Análise da nova gestão do conhecimento: perspectivas para abordagens críticas
1 Introdução
A Nova Gestão do conhecimento - NGC - é a designação para o conjunto de temas,
práticas e modelos que enfatizam a integração do conhecimento
(compartilhamento, divulgação, recuperação e ensino), assim como sua produção e
geração. Essa teoria foi desenvolvida pelos autores Joseph M. Firestone e Mark
W. McElroy, consultores e sócios fundadores do Consórcio Internacional de
Gestão do conhecimento1, com base no trabalho inicial de McElroy (1999). Suas
obras mais representativas são McElroy (2002), Firestone (2003) e, notadamente,
Firestone e McElroy (2001).
O modelo desses autores foi escolhido por representar um trabalho atual da
Gestão do conhecimento, revelador de tendências contemporâneas, e apresentar
tom pragmático e almejada aplicabilidade pelas organizações, mas sem descuidar
do rigor na fundamentação teórica. Influenciaram na escolha a complexidade e
abrangência do modelo, a completude da exposição, a fundamentação
interdisciplinar com o apoio de teorias de filósofos (destacadamente, Popper) e
as críticas e diálogos constantes com teorias e modelos consagrados da Gestão
de conhecimento e Capital intelectual.
Este trabalho procura apresentar resumidamente os pontos fundamentais da
teoria, relacionando-os, sempre que adequado, implícita ou explicitamente, com
idéias de obras consideradas fundamentais da área da Gestão do conhecimento e
Capital intelectual (com base na análise bibliográfica de SERENKO e BONTIS,
2004), especialmente Davenport e Prusak (1998), Leonard-Barton (1998), Nonaka e
Takeuchi (1997), Stewart (1998) e Sveiby (1998). São apontados no modelo e
empregados em sua análise alguns aspectos metodológicos de construção e
exposição da teoria. Pretende-se que a metodologia esboçada contribua para a
constituição de perspectiva mais crítica e menos utilitária para a análise de
trabalhos na área da Gestão de conhecimento, em que se valorizem os fundamentos
e os aspectos explicativos.
O texto estrutura-se do seguinte modo: inicialmente, são expostos os conceitos
empregados de dados, informação e conhecimento. A seguir, é descrito o ciclo de
vida do conhecimento, o que torna possível a caracterização da NGC e de suas
fases. São então estabelecidas implicações do modelo para a estratégia e
cultura organizacionais, a criação de sentido, as melhores práticas e a
disciplina Capital intelectual. Caracterizado o modelo, a teoria exposta é
avaliada com base em sua metodologia e suas idéias fundadoras, ressaltando
alguns pontos passíveis de fundamentar uma análise mais aprofundada das obras
discutidas, assim como questões metodológicas decorrentes.
2 As definições fundamentais ' dados, informação e conhecimento
Com base em Popper (2000) e entre outras obras do pensador, Firestone e McElroy
distinguem três tipos de conhecimento. O conhecimento do Mundo 1 está
representado ou codificado em objetos ou estruturas físicas; é o mundo material
do conhecimento. O conhecimento do Mundo 2 refere-se a crenças ou a
predisposições de crenças sobre o mundo, o belo (ética) e o justo (moral); é o
mundo mental do conhecimento. Já o conhecimento do mundo 3, o mundo autônomo
dos objetos mentais, engloba as formulações lingüísticas compartilháveis, as
teorias, os modelos e os postulados de conhecimento sobre o mundo, sobre o belo
e sobre o justo.
Várias definições usuais de conhecimento são discutidas. A mais comum delas é
crença verdadeira justificada, definição adotada por Nonaka e Takeuchi (1997) e
considerada do Mundo 2. O argumento, em síntese, é de que não é possível a
justificação do conhecimento, já que nunca há evidências suficientes para
provar a veracidade ou falsidade de um postulado do conhecimento. A própria
crítica de Gettier (1963) baseia-se no conceito de justificação. Como se verá
pela definição dos autores, há, em conseqüência, o questionamento e
relativização do conceito de verdade, para além de uma abordagem estritamente
realista ou idealista.
A definição de conhecimento como informação em contexto (do Mundo 3) é
considerada lingüística devido ao termo informação não ser freqüentemente
utilizado para designar as crenças e predisposições do Mundo 2.
Fundamentalmente, não há, nessa definição, distinção entre informação e
conhecimento, aspecto demonstrável pela impossibilidade de haver informação
fora de contexto. A definição é racionalista (só tem sentido em um espaço
dedutivo, o contexto) e pragmática (só há utilidade no contexto).
