A promessa da inserção profissional instigante da sociedade em rede: a
imposição de sentido e a sua sociologia
INTRODUÇÂO
Na busca de sentido para as alterações recentes nas formas de inserção na vida
econômica, podemos registrar uma polaridade de interpretações majoritariamente
absorvidas pela opinião pública (tal como ela se expressa nos órgãos de
comunicação). Do lado que chamaremos de "otimista", surge a idéia da chamada
"sociedade em rede", termo popularizado por Manuel Castells (1999), que dirige
a nossa atenção para novas formas de sociabilidade, mais diversificadas e
enriquecedoras quando comparadas a períodos anteriores, que estão se
desenvolvendo na esteira das dramáticas alterações tecnológicas, personificadas
pela extensão da internet nos anos 90. Do lado que designaremos de
"pessimista", as alterações são decifradas a partir da lente da economia
política e é ressaltado um novo, e cada vez mais importante, papel da
coordenação financeira na direção das organizações e das empresas em
particular. Novo por causa da preponderância das considerações exaradas do
mercado financeiro, em detrimento daquelas comprometidas com o desenvolvimento
das empresas manufatureiras e demais não-financeiras, e pessimista porque
registra a diminuição dos graus de liberdade para políticas sociais e de
desenvolvimento dos governos e para estratégias de longo prazo das empresas,
além de registrar negativamente as drásticas mudanças de expectativas
profissionais para os indivíduos.
Diante desse fato marcante da realidade atual, a literatura sociológica tem
registrado as evoluções de diversas maneiras, algumas das mais importantes de
forma indireta. A partir do grupo de autores influenciados diretamente por
Bourdieu, podemos encontrar uma grande variedade de tematizações suscitadas por
esse aspecto dos tempos modernos. Nesse quadrante da produção recente,
poderíamos destacar os textos reunidos em torno de La Misère du Monde(Bourdieu,
1995), que registra diversos tipos de exclusão social produzidos nos tempos
atuais, lembrando que alguns deles, por representarem mais perdas de ligação
social e de auto-estima do que privações econômicas absolutas, passam
despercebidos, ainda que produzam enorme sofrimento.
No seio da corrente "bourdieusiana", Gollac e Volkoff (1996) analisam os
agregados macrossociais para detectar as dificuldades que a população
trabalhadora francesa encontra para "estar C altura" das exigências dos novos
tempos, enquanto Balasz e Faguer (1996) e Beaud e Pialoux (1999) examinam
detalhes no plano monográfico. A última dupla estuda os operários do
tradicional setor automobilístico, os quais, antes considerados a vanguarda das
estratégias de redenção social, sofreram nos últimos vinte anos uma dramática
perda de importância na sociedade. Os reflexos desse processo implicam o quase
aniquilamento da auto-estima dos militantes sindicais e a conseqüente perda de
capacidade de mobilização da categoria. Para grande parte dos operários
autóctones, a nova conjuntura leva ao refúgio mágico do passadismo racista e de
extrema-direita. Quanto aos operários de origem imigrante, estes se tornam um
verdadeiro viveiro para o radicalismo islâmico. E para todo o grupo operário,
abre-se uma enorme crise de reprodução social, ligada também às transformações
do sistema escolar e à dificuldade de filhos de operários encontrarem um lugar
nessa nova paisagem, refletindo o processo nos atuais operários sob a forma de
diminuição ainda maior do sentido de futuro (Beaud, 2002).
A segunda dupla, por sua vez, analisa os novos espaços do mundo do trabalho
associados à informática, que prometia o final das fronteiras entre o
proletariado e as classes médias, levando o primeiro a locações cada vez mais
próximas do trabalho intelectual, redimindo, assim, o que já foi considerado a
principal chaga social das sociedades desenvolvidas. Os resultados encontrados
mostram a enorme dificuldade de os empregados de origem social modesta ou com
credenciais escolares pouco expressivas se sentirem à altura das exigências que
lhes são colocadas e o sentimento de desespero que vai tomando conta dos
agentes em uma situação do mercado de trabalho que tem o desemprego massivo
como pano de fundo permanente (Balasz e Faguer, 1996).
Finalmente, Dezalay e Garth (2002) desenvolvem uma pesquisa igualmente de
fôlego sobre a recomposição das elites nacionais, mais recentemente as latino-
americanas, principalmente aquelas ligadas aos espaços legais, diante dos
processos de internacionalização, examinando a produção do direito que, ao
mesmo tempo, conduz e referenda as transformações sociais recentes. Aqui, a
análise talvez se complete. Nela aparecem em carne e osso os agentes produtores
do processo, além de também serem historiadas a formação do novo léxico e da
nova legalidade que afirmam e confirmam o processo que estamos assistindo. E
assim ganhamos reflexividade diante da "globalização", fenômeno que
aparentemente não tem sujeito, que, assim como a chuva e o vento, viria da
natureza sem que o homem pudesse fazer muita coisa para evitar ou suscitar.
Na produção do grupo de autores acima, os temas correlatos da "globalização",
ou da "sociedade em rede", quase nunca são denominados, expressando
desconfianças mais do que evidentes com o processo de rotulagem de que as
ciências sociais recentes se fizeram produtoras ou, no mínimo, cúmplices. Antes
de participar do processo de nomeação, considerado nesse quadrante da
sociologia como uma ajuda na produção da "violência simbólica" opressora, esses
autores preferem examinar as dinâmicas de atores que estão em curso e as
conseqüências delas sobre a percepção dos dilemas sociais recentes e as
possibilidades de sua superação. Metodologicamente, eles trabalham com a idéia
de "violência simbólica": a capacidade diferencial e socialmente induzida de
enunciar um sentido verossímil para o mundo e de sustentar esse ponto de vista,
tanto na esfera pública quanto nos espaços privados, atribuindo a maior parte
das diferenças às disposições pessoais adquiridas na socialização típica dos
grupos.
Cabe ainda assinalar que, além dos estudos de Dezalay e Garth acima referidos,
diferentes autores inspirados em Bourdieu se debruçam sobre outros segmentos
das elites atuais, como a grande burguesia tradicional e a nobreza. Vendo a
questão a partir desses diversos ângulos, a produção da corrente
"bourdieusiana" acaba compondo um mosaico bastante rico e, creio eu, ainda não
totalmente percebido e consolidado em uma visão geral, mas que, se lido em
conjunto, nos permite assinalar que os atributos necessários para os indivíduos
desfrutarem do advento de uma globalização e de uma sociedade "em rede"
virtuosas seriam aqueles equivalentes à socialização típica das diversas elites
transnacionais, implicitamente inalcançáveis para a enorme maioria da população
francesa1.
A corrente acima é confrontada e, ouso dizer, complementada, pelo grupo
construído em volta de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, inicialmente saído da
primeira (ver Boltanski e Thévenot, 1991)2. Nessa abordagem, a ênfase é na
dinâmica das idéias e das possibilidades lógicas de construção de "ordens de
justiça" ou, mais recentemente, de "mundos possíveis". A tensão intelectual
entre as correntes se consubstancia justamente na recusa militante desta última
em aceitar o conceito de habitus, categoria central na primeira abordagem para
caracterizar o papel das disposições sociais, e dessa maneira, em recusar
quaisquer limitações cognitivas nos agentes examinados, exceto aquelas advindas
das lógicas argumentativas que são deflagradas nos processos dialógicos.
