Linhagens do pensamento político brasileiro
Nos últimos anos, um heterogêneo conjunto de pesquisadores, equipados com o
instrumental analítico acumulado por décadas de ciência social
institucionalizada, vem não apenas revisitando o ensaísmo dos anos 30, mas
vasculhando a história intelectual do país e produzindo uma quantidade
respeitável de análises, pesquisas empíricas e historiográficas, interpretações
teóricas que têm contribuído para renovar nosso conhecimento dos padrões e
dilemas fundamentais da sociedade e da política brasileiras. Esboçado em meados
do século XX, tendo recebido notável impulso nos anos 70, este campo de estudo
chegou à maturidade nos 90, constituindo-se em um dos mais produtivos das
ciências sociais. Com efeito, além da emergência ou renovação das disciplinas
que investigam os fenômenos do viver em transição ' como a violência urbana, a
pluralização religiosa, a explosão do associativismo, as redefinições das
relações de gênero e as raciais, as transformações do mundo do trabalho, a
judicialização da política, o papel da mídia na formação da vontade política da
população, a financeirização da economia, os novos equilíbrios nas relações
internacionais etc. ', uma das características mais salientes das ciências
sociais que estamos fazendo é o crescimento e a diversificação desta área de
pesquisa que vem sendo chamada, com maior ou menor propriedade, de "pensamento
social" no Brasil ou de "pensamento político brasileiro".
Visto retrospectivamente, os seus contornos nunca foram muito claros: como se
trata de uma área de fronteira, acolhendo orientações intelectuais provindas
das diversas ciências humanas, o estudo do "pensamento político-social"
estabeleceu-se aqui, como em todo o mundo, no cruzamento de disciplinas tão
variadas como a antropologia política e a sociologia da arte; a história da
literatura e a história da ciência; a história das mentalidades e a sociologia
dos intelectuais; a filosofia e teoria política e social; e a história das
idéias e das visões-de-mundo. Essa superposição ' por vezes conflituosa na
medida mesma da indiferenciação ' talvez fosse inevitável no caso de país de
capitalismo retardatário como o nosso, uma vez que o tratamento da literatura,
da arte, da cultura e das ciências aqui praticadas acaba tendo uma importante
dimensão política por força da relação urgente que se estabelece entre formação
da cultura e formação da nação.
Como em todo lugar, muita coisa menor foi aí escrita, desde história das idéias
que não passava de exposição monográfica das concepções de um autor sem a menor
inquietação sobre a natureza da empreitada teórica e dos processos histórico-
sociais dos quais ' pensamento em pauta e forma de abordá-lo ' são momento e
expressão, até a pretensão de erigir a sociologia da vida intelectual ou a das
instituições acadêmicas em sucedâneo da sociologia do conhecimento, de resolver
o problema da qualidade e da capacidade cognitiva e propositiva de uma teoria
pela enésima remissão ao grau de institucionalidade da disciplina ou província
acadêmica na qual ela surge. Isso sem falar nas tradicionais "explicações" de
uma obra pela origem social do autor e nas moderníssimas reduções do conteúdo e
da forma da produção intelectual às estratégias institucionais ou de ascensão
profissional ou social das coteries.
Apesar disso, aquela diversidade favoreceu a acumulação de capital teórico e,
de qualquer maneira, não impediu a cristalização de um campo intelectual
diferenciado, que arrancava do reconhecimento de uma (rica) tradição de
pensamento social e político no Brasil para fazer da reflexão sobre os seus
"clássicos" ' visconde de Uruguai, Tavares Bastos, Sílvio Romero, Joaquim
Nabuco, Ruy Barbosa, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna,
Azevedo Amaral, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Nestor Duarte, Caio
Prado Jr., Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Guerreiro Ramos, Florestan
Fernandes, Celso Furtado etc. ' o instrumento para interpelar inusitadamente a
sociedade e a história que os produz. Junto com a "expansão quantitativa da
pós-graduação e a concomitante diversificação das formas institucionais que se
operaram a partir de meados dos anos sessenta", a existência dessa tradição, em
boa medida "anterior aos surtos de crescimento econômico e urbanização deste
século, e mesmo ao estabelecimento das primeiras universidades", terá
contribuído para a constituição e consolidação de uma ciência política
relativamente autônoma no Brasil (Lamounier, 1982:407). A reflexão sobre o
pensamento político e social revelou-se, entretanto, demasiada rebelde para ser
tratada como mera pré-história ideológica a ser abandonada tão logo se tenha
acesso à institucionalização acadêmica da disciplina científica. Demonstrou-se,
ao contrário, um pressuposto capaz de ser continuamente reposto pelo evolver da
ciência institucionalizada ' como um índice da existência de um corpo de
problemas e soluções intelectuais, de um estoque teórico e metodológico aos
quais os autores são obrigados a se referir no enfrentamento das novas questões
postas pelo desenvolvimento social, como um afiado instrumento de regulação de
nosso mercado interno das idéias em suas trocas com o mercado mundial.
Parte dessa rebeldia e capacidade de interpelação tem a ver, é claro, com a
centralidade do papel dos "clássicos" ' incluindo os "locais" ' nas ciências
sociais. Pode ser que resida aí alguma anomalia. Com efeito, em uma pesquisa
feita artesanalmente com um pequeno, mas senior grupo de cientistas sociais,
sobre quais seriam as obras e autores brasileiros mais importantes do século
XX, as respostas não indicaram estudos teóricos ou empíricos executados segundo
bons manuais metodológicos, mas Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e
Mucambos (1936), de Gilberto Freyre; Formação Econômica do Brasil (1954), de
Celso Furtado; Os Donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro; Raízes do Brasil
(1936), de Sérgio Buarque de Holanda; Coronelismo, Enxada e Voto (1948), de
Victor Nunes Leal; Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e Evolução Política
do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior; A Função Social da Guerra na Sociedade
Tupinambá (1952) e A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1964), e
outros, de Florestan Fernandes; Populações Meridionais do Brasil (1920) e
Instituições Políticas Brasileiras (1949), de Oliveira Vianna; e Os Sertões
(1902), de Euclides da Cunha (Schwartzman, 1999)1.
Tomando como padrão as ciências naturais ' que progridem esquecendo os seus
fundadores ' e desconsiderando a natureza das ciências sociais ' cujo trabalho,
sob certo aspecto, se assemelha ao de Penélope, que, para atingir seus fins,
necessita refazer o seu próprio caminho ', uma interpretação simplista não
hesitaria em qualificar tal situação como resistência à adoção dos
procedimentos metodológicos e técnicos que caracterizariam a verdadeira
Ciência, indicação de quão atrasados estaríamos no terreno da
profissionalização e institucionalização do saber. Fora desse sectarismo, no
entanto, o que a lista evidencia é que historicistas e anti-historicistas,
holistas e individualistas metodológicos, humanistas e cientificistas,
aprendemos todos a pensar o país com aqueles pensadores. Esta realidade, parte
ineliminável da experiência das gerações intelectuais dos 80 aos 21 anos, é por
si só suficiente para tornar risível o dar de ombros com que por vezes se os
considera ' como alquimistas diante dos químicos, como literatura para deleite
dominical do espírito, como relevantes tão somente do ponto de vista da
história da ciência. Apesar do caráter datado de muitas de suas proposições
teóricas e bases empíricas, o fato é que continuam a ser lidos como testemunhas
do passado e como fontes de problemas, conceitos, hipóteses e argumentos para a
investigação científica do presente2.
