárea, com
reflexos nos níveis de todo o Andirá-Marau.