A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais
"Nada há de mais profundamente desigual do que a igualdade de tratamento
entre indivíduos diferentes."
Esmeraldino Bandeira
INTRODUÇÃO
O pensamento social no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX,
constituiu-se, em grande medida, a partir da incorporação no debate intelectual
local de um conjunto extremamente variado de idéias cientificistas importadas
sobretudo da Europa. O positivismo foi a doutrina que, até o momento, recebeu
maior atenção por parte de historiadores e cientistas sociais que se voltaram
para a história intelectual brasileira do período1, mas muitas outras doutrinas
' tais como diferentes versões do evolucionismo, do materialismo, das teorias
raciais etc. ' se fizeram igualmente presentes e marcaram de modo significativo
o debate intelectual acerca da sociedade brasileira pelo menos até meados da
década de 1930, quando se iniciou o processo de institucionalização e
autonomização das ciências sociais no país2.
Das idéias que obtiveram grande repercussão intelectual entre as últimas
décadas do oitocentos e as primeiras do novecentos no Brasil, e que ainda
merecem ser mais detalhadamente analisadas, pode-se destacar as da antropologia
criminal ou da criminologia ' como será posteriormente amplamente denominada ',
elaboradas na Europa sobretudo a partir dos trabalhos de Lombroso e de seus
seguidores. As concepções da criminologia ' que começava a se constituir como
um campo de conhecimento com pretensões de cientificidade voltado para a
compreensão da natureza do crime e do criminoso, mas que, em alguns momentos,
também ambicionava ser um conhecimento mais amplo acerca da própria vida social
' foram incorporadas com entusiasmo por grande parte da intelectualidade
brasileira.
Neste artigo, pretendo ressaltar a importância das idéias da criminologia no
debate intelectual brasileiro entre 1880 e 1930, a partir de uma análise de
como as concepções de Lombroso e de seus seguidores foram incorporadas pelos
bacharéis e juristas brasileiros que as utilizaram não apenas para pensar a
sociedade nacional, mas também para propor e por vezes realizar reformas legais
e institucionais inspiradas nos conhecimentos criminológicos3.
A CRIMINOLOGIA NA EUROPA
A maioria dos autores no campo da criminologia, mesmo muitos daqueles que
assumem posição mais crítica no interior deste, atribui aos trabalhos de Cesare
Lombroso (1835-1909) um lugar de destaque na constituição do conhecimento
criminológico moderno.
Juntamente com Rafaele Garofalo (1852-1934), Enrico Ferri (1856-1929) e outros,
Lombroso pretendeu construir uma abordagem científica do crime, estabelecendo,
desse modo, uma oposição no interior das doutrinas penais entre a Escola
Clássica, desenvolvida, desde o século XVIII, a partir das idéias de Cesare
Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832), e a Escola Positiva,
defendida pelo próprio Lombroso e seus seguidores. Esta cisão, ainda presente
na criminologia do século XX4, indica duas formas de abordar o problema do
crime: de um lado, a Escola Clássica define a ação criminal em termos legais ao
enfatizar a liberdade individual e os efeitos dissuasórios da punição; de
outro, a Escola Positivarejeita uma definição estritamente legal, ao destacar o
determinismo em vez da responsabilidade individual e ao defender um tratamento
científico do criminoso, tendo em vista a proteção da sociedade.
Formado em medicina, e influenciado desde cedo por teorias materialistas,
positivistas e evolucionistas, Lombroso5 tornou-se famoso por defender a teoria
que ficou popularmente conhecida como a do "criminoso nato",
expressão que na realidade foi criada por Ferri. Ao partir do pressuposto de
que os comportamentos são biologicamente determinados, e ao basear suas
afirmações em grande quantidade de dados antropométricos, Lombroso construiu
uma teoria evolucionista na qual os criminosos aparecem como tipos atávicos, ou
seja, como indivíduos que reproduzem física e mentalmente características
primitivas do homem. Sendo o atavismo tanto físico quanto mental, poder-se-ia
identificar, valendo-se de sinais anatômicos, aqueles indivíduos que estariam
hereditariamente destinados ao crime.
Ao longo de seus trabalhos, Lombroso incorporou à sua teoria do atavismo várias
outras categorias referentes às enfermidades e às degenerações congênitas, que
ajudariam a explicar as origens do comportamento criminoso, acabando mesmo por
considerar igualmente as causas sociais em suas explicações. Mas ele nunca
abandonou o pressuposto de que as raízes fundamentais do crime eram biológicas
e que poderiam ser identificadas a partir dos estigmas anatômicos dos
indivíduos. Em termos gerais, Lombroso reduziu o crime a um fenômeno natural ao
considerar o criminoso, simultaneamente, como um primitivo e um doente.
O livro mais importante de Lombroso, L'Uomo Delinquente, foi publicado pela
primeira vez em 18766. Este trabalho, no qual o autor desenvolve suas
principais idéias acerca das raízes do crime, foi inúmeras vezes reeditado na
Itália e traduzido em diversos países europeus. O livro ganhou notoriedade a
partir da segunda edição italiana em 1878, e com as traduções em francês e
alemão, publicadas em 1887, passou a ser amplamente conhecido no exterior. Ao
longo das cinco edições em italiano, foi sendo ampliado por Lombroso que, a
cada publicação, adicionava novos dados antropométricos para confirmar suas
teorias. Em 1899, publicou Le Crime, Causes et Remèdes7, no qual deu atenção
também aos fatores socioeconômicos que causariam o crime.
As teorias de Lombroso tiveram um grande impacto em sua época, permanecendo por
muitos anos como o tema por excelência das discussões jurídicas e penais.
Talvez a repercussão de suas idéias se deva tanto ao caráter reducionista e
simplista dos argumentos propostos, o que deve ter facilitado a divulgação para
um público mais amplo, quanto ao empenho com que ele próprio se lançou na
defesa e difusão de suas teses.
Lombroso tinha grandes ambições com relação aos novos conhecimentos que estava
elaborando. Embora para a posteridade a antropologia criminal seja lembrada
apenas como uma doutrina penal, Lombroso pretendia criar uma ciência ampla,
cujas aplicações no campo penal seriam apenas um desdobramento entre os muitos
possíveis. A esse respeito, Lombroso é explícito em um texto em que defende a
antropologia criminal como uma ciência pura: "Entretanto, não é para as
aplicações judiciárias que estudamos; os sábios fazem a ciência pela ciência e
não para aplicações que poderiam fazer seu caminho imediatamente"
(Lombroso, 1896:15)8.