Nesse sentido, os pesquisadores que aceitaram o desafio de se movimentar nessa
zona de fronteira reconheceram cedo a força da "forma narrativa específica" ' o
ensaio histórico sobre a formação nacional ' que a tradição gerou e, ao mesmo
tempo, a necessidade de submeter textos e realidades pesquisadas ao tratamento
e controle sistemáticos, segundo os métodos de investigação especializada
(Lamounier, 1982:411)3. Como reflexão, a pesquisa sobre o pensamento político-
social prolonga uma tradição que se foi acumulando desde, pelo menos, as
décadas de 60 e 70 do século XIX, cujo exemplo conspícuo talvez seja a
tentativa ' sabidamente complicada, mas pertinente ' de Sílvio Romero, em um
momento de virada e esgotamento de um mundo, de pôr ordem na casa e verificar a
evolução da literatura em função da evolução do país (Candido, 1978). Como
espécie acadêmica, entretanto, ela ganha autonomia em relação aos estudos
literários apenas nos anos 50 do século XX, quando se torna agudo o debate
sobre os rumos a dar ao desenvolvimento econômico, a universidade se consolida,
o modernismo se rotiniza, a sociologia desbanca a literatura como forma
dominante de reflexão sobre a sociedade, e a direção intelectual e moral até
então exercida pelo pensamento católico se vê derrotada por uma variedade de
correntes as quais têm em comum o materialismo e o laicismo. Definiu ou renovou
alguns de seus principais esquemas interpretativos na década de 70, quando se
torna evidente que a associação "necessária" entre industrialização e
democracia não passava de "equação otimista"4, a investigação sobre a natureza
do Estado impõe-se, o exame das bases conceituais do autoritarismo ' formuladas
em grande estilo no início da Era Vargas ' vem para primeiro plano, e a
universidade vai deixando de sofrer a competição de agências produtoras de
idéias como as instituições e os partidos programáticos da velha esquerda. E
sai da periferia para a cidadania intelectual plena apenas no final do século,
quando a exaustão do Estado nacional-desenvolvimentista se manifesta por todos
os poros, a especialização exacerba a fragmentação do mundo intelectual, a
sociedade se vê diante do imperativo de reformular suas instituições e
redefinir seu lugar no mundo; e uma comunidade acadêmica consciente de sua
própria força pode, enfim, confessar suas dívidas intelectuais para com os
ensaístas.
Parece haver, portanto, uma íntima relação entre o caráter cíclico do interesse
por aqueles "intérpretes do Brasil" e a dinâmica histórica e cultural da
política brasileira, ou mais especificamente, alguma conexão de sentido entre
essa explosão intelectual e a conjunção crítica ' mudança global e, sob certo
aspecto, concentrada no tempo, que está forçando a reorganização das esferas da
nossa existência e a reformulação dos quadros mentais que até agora
esquematizavam nosso saber5 ' que estamos vivendo, apenas comparável aos
períodos abertos pela Abolição e pela Revolução de 30. Tudo se passa como se o
esforço de "pensar o pensamento" se acendesse nos momentos em que nossa má
formação fica mais clara e a nação e sua intelectualidade se vêem constrangidas
a refazer espiritualmente o caminho percorrido antes de embarcar em uma nova
aventura ' para declinar ou submergir em seguida. Talvez não seja excessivo
usar aqui a metáfora da coruja de Minerva, que só alça vôo ao anoitecer ' não
por acaso, e ao contrário da imagem costumeira, aquela "forma narrativa" que a
tradição consolidou está longe de ser um fenômeno de juventude, é um gênero da
maturidade, supondo acumulação intelectual prévia e refinamento estilístico ',
mas nesse caso conviria levá-la até o fim e reconhecer que se não há como ter
"perspectiva adequada sobre a época atual sem recolhermos a exemplaridade dessa
herança" (Weffort, 2000:19), a reflexão sobre o pensamento político,
totalizante por natureza, pode também vislumbrar sinais do novo mundo.
Dada tal acumulação teórica ' e talvez porque, além de lutar para produzir
"transparência sobre o real", aspire a ser "parte constitutiva dele" (Werneck
Vianna, 1997:213) ', o (estudo do) pensamento político-social foi capaz de
formular ou de discriminar na evolução política e ideológica brasileira a
existência de "estilos" determinados, formas de pensar extraordinariamente
persistentes no tempo, modos intelectuais de se relacionar com a realidade que
subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência institucionalizada,
estabelecendo problemáticas e continuidades que permitem situar e pôr sob nova
luz muita proposta política e muita análise científica atual. Também aqui, como
em outras partes do mundo, o esclarecimento das lutas espirituais do passado
acaba se revelando um pressuposto necessário à proposição de estratégias
políticas para o presente.
PRESSUPOSTOS, HIPÓTESES
O que me interessa, pois, é investigar a existência dessas "famílias
intelectuais" no Brasil, reconhecer suas principais características formais e
escavar sua genealogia. Verificar em que medida os conceitos de "idealismo
orgânico" e "idealismo constitucional", formulados originariamente por Oliveira
Vianna (1939)6, são capazes ' desde, é claro, que trabalhados de modo a
neutralizar suas petições de princípio e a esvaziar o que contém de
justificação ideológica de um projeto de monopólio de poder e de saber ' de
descrever e analisar as principais "formas de pensamento" que do último quartel
do século XIX para cá dominaram o pensamento social e político brasileiro. Em
seguida, circunscrever aquelas que, no processo de naturalização do Brasil
industrial, se esboçaram na contramão e, malgrado suas debilidades,
constituíram as primeiras concepções antiaristocráticas do país, fornecendo os
lineamentos gerais de todas as reformas sociais e econômicas propostas até a
ascensão do neoliberalismo ' como o "pensamento radical de classe média" e o
"marxismo de matriz comunista"7, estes frutos legítimos da "nossa revolução". E
formular, por fim, uma hipótese sobre o modo como essas correntes responderam
aos desafios postos pelo desenvolvimento histórico-político do país. Sem deixar
de examinar o conteúdo substantivo das ideologias e visões-de-mundo, a ênfase
analítica será posta na descrição das "formas de pensar" subjacentes '
estruturas intelectuais e categorias teóricas, a partir das quais a realidade é
percebida, a experiência prática elaborada e a ação política organizada. Mapear
estruturas intelectuais que se cristalizam historicamente como a priori
analíticos, e ver como se articulam com a perspectiva política mobilizada ' eis
o núcleo do trabalho.