São igualmente discutidas as freqüentes definições de conhecimento que o
relacionam com ação, como em Sveiby (1998), capacidade para ação. Mesmo que o
conhecimento seja necessário para a ação, ele não é suficiente, já que são
também imprescindíveis a intenção para o ato e a capacidade ou poder para
efetivá-lo. Conceitos de conhecimento polarizados em torno da idéia de
compartilhamento (como informação que pode ser comunicada ou compartilhada) são
rebatidos pela própria caracterização da concepção de compartilhamento: as
crenças do Mundo 2 não podem ser partilhadas, já que se supõe haver um hiato
epistêmico entre o Mundo 2 e o 3, só se admitindo a existência de
compartilhamento de objetos mentais do Mundo 3.
Dado é definido por Firestone e McElroy como um valor observável, mensurável ou
calculável de um atributo. O contexto (sempre existente) é que torna
compreensível a estrutura do formato de um dado. A informação é sempre provida
por um dado; dado é um tipo de informação. Em termos gerais, informação é
definida como dado mais compromissos e interpretações, ou esses compromissos e
interpretações sozinhos (só informação). O conhecimento (organizacional) é
definido como informação que passou por testes e avaliações em processos que
procuram eliminar erros e alcançar a verdade, portanto mais confiável e
aprimorada por registros e experiências. Assim, esse conhecimento
organizacional é um subconjunto de informação. A tradicional pirâmide (dado,
informação, conhecimento, sabedoria) é implodida: só se pode imaginar ciclos em
que dados e conhecimento (tipos de informação) são gerados a partir de só
informação (compromissos e interpretações), conhecimento, dados e problemas,
como mostra a FIG._1.
Dessa forma, trabalha-se explicitamente com a idéia de que o conhecimento
organizacional é objetivo e pertence ao Mundo 3. Admite-se um conhecimento do
Mundo 2 que passa pelos mesmos processos de validação e é falível, mas que é
pessoal e psicológico (subjetivo), logo não diretamente comunicável. A
objetividade dos postulados de conhecimento do Mundo 3 não depende de sua
verdade (objetiva), mas dos processos de validação que exigem a explicitação e
compartilhamento desses postulados, assim como dos próprios critérios de
validação.
A distinção entre o Mundo 2 e o Mundo 3, assim como o uso do termo conhecimento
para objetos mentais do Mundo 3, é freqüentemente contestada. Uma objeção
seria: expressões de conhecimento do Mundo 3 não são o mesmo que conhecimento
do Mundo 2, mas sim vestígios do conhecimento. Denominá-las conhecimento é o
mesmo que confundir sombras de objetos com os próprios objetos (o que,
realmente, constitui um argumento de fundo platônico facilmente reconhecível).
Essas críticas são respondidas: afirma-se não haver confusão entre conhecimento
do Mundo 2 e do 3; o primeiro é usualmente não redutível à linguagem,
habitualmente predisposicional e inconsciente, não partilhável. E,
principalmente, os postulados de conhecimento do Mundo 3 não são expressões de
crenças de conhecimento do Mundo 2. Esses postulados são criados no esforço de
resolver problemas. O que se pode analisar, contestar, compartilhar é o que é
dito (expresso), não aquilo que é pensado ou acreditado. A verdade, considerada
como um construto filosófico, é uma relação entre entidades lingüísticas e
fatos (não entre crenças ou predisposições e fatos). Por fim, os postulados de
conhecimento não são vestígios, pois são criados não só a partir de crenças,
mas também de criatividade e esforço pessoais, forças situacionais, estruturas
culturais e sociais e interações diversas.
3 O modelo do ciclo de vida do conhecimento
Os autores concebem um ciclo de execução decisória que é motivado por um hiato
percebido entre um estado atual de objetivos de um agente e o estado atual do
mundo que o agente está tentando gerenciar. O ciclo é um comportamento
instrumental que visa suprimir esse hiato percebido.
O ciclo de execução decisória é composto das fases de planejamento, ação,
monitoração e avaliação. Planejamento é uma atividade de produção e integração
de conhecimento. Envolve determinar prioridades, metas, objetivos, realizar
previsões e análises de custo/benefício, assim como revisar um processo de
trabalho ou efetuar sua reengenharia. Gera um plano, uma instância do Mundo 3.
A ação significa realizar o processo do domínio do negócio ou um de seus
componentes. Envolve a utilização do plano junto com conhecimento do Mundo 2 e
3, mas não produz novo conhecimento.
A monitoração é o acompanhamento e a descrição retrospectiva das atividades e
seus produtos. Abarca a coleta de dados e informações, as modelagens de
processos e o uso de conhecimento prévio para produzir novo conhecimento
prognóstico e descritivo. É uma atividade de produção e integração de
conhecimento, agora do Mundo 2 e 3.