Para o grupo, as possibilidades de diálogo na sociedade capitalista tradicional
combinariam recursos argumentativos oriundos de seis famílias de justificativas
ou mundos possíveis (doméstico, cívico, renome, inspirado, comercial e
industrial), e os tempos atuais estariam gerando um novo tipo de mundo, aquele
chamado de "conexionista" - o equivalente do grupo para a "sociedade em rede"
proclamada por Castells. O bebê anunciado ainda não está maduro, mas poderíamos
adivinhar suas características - os contornos do novo mundo legítimo que pode e
deve se firmar. O conexionismo seria um princípio de sociabilidade dotado de
regras de legitimação que lhe são próprias e distintas das anteriores,
refletindo uma nova fase da sociedade capitalista. Nele, a virtude dos atores
residiria na sua capacidade de criar ou manter a fluidez dos arranjos de
indivíduos e dispositivos e de incorporar o maior número possível de antigos
parceiros nos novos projetos. A virtude, não necessariamente já existente, mas
construída principalmente a partir de uma derivação lógica dos argumentos
coligidos pelos autores nos manuais de organização empresarial recentes,
funcionaria também como um ponto de equilíbrio que tornaria a nova situação
justa e, por causa disso, tolerável. Nesse diapasão, uma vez determinado o
ponto de chegada, o esforço analítico da sociologia consistiria em examinar
situações em que as velhas ordens de justificação estariam se desmontando e a
nova emergindo. E socialmente, a sociologia se justificaria pelo esforço de
esclarecimento relativo às novas potencialidades que estão surgindo,
sinalizando à população os caminhos e comportamentos ao mesmo tempo desejáveis
e exigíveis (Boltanski e Chiapello, 1999).
O esforço dos autores franceses registrado acima encontra paralelo, entret
alii, nas digressões de W. Powell a partir da observação da cena norte-
americana3. Estudando as articulações organizacionais que surgiram em torno do
boom de empresas de alta tecnologia nos EUA e a aparente desarticulação das
formas características das empresas "tradicionais", Powell constata a
existência e robustez das redes, mas também um conjunto expressivo de promessas
de felicidade não realizadas, como o aumento da desigualdade de renda e da
insegurança no emprego, atribuindo estas últimas a uma possível "primeira fase"
do conexionismo, ainda caracterizada mais pela destruição das formas anteriores
do que pela clareza do alcance das novas. E, de maneira análoga até mesmo mais
incisiva do que seus colegas otimistas franceses, esse festejado autor neo-
institucionalista irá predicar uma marcha muito provável rumo a uma situação
mais virtuosa, caracterizada por um mundo povoado por pessoas mais abertas,
porque menos constrangidas pela famosa "gaiola de ferro" da burocracia
denunciada por Weber.
A produção sociológica norte-americana aproxima-se metodologicamente do grupo
francês de Bourdieu e tematicamente da economia política nos trabalhos de Neil
Fligstein (1993; 2001). Olhando, pelo menos nos últimos dez anos, para as
transformações que o enfoque financeiro tem produzido no universo
organizacional norte-americano, Fligstein desenvolve um aparato analítico
explicitamente calcado na noção de "campo" tomada de Bourdieu e, a partir daí,
demonstra um ceticismo bem fundamentado relativamente ao conceito de rede, bem
como algumas reticências ao alcance do chamado shareholder power, para ele não
muito mais do que uma nova estratégia retórica necessária para a legitimidade
das direções das grandes empresas, mas sem grande impacto real no sentido de
alterar o rumo das suas decisões estratégicas4. Para Fligstein, historiador das
formas organizacionais, a chamada "organização em rede" representaria apenas um
momento de transição, um átimo a ser superado pela recuperação das formas
burocráticas tradicionais5. Em uma provável atualização dos ciclos de inovação
descritos por Schumpeter, uma vez selecionados pelo meio ambiente os novos
produtos que irão vingar na atual vaga de novidades tecnológicas, as empresas
que contribuem para a sua produção irão abandonar as formas organizacionais
contingentes, próprias de situações indeterminadas, para reconformarem-se à
previsível e controlável organização hierárquica - a única que garante a
segurança das aplicações financeiras a longo prazo e uma vida mais tranqüila
para as altas direções das empresas e os alinhamentos internos dos ramos
industriais que custam tanto a se estabilizar (Fligstein, 2001:230).
Esquematizando, as análises que marcam o pessimismo ressaltam tudo que impede
(dificulta) os indivíduos de conformarem-se aos padrões exigidos pelos novos
tempos, enquanto os otimistas destacam os benefícios da promessa (se) cumprida.
Implicitamente, os pessimistas acusam os otimistas de ajudarem a construir a
imagem de que a "sociedade em rede" é uma realidade inelutável em relação à
qual só se podem discutir as melhores formas de adaptação; enquanto os
otimistas acusam os pessimistas de decretar a derrota antecipada dos
leftoversna competição social e, assim, contribuir para impedir qualquer avanço
social de membros das classes desfavorecidas. Desse modo, creio eu, uma vez que
dificilmente as razões de um lado poderiam anular as do outro, o ponto
essencial da análise passa a ser o estudo dos mecanismos e circunstâncias que
tornam os diversos grupos de indivíduos e a sociedade como um todo mais
sensíveis a cada uma das pregações.
Inicialmente, o lado otimista começa a disputa na frente, já que salta aos
olhos a constatação da existência e o aumento cada vez mais expressivo da
importância do que podemos chamar de "indústria do otimismo": a difusão de uma
enorme e variada panóplia de instrumentos de auto-ajuda, a partir dos mais
diversos suportes físicos, destinados aos mais diversos grupos sociais,
geracionais, de gênero, raciais e regionais. É difícil imaginar que o segmento
"otimista" da produção sociológica não acabe entrelaçado com esse importante
ramo da indústria cultural contemporânea, independentemente da vontade de seus
autores, já que, na busca de respeitabilidade para seus produtos, os produtores
de otimismo tendem a capturar e absorver qualquer objeto cultural que possa
lhes servir, inclusive e principalmente os mais legítimos6. Já a vertente
"pessimista", quando abordada na esfera pública, tende a ser recebida como
jeremiada, exceto talvez em manifestações diretamente políticas que
dificilmente adquirem visibilidade pública, salvo em épocas eleitorais.
A crer na digressão acima, uma conseqüência importante é que a idéia
conexionista, ao adquirir veracidade e positividade, acaba virando efetivamente
um modelo dominante para o enquadramento e a busca de sentido das vivências
pessoais e organizacionais observadas. O conexionismo, assim, vira uma espécie
de profecia auto-realizante, produzindo a sua própria veracidade7.
Finalmente, um aspecto que pode parecer idiossincrático, mas talvez lance mais
luz sobre a impossibilidade que virou necessidade imperiosa dos tempos atuais,
é que os nossos dois autores de referência para o conexionismo lembram que a
chamada "vida de artista" serve de padrão de comportamento esperado dos
agentes. Em ambos os casos, assinalam-se a constante "reinvenção de si mesmo",
o imperativo da construção de novos projetos, a incerteza em relação ao futuro
sendo "positivada" como abertura de possibilidades e a liberdade em
perspectiva. Essas características sempre estiveram presentes nas carreiras
artísticas, nas quais os agentes têm de se recriar constantemente, na medida em
que assumem novos papéis e passam a fazer parte de novas trupes. E, desde a
invenção da "vida de artista", no decorrer do século XIX, o sistema de
justificações que acompanha a profissão assinala o caráter positivo do
processo, contrapondo a vida aventurosa, generosa e interessante do artista à
vida previsível, mesquinha e desestimulante do burguês8. Talvez esse aspecto
explique o sucesso estrondoso e mesmo a funcionalidade das publicações sobre a
vida dos "colunáveis" que povoam a paisagem editorial recente. Mais do que
simples curiosos, estaríamos perscrutando a vida daqueles artistas que a
sociedade considera bem-sucedidos para tentar imitá-los, e isso não por
capricho, mas por necessidade.