Mais que uma inovação no campo das doutrinas penais, portanto, Lombroso
pretendia criar uma ciência da natureza humana, capaz de dar conta das
desigualdades entre os homens9. O combate por uma nova ciência requeria o
esforço não apenas de um pesquisador, mas de muitos, talvez de toda uma
geração, e quanto a isso, Lombroso também é claro ao sublinhar que os novos
conhecimentos eram resultado de um amplo movimento coletivo de idéias. Ao
argumentar contra seus críticos, Lombroso assim se expressa:
"Essas oposições provêm, em grande parte, do fato de que muitos
dos oponentes não conhecem as publicações feitas em língua
estrangeira. Eles se atêm, por exemplo, ao meu Homem Criminal, que é
apenas a primeira parte de uma obra já antiga, enquanto muitos outros
trabalhos, e mais eruditos ainda, têm sido publicados desde então
sobre o mesmo assunto." (idem:11)
Logo, para Lombroso, a antropologia criminal era um grande empreendimento
intelectual, sendo seus próprios trabalhos apenas o início da construção desse
ambicioso edifício científico.
Entre os autores que compartilharam das ambições do pai da antropologia
criminal, os nomes de Ferri e Garofalo são geralmente destacados. Desse modo,
Lombroso, Garofalo e Ferri formam juntos os pilares intelectuais do movimento
que ficou conhecido como "Escola Positiva", "Escola
Determinista" ou "Escola Italiana" de direito penal10, e que
consolidou a definição mais geral da criminologia11 como a ciência voltada para
o estudo do homem delinqüente.
Rafaele Garofalo12 era magistrado e escreveu, sobretudo, a respeito das
reformas práticas da justiça criminal e das instituições legais. Influenciado
pelo darwinismo social e por Herbert Spencer, cunhou a expressão "crime
natural" para definir as condutas que ofendem os sentimentos morais
básicos de piedade e probidade em uma sociedade. Do mesmo modo que Lombroso,
relegava os fatores sociais a uma posição secundária na etiologia do crime.
Defendeu várias idéias que se tornaram patrimônio comum da Escola Penal
Positiva, entre elas a da rejeição da noção de responsabilidade moral, que
seria incompatível com o ideal de defesa social, e a da ênfase na
individualização da punição, a qual deveria ter por referência as
características particulares de cada criminoso.
Enrico Ferri, por sua vez, era professor de direito penal e, ao contrário de
Lombroso e Garofalo, enfatizava os fatores sociais na etiologia do crime, mas
sem deixar de lado os fatores individuais e físicos. Sua classificação dos
criminosos foi bastante divulgada. Para ele, os criminosos poderiam ser
divididos em cinco classes: natos, insanos, passionais, ocasionais e
habituais13. Ferri visitou a Argentina e o Brasil em 1910 para divulgar os
ensinamentos da Escola Positiva (cf. Moraes, 1910).
São, porém, os diversos congressos de antropologia criminal, realizados no
final do século XIX e início do XX na Europa, que mostram bem o grande
interesse que essa disciplina despertou não apenas entre os especialistas, mas
também entre os leigos em sua época. O primeiro congresso, realizado em Roma em
1885, representa o ápice da carreira de Lombroso e da Escola Italiana de
Criminologia14. Mas é ao longo desses congressos que começam a surgir algumas
das principais resistências às novas idéias penais. Já no congresso seguinte,
realizado em Paris em 1889, organiza-se a oposição às colocações centrais
acerca do criminoso nato, sobretudo por parte da assim chamada Escola
Sociológica de Lyon15, liderada por Lacassagne, que enfatiza o meio social como
"caldo de cultura" do crime (apud Darmon, 1991:91). Apesar de as
tentativas subseqüentes de Lombroso e Ferri também incorporarem os fatores
sociais na etiologia do crime, nos congressos seguintes os conflitos exacerbam-
se, permanecendo as divergências das diferentes teorias criminológicas até o
último congresso, realizado em Turim em 1906. A morte de Lombroso, em 1909,
marca o fim desses congressos.
Outra crítica importante aos trabalhos de Lombroso e às teorias da antropologia
criminal partiu de um magistrado francês, Gabriel Tarde (1843-1904). Em seus
principais textos, como, por exemplo, La Criminalité Comparée16, faz críticas
devastadoras aos trabalhos de Lombroso, ao indicar que a descrição do criminoso
nato corresponde muito mais às características de um tipo profissional do que a
determinações biológicas inatas. Às idéias da antropologia criminal, Tarde
contrapõe suas leis da imitação para explicar os comportamentos sociais e as
noções de identidade e similaridade social como critérios de definição da
responsabilidade penal.
Os procedimentos metodológicos de Lombroso estavam igualmente aquém dos padrões
de cientificidade da própria época e foram rapidamente criticados pelos seus
contemporâneos. Ele manipulava seus dados sem grande rigor ao incorporar tudo
que pudesse ilustrar seus duvidosos pressupostos de análise. Em uma crítica
nesse sentido, Gaston Richard, na seção da revista L'Année Sociologique, de
1896-1897, dedicada à sociologia criminal, afirma categoricamente que a teoria
lombrosiana é "puramente dedutiva sob uma aparência de fidelidade ao
método experimental", e desmonta em seguida os principais pilares da
teoria do criminoso nato (Richard, 1897:394)17.
Assim, no início do século passado na Europa, as idéias básicas da antropologia
criminal já encontram amplo descrédito. E é nesse momento, paradoxalmente, que
elas encontrarão nos países latino-americanos "verdadeiros eldorados da
Nova Escola" (Darmon, 1991:110), como veremos a seguir.
A CRIMINOLOGIA NO BRASIL
É nas últimas décadas do século XIX que começa a recepção da criminologia no
país. Diversos historiadores do direito penal18 consideram João Vieira de
Araújo (1844-1922), professor da Faculdade de Direito do Recife, o primeiro
autor a se mostrar informado a respeito das novas teorias criminais, ao
comentar as idéias de Lombroso em suas aulas na Faculdade do Recife e também em
textos sobre a legislação criminal do Império.
E, de fato, em seu livro Ensaio de Direito Penal ou Repetições Escritas sobre o
Código Criminal do Império do Brasil, publicado em 1884, João Vieira de Araújo
já aponta para a necessidade de analisar a legislação nacional de um ponto de
vista filosófico mais "moderno", que no campo do direito criminal
seria representado sobretudo pela obra de Lombroso:
"O direito criminal dentre todos os outros direitos é justamente
o que está sujeito às mais constantes e rápidas mudanças em seu
conceito. Basta ler a obra do grande professor italiano Cesare
Lombroso ' L'Uomo Delinquente ' e ter uma ligeira notícia da
importância dos estudos realizados na antropologia em diversos países
adiantados da Europa para avaliar ou prever que progressos estupendos
estão reservados no futuro às instituições criminais." (Araújo,
1884:v)
João Vieira de Araújo se dedicará a divulgar as idéias da antropologia criminal
de Lombroso não apenas entre seus alunos do Recife, mas também para um público
especializado mais amplo, ao publicar artigos em revistas jurídicas do Rio de
Janeiro. Muitos dos futuros propagandistas da criminologia no Brasil, como o
jurista Francisco José Viveiros de Castro, reconhecerão João Vieira de Araújo
como o legítimo pioneiro da Escola Positiva de direito penal no país (cf.