Por fim, a avaliação implica a utilização dos resultados da monitoração com
conhecimento prévio a fim de medir os resultados da ação na supressão dos
hiatos motivacionais e avaliar os impactos nos processos de negócio. É outra
atividade que produz e integra conhecimento do Mundo 2 e 3.
Mas de onde vem o conhecimento utilizado nos ciclos de execução decisória? Da
base de conhecimento organizacional distribuída, uma combinação de crenças e de
predisposições de crenças (Mundo 2) dos agentes dos empreendimentos e de
postulados de conhecimento validados baseados em artefatos, e ainda de
metapostulados, armazenados em repositórios eletrônicos e não eletrônicos
(Mundo 3). A base de conhecimento encerra todas as estruturas que incorporam
conhecimento organizacional, como processos de negócios, planos, expressões da
cultura organizacional, estratégia organizacional, políticas, procedimentos e
sistemas de informação.
Firestone e McElroy tomam emprestada a teoria de aprendizagem organizacional de
circuitos único e duplo de Argyris e Schön. Conforme Argyris (1999), Choo
(1998) e Firestone e McElroy (2001), na aprendizagem de circuito único, a ação
organizacional é corrigida quando ocorrem resultados não esperados e
modificações no ambiente (que constituem um sistema de retroalimentação), mas
as normas de desempenho vigentes são mantidas assim como as estratégias
associadas. Novo conhecimento é produzido para ajustamento a ações, mas o
processo não apresenta hiatos epistêmicos (problemas). O mesmo não ocorre na
aprendizagem de circuito duplo, quando a correção do erro requer a
reestruturação das normas, estratégias e pressupostos. Este tipo de aprendizado
não é somente adaptativo, como o anterior, mas generativo e, na maioria dos
casos, conflituoso.
Os autores criam um modelo de aprendizagem baseado no modelo apresentado de
aprendizagem de circuitos simples e duplo e nas idéias de Popper (POPPER,
2000). Basicamente, o ponto destacado (e de conexão entre os modelos) é que o
circuito de ciclo duplo recai no esquema tetrádico de Popper. Esse esquema é
uma visão de produção de conhecimento por tentativa e erro (conjecturas e
refutações). O processo de ciclo duplo começa com um problema, que motiva uma
tentativa de solução, que então é testada, avaliada e possivelmente refutada de
modo a efetuar eliminação de erros. Novos problemas motivam outros ciclos e a
constante reavaliação do conhecimento.
Assim, conhecimento é produzido em um ciclo de execução decisória por meio de
um processo de ciclo único ou por meio de ciclos de vida de problemas, que
constituem um circuito duplo. O ciclo de vida de problemas é entendido como um
processo de conhecimento composto de muitos ciclos de execução decisória,
motivado por um hiato epistêmico (problema).
Outra questão argüida, fundamental para o modelo dos autores, é a concepção do
comportamento dos agentes organizacionais nos processos de negócios. O modelo
utilizado é o de uma rede de processos comportamentais. Os agentes dirigidos
por metas operam em ciclos de execução decisória, influenciados por dimensões
como memória, valores, atitudes, orientações situacionais, objetivos. Esses
ciclos decisórios integram as transações e interações dos agentes e são
influenciados por outras transações e por uma ecologia social, que engloba
fatores sociais, culturais, geográficos e econômicos, como esquematizado na
FIG._2.
O destaque é que há uma extrapolação benéfica do modelo SECI2 de Nonaka e
Takeuchi (1997), situacionalmente orientado. As crenças são basicamente
cognições, ou cognições combinadas com avaliações, e ambas representam
orientações psicológicas situacionais, e não predisposições psicológicas mais
gerais. Desse modo, argumenta-se que a literatura sobre Gestão do conhecimento
não reconhece adequadamente as predisposições de conhecimento do Mundo 2,
produzidas nas experiências dos agentes e motivadoras das decisões nos
processos de conhecimento. No esquema de Firestone e McElroy, as motivações
psicológicas dos indivíduos ou a cultura de agentes grupais são definidas por
orientações de valores, predisposições de atitudes e tendências de consecução
das metas, em um processo recursivo e de muitos níveis. Estímulos externos
envolvem as transações (interações) e a ecologia social.
Outro ponto a destacar é que os ciclos de execução decisória são operados
imediatamente sob crenças e disposições do Mundo 2 e mediatamente sob os
postulados de conhecimento do Mundo 3. Ou seja, o precursor imediato das
decisões, ações, transações e interações é o Mundo 2 (crenças, predisposições,
emoções), mediado pelo Mundo 3 de idéias, conceitos, modelos e teorias
objetivizados.