OS ESPAÇOS EMPÍRICOS
Utilizo alguns trabalhos de meus orientandos e meus como uma espécie de "teste"
empírico para ilustrar alguns pontos do debate e das posições que descrevi
acima. Os estudos foram realizados a partir do desenvolvimento de projetos
centrados na observação de diversas construções organizacionais e
transformações profissionais recentes, abaixo discriminados:
(i) da adoção do sistema de "minifábricas" em empresas metalúrgicas situadas no
oeste paulista (Rotta, 2002);
(ii) da criação e manutenção de redes de vendedores autônomos ligados a
empresas "carismáticas"9; e
(iii) das dificuldades de conjugar carreira com vida pessoal, reveladas por
jovens engenheiras e informáticas (Dieguez, 2000).
A análise das entrevistas nos três espaços mostra a força prescritiva do modelo
de rede como ideal a ser perseguido e a incapacidade de "estar a altura dele" -
principalmente no que diz respeito ao imperativo da fluidez - torna-se escusa
suficiente para justificar o descarte de indivíduos, inclusive, e
principalmente, dos próprios depoentes. Inicialmente, pensávamos que o script
funcionava apenas para portadores de diplomas de nível superior - afinal, mais
diretamente atingidos pela pregação desse novo evangelho. Deparamo-nos com a
sua forte influência mesmo sobre os trabalhadores manuais da indústria, que
recebem os ecos do novo catecismo organizacional por caminhos ainda a serem
elucidados. Imaginávamos que as conquistas feministas acumuladas a partir da
década de 70 - não só as legais, mas principalmente as simbólicas - tornassem
as mulheres menos sujeitas a deslegitimações provenientes do credo. Também
nesse subespaço social, observamos a solidificação de um discurso que se
sobrepõe aos direitos que pareciam garantidos, relativizando-os sensivelmente
(principalmente nas questões referentes ao respeito das diferenças e dos
direitos reprodutivos). E, por fim, a mesma coisa ocorre com os chamados
direitos de stakeholding - os trunfos acumulados pelos trabalhadores por causa
da sua dedicação passada às empresas. A reverência a quem suou a camisa pela
empresa e que representa a sua história viva, personificada no respeito aos
trabalhadores mais velhos, também está esmaecendo, mesmo depois de ter voltado
a florescer no movimento da Qualidade Total.
Os três grupos de atores têm de fazer frente às interpretações legítimas do
sentido das suas inserções na vida econômica e lidam com muita dificuldade com
essas contingências, já que elas não se adaptam facilmente aos habitus
construídos nas origens e trajetórias dos indivíduos. Mas os condicionantes
sociológicos não os demovem. Eles ensaiam formas de recuperar suas
inadequações, particularmente através do imenso trabalho sobre-si-mesmo que
representam as experiências que estudamos10. Dessa maneira, nossos dois
desafios analíticos (colocados na linguagem bourdieusiana, mas não limitados
por ela) são de: (i) dar conta de como se processa essa imposição de sentido; e
(ii) como os agentes manejam para resistir e/ou compor com a violência
simbólica a que são submetidos e que, por sua vez, eles mesmos acabam
submetendo seus colegas-concorrentes.
No plano das formas organizacionais, o período mais recente foi revolvido por
um debate teórico intenso, em que os propugnadores da existência da novidade
foram confrontados com dois tipos de críticas, que colocam em dúvida diversos
pontos das suas proposições. Basicamente, existe a idéia do nosso "pessimismo",
expressa principalmente pelos autores mais próximos da escola regulacionista e
da economia política em geral, de que o assim chamado conexionismo não passaria
da volta a uma ordem mercantil anterior ao advento do Welfare State e,
portanto, da simples negação e revogação das regras de convivência social
impostas a partir do pós-guerra nos países centrais do capitalismo (Tilly,
2001) (e que se difundiram parcialmente entre nós). As diversas nuanças dessa
abordagem chamam os tempos atuais de "mundo das finanças", de "regulação
patrimonial" ou de "capitalismo de dividendos", divergindo marginalmente sobre
seu significado e estabilidade, mas sempre concedendo centralidade às
articulações financeiras em detrimento de todas as outras formas possíveis de
estruturação da sociabilidade econômica (Orléan, 1999; Boyer, 2000; Froud et
alii, 2000). Assim, para esse grupo de tendências analíticas, estaríamos
simplesmente diante da hegemonia do que alhures chamei de modelo 2 - o modelo
de empresa predicado pelo mercado financeiro -, o feixe de contratos da nova
teoria da firma (Grün, 1999).
Uma outra ordem de críticas mais próxima dos estudos organizacionais vem da
sociologia econômica. E é justamente a partir da análise da evolução das formas
empresariais mais recentes que vem a impugnação mais contundente (Fligstein,
2001:229). Para essa vertente, estaríamos simplesmente diante de uma renovação
das formas organizacionais hierárquicas, que não podem mais se manter no seu
formato e denominação tradicionais. Assim, a conceituação da sociedade em rede
seria apenas a hipóstase de um ponto de inflexão, cronologicamente determinado
e contingente, entre os pólos tradicionais de oscilação que são o mercado e a
hierarquia.
De fato, no plano dos indivíduos, uma análise aprofundada de (i) e (ii) revelou
a dificuldade dos profissionais em lidar com a "flexibilidade" exigida pelo
maravilhoso mundo das redes, e também mostrou a profunda desconfiança que a
network organization provocava nos aderentes ao comércio em rede, bem menos
desconfiados quando montavam suas operações em uma lógica puramente mercantil,
afastando-se da rede (estabelecendo-se efetivamente por conta própria, i.e,
fazendo literalidade da metáfora que dizia serem os vendedores da rede
empresários independentes) ou utilizando-a de maneira predatória. Na amostra de
operários e gerentes levantada e trabalhada mais recentemente, tivemos o auge
do encanto com a "nova fábrica", seguido de uma volta paulatina aos
pressupostos da cadência hierárquica "tradicional". Nessa última amostra (Grün,
2000), ficou bem claro que a experiência de flexibilidade introduzida na gestão
fabril foi interpretada pela maior parte dos agentes que dela participaram como
uma espécie de fase heróica inicial, formadora de uma cadeia de reciprocidades,
na qual eles "deram o sangue pela empresa" e, portanto, esta lhes deve alguma
coisa. No contexto de retração econômica que se seguiu, justamente, ao auge da
experiência examinada, anotamos um importante aumento inicial de produtividade
dos fatores. Este foi imputado justa ou injustamente ao novo arranjo
socioindustrial. E, por uma fina ironia do destino, essa mudança, ao não
envolver um grande investimento em máquinas e equipamentos, foi considerada uma
obra dos próprios trabalhadores. Estamos, assim, diante de um ricochete.
Afinal, depois de décadas de propagação do mito do determinismo tecnológico, o
fato de a maior produção ter sido alcançada por um re-layout deflagrador,
possibilitando uma enorme intensificação do trabalho, foi lido como uma obra
dos homens, dos próprios trabalhadores - um ato de heroísmo industrial por
excelência. Assim, a cronologia que constatamos conforma-se bastante à crítica
sugerida por autores como Fligstein, que anotamos acima11.