Viveiros de Castro, 1894:14).
Outros autores, no entanto, como Silvio Romero (1951:55), atribuem a Tobias
Barreto esse mérito. E, realmente, no mesmo ano de 1884, quando João Vieira de
Araújo publica seus trabalhos acerca da legislação criminal do Império, Tobias
Barreto, em seu livro Menores e Loucos, faz referências ao L'Uomo Delinquente,
ao discutir a necessidade de diferenciação das diversas categorias de
irresponsáveis no campo penal. A avaliação de Tobias Barreto sobre essa obra
não é, no entanto, totalmente elogiosa, pois, se, por um lado, admite que o
trabalho de Lombroso "pertence ao pequeno número dos livros
revolucionários", e que este estava muito familiarizado com a ciência
germânica e com a língua alemã (Barreto, 1926:67-68) ' o que para o jurista
sergipano era condição quase suficiente para garantir o interesse em relação a
um autor ', por outro, não deixa de censurar os exageros naturalistas da
abordagem da questão criminal feita por Lombroso.
De qualquer modo, após essa recepção pioneira no Recife, inúmeros outros
juristas, ao longo da Primeira República, passam a divulgar as novas abordagens
"científicas" acerca do crime e do criminoso: Clóvis Beviláqua, José
Higino, Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, Raimundo Pontes de Miranda, Viveiros
de Castro, Aurelino Leal, Cândido Mota, Moniz Sodré de Aragão, Evaristo de
Moraes, José Tavares Bastos, Esmeraldino Bandeira, Lemos Brito, entre outros,
publicam artigos e livros em que são discutidos os principais conceitos e
autores da criminologia e da Escola Positiva de direito penal. Alguns se tornam
entusiastas das novas teorias penais, outros censuram o exagero de certas
colocações consideradas radicais, mas a grande maioria toma as novas discussões
no campo da criminologia como temas obrigatórios de debate no interior do
direito penal.
Se não é possível apontar com absoluta precisão quem foi efetivamente o
pioneiro nos estudos da criminologia no Brasil, é interessante ressaltar que
tanto a reivindicação do pioneirismo no novo campo quanto a busca de
reconhecimento internacional cedo se colocaram como importantes elementos de
legitimação e distinção entre os pensadores que começavam a trabalhar com as
novas teorias. Viveiros de Castro, por exemplo, chama para si o mérito de ter
apresentado o primeiro livro de divulgação das novas idéias no Brasil (Viveiros
de Castro, 1894:14), ao passo que Cândido Mota, na apresentação da reedição de
seu livro Classificação dos Criminosos (Mota, 1925), cita, entre os muitos
elogios feitos ao seu trabalho no Brasil e no exterior, a suposta aprovação do
próprio Lombroso ' maior glória possível para os discípulos das novas teorias
criminológicas.
Provavelmente, o fato de a antropologia criminal ter ganho impulso na América
Latina no momento em que entrava em decadência no continente europeu deve ter
facilitado o reconhecimento internacional dos autores que, no Brasil, se
fizeram discípulos das novas teorias, pois, se Lombroso e seus seguidores já
não encontravam a mesma receptividade para suas idéias no cenário europeu,
podiam encontrar na América Latina e, especificamente, no Brasil grande número
de entusiastas dispostos a divulgar as principais idéias do pai da antropologia
criminal e de seus correligionários.
Se essa disputa em torno do pioneirismo e do reconhecimento internacional na
incorporação dos conhecimentos da antropologia criminal ao saber jurídico no
Brasil é compreensível no âmbito da construção de uma nova tradição
intelectual, é certo também que os juristas brasileiros se mostram efetivamente
atualizados e sintonizados com as discussões que então ocorriam no exterior.
Tanto é assim que os comentários de João Vieira de Araújo e Tobias Barreto são
publicados antes do primeiro congresso de antropologia criminal em 1885, que
foi o marco a partir do qual as idéias de Lombroso ganham efetivamente
repercussão internacional. Os juristas nacionais, que posteriormente se
destacam na discussão das teorias da antropologia criminal, acompanham de perto
o debate europeu em torno das novas teorias penais, conhecendo inclusive as
principais críticas a Lombroso e seus discípulos. Portanto, se os juristas
valorizam a Escola Antropológica não é por falta de informação a respeito do
que ocorria na Europa, mas sim por acreditarem que se tratava do que de melhor
se produzia na época no campo da compreensão científica do crime.
Desse modo, mesmo conhecendo as críticas mais significativas apresentadas na
Europa contra a antropologia criminal, os simpatizantes no Brasil não deixam de
reafirmar a importância fundamental dos conceitos dessa escola. Nesse sentido,
por exemplo, o magistrado A. J. Macedo Soares, ao defender as novas idéias
penais em 1888, nas páginas da revista O Direito, editada no Rio de Janeiro,
admite que mesmo na Itália as idéias de Lombroso e seus correligionários não
conseguiam sensibilizar a maioria dos profissionais do direito e nem mesmo
influenciar a proposta do novo Código Penal italiano. Mas isso, ainda segundo
esse autor, longe de desestimular a divulgação da antropologia criminal em
terras nacionais, mostrava, pelo contrário, que o Brasil estava na mesma
situação que os demais países europeus, podendo assim se situar na vanguarda da
realização dessa autêntica revolução que começava a despontar no campo do
direito:
"[...] o que é notável é que, na própria Itália, a Escola de
Lombroso e Ferri não tenha recrutado prosélitos entre os
legisladores, professores e estadistas, isto é, entre aqueles que
mais podiam contribuir para a introdução das idéias novas na economia
das leis pátrias.[...] Não vemos, porém, que de nenhum desses fatos
se possa concluir contra a verdade dos ensinos da escola antropo-
jurídica. A única conclusão a tirar é que os estadistas e professores
italianos estão quase no mesmo caso dos professores e estadistas
brasileiros. Para uns, como para outros, esses estudos estão por
fazer, são novos e como toda a novidade que abala desde os alicerces
um sistema inteiro, incutem receio e provocam resistências."
(Macedo Soares, 1888:499)
Ou seja, não era por mera imitação que o Brasil deveria seguir as novas
concepções da antropologia criminal, mas sim por se tratar do que havia de mais
avançado no mundo em termos de doutrinas penais, segundo os defensores da
criminologia.