Com base nas idéias apresentadas é possível agora descrever o esquema do ciclo
de vida do conhecimento dos autores, cujo diagrama é mostrado na FIG._3. Há
dois processos centrais: a produção de conhecimento e a integração de
conhecimento. A produção de conhecimento envolve o aprendizado individual e
grupal, a aquisição de informação, a formulação de postulados de conhecimento,
sua codificação e validação. Como resultado desse módulo são produzidos
postulados de conhecimento codificados, falsificados e sobreviventes, assim
como os correspondentes metapostulados de conhecimento, todos componentes do
conhecimento organizacional, que deve ser integrado. A integração do
conhecimento engloba o ensino, o compartilhamento, a disseminação e a busca. O
conhecimento integrado compõe a base de conhecimentos, fonte e destino final
dos processos que utilizam o conhecimento, ou seja, todos os processos
comportamentais de negócios dos agentes interativos. Os processos de negócios
são compostos por ciclos de execução decisória. Esses ciclos produzem
conhecimento regulatório. Quando esse conhecimento regulatório falha, um
processo de tentativa e erro se inicia, o ciclo de vida de problemas, que, por
sua vez, é composto de muitos ciclos decisórios, motivado pelo sistema de
incentivos de aprendizagem (a hierarquia motivacional ' predisposições de
orientações situacionais e valores) e direcionado para o fechamento do hiato
epistêmico, o problema detonador do ciclo. Vê-se que o ciclo de vida do
conhecimento é um ciclo de vida de problemas no contexto organizacional,
formado de vários ciclos decisórios, que podem gerar seus novos problemas e
originar ciclos de conhecimento de diversos níveis.
O modelo de Nonaka e Takeuchi (1997) é ainda criticado em outros pontos. É
contestada a apropriação de concepções de Polanyi (1958, 1967), como o conceito
de conhecimento tácito, por Nonaka e Takeuchi. O conhecimento tácito é
considerado de explicitação impossível. Assim, o conhecimento não explicitado,
mas passível de externalização, é denominado implícito3. Com a introdução dos
conceitos de conhecimento subjetivo (nas mentes) e objetivo (nos artefatos), o
número de categorias passível de conversão passa de duas a cinco, já que a
categoria de conhecimento tácito objetivo, ou conhecimento tácito existente
fora das mentes, é considerada inexistente.
4 A Nova Gestão do conhecimento
Firestone e McElroy analisam e criticam as abordagens históricas de gerações de
Gestão de conhecimento de Koenig e Snowden e criam a sua própria.
Koenig (2002) concebe três estágios da Gestão de conhecimento. O primeiro
estágio era baseado primariamente em tecnologia da informação e objetivava o
compartilhamento e a coordenação do conhecimento em um empreendimento. O
segundo estágio era primordialmente o reconhecimento da insuficiência da
aplicação de tecnologia e a mudança de foco para os fatores culturais e
humanos, com destaque para as obras de Senge (1990) e Nonaka e Takeuchi (1997)
e a atuação de comunidades de prática. O atual e terceiro estágio valoriza a
importância do conteúdo, seu arranjo, descrição, estrutura e recuperação. O
objetivo é obter conteúdos relevantes desenvolvendo taxonomias e gerindo o
conteúdo.
Snowden (2002) idealiza dois estágios e um hipotético futuro terceiro estágio.
O primeiro era baseado em informação para a tomada de decisão, problematizando
o conceito de conhecimento apenas em sua parte final e enfatizando a
reengenharia dos processos de negócios. O segundo é baseado em uma
popularização do modelo de Nonaka e Takeuchi, considerado o precursor da Gestão
do conhecimento, mas insere a crítica do dualismo na concepção de conhecimento
tácito e explícito em detrimento de uma visão dialética. O terceiro estágio,
ainda por vir, seria caracterizado pela visão paradoxal de conhecimento como
coisa e processo, pela centralidade dos conceitos de contexto, narrativa e
gestão de conteúdo, pelo entendimento da organização como um sistema adaptativo
complexo e pela aplicação de modelos mecânicos apenas em determinadas
situações, ocorrendo a utilização da teoria do caos e da complexidade em outras
situações consideradas adequadas.
A crítica de Firestone e McElroy a esses autores apóia-se fundamentalmente no
argumento de que suas cronologias estariam muito mais embasadas em uma história
de publicações e ferramentas do que em um modelo conceitual de suporte da
periodização. O terceiro estágio de Snowden, inclusive pelas similaridades com
o modelo dos autores, é discutido detalhadamente (FIRESTONE e McELROY, 2001, p.
104-134).