Centrada no exame dos principais textos e conceitos que materializam tais
formas de pensar, a discussão, logo se vê, não se reduz à enésima leitura de
autores ou contextos irremediavelmente passados. Aceitemos por um momento, para
efeito de argumentação, as premissas skinnerianas segundo as quais o
historiador intelectual não deve se preocupar com a validade ou o significado
presente das idéias passadas, pois, ao lidar com respostas particulares a
problemas epocais particulares, a história das idéias e das teorias políticas o
faria de tal modo que o significado dos conceitos formulados no passado não
teria vida independente fora do contexto em que foi produzido, não poderia ser
transportado para o presente senão ilegitimamente (Skinner, 1988:29-67) ' com a
conseqüente suposição da incomensurabilidade entre os tempos e a rígida
separação entre explicação e interpretação, entre teoria e história, que elas
acarretam. Ainda assim seria possível assumir como pressuposto que, durante o
período abordado por este estudo, houve profundas mudanças, mas nenhuma mutação
ontológica radical de uma inteira constelação histórica; as modificações
cíclicas ocorridas, o aparecimento de novas concepções, teorias e
interpretações em resposta aos problemas postos pelo desenvolvimento social não
alteraram ou não esgotaram a estrutura básica da realidade sobre a qual nossos
autores refletem.
Por outro lado, o argumento de Skinner comporta dois momentos que deveriam ser
tratados separadamente: ele deriva da tese segundo a qual idéias e teorias só
se explicam pelo contexto (lingüístico) no qual se inserem a conseqüência de
que deve ser recusada toda interpretação que ultrapasse esse estrito
significado histórico (ou historista?). O primeiro raciocínio leva a uma
crítica feroz e consistente aos anacronismos, especialmente ao modo usual de
tratar os grandes textos do pensamento político esvaziando-os de historicidade,
como se fossem todos "contribuições" a alguma espécie de theoria ou de
philosophia perennis. O segundo acaba levando à cisão entre teoria e história,
entre o momento histórico e o sistemático no tratamento das idéias e da
compreensão de um texto, bloqueia qualquer relação entre os interesses teóricos
contemporâneos e as pesquisas sobre o significado dos textos históricos8.
Do ponto de vista aqui explorado, ao contrário, não apenas o objeto a ser
investigado não é uma preciosidade arqueológica, mas também sua exposição não
pode ser dissociada do debate contemporâneo que lhe é momento e parte
constitutiva. Nessa condição, não há como não confrontar leituras distintas do
pensamento político-social brasileiro, especialmente os principais modelos de
interpretação formulados nas últimas décadas, ao mesmo tempo verificando em que
medida há continuidade ou ruptura entre as formulações clássicas dos
convencionalmente denominados "intérpretes do Brasil" e o trabalho intelectual
que vem sendo produzido na universidade segundo os métodos de investigação
especializada. Na verdade, se uma das particularidades do estudo do pensamento
político é que ele aspira a ser parte constitutiva do objeto estudado, então,
no exame de suas grandes obras, a referência àquelas leituras "deve operar aí
como elemento de controle e, em vários momentos, como dimensão polêmica contra
as análises que buscam entender um pensamento coerente e original a partir de
seu exterior"9 (Cohn, 1979:XIII-XIV). Mas também como elemento de comprovação
das hipóteses a seguir sugeridas, na medida em que originais e exegeses
confluem para a formação do mesmo campo, cujos impactos político-culturais
serão intercambiáveis, mais do que análogos; acabam por formar, em conjunto, a
"tradição", as exegeses, prolongando-a, reinterpretando-a, renovando-a e, no
limite, reinventando-a. Invertido o olhar, a tradição ' e com ela, as formas de
pensar que discrimina ' persiste(m) nessas releituras que, por sua vez,
interpelam as obras e os conceitos a partir de agendas e circunstâncias em
parte inusitadas, impondo novos recortes e combinações.
Posto isso, assumo como pressuposto que nenhuma grande constelação de idéias
pode ser compreendida sem levar em conta os problemas históricos aos quais
tenta dar respostas e sem atentar para as formas específicas em que é formulada
e discutida, ao mesmo tempo que nenhuma grande constelação de idéias pode ser
inteiramente resolvida em seu contexto (Femia, 1988)10. Nessa direção, eis as
principais hipóteses que pretendo investigar. A primeira delas é se é possível
' sem prejuízo de suas mediações internacionais e sem deixar de atentar seja
para a especificidade teórica de cada um desses autores, seja para a
diversidade de contextos históricos nos quais eles atuam ' situar o liberalismo
atual em uma linha de continuidade que vem do diagnóstico de Tavares Bastos
sobre o caráter asiático e parasitário que o Estado colonial herdou da
metrópole portuguesa, passa pela tese de Raymundo Faoro segundo a qual o
problema é a permanência de um estamento burocrático-patrimonial que foi capaz
de se reproduzir secularmente, e desemboca, como sugere Simon Schwartzman e
outros "americanistas", na proposta de (des)construção de um Estado que rompa
com sua tradição "ibérica" e imponha o predomínio do mercado, ou da sociedade
civil, e dos mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e
"delegação"11.
Da mesma forma, sugiro que podemos ver no conceito de "formalismo", com sua
discrepância entre norma e conduta e com sua presunção de estratégia de mudança
induzida em uma sociedade razoavelmente desarticulada, e na distinção entre
"hipercorreção" e "pragmatismo crítico", propostos por Guerreiro Ramos nos anos
60, e nos trabalhos realizados por Wanderley Guilherme dos Santos sobre a
práxis liberal, e Bolívar Lamounier sobre o pensamento autoritário, na virada
dos anos 80, tanto marcos desse interesse acadêmico pela história intelectual
brasileira como momentos eles próprios de reconstrução das orientações ideais
de correntes ideológicas socialmente enraizadas. Assim, enquanto os conceitos
de "formalismo" e "autoritarismo instrumental" configuravam versões
espiritualizadas e "axiologicamente neutras" da crítica saquarema ao suposto
utopismo dos liberais, a crítica à "ideologia de Estado" acentuava a
contraposição entre as propostas de organização da sociedade a partir do Estado
ou do Mercado, de modo a recuperar a preocupação com a engenharia institucional
dos "idealistas constitucionais". Enquanto os dois primeiros renovavam pela
esquerda o "idealismo orgânico" de visconde de Uruguai e de Oliveira Vianna, o
terceiro retomava implicitamente Tavares Bastos e Ruy Barbosa, pelo menos ao
privilegiar a questão da forma de governo e ao considerar que as reformas
políticas e somente elas seriam capazes de tornar representativa a democracia e
desobstruir o caminho para as reformas econômicas e sociais12. No mesmo
sentido, não será surpresa constatar que, sem deixar de representar um notável
esforço de absorção dos "avanços metodológicos" da ciência social
internacional, os (a maioria dos) trabalhos mais importantes que foram
publicados no país nas últimas décadas sobre eleições, partidos e sistemas
partidários, governo, instituições e políticas públicas podem ser enquadrados
em uma ou em outra orientação. Uma vez situados, torna-se mais inteligível o
modo como cada autor e corrente responde aos desafios da "nossa revolução",
posiciona-se diante da agenda política do dia, expressa tendências sociais ' e
não apenas acadêmicas ou individuais ' de longa duração, luta para ganhar a
opinião pública e dirigir intelectual e moralmente a ação de grandes grupos
sociais.