Outros autores, mesmo diante das críticas específicas feitas aos trabalhos de
Lombroso na Europa, ou apenas as desconsideram ou, então, se esforçam por
refutá-las. Viveiros de Castro, por exemplo, cita em seu trabalho a contestação
de Tarde à idéia do "tipo criminoso" quase que apenas a título de
ilustração (Viveiros de Castro, 1894:97-115). Paulo Egídio de Oliveira
Carvalho, por sua vez, discute extensivamente os conceitos de Durkheim acerca
do crime, mas indica a impropriedade de suas objeções à antropologia criminal
(Carvalho, 1900:111-139). Já Aragão defende enfaticamente Lombroso e a teoria
do criminoso nato da "tempestade que se desencadeou contra as afirmações
audaciosas das suas teorias, que vinham abalar tão fundamente os alicerces da
ciência oficial" (Aragão, 1928:25). Logo, se esses e outros juristas
defendem as idéias da antropologia criminal, fazem-no tendo consciência das
principais objeções presentes no debate europeu.
Parece difícil, desse modo, caracterizar a presença da antropologia criminal e
da sociologia criminal no Brasil apenas como mais um caso de importação
equivocada de idéias19. Longe de se apresentarem somente como "idéias fora
do lugar", ou como simples modismo da época, as novas teorias
criminológicas parecem responder às urgências históricas que se colocavam para
certos setores da elite jurídica nacional. Não se pode negar, entretanto, que o
estilo dos autores brasileiros, ao incorporarem as novas teorias, é bastante
eclético e, na maioria das vezes, pouco original em termos teóricos.
O ecletismo manifesta-se na tendência a apagar as diferenças entre as diversas
correntes de pensamento voltadas para o problema criminal, tal como se definiam
na Europa, justapondo autores e teorias rivais. A própria terminologia
utilizada é, na maioria das vezes, vaga: antropologia criminal, criminologia e
sociologia criminal20 são termos freqüentemente usados como sinônimos que
indicariam uma única disciplina. Mas mesmo esse ecletismo não é totalmente
estranho ao desenvolvimento da criminologia na Europa. Especialmente os
intelectuais ligados à antropologia criminal, Lombroso à frente, não podem ser
classificados como autores por demais rigorosos na construção de seus
conceitos. E é seguindo as orientações de Lombroso que a maioria dos autores
nacionais pensa a sociologia criminal quase que como um prolongamento da
antropologia criminal, de tal maneira que os aspectos sociais aparecem como
causas entre outras capazes de explicar a fraqueza moral dos criminosos. Assim,
a forte cisão presente no debate europeu entre a antropologia criminal de
Lombroso, Ferri e Garofalo e a sociologia criminal de Tarde e Durkheim, no
Brasil, dilui-se em benefício das concepções da Escola Antropológica, com todos
os autores aparentando pertencer ao campo único da criminologia. Para
exemplificar essa freqüente indiferenciação, basta mencionar como autores que,
ainda no final do Império, defendem a necessidade de incorporação da
antropologia criminal pelo pensamento jurídico nacional sustentam que esta se
dê sobretudo mediante a criação da cadeira de sociologianas faculdades de
direito (ver Macedo Soares, 1888; Araújo, 1889b).
Os trabalhos desenvolvidos são, igualmente, pouco originais teoricamente,
constituindo-se em geral no recenseamento das principais idéias criminológicas
em voga. Mas nem por isso os autores perdem totalmente de vista os problemas
práticos que se apresentam em face da realidade nacional. Pelo contrário, é
como se as questões mais imediatas precisassem ser vistas pela grade conceitual
fornecida pelas teorias importadas. Assim, as questões jurídico-penais locais
adquiriam novos contornos e possibilidades, ao mesmo tempo que o debate
intelectual nacional se equiparava ao que de mais avançado existia no mundo.
Como resultado da recepção eclética e conciliadora das teorias criminológicas
européias pelos juristas brasileiros, o crime e o criminoso passam a ser
pensados como problemas complexos demais para serem observados de um ponto de
vista único. Tanto os aspectos biológicos quanto o meio social devem ser assim
estudados pelas disciplinas criminológicas. Nessa direção, Clóvis Beviláqua
argumenta que, mesmo sendo simpatizante da Escola Sociológica, não deixa de
admitir a presença de causas biológicas na origem do crime:
"Estou convencido de que há um pathoscriminogêneo, um morbus que
impele ao delito, qualquer que seja a sua natureza, e contra o qual a
pena se revelará impotente na maioria dos casos; mas essa anomalia é
menos comum do que se poderia supor; estou igualmente convencido. O
que mais ordinariamente se depara na vida, é a combinação de certas
condições fisio-psíquicas apropriadas à perpetração do malefício, com
certas outras condições sociais que fecundam esse germe individual,
se é que muitas vezes não o fazem produzir-se." (1896:17)
O que Beviláqua censura na Escola Antropológica é o exagero daqueles que
interpretam de maneira exclusivamente biológica as causas do crime,
subestimando os aspectos propriamente sociais igualmente presentes. Situado no
extremo oposto da discussão, Antonio Moniz Sodré de Aragão, em seu livro As
Três Escolas Penais, publicado originalmente em 1907, no qual critica as
abordagens sociológicas do crime (inclusive a de Beviláqua), não deixa de
admitir que as causas sociais estão igualmente presentes, embora sejam
secundárias em relação às causas biológicas individuais21.
Os estudiosos do tema no Brasil distribuem-se, desse modo, entre as Escolas
Antropológica ou Sociológica, especialmente pelo acento maior ou menor que
atribuem aos fatores biológicos ou socioculturais na etiologia do crime, mas
não discordam que a compreensão do crime e do criminoso requer a presença
simultânea das duas abordagens. Sob essa tênue linha divisória, do lado da
antropologia criminal perfilam-se nomes como João Vieira de Araújo, Viveiros de
Castro, Cândido Mota, Antonio Moniz Sodré de Aragão. Mais propensos a atribuir
importância decisiva aos fatores sociais e culturais na etiologia do crime,
alinham-se, Clóvis Beviláqua e Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, entre outros.
De todo modo, é evidente a forte presença de Lombroso na maioria dos trabalhos,
indicando a subordinação, como já afirmei, no Brasil, das abordagens
sociológicas do crime àquela da antropologia criminal. Mesmo aqueles que não se
empolgam com os exageros deterministas da Escola Antropológica não deixam de
render homenagem a Lombroso e seus discípulos. Este é o caso, já citado, de
Tobias Barreto que, embora tenha lançado muitas críticas aos exageros de L'Uomo
Delinquente, não deixa de considerá-lo um livro revolucionário. Mais do que a
concordância em torno da contribuição de Lombroso, o principal ponto de
convergência do discurso da criminologia no Brasil, ou da Nova Escola Penal
como passa a ser chamada com mais propriedade pelos autores nacionais, é a
idéia de que o objeto das ações jurídica e penal deve ser não o crime, mas o
criminoso, considerado como um indivíduo anormal. Assim, com a emergência do
discurso da Nova Escola Penal no interior dos debates jurídicos nacionais, o
que temos é a presença de um discurso normalizador no interior do saber
jurídico22. Por isso, diferentes expressões ' criminologia, Nova Escola Penal,
antropologia criminal, Escola Antropológica, sociologia criminal, Escola
Positiva de Direito Penal ' são utilizadas pelos autores brasileiros
praticamente como sinônimos de uma nova concepção do direito penal que deve ser
aplicada na reforma das instituições jurídico-penais nacionais.