O debate abre caminho para a apresentação da periodização dos autores (McELROY,
1999, 2002; FIRESTONE e McELROY, 2001). Há dois estágios na história da
disciplina Gestão do conhecimento. O primeiro é visto como enfatizando
primordialmente a integração do conhecimento, com ênfase no lado da oferta do
conhecimento. A segunda geração enfatiza simultaneamente o lado da oferta e o
lado da demanda, a produção do conhecimento. A NGC faz parte da segunda geração
e seu modelo de trabalho básico é o ciclo de vida do conhecimento.
Três argumentações são primordiais para o entendimento da NGC. A primeira delas
é que é efetuada uma distinção entre processamento de conhecimento e gestão de
conhecimento. Para os autores, essa distinção é considerada normalmente
desprezada na literatura de Gestão de conhecimento e sua ausência gera
confusão. Todas as organizações efetuam processamento de conhecimento. Isso é
representado no ciclo de vida do conhecimento, em relação e participação direta
com os processos de negócio (nível zero). O processamento de conhecimento é uma
atividade contínua e persistente pela qual os agentes gerenciam (manipulam,
controlam, organizam, facilitam) outros agentes, componentes, artefatos e
atividades de produção e integração de conhecimento, com o propósito de criar,
manter e compartilhar uma base orgânica e unificada de conhecimento. Já a
Gestão de conhecimento é uma disciplina que procura aprimorar esses processos
de conhecimento, ou seja, é gestão de processos de conhecimento. Ciclos de vida
de conhecimento formam-se visando criar conhecimento que possibilite os
processos de produção e integração de conhecimento no nível zero. Esse é o
nível um. Níveis superiores podem formar-se e são caracterizados como
metaníveis, sempre endereçando conhecimento sobre como produzir conhecimento
para nível inferior (eventualmente para o próprio nível), como ilustrado na
FIG.4.
A segunda argumentação é o estabelecimento da diferença fundamental entre
Gestão de conhecimento e Gestão de informação, derivada das próprias definições
de informação e conhecimento. Gestão de conhecimento é uma forma de Gestão de
informação. O aspecto mais imediato é que Gestão de conhecimento foca a
informação validada (conhecimento). O fator tipificador da Gestão de
conhecimento é o gerenciamento de uma fase não existente em processos
informacionais, os processos de validação e refutação de postulados de
conhecimento (a diferença entre processos informacionais e de conhecimento). A
ênfase em comunidades de prática, aprimoramento do aprendizado, melhor
comunicação e integração está no escopo de ambas as gestões.
A terceira argumentação é a concepção de sistemas naturais de processamento de
conhecimento (sobre os quais atuam a Gestão de Conhecimento) como sistemas
adaptativos complexos, definidos como um "sistema aberto dirigido por objetivos
e tentando adaptar-se a seu ambiente" (FIRESTONE e McELROY, 2001, p. 61).
Segundo Holland (1997), os agentes em um sistema, simples ou compostos, são
estruturalmente determinados por regras que determinam sua resposta a estímulos
do ambiente (o meio e outros agentes). As mudanças nas estruturas baseiam-se na
experiência do sistema e propiciam a adaptação. Esses sistemas são formados por
sete elementos básicos: quatro propriedades e três mecanismos.
A propriedade da agregação refere-se à classificação de agentes, que podem
formar metagentes, possibilitando comportamentos emergentes que transcendem os
comportamentos individuais. O mecanismo de marcação determina destaque de
características que viabilizam interações seletivas. A propriedade de fluxos
abrange efeitos multiplicadores e de reciclagem de recursos. Holland (1997, p.
56) afirma que "a reciclagem de recursos através do comportamento agregado de
um grupo diversificado de agentes é muito mais que a soma das ações
individuais". A propriedade da diversidade é base para seleção e adaptação. Os
mecanismos de modelos internos pressupõem a eliminação de detalhes e seleção de
padrões externos cuja determinação enseja mudanças nas estruturas (mecanismos)
dos agentes. As estruturas dos agentes constituem um modelo interno e através
delas infere-se algo sobre o meio e determina-se ativamente o comportamento do
agente. Esses modelos internos são habitualmente gerados pelo mecanismo de
blocos (padrões e características comuns agregados).