Mas abordar exclusivamente a interpretação majoritária entre os agentes trai a
lógica sociológica da situação. A implantação das minifábricas e a
interpretação dos tempos atuais como o advento da sociedade em rede é a obra
coletiva que agrega o subconjunto de agentes locais inovadores aos
propugnadores dos nossos novos evangelhos. Os primeiros operam no âmbito local
em sintonia com os ventos ideológicos mais gerais da sociedade e, em uma lógica
muito próxima à do pregador e do prosélito, constroem uma força social
específica no processo interativo que estabelecem com os segundos, responsáveis
pela propaganda dos novos comportamentos, ao mesmo tempo existenciais,
econômicos e organizacionais12.
Concretamente, no caso da nossa minifábrica, eis que no seio da fábrica
tradicional, localizada em São Carlos, cidade dos engenheiros por excelência13,
um grupo de agentes dotado de formações escolares e trajetórias consideradas,
na linguagem local, como soft, ou light - administradores de empresas,
psicólogas, pedagogas - encontra na idéia das "minifábricas" uma alavanca
excepcional para desestabilizar o equilíbrio de forças tradicional, tanto no
que diz respeito à questão do gênero, quanto entre as profissões da região, e
assim viabilizar ou acelerar suas carreiras. Desse modo, a exemplo de outras
alterações substanciais no equilíbrio em organizações, assistimos à deflagração
de uma dinâmica social interna ao mundo organizacional, mas largamente
sobredeterminada pela estrutura social, que é dotada de forte poder explicativo
para desvendar a realidade empresarial que elegemos como tema14. Nesse caso, a
idéia de rede e de inserção sempre provisória mas contínua na População
Economicamente Ativa, que funciona como prescrição inalcançável para a maior
parte dos membros das amostras que estamos trabalhando, adquire realidade
justamente para esse pequeno grupo de "jovens turcos". Sartrianos sem o saber,
ao pretenderem mudar o mundo, mudam os seus próprios lugares no mundo. E assim,
ainda que a fábrica que eles prescreveram como a única que pode sobreviver no
mundo globalizado não tenha durado muito tempo e esteja progressivamente
voltando a uma estruturação mais próxima da tradição e dos equilíbrios
profissionais15 que a ela correspondem, a sua fama como promotores das mudanças
os alçou a vôos inimagináveis em tempos anteriores, viabilizando, no mínimo, a
elevação de seu status na empresa ou em outras fábricas, e, no máximo, o tão
sonhado estabelecimento por conta própria como consultores.
Assim, para explorar as ambigüidades entre as experiências do grupo
majoritário, mas largamente passivo, e o grupo minoritário, mas ativo, creio
que um bom enquadramento para os insights levantados poderia ser o dos
critérios de justificação. Para o grupo estatisticamente majoritário,
verificamos a tentativa de recuperação do sentido dos eventos em torno da
adoção e evolução das minifábricas como uma seqüência cronológica de dom e
reciprocidade, inserindo assim o histórico dos eventos na chave cognitiva do
modelo tradicional de empresa paternalista, o nosso modelo 1. Para o grupo dos
"jovens turcos", nada poderia ser mais distante do seu entendimento da
situação. Numa boa ilustração da "sociodicéia" (teodicéia social) proposta por
Bourdieu (1989:377), eles olham para suas próprias atuações e trajetórias,
interpretadas como exemplos de ousadia e de persistência, ao mesmo tempo como
justificativas para seus sucessos profissionais e como exemplos a serem
seguidos pelos colegas ou ex-colegas deixados para trás. Uma vez que eles
conseguiram "chegar lá", eles tanto merecem as recompensas que estão recebendo,
quanto o caminho está aberto para todos os que demonstrarem a fibra moral da
qual eles são exemplo. E o corolário dessa montagem simbólica é sempre
"darwinista": quem não consegue seguir esses passos "evidentemente possíveis" é
culpado da sua própria desgraça.
É interessante notar que o enquadramento acima, que normalmente é proveniente
da lógica financeira, aparece aqui em um envelope retórico conexionista,
provavelmente porque esse é o único legítimo no tempo e local pesquisados. Na
verdade, em termos de arena pública, o único espaço recentemente pesquisado
onde o nosso modelo 2 apareceu de "cara limpa" foi no que chamei de versão 2 do
significado do mercado de capitais, a idéia de um mundo financeiro como espaço
arriscado onde os ganhos são altos, mas os riscos são elevados e os agentes têm
clara noção dos trade-offs e não podem ser estigmatizados pelos seus possíveis
lucros extraordinários, e tampouco reclamar dos seus eventuais prejuízos (Grün,
no prelo). Estaríamos realmente diante da constatação da impossibilidade de
sustentação do modelo 2 na arena pública, com exceção do mercado financeiro,
afinal seu estrito espaço de vigência? Os filósofos da linguagem ensinam-nos
que as metáforas são produzidas pela extensão dos significados originais, que
se transformam em bons esquemas para enquadrar fatos observados (Putnam, 1992).
O que então dizer sobre a aparente impossibilidade de extensão do nosso modelo
2? Seria um fato permanente ou transitório? Creio que uma boa apropriação
sociológica do conceito só pode aceitar a possibilidade da transitoriedade das
possíveis extensões de significado. Estando certa esta digressão, segue-se que
provavelmente uma das razões para a rápida difusão atual da idéia de rede deva-
se justamente à sua capacidade de eufemizar práticas injustificáveis quando
expressas no linguajar oriundo da família de idéias que conota nosso modelo 2.
Voltando aos nossos dois autores de referência para o conceito de rede,
verifica-se que ambos colocam requisitos bastante altos para afiançar a virtude
dos agentes no mundo conexionista. Na lógica desse possível arquétipo de
sociabilidade, os pontos postos em destaque são justamente aqueles que fazem as
redes funcionarem de maneira desimpedida e que reiteram a excelência desse
padrão de agrupamento: tudo que favorece diretamente a fluidez é valorizado,
assim como tudo que nelas inclua os indivíduos. Seguindo a apreciação detalhada
de Boltanski e Chiapello (1999), os indivíduos que seriam os "bons
empreendedores" das redes seriam os mailleurs (construtores de redes e
implicitamente produtores também de inclusão) e os "maus empreendedores" seriam
os faiseurs (aproveitadores das redes desenvolvidas por outrem e exploradores
da boa-fé dos outros agentes que a eles se associam).
Nossos entrevistados "empreendedores de rede" não parecem amoldar-se a tão
exigente padrão de conduta. Os relatos de suas epopéias fazem-se na primeira
pessoa do singular, a preocupação com os colegas que tiveram de se conformar e
de se adaptar às novidades é vocalizada principal, e quase exclusivamente,
através da idéia de que a necessidade e a lógica dos novos esquemas de
funcionamento organizacional lhes foram explicadas, e correspondentemente lhes
foram oferecidas diversas oportunidades de treinamento formal para a nova
configuração. Esses atos seriam suficientes para encaminhar os colegas nos
novos rumos. Dessa maneira, a incapacidade constatada de trabalhadores e
gerentes no acompanhamento das novidades foi diagnosticada e justificada pelos
"agentes de mudança" como falta de capacidade ou de vontade de aprender dos
operários e como falta de "jogo de cintura" por parte dos seus supervisores. E,
principalmente, ao indicar e disponibilizar os recursos, aos seus olhos
necessários e suficientes para a "reconversão" dos colegas, nossos mudancistas
consideraram-se desonerados no que diz respeito às suas obrigações morais e
profissionais.
O registro desse comportamento dificilmente poderia ser associado à idéia da
militância conexionista que os teóricos colocam como necessária ao aparecimento
e funcionamento do novo modo de sociabilidade. A sua lógica remete-nos muito
mais ao modo de justificação mais padronizado que pode ser extraído do espaço
do mercado - o princípio da igualdade de chances - do que aos princípios de
fluidez e de inclusão que deveriam alicerçar a nova ordem moral16.