Não há, portanto, diferenças substanciais entre aqueles que passam a defender
as novas teorias penais no Brasil, quer do ponto de vista antropológico quer do
sociológico. A crítica às concepções jurídicas da Escola Clássica, a defesa dos
novos fundamentos do direito de punir e a necessidade de reforma das leis e
instituições penais são pontos de convergência entre os diversos autores, a
despeito das divergências pontuais que possam existir.
Não surpreende o fato de ter sido a Faculdade de Direito do Recife a porta de
entrada das idéias criminológicas no Brasil, pois, como já tive oportunidade de
mencionar, o ambiente intelectual nessa faculdade era, desde a década de 1870,
bastante permeável à introdução de teorias cientificistas, importadas sobretudo
da Europa. O ambiente filosófico mais crítico que vai então sendo formado acaba
por apontar para a necessidade de renovação dos estudos jurídicos e, na época,
sem dúvida a antropologia criminal aparecia como o triunfo, por excelência, das
concepções cientificistas no campo do direito penal. Assim, a renovação dos
estudos jurídicos, estimulada pelo ambiente intelectual do Recife, teria de
passar inevitavelmente pela discussão dessas teorias e, efetivamente, os três
professores que então se destacam na renovação da ciência do direito ' José
Higino, Tobias Barreto e João Vieira de Araújo (cf. Barros, 1959:148) ' acabam
por abordar, em diferentes momentos de seus trabalhos, os debates em torno da
antropologia criminal. Essa recepção pioneira marcou significativamente os
estudos posteriores acerca do direito penal na faculdade. Nesse sentido,
Schwarcz (1993), por exemplo, ao analisar a Revista Acadêmica da Faculdade de
Direito do Recife, a partir de 1891, mostra como a antropologia criminal ganha
importância nessa publicação, servindo como instrumento de afirmação do direito
enquanto prática científica e justificando a ação missionária dos legisladores
em vista dos problemas da nação (idem:156-157). Além disso, dissertações e
monografias sobre o tema foram produzidas por professores e alunos da
faculdade23.
Mas, se como afirma Schwarcz em relação à produção jurídica nacional, se do
Recife vinham as teorias e os novos modelos de explicação, enquanto de São
Paulo partiam as práticas políticas convertidas em leis e medidas (idem:184),
as teorias da criminologia corriam o risco de permanecer isoladas nos debates
teóricos dos juristas do Recife, sem surtir efeitos concretos mais
significativos. Mas isso não aconteceu, e rapidamente as idéias da antropologia
chegaram aos debates jurídicos realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na
então capital do Império, um dos principais responsáveis por essa divulgação é
o próprio João Vieira de Araújo.
A despeito das querelas anteriormente citadas acerca de quem foi o pioneiro na
recepção da antropologia criminal no país, é certo que a divulgação dos novos
conhecimentos, inclusive para além do Recife, coube muito mais a João Vieira de
Araújo, mesmo porque ele se mostrou bem mais entusiasmado com a antropologia
criminal, ao contrário de Tobias Barreto, que foi mais reticente na defesa das
idéias de Lombroso. Clóvis Beviláqua define o perfil de João Vieira de Araújo
como jurista da seguinte maneira:
"João Vieira pertenceu ao grupo de estudiosos, a que se deu o
nome de Escola do Recife, na sua fase jurídica, ou, antes, aos que
lhe prepararam, a princípio, o advento, e, depois, se deixaram
arrastar pelo movimento. Adotara os princípios da doutrina
evolucionista de Spencer, Ardigó e outros mestres italianos.
Especializando-se no Direito criminal, seguiu a orientação da Escola
de Lombroso, Ferri e Garofalo; entretanto nem foi jamais um sectário
intransigente, nem se restringiu a cultivar o Direito criminal."
(1896:67)
Pela citação de Beviláqua, já é possível perceber que a antropologia criminal,
tal como se apresenta na trajetória de João Vieira de Araújo, aparece no
interior do movimento de especialização da onda cientificista, própria da
Escola do Recife. Como disse, é o espírito crítico e polêmico do movimento
cientificista que estimula a renovação dos estudos jurídicos mediante a
importação, entre outras teorias, da antropologia criminal, que adquire, desde
o início, um claro significado reformador.
Mesmo não sendo, no dizer de Beviláqua, um defensor radical das novas teorias
penais, Vieira de Araújo fortaleceu ainda mais sua reputação como jurista ao
divulgar as idéias da antropologia criminal no Brasil. Ele se correspondia
diretamente com o próprio Lombroso, o que facilitou o reconhecimento de seus
trabalhos na Itália (cf. Castiglione, 1962:276). Provavelmente inspirado pelo
espírito militante de Lombroso e seus seguidores, João Vieira de Araújo se
propôs a divulgar as noções da Nova Escola para além do Recife. Assim, nas
páginas de O Direito, revista especializada em legislação, doutrina e
jurisprudência e publicada na cidade do Rio de Janeiro, João Vieira de Araújo
apresentou vários artigos, nos quais defendia as teorias da Escola
Antropológica. No primeiro deles, intitulado "A Nova Escola de Direito
Criminal", comenta os trabalhos de Lombroso, Ferri e Garofalo,
explicitando que a Nova Escola "tem por objeto o homem criminoso e sua
atividade anormal e como fim a diminuição dos crimes que assoberbam as
sociedades atuais no esplendor de toda sua civilização" (Araújo, 1888:
487).
No ano seguinte, ele divulga as idéias da Escola Positiva em dois artigos,
"O Direito e o Processo Criminal Positivo" e "Antropologia
Criminal". No primeiro, afirma que Lombroso e outros autores, como
Spencer, Darwin e Hackel, haviam mudado a face não apenas das doutrinas
jurídicas, mas de todo o processo penal. Nesse sentido, Araújo defende idéias
que posteriormente serão bastante divulgadas pelos adeptos nacionais dos novos
conhecimentos, tais como as de que o essencial é combater os crimes ocasionados
por uma constituição orgânica e psíquica defeituosa, e de que o júri deve ser
totalmente abolido perante os crimes comuns:
"Há um outro ponto cardeal em que a Nova Escola não pode
transigir. O júri é uma instituição mais política do que judiciária e
pois ela pode ser conservada para julgar crimes políticos. Mas
entregar ao júri assassinos, ladrões, estupradores, falsários, enfim
o julgamento dos crimes comuns é sancionar a impunidade e a
impossibilidade de praticar qualquer sistema racional de repressão
social que se funde nos ensinamentos da ciência e no conhecimento
exato da natureza real do delinqüente." (Araújo, 1889b:330)
O júri será, sem dúvida, o principal alvo de críticas da esmagadora maioria dos
juristas da Nova Escola24.