A teoria dos sistemas adaptativos complexos repercute na doutrina de Gestão de
conhecimento em foco. A quarta propriedade, a da não-linearidade, impede ou
restringe freqüentemente a aplicação de modelos determinísticos. Um princípio
geral é que intervenções nos processos de conhecimento devam ser sincronizadas
sob pena de serem destrutivas, já que se admite uma ordem natural emergente no
sistema, de determinação impossível ou difícil (o caminho seria a procura de
pontos críticos geradores de modificações estruturais). A Gestão do
conhecimento é assim polarizada entre hierárquica e orgânica.4
5 A criação de sentido
O modelo transacional de fluxos de comportamentos entre agentes é relacionado
com a criação de sentido (sensemaking) de Weick, com base em Choo (1998), Daft
e Weick (1984) e Weick (1995). A criação de significado implica na escolha de
um conjunto de interpretações para reduzir a ambigüidade de sinais existentes
no ambiente. Interpretar engloba recortar a experiência, selecionar
significados e reter interpretações racionais. Weick (1995) vê a criação de
significado como um processo de construção de identidade, retrospectivo,
contínuo, social, focado em pistas extraídas e governado mais pela
plausibilidade do que pela precisão.
Alguns pontos em comum do sistema transacional com a criação de sentido devem
ser mencionados. Agentes modificam a estrutura em processos de adaptação ao
ambiente, construindo suas próprias identidades. O monitoramento, tornado
equivalente à criação de sentido nos ciclos de execução decisória, envolve
filtragem e interpretação da realidade, não sua reflexão. A criação de sentido
modela (enact) o ambiente enquanto a interação social modela a ecologia social.
A criação de sentido é social, como o monitoramento, e contínua e persistente,
como os ciclos de execução decisória.
Ressaltem-se duas diferenças básicas. Os autores não aceitam a idéia de
construção social da realidade, mas sim sua mediação pelas motivações,
predisposições, herança biológica e outros. Em segundo lugar, as reivindicações
de conhecimento não seriam validadas por um consenso social, mas por testes e
avaliações constantes.
6 Capital intelectual
A idéia inicial de Capital intelectual parte da constatação da diferença entre
o valor contábil de uma organização e seu valor no mercado (MAC MORROW, 2001;
STEWART, 1998). Normalmente, há uma divisão entre capital estrutural e humano.
Stewart (1998) considera o capital do cliente como separado do capital
estrutural. Usualmente, em sistemas de medição, como no modelo de Edvinsson e
Malone, o capital intelectual é calculado por redução, totalizando um resíduo:
do valor de mercado da organização subtrai-se o capital financeiro, obtendo-se
o capital intelectual; extraindo-se agora o capital humano, obtém-se o
estrutural, e segue-se nessa base.
Firestone e McElroy argumentam que a abordagem é equivocada por vários fatores.
Tradicionalmente, metodologias do Capital intelectual tendem a valorizar
objetos e produtos, entretanto o que apresenta maior valor para as organizações
são os processos, ponto retratado no termo Capital de inovação social (McELROY,
2002; FIRESTONE e McELROY, 2001). Um segundo ponto é que como o princípio da
não linearidade dos sistemas complexos impede a aplicação de técnicas
eminentemente lineares como as contábeis, contadores deveriam introduzir
sistemas de medição não-lineares adotando uma perspectiva interdisciplinar. Há
realmente dois sistemas, não um. Isso significa que o valor não deve ser
procurado apenas internamente à organização, mas em sistemas de valoração que
abrangem interessados externos à organização. Na verdade, essa é a fonte mais
importante de intangibilidade do valor da organização, o mercado. Já os
sistemas internos da organização devem ser reconhecidos como sociais, complexos
e emergentes. É possível gerar impactos nesses tipos de sistemas com a atuação
em pontos-chave (HOLLAND, 1997), o que tornaria obsoleta a gestão convencional.
De modo geral, conclui-se que as metas da disciplina Capital intelectual
ultrapassam seu estado atual. Deve haver um período de tentativa, erros e
experimentação no qual teorias de produção de valores intangíveis (o
direcionamento correto) possam ser testadas e avaliadas.
7 As melhores práticas
Uma noção comum da Gestão do conhecimento ao longo dos últimos tempos é sua
convergência com a codificação dos processos de trabalho e de suas tarefas,
propiciando aos trabalhadores do conhecimento, dadas suas necessidades, acesso
rápido e facilitado às chamadas melhores práticas. Argumento advindo é a
afirmação da falta de contexto do problema na provisão dessas práticas
codificadas.
Firestone e McElroy criticam a falta de especificação da idéia de contexto.
Sistemas baseados em computador não contêm melhores práticas, mas sim
reivindicações sobre melhores práticas. O raciocínio embutido na codificação de
melhores práticas é bem direto: em determinadas situações, o melhor
comportamento seria determinado agrupamento de ações. A condição de
viabilização dessa abordagem é um procedimento de qualificação das informações
de melhores práticas que passa pelo fornecimento de metareivindicações de
conhecimento. Esse é o tipo de contexto passível de viabilização e necessário à
avaliação das reivindicações de conhecimento: metareivindicações que
possibilitem aos usuários discernimento sobre as reivindicações efetuadas, os
argumentos que as fundamentam e as histórias de seus desempenhos. A abordagem
que recorre ao velho chavão "a informação certa para a pessoa certa na hora
certa" simplesmente supõe a existência a priori do conhecimento adequado e
enfatiza o lado da oferta, não a produção do conhecimento (o lado da demanda).