INTRODUZINDO A HISTÓRIA
Evidentemente que a constatação de que nossos entrevistados não operam
integralmente na lógica conexionista não implica que ela não exista, muito
menos que ela seja impossível. De um lado, devemos nos acautelar quanto ao
sentido de pregação desse princípio de agregação e de justiça, que se reveste
de características quase de catequese religiosa; mas, de outro, é importante
deixar a porta aberta para percebermos as suas conseqüências sociais, sejam
elas quais forem.
Tivemos exemplos análogos de fenômenos organizacionais anteriores, como o da
"Qualidade Total" - QT. Transformada em evangelho, ela acabou tornando-se uma
espécie de discurso básico, em torno do qual se ensejaram as mais diversas
estratégias de reconversão social, ampliando a sua influência para espaços
muitos mais amplos do que aquele da manufatura industrial seqüenciada, para o
qual foi concebida. Nesses espaços distanciados da inspiração original, como no
chamado "terceiro setor", na educação etc., os princípios da QT eram
"aplicados" de maneira cada vez mais metafórica quanto ao seu conteúdo. Mas,
aos meus olhos, seria um erro analítico nos atermos somente à "essência"
organizacional daquele movimento. Mais correto seria lembrar a sua
característica de discurso de mudança legitimado, mantendo e realçando a
virtude de agrupar em sua volta a maioria dos agentes e dos impulsos
mudancistas nas diversas esferas, nas quais a QT era chamada a servir de
parâmetro (e uma espécie de "palavra de ordem") para atualizações e tentativas
de alteração de status das atividades e de seus agentes. Assim, entret alii
campos, o terceiro setor e a educação elementar, os nossos dois exemplos, ao
associarem-se à idéia de QT tornaram-se modernos e legítimos e, principalmente,
também se tornaram legítimos os agentes que iniciaram ou se agregaram ao
movimento pela QT naqueles espaços, até então fortemente deslegitimados17.
Da mesma maneira, a partir do exemplo acima, podemos dizer que a relação entre
discurso de mudança e comprometimento real com ela é bastante mais complexa do
que poderia parecer a um observador desavisado. Assim, creio que é necessária
alguma cautela antes de descartar o caráter "genuinamente mudancista" dos
nossos agentes, bem como julgar apressadamente o movimento conexionista em
termos de
cumpre, ou não, o que promete
18. Dessa maneira, parece-me que o melhor posicionamento analítico é procurar
saber justamente se o nosso "conexionismo" possui, ou não, essa capacidade
agregadora que observamos para a QT e, em seguida, tentar seguir os
desdobramentos lógicos produzidos pela sua mnemônica.
E, mesmo se o tempo ainda não nos instruiu suficientemente sobre o tema,
podemos pelo menos constatar que a retórica do conexionismo opera uma
dessensibilização importante, quando comparada às obrigações típicas que eram
"óbvias" para os profetas da qualidade19. Estes, envolvidos em um critério de
reciprocidade, eram obrigados moralmente a incluir e preservar todos os
stakeholders das organizações que "vestiam a camisa" da qualidade. Já o novo
credo, ignorando as exigências de seus teólogos mais rigorosos, parece tornar a
consciência menos pesada para seus aderentes. As lealdades com as empresas, com
os diversos espaços sociais de atuação e, inclusive, com os indivíduos parecem
desvanecer-se em favor do imperativo da fluidez, o qual, no nosso caso, ao que
os dados indicam, matiza e enfraquece a necessidade de inclusão. E, sempre é
bom lembrar, fluidez sem inclusão é uma das características do nosso modelo 2,
corroborando a percepção de que a idéia de rede tem servido para eufemizar
práticas indizíveis oriundas daquela família argumentativa.
Mas, voltando ao âmago do argumento dos nossos teóricos do conexionismo, o
fulcro da questão não são as práticas empiricamente observadas, mas antes o
fato de que fluidez + inclusão é uma espécie de ponto de equilíbrio possível,
em torno do qual a ordem conexionista far-se-ia justa, e por isso estável.
Resta-nos saber se dizer que o ponto de equilíbrio torna a situação justa e
estável significa também dizer que atingi-lo é, implicitamente, uma situação
provável, interpretação que daria uma tonalidade fortemente funcionalista à
nova teoria. Essa associação fica muito fortemente sugerida, para o caso de
Powell, co-autor do texto "fundador" do neo-institucionalismo, em sociologia
das organizações (Powell e DiMaggio, 1991) e praticante da disciplina contígua
do organizational behavior, bem mais comprometida com as práticas diretas de
intervenção do desenvolvimento organizacional. Já para caracterizar seus
colegas franceses, localizados no núcleo duro da sociologia, talvez seja
necessário um pouco mais de recuo. De qualquer maneira, como nos lembra
seguidamente Mary Douglas (1987), dificilmente poderíamos passar sem alguma
dose de funcionalismo.
Outra analogia sugerida com o movimento da QT é aquela referente à relação
entre retórica e aplicação efetiva dos princípios. Como já temos algum recuo
histórico para avaliar a QT, fica claro que aquele movimento teve seu início
com uma intensa mobilização retórica, que propagou primeiro a sua linguagem e
bem depois a aplicação mais direta das suas ferramentas e "filosofia". Essa
seqüência temporal talvez tenha enganado os analistas que se debruçaram sobre o
fenômeno no seu início. Investigando a QT apenas ao longo da década de 80,
constatamos a existência de um movimento que parecia restringir-se ao
estabelecimento de uma nova linguagem para exprimir as circunstâncias da vida
organizacional, com muito pouco impacto direto sobre a substantividade desta
última. Mas o passar do tempo mostrou-nos que aquela primeira fase correspondia
a uma espécie de acumulação primitiva de legitimidade para a QT, que na década
de 90 se difundiu por boa parte do tecido organizacional brasileiro com uma
rapidez que surpreendeu a todos... que não perceberam a relação complexa entre
retórica e aplicação direta das chamadas "ferramentas organizacionais". Da
mesma maneira, podemos pensar que os dados empíricos que alinhavamos até o
momento correspondam a uma também primeira fase do conexionismo, que
equivaleria a uma acumulação inicial de reconhecimento dos seus princípios, os
quais só mais tarde poderiam redundar na sua efetiva aplicação.
Mas talvez seja também importante anotar uma diferença: o alcance proposto
pelos teóricos conexionistas é muito mais amplo do que aquele ensaiado pela QT,
mesmo nas suas derivações mais distantes do projeto original. A idéia do "mundo
em rede" pretende abarcar as mais diversas formas de sociabilidade dos tempos
atuais, sendo que o espaço de convivência econômica se constitui apenas em uma
das esferas que estariam sendo transformadas pelo avanço da nova pregação, onde
a difusão da internet parece dar suporte físico para as imensas transformações
anunciadas (DiMaggio et alii, 2001). E possivelmente o encanto com a internet
considerada como "a" maravilha tecnológica da atualidade a tenha constituído em
fonte para a produção das metáforas que estamos usando para organizar o
pensamento e exprimir a complexidade da vida social20. As conseqüências dessa
utilização em termos das zonas da sociabilidade que se tornam obscuras quando
empregamos esse artefato cognitivo provavelmente só serão conhecidas no futuro,
mas a história das idéias serve-nos, de novo, pelo menos como uma lembrança
para a necessidade de adotarmos uma postura de cautela diante das
interpretações pendulares que falam seja do total ineditismo da situação que
estamos vivendo, seja da sua completa redução a algum momento do passado.