No segundo artigo, João Vieira de Araújo esclarece que os estudos anatômicos
que haviam celebrizado Lombroso eram, na verdade, apenas um apêndice da nova
ciência do crime, que consistiria muito mais em uma grande "síntese de
conhecimentos obtidos pelos processos científicos da observação e da
experiência no estudo do homem criminoso considerado por todos os seus
caracteres somáticos e psíquicos" (1889a:178). Percebe-se, desse modo, que
João Vieira de Araújo entendeu claramente o ambicioso projeto do pai da
antropologia criminal.
Em outro texto publicado na mesma revista, já em 1894, intitulado
"Sociologia, Filosofia, Ciência e Direito", João Vieira de Araújo vê
com satisfação que o direito penal, mesmo no Brasil, passa a ser influenciado,
cada vez mais, pelos estudos científicos modernos sobre a criminalidade,
consolidando-se, assim, a tendência, aberta pela antropologia criminal e por
ele pioneiramente divulgada no país, para aplicação dos métodos positivos
também aos estudos jurídicos.
O otimismo manifesto por João Vieira de Araújo nesses artigos, publicados
sobretudo nos derradeiros anos do Império, não era descabido, uma vez que, nas
mesmas páginas de O Direito, outros juristas o acompanham na defesa das novas
teorias penais, como Macedo Soares e Melo Franco, mostrando assim que as idéias
da antropologia criminal já ganhavam importância no centro político do país.
Vai ficando claro nos artigos que a incorporação da Nova Escola Penal pelo
pensamento jurídico nacional é, segundo seus defensores, uma imposição tanto da
evolução do pensamento moderno, quanto das condições políticas e sociais
nacionais. O jurista Melo Franco (1889:337) lamentava, no entanto, que no
Brasil as reformas só se impunham quando já se estava, como naquele momento,
diante da iminência de uma revolução social. A revolução social não ocorreu,
mas veio a Proclamação da República e, com ela, novas esperanças de reformas
legais e institucionais, que animaram ainda mais os juristas adeptos da
criminologia, presentes, cada vez em maior número, nas duas principais
metrópoles do país, Rio de Janeiro e São Paulo.
Tratar Desigualmente os Desiguais
No Brasil, a Proclamação da República foi saudada com grande entusiasmo por
muitos juristas, que viam na consolidação do novo regime a possibilidade de
reforma das instituições jurídico-penais, segundo os ideais da Escola
Criminológica Italiana que ainda dominava o debate no interior do direito penal
na Europa. Embora o otimismo inicial tenha dado lugar a uma certa decepção, uma
vez que o Código Penal de 1890 ficou muito aquém do que se esperava, por se
organizar como um código ainda alicerçado nos ideais da Escola Clássica, a
percepção dos juristas reformadores ' de que as transformações sociais e
políticas pelas quais o Brasil passou da segunda metade do século XIX ao início
do XX colocavam a necessidade de novas formas de exercício do poder de punir '
mantém-se ao longo de toda a Primeira República. A substituição do trabalho
escravo pelo trabalho livre, o acelerado processo de urbanização no Rio de
Janeiro e em São Paulo e os ideais de igualdade política e social associados à
constituição da República estabeleceram novas urgências históricas para as
elites políticas e intelectuais no período, e para os juristas reformadores em
particular. Sobretudo, o ideal das elites republicanas de construir uma
sociedade organizada em torno do modelo jurídico-político contratual defronta-
se com uma população que aparece aos olhos dessa mesma elite ou excessivamente
insubmissa, como no Rio de Janeiro da época da Revolta da Vacina (cf. Sevcenko,
1984), ou por demais "multifacetada e disforme", como em São Paulo
(cf. Adorno, 1990). Assim, o antigo medo das elites diante dos escravos será
substituído pela grande inquietação em face da presença da pobreza urbana nas
principais metrópoles do país.
A criminologia, como conhecimento voltado para a compreensão do homem criminoso
e para o estabelecimento de uma política "científica" de combate à
criminalidade, será vista como um instrumento essencial para a viabilização dos
mecanismos de controle social necessários à contenção da criminalidade local.
Mas, com a Proclamação da República, os desafios colocados para as elites
republicanas não irão limitar-se ao estabelecimento de novas formas de controle
social, mas incluirão especialmente o problema ainda maior de como consolidar
os ideais de igualdade política e social do novo regime ante as
particularidades históricas e sociais da situação nacional. É com relação a
esse problema que os desdobramentos das idéias da criminologia parecem ter sido
mais interessantes.
As elites republicanas, desde o princípio, manifestam grande desconfiança
diante da possibilidade de a maior parte da população contribuir positivamente
para a construção da nova ordem política e social. O novo regime republicano,
longe de permitir uma real expansão da participação política, irá se
caracterizar pelo seu aspecto não democrático, pela restrição da participação
popular na vida política (cf. Carvalho, 1987; 1990).
A mesma desconfiança em relação ao que chamaríamos atualmente de "expansão
da cidadania" estará presente entres os juristas reformadores adeptos da
criminologia. Para os criminologistas, a igualdade jurídica não poderia ser
aplicada aqui tendo em vista as particularidades históricas, raciais e sociais
do país. Os ideais de igualdade não poderiam afirmar-se em face das
desigualdades percebidas como constitutivas da sociedade brasileira. Essa
desconfiança em relação à igualdade jurídica transparece tanto nos muitos
debates acerca da responsabilidade penal como nas diversas propostas de
reformulação ou substituição do Código de 1890 que atravessam toda a Primeira
República (cf. Brito, 1930).
Contudo, quem desenvolveu de modo mais coerente a crítica ao ideal da igualdade
jurídica, baseando-se igualmente nos ensinamentos da antropologia criminal, foi
o médico Nina Rodrigues. Um dos mais importantes adeptos de Lombroso no Brasil,
Rodrigues ' em seu ensaio As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no
Brasil, publicado pela primeira vez em 1894 ' expõe as principais
conseqüências, no campo jurídico-penal, que poderiam ser deduzidas da aplicação
rigorosa das idéias da antropologia criminal à realidade nacional. Se as
características raciais locais influíam na gênese dos crimes e na evolução
específica da criminalidade no país, conseqüentemente toda a legislação penal
deveria adaptar-se às condições nacionais, sobretudo no que diz respeito à
diversidade racial da população. Daí sua crítica inequívoca ao Código Liberal
de 1890, que pretendeu aplicar um mesmo conjunto de regras a uma população
amplamente diferenciada:
"Posso iludir-me, mas estou profundamente convencido de que a
adoção de um código único para toda a república foi um erro grave que
atentou grandemente contra os princípios mais elementares da
fisiologia humana.