Estabelecidas tais hipóteses principais, convém reconhecer que os anos 50
representam um notável ponto de inflexão nesse processo de gestação, ou
cristalização, das formas de pensar. Neles ocorre tanto a rotinização das
"inovações tecnológicas" do pensamento social dos anos 30 ' redescoberta do
Brasil, absorção da sociologia como método de abordagem da realidade, reflexão
sobre a natureza e a estrutura do Estado, reconhecimento da questão social etc.
', como uma mudança profunda de ênfase, estilo e problemáticas intelectuais,
marcadas dessa vez não apenas pela construção do Estado, mas pela emergência da
sociedade e de sua transformação como problema. Nesses termos, a idéia-força,
organizadora do campo intelectual, é a do desenvolvimento, e a questão
subjacente é a da democracia. Prefigurado quando a necessidade de modernização
do Estado ocupava o primeiro plano, o problema teórico da estrutura e dinâmica
da sociedade tal como se está constituindo torna-se determinante e logo,
projetos distintos, aliados e opostos de "superação do atraso" lutam para
imprimir à mudança social, direção. Este é um momento em que não apenas novos
sujeitos sociais e políticos emergem como é mais discernível a relação '
continuidade e descontinuidade ' entre novos e velhos atores (intelectuais
tanto quanto políticos). Nesse processo, como observei anteriormente, a
capacidade de direção intelectual e moral do catolicismo vive os seus
estertores, a literatura atinge o seu apogeu e declínio como matriz do modo de
ser do intelectual brasileiro, o discurso culturalista perde fôlego e a
sociologia ' que à diferença dos anos 1930, incorpora a economia política '
torna-se a principal forma de intelecção da realidade.
Ora, essa notável mutação social e intelectual não afeta apenas as formas de
pensar predominantes. Embora "idealismo orgânico" e "idealismo constitucional"
sejam as mais antigas e permanentes, não são obviamente as únicas existentes:
qualquer exame do conjunto do desenvolvimento intelectual e ideológico não
poderá ignorar aquelas socialmente minoritárias ' embora intelectualmente
influentes ' e marcadamente antiaristocráticas, que só podiam ter sido
produzidas em uma sociedade revolvida pela generalização do trabalho
assalariado, pela urbanização e pela industrialização.
Na entrevista em que apresenta a hipótese da existência de um "pensamento
radical de classe média", Antonio Candido sugere que ele envolveu a maior parte
dos socialistas e comunistas e se cristalizou a partir dos anos 40 e 50,
especialmente na Universidade de São Paulo e apesar da intenção elitista de
seus fundadores13. Contra os que cobravam a "revolução", Candido observa que o
interesse maior da constelação ideológica estava em "favorecer um pensamento
radical, e não assumir (uma impossível) posição revolucionária", o que teria
representado enorme avanço diante do "grosso do pensamento (que) era
maciçamente conservador, e não raro reacionário". Poderia acrescentar: a
despeito do papel desempenhado por aquela universidade ' bastante explorado
pela literatura, que apontou também a derrota de projeto acadêmico similar no
Rio de Janeiro (Miceli, 2001a; 2001b)14 ', o fenômeno estava longe de ser
estadual e mesmo regional. Se for assim, talvez seja possível reconhecer a
centralidade de Sérgio Buarque de Holanda e recortá-lo de modo a encontrar
identidades entre autores tão díspares como Manoel Bonfim, Nestor Duarte,
Victor Nunes Leal, Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. E talvez não seja
exagerado caracterizar esse pensamento democrático como socializante, quase
sempre socialista, de matriz liberal, por vezes constitucionalista. Cabe, por
isso mesmo, diferenciá-lo do que em outro lugar denominei de "marxismo de
matriz comunista", que, pelo menos a partir da segunda metade dos anos 50 e em
sua vertente "positiva", reconheceu que o processo político brasileiro
permitiria compatibilizar desenvolvimento do capitalismo e democracia, recusou
qualquer concepção "explosiva" da revolução e também apostou na "revolução
dentro da ordem" comandada por uma frente ampla das forças sociais modernas que
aquele processo havia gerado. Além disso, enquanto algum tipo de pluralismo
causal marca a primeira, o que caracteriza a segunda, do ponto de vista
analítico, é sempre a busca, bem ou malsucedida, de encontrar a unidade entre,
digamos, a infra e a superestrutura na explicação do social15.
Tomadas em conjunto, tais formas de pensamento não foram ou nem sempre são
necessariamente excludentes entre si: como fenômenos sociais e ideológicos se
interpenetram e se influenciam reciprocamente. Por outro lado, é claro que
outros recortes são possíveis. Nem todos os "pensadores político-sociais" se
enquadram nesta ou naquela linhagem, em vários convivem almas contrapostas e
nem sempre a proclamada é a real; e, como ocorre em toda família, por vezes os
mais próximos são os mais distantes, e ninguém pode impedir que um Montecchio
se apaixone por uma Capuleto. Sem falar que há sempre figuras marginais,
independentes ou bizarras. Mas é aí, felizmente, que está a beleza da análise
concreta. Podemos ver em situações como estas misturas menos ou mais
consistentes de "ética" de esquerda com "epistemologias" de direita, e vice-
versa, polarizações ambíguas ou conciliações produtivas, sublimes coerências ou
ecletismos mal temperados, mas o importante é não transformar as "afinidades
eletivas" entre idealismo orgânico e conservadorismo, entre idealismo
constitucional e liberalismo, entre materialismo histórico e socialismo, em
vias de mão única, relações de causa e efeito ou homologias entre ideologias e
posições políticas ' até porque toda concepção de mundo é um campo de forças,
mantém relações e ramificações em vários grupos sociais e manifestações
espirituais, supõe uma direita, uma esquerda e um centro, comporta teorias e
interpretações diferentes, de modo que alianças intelectuais entre pensadores
politicamente distantes, mas próximos pela forma de pensar, são possíveis. Como
diz Michel Löwy, a afinidade eletiva
"[...] não é a afinidade ideológica inerente às diversas variantes de
uma mesma corrente social e cultural (por exemplo, entre liberalismo
econômico e político, entre socialismo e igualitarismo etc.). A
eleição e a escolha recíproca implicam uma distância prévia, uma
carência espiritual que deve ser preenchida, uma certa
heterogeneidade ideológica. Por outro lado, a Wahlverwandtschaft não
é de maneira alguma idêntica a 'correlação', termo vago que designa
simplesmente a existência de um vínculo entre dois fenômenos
distintos: indica um tipo preciso de relação significativa que nada
tem em comum (por exemplo) com a correlação estatística entre
crescimento econômico e declínio demográfico. A afinidade eletiva
também não é sinônimo de 'influência', na medida em que implica uma
relação bem mais ativa e uma articulação recíproca (podendo chegar à
fusão). É um conceito que nos permite justificar processos de
interação que não dependem nem da causalidade direta, nem da relação
'expressiva' entre forma e conteúdo (por exemplo, a forma religiosa
como 'expressão' de um conteúdo político e social)" (1989:18, ênfases
no original)16.