Um exame por outro ângulo das "sociodicéias" anotadas acima leva-nos de volta
para a nutrida discussão sobre o âmago das teorias sociológicas. De maneira
telegráfica, talvez injusta, mas rápida, podemos dizer que os autores que
propugnam pelo conceito de "sociedade em rede" entendem que essa novidade está
ao alcance da mão de todos os indivíduos que buscarem conformar-se ao novo
padrão de sociabilidade. Mas, se estivermos mais atentos às limitações impostas
pelos condicionantes sociais ao comportamento dos indivíduos, lembraremos que o
comportamento esperado pelos conexionistas corresponde a vários aspectos das
descrições das redes de sociabilidade das elites dos diversos (mas em grande
parte interconectados) beaux mondes(Pinçon e Pinçon-Charlot, 1997).
As observações empíricas que realizamos mostram mesmo indivíduos dilacerados
entre a necessidade de produzir e alimentar as redes de relacionamento que são
consideradas condição sine qua non para o sucesso organizacional e a
dificuldade real de encontrarem e se familiarizarem com as "boas relações"
necessárias para deslanchar socialmente. Seria bastante interessante avaliar
mais de perto as implicações cognitivas de os textos de divulgação chamarem o
espaço da sociabilidade de "capital social", entendendo as amizades e demais
relacionamentos, literalmente, como trunfos a serem conquistados e preservados.
Até que ponto esse espaço que até agora foi mais ou menos protegido do poder do
mercado se transformaria? Até que ponto a capacidade da sociedade em resistir a
essa "objetivação" acabaria se impondo? Essa questão aparece claramente na
amostra da Amway, na qual, ainda que sob o manto onipresente da metáfora da
organização como uma grande família, os indivíduos são instados diretamente a
"capitalizar" as suas relações sociais e familiares e delas extrair duplamente
os lucros esperados, seja na forma de compradores para os produtos, seja na
forma de novos aderentes-vendedores da pirâmide, mas acabam batendo no muro do
esgotamento das reciprocidades - e, provavelmente, também do esgotamento do
valor analógico da idéia de "capital" para exprimir as circunstâncias do
momento. É interessante notar que os indivíduos raramente permanecem na rede
durante muito tempo, mas esta se refaz constantemente, indicando que a "utopia
das relações precificadas" seja um mundo tentativo considerado factível por
largas parcelas da população, em especial das nossas classes médias.
Na amostra feminina, o fenômeno aparece indiretamente quando as entrevistadas
relatam as dificuldades para travar relações de trabalho reciprocamente
proveitosas com os colegas masculinos e o desconforto diante da dificuldade de
realizar matchings. Aqui, a idéia do mundo como uma selva onde não se pode
confiar em ninguém aparece bem delineada, tornando a realização do mundo
conexionista uma utopia muito distante. Nos relatos, o duro e fechado mundo do
trabalho profissional, onde o lugar da mulher está longe de estar garantido, é
confrontado com o prazeroso e aberto período anterior da vida universitária. Na
comparação, a etapa atual vivida pelas depoentes aparece negativamente, e os
colegas são vistos como sexistas e interesseiros. A análise dessa amostra nos
sugere fortemente a necessidade de avançar a análise do "maravilhoso mundo das
redes", introduzindo um matiz de gênero. As mulheres têm lugar nele? Seria este
um espaço onde as nossas antigas e velhas conhecidas "panelinhas" poderiam se
refazer, reescrevendo os seus princípios em uma linguagem mais adequada aos
novos tempos e assim ganhando uma nova legitimidade e conseqüentemente uma
sobrevida inesperada?
Voltamos a um problema de legitimação que não me parece muito bem contemplado
pela teoria. Desde o início da sociologia das organizações, seguimos a
discussão de como encarar as formas de sociabilidade que se criam nas empresas
ou que são importadas do mundo exterior. Apesar do dístico do "No acceptance
except for business" já destacado por Marx nos idos de 1860, as interferências
continuaram existindo e foram tratadas seja como inimigo a destruir, como no
caso do taylorismo inicial, seja como uma espécie de fatalidade com quem não há
outro remédio, exceto o de aprender a conviver e, se possível, extrair algum
proveito da sua existência, como é o caso da teoria das relações humanas,
desenvolvida em grande parte como reação ao taylorismo precedente. Talvez como
resposta a esse padrão de divide et impera, a teoria social crítica tenha
enfatizado mais o caráter positivo dos agrupamentos e o negativo das
individualidades. Nossos teóricos falam bastante do oportunismo individual do
faiseur, que se apropria do que poderia ser chamado de "capital social
coletivo", mas muito menos da qualidade das relações das redes entre elas e com
a sociedade que as abriga.
Para dar cores às minhas ressalvas, lanço mão da observação de um grupo de
calçadistas de origem armênia em São Paulo, que realizei no início dos anos 90,
portanto antes da imposição do enquadramento cognitivo que reza serem as redes
uma evolução virtuosa. A denominação de cluster, que o grupo começava a ganhar
dos analistas ligados à socioeconomia da época, dava-lhe cores positivas e, a
partir dessa nova pintura, ele podia contrapor-se às críticas dos calçadistas e
de fornecedores de outras origens, de que eles não passavam de uma "máfia
armênia", agrupamento implicitamente ilegítimo que conduzia práticas de
negócios que prejudicavam a concorrência porque privilegiavam os "patrícios"
como parceiros em detrimento det alii possíveis empresários; e também
prejudicava a comunidade, por talvez evitarem coletivamente a fiscalização e o
pagamento de impostos.
Naquele momento, o agrupamento étnico parecia deslegitimado e, por isso, fadado
à decadência. A cultura de cooperação étnica que havia se desenvolvido pari
passu ao cluster enfraquecia-se no choque com a cultura legítima dos negócios
que era aprendida nas escolas de administração pelos membros das novas
gerações. As necessidades de cidadania patrícia tornavam a freqüência às
escolas uma necessidade incontornável. Naquele ambiente, os ensinamentos,
inspirados pela época do milagre econômico, apontavam para a necessidade de as
Pequenas e Médias Empresas - PMEs espelharem as suas estruturas nas das grandes
empresas. Naquele quadro de referências, as PMEs não passavam de grandes
empresas ainda não crescidas e só se viabilizariam se alcançassem dito patamar
(Grün, 1999). Assim, nada de surpreendente na desqualificação da cultura
econômica ancestral, vista naquele momento como o império dos pequenos
expedientes improvisados - o contrário do conjunto de regras claras e
universais que regeria a grande empresa idealizada. Posteriormente, em sintonia
com uma nova inflexão internacional da cultura econômica legítima, surgiu ou
robusteceu-se uma vasta constelação de agentes, capitaneada pelo Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE, interessada
profissionalmente na promoção da Pequena e Média Empresa como uma virtuosidade
a ser estimulada. Ressurge o small is beautiful naquele contexto favorável que
louva as redes e outras articulações de agentes e contorna ou ultrapassa as
mazelas das organizações burocráticas. Coordenação sim, mas hierarquia
permanente, não. O exemplo da III Itália transforma-se em uma espécie de
moderno paradigma organizacional, e os novos agentes da difusão de princípios
organizacionais irão fazer espraiar rapidamente a "boa nova". De repente,
nossos armênios voltaram ao "lado bom" da cerca e é uma importante questão de
campo identificar as continuidades e rupturas no comportamento do grupo
posteriores à mudança do quadro de referência. Estávamos nós diante de uma
"máfia" que se transformou em um cluster? Grandes, pequenas ou inexistentes,
essas transformações apontam para a necessidade de adotarmos uma postura
analítica equivalente ao chamado "nominalismo dinâmico" de Ian Hacking (2002)21
- a pesquisa das interações entre os fenômenos de nomeação e o comportamento
dos agentes, sob pena de rebaixar a teoria social a um mero instrumento de
retórica para uso daqueles agentes suficientemente providos de capital cultural
para utilizá-la.