Pela acentuada diferença da sua climatologia, pela conformação e aspecto físico
do país, pela diversidade étnica da sua população, já tão pronunciada e que
ameaça mais acentuar-se ainda, o Brasil deve ser dividido, para os efeitos da
legislação penal, pelo menos nas suas quatro grandes divisões regionais, que,
como demonstrei no capítulo quarto, são tão natural e profundamente
distintas." (Rodrigues, 1938:225-226)
Ou seja, se o país apresentava uma grande diversidade climática, física e
étnica, como seria possível estabelecer uma legislação penal que abstraísse
toda essa diversidade? Assim, para o médico maranhense, se as análises
científicas da antropologia criminal demonstravam plenamente a desigualdade
física, biológica e social da nação, somente as ilusões metafísicas da Escola
Clássica poderiam ter levado, como efetivamente ocorreu no Código de 1890, o
legislador a estabelecer uma igualdade jurídica genérica diante de uma
realidade tão desigual. Segundo Nina Rodrigues, o legislador pátrio
simplesmente abstraiu todas as desigualdades biológicas e sociais que marcavam
de maneira inconteste, aos olhos da ciência, a população brasileira, ao cometer
o grande erro de tratar igualmente indivíduos desiguais, o que, ainda segundo o
autor, só poderia criar conflitos no interior do organismo social.
Os juristas adeptos da criminologia se, por um lado, concordavam no geral com
as idéias acerca da responsabilidade penal expressas por Nina Rodrigues, por
outro, não podiam levar tão longe os argumentos da Escola Positiva, pois isto
poderia colocar em risco o próprio monopólio dos profissionais da lei no campo
da justiça. O que parece singularizar a atuação desses juristas reformadores é
que eles buscaram conciliar teórica e praticamente as doutrinas e os
dispositivos legais propostos pelas Escolas Positiva e Clássica. Mesmo sem a
tão desejada substituição do Código Penal de 1890, eles buscaram realizar
reformas jurídicas e institucionais que forçassem os limites aos quais o
liberalismo havia circunscrito o papel do Estado no país, pois, nas disputas
entre os adeptos da Escola Clássica e da Escola Positiva de direito penal,
estavam fundamentalmente em jogo concepções diferentes acerca do papel do
Estado ante a sociedade:
"Os clássicos, portadores de uma concepção liberal, viam o
indivíduo como possuidor de uma vontade ou consciência livre e
soberana. Os 'positivistas' de vários matizes representavam o
indivíduo como produto ou reflexo, de um meio genético e social
singulares. [...] Ligadas evidentemente a essas duas representações
sociais do indivíduo, duas representações modelares do Estado e seu
papel na sociedade. De um lado, um Estado guardião de rebanhos,
mantenedor, liberal; de outro, um Estado intervencionista e tutelar,
para o qual não poderia haver mais nenhuma barreira sagrada à sua
atuação em prol do bem comum'." (Fry e Carrara, 1986:50)
Os juristas adeptos da Escola Positiva, ao longo de toda a Primeira República,
irão propor, e por vezes realizar, reformas legais e institucionais que
buscarão ampliar o papel da intervenção estatal. Mulheres, menores e loucos, ou
seja, aqueles que não se enquadravam plenamente na nova ordem contratual e que
necessitariam de um tratamento jurídico diferenciado, serão alvos constantes
das preocupações dos criminologistas25. A discussão em torno da legislação da
menoridade, que culminará na elaboração do Código de Menores de 192726, e a
criação de estabelecimentos como o Instituto Disciplinar27e a Penitenciária do
Estado28em São Paulo serão algumas das reformas legais e institucionais
concretizadas ao longo da Primeira República e que foram influenciadas, em
grande medida, pelas idéias originalmente desenvolvidas por Lombroso e seus
seguidores. Também nos tribunais, as concepções acerca do criminoso nato e seus
desdobramentos se fizeram presentes durante muito tempo no Brasil29. Portanto,
a incorporação das idéias da antropologia criminal ao debate jurídico local não
deixou de produzir efeitos concretos e duradouros, tanto no plano dos saberes
como no das práticas penais.
Em todas essas discussões e ações, o grande desafio consistia em "tratar
desigualmente os desiguais" e não em estender a igualdade de tratamento
jurídico-penal para o conjunto da população. A introdução da criminologia no
país representava a possibilidade simultânea de compreender as transformações
pelas quais passava a sociedade, de implementar estratégias específicas de
controle social e de estabelecer formas diferenciadas de tratamento jurídico-
penal para determinados segmentos da população. Como um saber normalizador,
capaz de identificar, qualificar e hierarquizar os fatores naturais, sociais e
individuais envolvidos na gênese do crime e na evolução da criminalidade, a
criminologia poderia transpor as dificuldades que as doutrinas clássicas de
direito penal, baseadas na igualdade ao menos formal dos indivíduos, não
conseguiam enfrentar, ao estabelecer ainda os dispositivos jurídico-penais
condizentes com as condições tipicamente nacionais.
Se, por um lado, os juristas adeptos da criminologia não puderam reformar
totalmente a justiça criminal segundo os preceitos cientificistas de Lombroso e
de seus seguidores, por outro, conseguiram ao menos influenciar reformas legais
e institucionais ao longo da Primeira República. E, mesmo nas décadas
seguintes, as idéias discriminatórias da antropologia criminal de Lombroso e de
seus discípulos continuaram a "operar como um contraponto semiclandestino
ao valor formal da igualdade perante a lei" (Fry, 2000:213). Portanto, o
estudo dessa e de outras correntes cientificistas ' que tiveram grande presença
no debate intelectual brasileiro sobretudo na segunda metade do século XIX e na
primeira metade do século XX ', além de esclarecer um momento importante de
nossa história intelectual, pode contribuir igualmente para repensarmos as
práticas discriminatórias ainda presentes no campo jurídico-penal em nosso
país30.
NOTAS
1.Para um balanço bibliográfico dos estudos sobre o positivismo no Brasil,
consultar Alonso (1996).
2.O livro de Barros (1959) ainda permanece um dos principais estudos sobre a
produção intelectual brasileira da segunda metade do século XIX. Alonso (2000),
por sua vez, faz uma instigante reinterpretação da atuação política da geração
de 1870. Sobre o tema que irei desenvolver neste artigo, consultar os trabalhos
pioneiros de Carrara (1984; 1985; 1987) e Fry e Carrara (1986). As pesquisas de
Correa (1982) sobre Nina Rodrigues e de Schwarcz (1993), que estudou o discurso
racial em diversas instituições científicas e educacionais entre 1870 e 1930,
são igualmente fundamentais para a compreensão das questões que discutirei
aqui.