FORMAS DE ABORDAGEM
Posta a questão dessa maneira, fica claro que o caminho escolhido não poderia
ser o da biografia, fosse ela escrita em chave psicológica ou em intelectual;
nem o da sociologia, seja a dos intelectuais ou a de suas instituições; nem o
da história das mentalidades, com o seu enfoque nas atitudes, comportamentos e
representações coletivas inconscientes. Do ângulo que aqui interessa, a chave
do problema não está em saber se o autor X ou Y era aristocrata de nascença,
parvenu ou membro da oligarquia decadente em busca de reclassificação social,
pois, embora isso tenha que ser levado em conta, não explica por si uma
estrutura teórica, uma obra de arte ou um problema científico; na verdade, não
cabe explicar a qualidade ou a especificidade de um pensamento político ou
produto literário pela evocação da "origem de classe" de seu autor. E
ampliando, em nenhum momento a produção intelectual será lida como reflexo
ideológico de grupo social preexistente ' como se pudesse existir uma "classe",
historicamente identificável pelo lugar que ocupa no processo de produção, e
depois a sua "consciência" ou a sua "visão de mundo"17.
Não se trata, tampouco, de reduzir idéias e modos de pensar as estratégias
micropolíticas das coteries as quais conferem eventualmente identidade
institucional; sequer de concentrar o foco na miríade de obras medianas pelas
quais determinada compreensão das coisas se refrata e se propaga, embora o
exame delas seja certamente necessário para explorar todas as variáveis, compor
e hierarquizar o quadro. Não desconheço, por certo, que idéias não se
transformam em ideologias ou mesmo em formas de pensamento sem que sejam
submetidas a processos mais ou menos sistemáticos de rotinização, nos quais
autores habitualmente considerados secundários e obras logo esquecidas
desempenham papéis fundamentais. Mas, por isso mesmo, convém ter em mente que
vale para os processos intelectuais aquilo que Gramsci individualizou em sua
nota sobre o "número e a qualidade do sistema representativo": neles o que se
mede é "exatamente a eficácia e a capacidade de expansão e de persuasão das
opiniões de poucos, das minorias ativas, das elites, das vanguardas etc., etc.,
isto é, sua racionalidade ou historicidade ou funcionalidade concreta"
(Gramsci, 2000:82). Nessas condições, não há como fugir do suposto segundo o
qual as obras mais significativas, os textos fundamentais, as criações teóricas
mais típicas são mais capazes ' porque mais coerentes, mais amplas, mais
profundas e mais autônomas ' de revelar a natureza de uma época e a
consistência de uma concepção política, de permitir aos homens a tomada de
consciência do que fazem e de extrair todas as implicações de sua própria
situação. Nesse sentido, é exemplar a reação provocada pela leitura de Formação
Econômica do Brasil em Oswaldo Aranha, relatada pelo próprio Celso Furtado.
"Celso, você me explicou o sentido do que fizemos nessa época; então eu não
sabia de nada"18. A análise, é claro, destaca apenas um aspecto específico de
um conjunto mais vasto, mas a perspectiva mobilizada permitirá interpelar as
idéias de determinados autores ' aí sim, sem reducionismos ' como momentos da
constituição de atores específicos, como tentativas de diagnosticar e resolver
problemas reais, de dirigir política e culturalmente a ação de forças sociais
determinadas.
Com Löwy, em nenhum momento estou sugerindo que análise desse tipo seja
incompatível com o reconhecimento do papel determinante das condições
econômicas e sociais. Mas reconhecer essa compatibilidade não implica supor que
idéias e formas estejam em conformidade direta com o desenvolvimento geral da
sociedade, possam ser dissolvidas em seus contextos (políticos, econômicos ou
mesmo lingüísticos), reduzidas a movimentos políticos conjunturais, descritas
necessariamente como homólogas aos grupos sociais ou às instituições onde
nascem. Claro, formas e idéias não caem do céu, não governam o mundo, não podem
ser pensadas a qualquer momento nem em qualquer contexto histórico, estão
enraizadas nas condições materiais de vida, são ' para usar a feliz formulação
de Carlos Nelson Coutinho ' "expressões condensadas de constelações sociais,
meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as contradições reais e, ao
mesmo tempo, de propor um modo novo de enfrentá-las e superá-las" (Coutinho,
2000:9). Por isso mesmo, não podem ser tomadas isoladamente, correlacionadas
caso a caso com eventos, grupos ou fenômenos sociais; são antes resultantes,
traduzem relações existentes entre grupos no interior da sociedade global, são
momentos não apenas constituídos, mas constituintes dessas relações ' sem
contar que, quando realmente significativas, sobrevivem aos seus contextos de
origem, são universalizáveis e podem ser interpeladas a partir de outras
condições e perspectivas. Como observa Marx, "[...] a dificuldade não está em
compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas de
desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem
ainda um prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor
de normas e de modelos inacessíveis" (1974:131).
Por isso mesmo, em um trabalho exploratório como este, o caminho mais seguro é
ir das idéias e das formas ao social ' na verdade, tomar as formas como
cristalizações do social, decantações da experiência ' sob pena de introduzir
na análise pressupostos deterministas e de cancelar a priori a riqueza das
mediações (Ehrard, 1977:181-184). Do mesmo modo, não se trata de riscar linhas
retas entre ideologia e forma de pensar, interpretação do país e linha política
que dela possa ser "deduzida", de julgar que, dada esta teoria, se segue aquela
política ' até porque tais relações estão longe de ser diretas e unívocas. Na
verdade, o significado que uma teoria, idéia ou interpretação acaba adquirindo,
mesmo no contexto em que foi produzida, nem sempre coincide com a intenção de
quem a formula e com o público que a acolhe. Por mais sistemático e coerente
que um conjunto de idéias seja, seu desenvolvimento jamais é inteiramente
imanente, mas sempre em resposta a problemas reais; ele não apenas se presta,
dentro de certa margem de tolerância, a atualizações e reconstruções, como pode
dar margem a diferentes políticas ' a não ser que aceitemos a metodologia
stalinista segundo a qual o traidor e a traição estavam em germe no desviante
desde criancinha, ou essa profecia retrospectiva que toma ação e teoria
"condenáveis" hoje como o produto necessário do que o indigitado escreveu 30,
40 anos atrás. Se for assim, é claro que o sentido ' progressivo ou regressivo
' de cada particular expressão do conservantismo, do liberalismo, do socialismo
liberal ou do comunismo não existe em si mesmo, só pode ser estabelecido em
função da natureza dos problemas postos pela sociedade em um determinado
momento de seu desenvolvimento, e da capacidade de seus portadores de dar
respostas à altura tanto desses dilemas históricos como das exigências do dia.
Nada disso impede, no entanto, o reconhecimento das determinações mais gerais a
que chegou o processo ideológico brasileiro, a detecção não apenas do, digamos,
liberalismo em geral, mas das determinações mais gerais do liberalismo ou do
conservantismo tal como eles se desenvolveram no Brasil, o destaque do que há
de comum entre diferentes manifestações históricas da mesma orientação básica.