8 A tecnologia da informação
A crítica à utilização de tecnologia de informação nos processos de gestão do
conhecimento passa pelo mesmo argumento utilizado na discussão das melhores
práticas. Um sistema computacional utilizado nesses processos deve efetuar a
distinção entre reivindicações e metareivindicações de conhecimento e prover
suporte explícito para sua avaliação. Ao ver dos autores, nenhuma aplicação
desse tipo ainda existe. A tecnologia para sua construção depende de evolução
na área de inteligência artificial e enfatizaria a análise e gestão de
reivindicações de conhecimento em artefatos.
É concebido um portal de conhecimento empresarial que atenderia parcialmente
essas condições, diferenciando informação de conhecimento, provendo
metainformação e enfatizando tanto a produção com a integração de conhecimento
(FIRESTONE, 2003).
9 A cultura organizacional
Barreiras culturais são usualmente consideradas obstáculos à transferência e
compartilhamento de conhecimento em uma organização. Para realizar esses
objetivos diz-se comumente que a Gestão de conhecimento deve efetuar
modificações na cultura organizacional.
A cultura é classificada pelos autores como material (Mundo 1), subjetiva
(Mundo 2), definida como um conjunto emergente de predisposições de um agente
grupal para perceber seu ambiente (o mesmo modelo motivacional considerado de
caráter psicológico quando aplicado ao indivíduo) e objetiva (Mundo 3),
definida como a configuração de orientações de valores e atitudes de alto nível
expressos em um estoque de problemas emergentes, modelos, teorias, programas e
histórias localizados em diversos contêineres.
A cultura é vista como onipresente na Gestão de conhecimento, processo de
negócios e produtos finais. No entanto, muitos outros fatores (ecologia social,
fatores situacionais, entradas transacionais), alguns deles indevidamente
categorizados como culturais, contribuem para as complexas relações entre os
processos de conhecimento e seus produtos. A cultura é vista pelos autores não
tanto como uma resposta às dificuldades da Gestão de conhecimento, mas como um
tópico com suas próprias dificuldades. Deve-se, assim, lembrar que prescrições
no sentido de mudanças da cultura enfatizam um único fator explanatório dos
processos de Gestão do conhecimento.
10 A estratégia organizacional
Firestone e McElroy defendem que ocorre constantemente na Gestão de
conhecimento de primeira geração um erro de exceção da estratégia, que consiste
em tornar as estratégias de negócios o ponto inicial para a estratégia de
Gestão de conhecimento. Metodologias de Gestão de conhecimento seguem
indevidamente os seguintes procedimentos: a) identificam a estratégia de
negócio corrente; b) determinam os recursos informacionais necessários para a
implementação da estratégia corrente; e c) realizam projetos de tecnologia e
outros necessários para tornar os recursos informacionais facilmente acessíveis
e sustentadores dos processos de negócio.
Claramente, o foco é transacional. No entanto, a estratégia deve ser encarada
como um produto do processamento de conhecimento, assim como princípios,
planos, modelos ou quaisquer artefatos necessários a cada um dos processos de
negócios. A função da Gestão de conhecimento é aprimorar a qualidade e
performance dos processos de conhecimento, não dos processos de negócios em si.
Assim, ela não é subordinada à estratégia ou mesmo à sua implementação. Isso
coloca a questão da localização da Gestão de conhecimento na estrutura
funcional da organização. A resposta é imediata: na posição mais autônoma
possível, subordinada ao grupo dos gerentes de mais alto nível da organização.
11 Considerações finais
A descrição do modelo de Firestone e McElroy revela características
fundamentais e enseja alguns comentários críticos, assim como o discernimento
de questões metodológicas consideradas básicas para a disciplina Gestão de
conhecimento.
O modelo estudado pretende ser integrativo e de amplo escopo, abrangendo
tópicos afins como estratégia e cultura organizacionais, redes sociais,
melhores práticas, capital intelectual, tecnologia e criação de sentido.
Procura-se situar historicamente as teorias da Gestão do conhecimento,
evidenciando as discordâncias e tendências. Acima de tudo, a construção da
teoria dá-se por meio de interlocução crítica com outros trabalhos na área e
relativização de idéias de aceitação corrente. Como resultado, vários conceitos
e diferenciações freqüentemente mal estabelecidos ou omitidos na literatura
sobre Gestão do conhecimento e Capital intelectual (NEHMY, 2001) são abordados
pelos autores, como a diferenciação entre informação e conhecimento explícito
ou entre Gestão de informação e de conhecimento.