Na amostra das minifábricas aparece outra circunstância que mereceria maior
atenção. Creio que no enunciado da idéia de "capital social" está incluída uma
tentativa de neutralização, mesmo de racionalização das paixões nos
relacionamentos. Assim, a engenharia social que montou o esquema de cooperação
intensa no seio da mesma equipe de trabalho ao lado da competição com outras
equipes imaginava que a disputa entre os contendores se faria como em um "jogo
de compadres", produzindo apenas parâmetros e benchmarkings e não jogos de soma
negativa. Mas não é isso que assistimos: ao contrário, a metáfora ganha vida e
as disputas entre as equipes de trabalho ficam cada vez mais ásperas, fugindo
do controle da alta direção, tornando-se altamente disfuncionais. Entretanto, o
recuo em direção à hierarquia tradicional não é fácil quando esta idéia está
deslegitimada tanto interna quanto externamente. Feitiço poderoso não combina
bem com feiticeiro inexperiente: a tecnologia do uso das renomeações como
instrumento de controle social está longe de estar dominada e segura. Ou talvez
estejamos esbarrando, mais uma vez, nos limites de uma analogia - chamar os
processos que estamos analisando de "tecnologias sociais" ou de "ferramentas
organizacionais" nos induz a pensá-las como instrumentos colocados à disposição
de qualquer um que os encontre em um balcão e passe a utilizá-los. Mas essa
visão, cada vez mais difundida, talvez oblitere os requisitos sociais mínimos
para que os praticantes da nossa "engenharia social" consigam realizar sua
magia.
A análise dos nossos casos aponta ressalvas importantes para a idéia de "mundo
em rede". Os automatismos de nossa disciplina nos levariam a impugnar as
novidades e a apontar os problemas produzidos pelas tentativas de implementá-
las. Mas seguir nossos "instintos" talvez nos distancie do sentido da invenção
social. As ciências sociais talvez não estejam suficientemente atentas às
tentativas que despontam nos mais diversos quadrantes da estrutura social,
propondo, vendendo e, principalmente, buscando as transformações pessoais que
possibilitariam aos indivíduos irem mais acima na estrutura social do que
poderia prever a estrutura de chances objetivas. Penso, primeiramente, no
enorme e diversificado espaço da auto-ajuda nas sociedades contemporâneas,
explorado parcialmente no estudo sobre a Amway. Do meu ponto de vista, o
assunto vem sendo trabalhado de maneira excessivamente crítica pelas abordagens
sociológicas, que, ao focarem suas lentes sobre os aspectos evidentemente
manipulativos das diversas técnicas de desenvolvimento pessoal e na ganância de
seus vendedores, deixam escapar os efeitos sociais importantes que elas
produzem sobre os indivíduos que delas se servem. A vasta constelação que vai
da neurolingüística do cirurgião Lair Ribeiro à teologia da prosperidade,
construída e difundida recentemente por várias vertentes pentecostais, e à
"cabala para negócios", passando pelas diversas versões do tradicional "método
Silva" de se obter sucesso na vida e pela "cientologia" apreciada pelos astros
de Hollywood, representa um enorme espaço que pede e merece uma fina exploração
sociológica. Certamente, a enorme maioria dos métodos de trabalho-sobre-si-
mesmo não chega nem perto de entregar o produto que prometem, mas alguma coisa
eles entregam. Talvez, a ilusão escolástica de Bourdieu mais uma vez nos engane
e nos leve a exagerarmos na receita de pesquisa "cumpre, ou não, o que
promete", quando o mais proveitoso seria um design de pesquisa "antes-e-depois"
da utilização da técnica.
A análise do caso Amway dá nuanças ao problema: em um primeiro momento, o
decisivo da lógica social estudada parecia ser simplesmente a decepção com a
promessa não cumprida de enriquecimento rápido e as técnicas refinadas de
obliterar esses fracassos para os novos aderentes. Posteriormente, a análise
mostrou que a passagem por aquela organização, que reconhecidamente emprega de
maneira intensiva e sistemática os métodos de auto-ajuda no treinamento dos
seus aderentes, tornou os agentes mais "autoconfiantes" e mais "abertos para as
oportunidades da vida", vislumbrando novas alternativas de inserção econômica
que anteriormente escapavam das suas percepções.
Nossos aderentes, em grande parte, portavam um estigma de fracasso econômico ou
profissional. Um bom exemplo seriam alguns estudantes de pós-graduação que não
chegaram a terminar a sua tese. No mundo acadêmico em que eles estavam
inseridos, tal situação significava claramente o fracasso. Ao denominar o mundo
acadêmico como "burocrático" e suas provas de grandeza como simples rituais
"escolares" sem maiores relações com a "verdadeira vida", o espaço de
sociabilidade e de inserção econômica da Amway representava para eles um
fascínio facilmente explicável. Na reversão simbólica, eles deixam de ser
estudantes fracassados, e passam a se considerar empreendedores tolhidos pela
estreiteza dos professores-funcionários e da universidade-repartição. E a
operação, que à primeira vista pode parecer o enunciado de um eufemismo banal,
ganha robustez ao introduzir o aderente em um novo círculo da magia, o grupo
dos aderentes anteriores, que já passaram pelos rituais de reconversão e a
partir dessa fé neófita irão acolher e reforçar a idéia de que uma vida nova e
melhor se abre aos empreendedores em perspectiva.
A comparação da experiência comercial armênia no Brasil com os pontos
levantados no estudo da organização carismática mostra outro aspecto da trama
sociológica. Morfologicamente, muito pouco distingue a rede da Amway da rede de
"patrícios" comerciantes. E não é difícil perceber que o chamado "marketing de
rede" constrói a sua especificidade e faz-se atraente para diversas camadas das
classes médias, em geral distantes da pequena burguesia tradicional, mediante
um processo cultural de ressignificação de antigas práticas sociais e
econômicas típicas deste último grupo, em especial os membros das chamadas
"etnias comerciantes" (Grün, 1992).
Assim como o especialista em marketing se considera a antítese mesma do
vendedor tradicional, já que para ele as vendas são o resultado de um
posicionamento no mercado cientificamente estudado, nada mais distante dos
nossos aderentes ao marketing de rede, e também dos franqueados, do que o
comerciante tradicional de origem étnica bem marcada, como o português da
padaria, o turco do armarinho ou o italiano da cantina. Estas últimas figuras
estão ainda bem presentes na paisagem comercial das cidades e representam um
fantasma a exorcizar. Afinal, a epopéia mítica dos imigrantes que povoaram a
região que estudamos fala do começo difícil na roça, da passagem eventual pelo
trabalho manual urbano ou pelo pequeno comércio e, finalmente, de um ponto de
chegada muito desejado, que é a instalação profissional a partir do diploma de
nível superior, que assegura ao seu detentor status social e renda. Nesse
quadro de referências, a adesão a uma "simples" experiência comercial poderia
representar o arquivamento do sonho e, principalmente para o detentor de um
título universitário, o retrocesso social. Daí a importância do "envelope
organizacional" fornecido pelas empresas de marketing de rede e pelos
franqueadores: um exame "substantivo" de seus conteúdos talvez revelasse um
pequeno valor agregado em termos de facilitar a instalação e a continuidade do
novo empreendimento, mas esse tipo de análise perde de vista o significado do
"envelope retórico" que vem junto no pacote e que opera no nível identitário da
auto-estima e da representação social. A retórica desse tipo de arranjo
organizacional tenta unir a idéia de um mundo empresarial organizado, no qual
os agentes operam na realidade através de instrumentos que se querem
científicos - as chamadas "ferramentas" de pesquisa de mercado, de distribuição
de produtos, de gestão do ciclo financeiro, entre outras, que estariam sendo
postas à disposição dos franqueados ou dos aderentes ao marketing de rede -,
com a idéia da liberdade de iniciativa e de movimentos que é atribuída aos
empresários. E, dessa forma, o entendimento prevalecente é que nosso integrante
do marketing de rede faz parte de uma organização moderna, ou mesmo pós-moderna
(já que cultiva o discurso antiburocrático), que deve parecer a antítese mesma
do comércio ou da prestação de serviços tradicionais. Ao olhar o mundo desse
ponto do espaço simbólico, ele enxerga-se na dianteira, à frente do empregado
de uma grande empresa e justamente o oposto da posição que atribui ao pequeno
comerciante tradicional.