É evidente que esse caráter geral, "este elemento comum que se destaca através
da comparação, é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determinações
diferentes e divergentes" (Marx, 1974:110). O intuito, claro, é demarcar a
existência, no plano das idéias e das formas de pensar, de continuidades,
linhagens, tradições, o que, convenhamos, não é de pouca monta em um país e em
uma historiografia que insistem ' a seco, com tristeza, ou ironicamente, o
efeito é o mesmo ' em dizer que a vida intelectual nunca deixou de ser o
passatempo de senhores ociosos, que nunca houve conservadorismo entre nós
porque entre eles não há pensamento, o liberalismo foi sempre de fachada, o
socialismo não passou de amálgama entre positivismo e estupidez etc.
Com todas essas ressalvas, penso que o recorte acima proposto é pertinente.
Posta a hipótese, eis o corolário: tendo como matéria a "imundície de
contrastes" de que falava Mário de Andrade ' pois, "como sucede com todos os
outros povos americanos, a nossa formação nacional não é natural, não é
espontânea, não é, por assim dizer, lógica" (Andrade, 1978:8) ', nem por isso a
vida ideológica brasileira é aleatória; faz, ao contrário, sistema e sentido,
embora seja (ou tenha sido) descontínua, sujeita a ciclos de substituição
cultural de importações que, por vezes, parecem fazer tábula rasa de todas as
anteriores configurações. Qualquer que seja a consciência de sua própria
história, ou o grau em que reconhecem os seus próprios ancestrais, suas
principais correntes não nasceram ontem e não se explicam apenas em função das
conjunturas. Se for assim, então a reflexão sobre essa história e seus ciclos
intelectuais pode ser uma boa porta de entrada para compreender e explicar a
natureza e os limites dos projetos políticos que buscam hoje dirigir os
processos de reconstrução do capitalismo brasileiro, de aprofundamento ou
contenção da democracia política, e de inserção autônoma ou subalterna do país
no movimento do mercado mundial.
FORMAS DE PENSAR
Ora, qualquer tentativa de definir a visão do país e o programa político da
corrente conservadora brasileira ' que foi responsável no século XIX pela
construção do Estado e pela manutenção da unidade territorial, forneceu no
século XX a diretriz básica da ação dos grupos políticos e das burocracias
dominantes no país (do tenentismo e do primeiro varguismo ao geiselismo, de
Agamenon Magalhães a Antonio Carlos Magalhães), e cuja origem intelectual
remonta em boa medida ao visconde de Uruguai e a Oliveira Vianna (Carvalho,
2002)19 ' reconhecerá que eles se assentam na tese de que não é possível
construir um Estado liberal (e democrático) em uma sociedade que não seria
liberal. Sua conseqüência prática é que esta precisa ser tutelada e a
centralização política e administrativa afirmada. A imagem do Brasil que emerge
do pensamento conservador é a de que esse é um país fragmentado, atomizado,
amorfo e inorgânico, uma sociedade desprovida de liames de solidariedade
internos e que depende umbilicalmente do Estado para manter-se unida. Nesta
terra de barões, onde "manda quem pode, obedece quem tem juízo", o homem comum
só costuma encontrar alguma garantia de vida, liberdade e relativa dignidade,
se estiver a serviço de algum poderoso. Fora disso, estará desprotegido ' a não
ser que o Estado intervenha. Ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, aqui
o Estado não deveria ser tomado como a principal ameaça à liberdade civil, mas
como sua única garantia.
Criticando os liberais por sua cegueira diante da realidade e pela tentação de
transplantar as instituições de além-mar, Oliveira Vianna sugere que, nessa
sociedade de oligarquias "broncas", a democracia política constitui a grande
ilusão. Seu aparato institucional pesado, lento, ineficiente e corrupto não dá
conta dos dinamismos e desafios do mundo moderno, sua subserviência ao sufrágio
universal e aos partidos ' que não passam de quadrilhas irmanadas contra o bem
comum ', apenas entrega o Estado de pés e mãos atados aos interesses
privatistas e aos coronéis, sua crença no poder local promove as curriolas e
sumidades de aldeia. Seria importante, em conseqüência, retomar a obra
centralizadora dos "reacionários audazes" do Império. Tratar-se-á de educar as
elites, evitar a luta de classes, dar prioridade à construção da ordem sobre a
liberdade, dar independência ao Judiciário, limitar as autonomias estaduais,
organizar a população por meio de corporações, e construir uma sociedade civil
(civilizada) por meio da ação racional de um novo Estado centralizado. E só
depois ' se é que haveria um depois! ' admitir a democracia política.
Paradoxalmente, vale aqui a boa ordem européia: só depois de garantida a
liberdade civil é que deveríamos nos lançar à construção da política.
A predominância da autoridade sobre a liberdade resultaria também, e
principalmente, da inorganicidade e atomização da sociedade: sem um Estado
forte, tecnicamente qualificado, imune à partidocracia e à política dos
políticos, capaz de subordinar o interesse privado ao social, controlar os
efeitos diruptivos do individualismo possessivo, do mercado etc., ambas não
sobrevivem. Além disso, em um território cuja geografia conspira contra a
política, a nação só tem chance sobre os escombros da federação. Liberdade
civil, unidade territorial e nacional garantida pela centralização político-
administrativa, e Estado autocrático e pedagogo, eis o programa conservador.
Do lado liberal, trata-se de buscar, como na Nova Inglaterra, "o maior
progresso de sociedade pela maior expansão da liberdade individual" (Tavares
Bastos, 1976), o que, no caso de país paradoxal como o nosso, exige um projeto
claro de reconstrução do Estado, sem o qual esta não se implementa. Todo o
dilema tem a ver com a distinção entre centralização política e
descentralização administrativa em um país que sempre teve dificuldades em
separá-las, com as relações que devem ser estabelecidas entre o poder central e
os poderes provinciais a serem revigorados, entre as instituições eletivas e as
nomeadas, entre um Legislativo soberano de um lado e um Executivo responsável
de outro, com o papel que deve caber a um Judiciário forte em uma ordem
política encimada por um ' explícito, como no Império, ou implícito, como em
quase toda a República ' Poder Moderador. Nesta ótica, a questão determinante
é, pois, a da forma do governo, sem cuja resolução a democracia brasileira
continuará um lamentável mal-entendido.
Tanto quanto os "idealistas orgânicos", o "idealismo constitucional" dos
liberais afirma a centralidade do papel do Estado na formação social
brasileira, com a radical diferença de que para os primeiros é o caráter
inorgânico da sociedade que põe a necessidade de um Estado forte que a tutele e
agregue, enquanto, para os segundos, é a presença do Estado todo poderoso que
sufoca a sociedade e a fragmenta. Aqui, a nefasta independência do Estado
perante a sociedade civil ' o nascimento do Estado antes da Sociedade Civil,
seu predomínio abusivo, a fatalidade dos indivíduos e grupos sociais que vivem
do e pelo Estado ' parece ser não um resultado das condições de ocupação do
território, da dispersão geográfica dos grupos humanos e das escolhas a
contrapelo das elites políticas fundadoras do Império e da Segunda República,
como entende a estratégia analítica dos organicistas, mas um pressuposto que se
assenta na história interna da metrópole, na transmigração oceânica do Estado
português e na reiteração severa e avara da cultura das origens (idem:29 e
ss.)20.