O ponto central na concepção da teoria exposta é a validação dos postulados de
conhecimento, atividade que permite a delimitação do conceito de conhecimento
assim como funda as condições para a intervenção da gestão nos processos de
conhecimento. É de se considerar que o mecanismo de falsificação popperiano
pressupõe uma metateoria que dê conta de efetuar julgamentos das diversas
reivindicações de conhecimento (PINTO, 1999). No processo de validação, influem
diversos pressupostos que podem determinar resultados diferentes, o que
enfraquece uma pretensão de objetivação do conhecimento. É indicativo que
Firestone e McElroy provenham da área da ciência da computação, com experiência
em data mining, data warehouse e inteligência artificial, e trabalhem no
sentido de efetuar a tipificação dos ciclos de conhecimento organizacional em
relação a processamento de postulados de conhecimento do Mundo 3 (explicitados
ou passíveis de explicitação) com vista a sua validação.
De certa forma, reencontra-se aqui a tensão existente no campo da Ciência da
informação ao obrigatoriamente abordar seu objeto, a informação, considerando-
a em suas dimensões sociais, cognitivas e físicas _ veja-se Buckland (1991),
Capurro (2003) ou Miranda (2002). E, particularmente, essa tensão reflete-se na
Gestão de conhecimento, disciplina que se pretende utilitária. No caso em
estudo, é clara a necessidade de detalhamento de como os metaprocessos da
Gestão de conhecimento podem intervir de modo efetivo em ciclos de vida do
conhecimento relativos aos negócios, produzindo conhecimento útil
particularmente para o processo-chave de validação dos postulados. A situação
complica-se quando se leva em conta a necessidade de integração desse
conhecimento, a complexidade das redes sociais transacionais e de sistemas
adaptativos e o fato de postulados de mundo 2 e 3 também serem validados.
Delimitar conceitualmente o conhecimento organizacional como postulados
objetivos do mundo 3 não desonera a Gestão de conhecimento da preocupação de
lidar com o mundo 2, especialmente quando se lembra que as emoções,
predisposições psicológicas e crenças do mundo 2 é que são as precursoras
imediatas das ações.
A par dessas observações, menos que a adesão a idéias e sua incorporação a
teorias, algumas vezes realizadas apressadamente, interessa aqui a proposição
de questões metodológicas que se evidenciaram na análise efetuada e no próprio
trabalho pesquisado.
É importante uma análise criteriosa da bibliografia da área e estabelecimento
de relações implícitas ou explícitas com a teoria estudada. Estudos de
citações, como Serenko e Bontis (2004) ou Wilson (2002), podem ser proveitosos.
A profundidade e espírito crítico na utilização de idéias da área devem ser
considerados. Cabe a preocupação com tratamento dos conceitos fundamentais e
estabelecimento de diferenciações básicas, como o caso mais óbvio dos conceitos
de informação e conhecimento. Segue-se naturalmente a constatação do escopo das
abordagens e modelos, analisando sistematicamente temas relacionados que foram
enfatizados ou negligenciados (como cultura, métricas de valoração dos
processos, lugar das redes sociais, etc.). Nessa perspectiva, é natural que
ocorra a verificação da extensão e profundidade dos procedimentos
interdisciplinares realizados. Isso implica situar os autores de outros campos
e empreender uma análise, tão aprofundada quanto possível, do contexto da
teoria emprestada, em termos epistemológicos e históricos. Implica também a
necessidade de determinar as possíveis contradições ou reforços na apropriação
dos conceitos.
Discutir as posições, motivações e intenções dos autores da área é
freqüentemente um passo esclarecedor. Outras vezes a compreensão dos avanços
passa pela analogia com outras teorias do campo, quando as constantes
reiterações, mesmo em domínios à primeira vista díspares, indicam pontos de
convergência, também de inclusão obrigatória na discussão. Esse é o caso, entre
outros, do papel do hiato epistêmico ou gap de conhecimento, central à teoria
estudada, assim como à perspectiva cognitivista de Belkin (1982) ou à criação
de sentido de Weick (1995) ou Dervin (1992). Essa abordagem interdisciplinar
coaduna-se com uma visão histórica das evoluções da disciplina Gestão do
conhecimento, que evidencia as comparações, as inovações, os conflitos e os
pontos necessários ao debate, além de servir como uma sólida base de
assimilação de uma bibliografia fecunda, volátil e cada vez mais crítica.