CONCLUSÂO
Ao procurar conhecer o significado das promessas da "sociedade em rede",
deparamo-nos com uma mecânica simbólica que opera mediante diversas formas de
enxertos e ressignificações lingüísticas22 que contribuem para descrever, e ao
mesmo tempo criar, as experiências de vida que buscamos compreender. Ao trilhar
esse caminho analítico para avaliar o que aos meus olhos, erroneamente, parece
ser um desenvolvimento que ocorre da mesma maneira nos mais diversos países,
tínhamos o objetivo justamente de ressaltar as especificidades da cena
brasileira e, indiretamente, chamar a atenção para configurações análogas que
provavelmente possam ter surgido em outras latitudes e longitudes. Há
certamente uma fôrma cultural de vigência internacional, expressa na adoção de
léxicos verbais aparentemente idênticos, que parece tornar iguais os processos
de adoção da "nova economia" que vêm acontecendo nas mais diversas regiões do
globo. Entretanto, creio ter registrado, essa nomenclatura se impõe opondo,
enxertando e ressignificando experiências bem específicas da nossa história que
não são idênticas a outras configurações sociais. Logo, a terminologia que é
usada internacionalmente para descrever a "nova economia", seus agentes e suas
sociabilidades, que parece apontar para a homogeneização das práticas
econômicas e dos seus significados culturais, está muito provavelmente
encobrindo importantes diferenças, que podem ser postas em evidência através da
busca das oposições de sentido locais. E nesse tópico é bom lembrar que os
cognitivistas estão sempre nos alertando para o fato de que acertamos "evitando
o erro" ou "sabemos muito mais o que queremos evitar do que o que queremos
conseguir". Assim, sem a consideração dos opostos, a análise da nova
nomenclatura, no seu sentido estrito de taxonomia, tem pequeno poder
descritivo.
A avaliação da importância dos fenômenos de nomeação pode nos levar a entender
a reação dos "bourdieusianos" às práticas de rotulagem de seus colegas/
concorrentes do mundo acadêmico, que sejam talvez irrefletidas, mas certamente
são prenhes de conseqüências. Uma sociologia dos intelectuais mais ligeira
apontaria aí a necessidade de diferenciação do grupo em relação às outras
tendências sociológicas e encerraria a questão. Estou convicto de que estamos
diante de uma configuração bem mais complexa. Por um lado, Bourdieu preveniu-
nos diversas vezes contra a chamada "tentação da regalia" - a usurpação do
direito, antigamente concedido aos reis, de definir as semelhanças e as
diferenças entre os seres e objetos, enunciando assim, com a sua autoridade,
como o mundo deve ser entendido e, finalmente, como o mundo é. Seus discípulos,
não só para preservar a cientificidade, mas também provavelmente por dever de
modéstia, mantiveram a vigilância contra essa tentação de o sociólogo tornar-se
um árbitro poderoso das tensões sociais. Mas, para o próprio Bourdieu (1980), o
corolário da prevenção é a necessidade de tomar o processo de rotulagem como um
importante ato produtor de realidades, não só subjetivas, mas também objetivas.
Estamos, assim, mais do que diante da necessidade de manter a cautela de tentar
fazer política através da sociologia, diante da necessidade de uma verdadeira
sociologia da rotulagem, que generalizaria e faria sociológico o estudo da
idéia de "assinalamento" proposta por Foucault e de quem Hacking, p. ex., é um
dos fiéis seguidores.
As outras abordagens sociológicas que tentamos avaliar trabalham o problema
diferentemente. Tentam entrar na disputa social pela definição correta do
fenômeno e extrair as possíveis conseqüências positivas da nova configuração,
se definida de acordo com suas visões. Nesse caminho, aparece justamente a
construção do imperativo ético da inclusão como característica necessária do
"conexionismo", um impulso ao mesmo tempo funcional e normativo no qual um dos
autores retoma suas preocupações com o ato desinteressado caracterizado na
figura grega e cristã da ágape e com a amizade em geral, ao mesmo tempo em que
oferece uma sustentação "sócio-lógica" para a concretização não utópica de
relações que seriam insustentáveis em outras ordens de justificação (Boltanski,
1990).
Na abordagem de Powell, autor influente nos estudos organizacionais, temos a
retomada de uma preocupação basilar da sociologia crítica das organizações com
o cerceamento da criatividade e com a desumanização em geral que é induzida
pelo convívio nas burocracias. Nessa linha, o autor é herdeiro de uma tradição
crítica que remonta a Weber e que passa fundamentalmente pela produção em solo
norte-americano dos "frankfurtianos", Herbert Marcuse (1967) em especial.
Trata-se aqui de procurar no horizonte alternativas funcionais à organização
burocrática que permitam melhores quadros vivenciais sem prejuízo das virtudes
produtivas da organização "racional". Para essa busca, a networking
organization parece ser uma das poucas, senão a única, boas respostas
disponíveis. Afinal, ela parece dissolver as barras da gaiola de ferro
burocrática, ao mesmo tempo pelo lado das empresas que são instadas a se
tornarem mais leves e flexíveis, e pelo lado dos trabalhadores, que no início
são obrigados a se "reinventarem" constantemente, para depois, em uma evolução
positiva, tomarem gosto por uma vida mais movimentada e variada, menos
constrangida pelas viseiras produzidas pelas instituições.
Já os membros de nossas amostras, estes, parafraseando ao mesmo tempo o dito
popular e a analogia erudita, são os verdadeiros artistas do cotidiano. Eles
estão vivendo compulsoriamente em um mundo diferente da promessa fundamental em
que se engajaram quando iniciaram seus investimentos escolares e profissionais
- momento também em que começaram a fazer seus cálculos subjetivos sobre o
futuro. Fazem muito para se adaptarem, são fregueses compulsórios da indústria
do otimismo e sempre acham que não fizeram o suficiente, e assim aprofundam a
tendência a crer na naturalidade do espaço em que vivem e que o único caminho é
seguir as receitas.
Para os cientistas sociais, fica o alerta de que essa visão do mundo social
como uma natureza inelutável se sustenta em grande parte por conta da nossa
cumplicidade ativa ou passiva. Em lugar de considerar a sociologia espontânea
produzida nos manuais de auto-ajuda e nos demais interstícios do mundo
econômico como uma espécie de "arte menor" que diminui quem dela se ocupa, é
imperioso enfrentá-la, tanto na sua variante que puxa para o fatalismo do
provável, definindo esse mundo "globalizado" sem sujeito, pré-construído e
irresistível, quanto sua irmã siamesa que apela para a ilusão da indeterminação
completa dos destinos individuais e que se apressa em vender sua receita de
salvação.