Feito esse diagnóstico e a crítica do Estado brasileiro (e da cultura política
cartorial que ele gera) do ponto de vista, digamos, da "sociedade civil"
manietada, a estratégia constitucionalista ' seja ela reformista como nos
revoltosos mineiros e paulistas de 1842, federalista como em A Província,
revolucionária, como na primeira edição de Os Donos do Poder, e mesmo radical
conservadora como no programa de reformas neoliberais da década de 90 (que
evidentemente abandona vários preceitos do liberalismo clássico, como os que
particularizam Tocqueville, Stuart Mill, Tavares Bastos ou Joaquim Nabuco) '
está voltada para restringi-lo ao necessário para que a "autonomia" daquela
sociedade se afirme, isto é, para que as dialéticas entre liberdade individual
e associativismo, entre representação e opinião pública, entre interesse
privado e nacional possam fluir ' e a sociedade global possa, enfim, ser
reconstruída.
O que faz a peculiaridade "idealista constitucional" dos liberais é,
entretanto, e como notou Oliveira Vianna, a preocupação com as formas, a
confiança no poder da palavra escrita, a crença em que a boa lei produziria a
boa sociedade, a idéia segundo a qual os problemas do país são fundamentalmente
políticos e institucionais, e só serão resolvidos por meio de reformas
políticas, a insistência em que, na ausência destas, reformas econômicas e
sociais não seriam possíveis ou não se sustentariam. Dito de forma positiva, a
categoria chave da estratégia liberal é a da "construção institucional",
historicamente cumulativa (Lamounier, 1999). Não cabe, por isso mesmo, aceitar
a priori o adjetivo "utópico" que Oliveira Vianna (e uma longa tradição que
apoda os liberais) pespega como sinônimo de "constitucional", não só por
considerar que o utopismo não é prerrogativa destes, como também por supor que
o "idealismo orgânico", hegemônico na maior parte da história política
monarquista e republicana, não sobrevive aos próprios critérios que servem para
condenar os "constitucionais": nas próprias palavras daquele autor, "a
disparidade que há entre a grandeza e a impressionante euritmia de sua
estrutura e a insignificância de seu rendimento efetivo" (Oliveira Vianna,
1939:10-11)21.
Coerente com os seus pressupostos, o liberalismo brasileiro ' monarquista ou
republicano ' toma a questão da representação como decisiva, propõe o
federalismo (eventualmente) e o parlamentarismo, reconhece a necessidade de um
Executivo forte, defende a independência e o papel de árbitro constitucional do
Judiciário, em cuja aristocracia deposita boa parte de suas esperanças de
preservação da liberdade, e pensa a ação e a organização da vida política como
um espaço cujo centro é o Parlamento, que deveria funcionar como uma espécie de
tribunal, no qual a verdade ou o melhor resultado emerge por meio da exposição
dos argumentos e réplicas, do choque agônico e não antagônico de interesses, e
das prudentes composições entre as partes, todas supostamente livres e
autônomas em relação ao mundo exterior, e movidas essencialmente pela
preocupação em promover o bem público22.
De todos esses aspectos, o federalismo talvez tenha sido o menos compartilhado.
Não apenas a questão da representação, reconhecendo-se a estrutura unitária do
Estado, pesa mais, como poucos intérpretes do Brasil se deixaram por ele
empolgar. Esporadicamente, o federalismo converteu-se em tema de pesquisa
científica, como agora, impulsionado pela crise do Estado e do regime
presidencialista, e pela guerra fiscal no quadro da Constituição de 1988. Entre
os que pensaram o país, a grande exceção, é claro, é Tavares Bastos, e com ele,
toda a corrente abolicionista ' Nabuco, Rebouças, Ruy ' que postulou uma
monarquia federativa como forma de fazer a abolição e salvar a monarquia;
derrota em que não faltou a marca das tragédias pessoais23. A opção mais
radical talvez tenha sido a de Ruy, seja por ter percebido antes dos demais a
incompatibilidade entre Monarquia e Federação, seja porque esta era mais
importante do que a República, a ela aderindo somente quando se convenceu que a
monarquia não a implantaria.
Se raro foi o federalismo como reflexão e ideologia, a federação "é um fenômeno
do nosso passado todo", como disse Nabuco ao propor em 1885 a bandeira ao
Partido Liberal e ver-se ridicularizado por este; por isso mesmo, ele esteve
subjacente à política brasileira seja como aspiração autonomista (como em Frei
Caneca ou nos Farrapos24), e até separatista (como em Alberto Salles (1983),
para quem a separação era o ponto de partida de um processo cujo fim era a
federação25), de elites regionais, seja como instrumento de contenção do
autoritarismo do Estado (como nas lutas antiditaduras do século XX). De fato,
ao lado do medo pânico diante das revoltas plebéias e pelo risco que poderia
representar à preservação da escravidão, ele foi um dos fantasmas políticos por
trás da opção dos pais fundadores pelo Estado unitário e centralizado, quando a
geografia e a administração descentralizada dos séculos precedentes (pelo menos
até a civilização das minas gerais e a experiência pombalina) apontavam em
outra direção; opção tornada definitiva pelos "reacionários audazes" que
trataram a pontapés as revoltas regenciais sempre que elas ameaçaram
transbordar os limites do conflito intra-elites; e reinventada pelas políticas
industrializantes ' e pelas duas ditaduras ' que moldaram boa parte do Brasil
moderno.
O federalismo, entretanto, jamais foi via de mão única, seja porque abraçado
por diferentes grupos sociais e interesses, seja porque o seu sentido '
progressivo ou regressivo ' variou segundo as conjunturas históricas, isto é,
de acordo com a natureza dos problemas postos na ordem do dia. De qualquer
maneira, seja conectada à orientação com a qual foi historicamente confundida '
quando a defesa da descentralização ou da federação se confundia com os
interesses das oligarquias regionais ', seja recuperada pelo que representa de
promessa de pluralidade e de elemento de negação da via prussiana de
desenvolvimento capitalista que acabou se efetivando, a bandeira federalista
parece condenada a reencarnar ciclicamente, vale dizer, em toda conjuntura
crítica que coloque em tela o contrato social, a reformulação do arranjo de
poder do país. Talvez por isso mesmo, sua influência, ainda que débil, não
tenha se limitado ao campo liberal estrito senso, tornando-se peça central, por
exemplo, da reflexão de Celso Furtado, segundo Chico de Oliveira o único dos
"intérpretes do Brasil" a levá-la a sério, ao arquitetar um "federalismo
regionalizado cooperativo" como instrumento de impedir a exclusão do Nordeste e
evitar a implosão da nação pela radicalização de suas disparidades internas
(Oliveira, 2003:80-81)26; e da corrente comunista paulista do "poder local",
que, na década de 60 e com base em uma releitura do papel dos estados na
Revolução de 1930 e no Golpe de 1964, confrontou o unitarismo e o
antiliberalismo do prestismo e da esquerda que aderia à luta armada, propondo
ao contrário o longo caminho das instituições, isto é, uma estratégia eleitoral
de cerco do poder central pela conquista de prefeituras dos centros
metropolitanos e de governos dos principais estados (Brandão, 1989).