3.Apresento, neste artigo, com algumas alterações e atualizações, as idéias que
desenvolvi no terceiro capítulo de minha tese de doutorado (Alvarez, 1996).
4.Para uma breve caracterização histórica da criminologia, consultar Jeffery
(1972).
5.Acerca da vida e da obra de Lombroso, ver Wolfgang (1972).
6.A edição consultada foi a francesaL'Homme Criminel (Lombroso, 1887).
7.Consultei a segunda edição dessa obra (Lombroso, 1907).
8.As traduções das citações são de minha autoria.
9.É por isso que sua abordagem científica não ficou restrita apenas ao estudo
do homem criminoso, mas voltou-se também para outros tipos de indivíduos
"anormais", como os gênios.
10.O ano de 1880, quando passam a ser publicados os Arquivos de Psiquiatria e
de Antropologia Criminal, é considerado o momento de constituição da Nova
Escola (cf. Pradel, 1991:73).
11.O termo criminologia, segundo Carrara (1987:131), teria sido criado
originalmente por Garofalo. Usado inicialmente como sinônimo de antropologia
criminal, acabou popularizado quando as teorias naturalistas de Lombroso
passaram a ser mais criticadas, e os adeptos da Escola Positiva se viram
obrigados a considerar também os fatores sociais na etiologia do crime. Utilizo
aqui o termo criminologia como definição mais genérica desse saber normalizador
voltado para o conhecimento do homem criminoso, ao passo que a expressão
antropologia criminal será utilizada de maneira mais restritiva, identificando
especificamente a obra de Lombroso.
12.Acerca da obra de Garofalo, consultar Allen (1972).
13.Sobre Ferri, ver Sellin (1972).
14.Acerca dos congressos de antropologia criminal e das disputas que aí
ocorreram, ver o interessante livro de Darmon (1991).
15.A cisão mais forte que parece constituir-se no debate sobre o crime na
Europa no período contrapõe, de um lado, os adeptos da antropologia criminal ou
criminologia, inspirados sobretudo em Lombroso, e, de outro, os partidários de
uma visão efetivamente sociológica do crime, tais como Tarde e Durkheim. O
médico francês Alexandre Lacassagne, embora tenha sido um crítico de Lombroso,
defendia um determinismo biológico que não se distanciava muito das idéias da
antropologia criminal (cf. Mucchielli, 1998). De qualquer modo, essas divisões
perderão nitidez no Brasil, como será visto posteriormente.
16.Sobre Tarde, segui, em particular, o texto de Vine (1972). Consultei também
uma reedição de La Criminalité Comparée (Tarde, 1924), e os Études de
Psychologie Sociale (Tarde, 1898).
17.Durkheim era bastante crítico em relação às idéias de Lombroso e seus
discípulos. A propósito, ver, por exemplo, as críticas de Durkheim a Garofalo
em Da Divisão do Trabalho Social (Durkheim, 1978).
18.Ver Moraes (1939) e Castiglione (1962), entre outros.
19.Como afirma Schwarcz, ao se referir às teorias raciais no Brasil, o desafio
é pensar "na originalidade dessa cópia" (Schwarcz, 1993:41, 243), o
que, no caso da criminologia, implica pensar, sobretudo, nas razões de seu
rápido sucesso e de sua grande repercussão no final do século XIX e nas
primeiras décadas do XX no Brasil. As pesquisas mais recentes sobre o
pensamento social no Brasil nesse período têm apontado que mais importante do
que mostrar o descompasso entre as idéias importadas e a realidade brasileira é
mostrar como as idéias importadas se inserem e ganham novos sentidos como
instrumentos de intervenção política e intelectual na realidade local (cf.
Alonso, 2000).
20.Alguns autores, ainda, utilizam o termo "psicologia criminal", mas
também com um significado pouco específico.
21.Assim, mesmo autores que, como Aragão, subdividem o debate no interior da
criminologia entre três Escolas ' a Clássica, a Antropológica e a Crítica,
Eclética ou Sociológica ' enfatizam a possibilidade de convergência das
diversas abordagens criminológicas.
22.Sobre as noções de lei e de norma como princípios que organizam diferentes
modos de exercício do poder, consultar Foucault (1977; 1978; 1979).
23.Como a dissertação de Raimundo Pontes de Miranda (1895) e o trabalho do
acadêmico Luciano Pereira da Silva (1906).
24.A crítica ao júri indica como os adeptos da criminologia viam com total
desconfiança a participação popular no âmbito da justiça, ao mesmo tempo que
pretendiam reduzir todo julgamento a uma apreciação puramente técnica. Eles
criticavam a instituição do júri, sobretudo, porque esta lançava a justiça nas
mãos de indivíduos não especializados que seriam guiados por preconceitos e não
pela verdade científica. Paradoxalmente, foi o conservadorismo dos juízes e
advogados que impediu que a antropologia criminal triunfasse totalmente no
campo da justiça na Europa e nos Estados Unidos, uma vez que os profissionais
do direito "não podiam suportar a idéia de que a ciência quantitativa se
intrometesse em um domínio que havia muito lhes pertencia" (Gould, 1991:
139).
25.Tobias Barreto inaugura essa discussão com Menores e Loucos e Fundamentos do
Direito de Punir (1926), publicado pela primeira vez em 1884. Sobre a questão
dos "loucos criminosos" na época, ver Carrara (1987). Acerca da
mulher no campo jurídico penal, consultar Viveiros de Castro (1892; 1932).
26.Para uma análise mais aprofundada acerca da legislação da menoridade na
Primeira República, consultar Alvarez (1989; 1996).
27.Com relação ao Instituto Disciplinar, ver Mota (1909).
28.Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, também adepto das teorias criminológicas,
terá um papel pioneiro na construção do sistema penitenciário do Estado de São
Paulo (cf. Alvarez e Salla, 2000). Sobre a criação da penitenciária do estado,
ver o detalhado estudo de Salla (1999).
29.Ribeiro (1995), por exemplo, ao pesquisar dados sobre os crimes levados a
julgamento na cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930 mostra como as
concepções da Escola Positiva estavam presentes nos processos, contribuindo
para a consolidação de estereótipos discriminatórios contra negros e mulatos.
30.Trabalhos como os de Lima (1989), que estudou as práticas policiais no Rio
de Janeiro em sua relação com os dispositivos processuais penais, e os de
Adorno (1995), que pesquisou a discriminação racial na justiça criminal em São
Paulo, entre outros, têm indicado como a cultura jurídica nacional, apesar de
formalmente igualitária, está efetivamente baseada na atribuição de graus
diferenciados de cidadania a setores distintos da população (cf. Lima, 1989:
82).