TEMPORALIDADES
Delineado o campo analítico, recortado o objeto e formuladas as hipóteses para
estudá-lo, cabe agora especificar que o esforço para desentranhar "afinidades
eletivas" entre pensadores ou teorias, continuidades subterrâneas de longa
duração e nem sempre percebidas pelos próprios autores-atores etc., nada tem a
ver com a busca de "matrizes ideológicas transepocais" ' para usar a linguagem
do saudoso José Guilherme Merquior em sua crítica a O Espelho de Próspero, de
Richard Morse, que raciocinaria como se existisse uma "cultura política cuja
forma mentis foi elaborada pela Espanha filipina e não obstante perdura até
hoje (Merquior, 1989:13)"27. Não se trata sequer de imaginar no plano das
constelações ideológicas ' ainda que esta seja a esfera do real que muda mais
lentamente e tenha maior capacidade de sobrevivência ' uma espécie de
reprodução dessa história imóvel de cinco séculos que, pela direita e pela
esquerda, algumas das "interpretações do Brasil" injetaram no senso comum,
teorias segundo as quais o que viria a ser a sociedade brasileira já estava
prefigurado civil e economicamente tão logo o português aqui montou a primeira
feitoria ou começou a produzir para o mercado mundial. Ao contrário, há que
partir da altíssima taxa de mortalidade das iniciativas intelectuais de se
haver com nossa experiência, de reconhecer que a história das idéias, das
ideologias e das teorias políticas é, em grande parte, um vasto cemitério, de
tal maneira que a constituição de "famílias intelectuais" e formas de pensar é
mais um resultado do que um pressuposto ' padrões que se constituem ao longo de
reiteradas tentativas, empreendidas aos trancos e barrancos por sujeitos e
grupos sociais distintos, de responder aos dilemas postos pelo desenvolvimento
social.
De fato, ainda que deitem raízes em uma formação histórica particularmente
adversa, as matrizes intelectuais passíveis de rastrear só poderiam existir em
uma sociedade na qual o capitalismo já se houvesse enraizado, quer dizer, não
apenas a partir da precoce opção pelo "espírito do capitalismo", mas também
quando (e porque) este já lograra ocidentalizar ou criar boa parte das
instituições locais, de tal modo que a civilização que aqui se armava passara a
estar, como diria Euclides da Cunha, condenada ao progresso28. Nesses termos, a
investigação delimita como ponto de partida que a ruptura básica na curta
história de cinco séculos se dá com os oitocentos, e especifica que, por mais
que haja continuidade entre a Colônia e o Império, ou entre o Império e a
República, a criação do Estado político e a liquidação do escravismo colonial '
faces do mesmo fenômeno, ainda que dilatadas no tempo ' introduzem
descontinuidades que redefinem o conteúdo e a profundidade daquela, refutando a
idéia de uma história sempre a mesma. Como diz Caio Prado Júnior, o século XIX,
"[...] marca uma etapa decisiva em nossa evolução e inicia em todos
os terrenos, social, político e econômico, uma fase nova [...]. O seu
interesse decorre sobretudo de duas circunstâncias: de um lado, ela
nos fornece, em balanço final, a obra realizada por três séculos de
colonização e nos apresenta o que nela se encontra de mais
característico e fundamental, eliminando do quadro ou pelo menos
fazendo passar para o segundo plano, o acidental e intercorrente
daqueles trezentos anos de história. É uma síntese deles. Doutro
lado, constitui uma chave preciosa e insubstituível para se
acompanhar e interpretar o processo histórico posterior e a
resultante dele que é o Brasil de hoje" (1957:5)29.
Tais matrizes intelectuais são, portanto, produtos, resultados de processos
para os quais concorreram múltiplos fatores; embora conhecidas, só puderam ser
reconhecidas quando o tecido social adquiriu certa densidade, a sociedade
internalizou seu "centro de decisão", intelectuais e grupos encontraram nas
ciências sociais o instrumento adequado para pensar sobre si próprios; e na
medida em que conseguem constituir, ao longo de dramáticos processos de
substituição cultural de importações e por débil que seja, cultura em sentido
sartreano, vale dizer, por destilar uma série de problemas, interpretações,
formas de abordagem da realidade do país, controvérsias, êxitos ou fracassos
analíticos e políticos, que vão constituir um fundo comum ao qual as novas
leituras vão sendo obrigadas a se referir no enfrentamento das questões postas
pelas circunstâncias históricas30.
Por isso mesmo, e novamente, não se trata de postular enteléquias que pairam
acima dos processos sociais, e muito menos de enxergar sempre no novo o antigo,
como costuma ocorrer com os que vêem em tudo a "consciência conservadora", o
"estamento burocrático", o "formalismo", a "conciliação" etc. Nada garante, nos
momentos em que surgem ' confrontando-se sobre o Império, como durante a crise
do Segundo Reinado ' ou são reinventadas ' como nas críticas ao liberalismo e
ao republicanismo da Primeira República e mesmo no choque entre
desenvolvimentismo e liberalismo em meados do século XX ', que serão elas e não
outras que se cristalizarão. Como costuma ocorrer com fenômenos socialmente
significativos, também aqui tais formas de pensar, pressupostas, só sobrevivem
se forem repostas pelo evolver do desenvolvimento histórico, não sendo possível
definir com antecedência quais de seus conteúdos substantivos e esquemas
intelectuais sobreviverão; e cada reposição, cujo alcance e profundidade nem
sempre se dá imediatamente à consciência, expressa uma mudança de qualidade
(para frente ou para trás) no fenômeno ideológico e no próprio processo
histórico.
O PROBLEMA: CONTINUIDADE ENCAPUZADA
Na verdade, uma das mais claras manifestações da rarefeita história cultural e
ideológica brasileira é que, embora esta seja uma das formas pelas quais os
intelectuais costumam construir suas identidades, nem sempre é, ou não era
verdadeiramente, possível situá-los analiticamente em "escolas",
"instituições", correntes e tendências coletivas ' pretensão que muitas vezes
não passa de wishful thinking (dos atores) ou arbitrárias imputações (dos
analistas). A vontade de ver "o que ainda não existe, a nação" tem sido
responsável por esse singular anacronismo institucionalista que consiste em
secionar disciplinar e institucionalmente onde a atividade cultural é
incipiente e não há instituições consolidadas e tipos intelectuais e políticos
nitidamente diferenciados. O analista assume como critério de verdade o que o
ator pensava de si mesmo, toma como boas descrições da realidade as
denominações tribais com que cada indivíduo ou grupo lutava para firmar posição
em geral tendo como referência alguma firma intelectual européia ' nem sempre
grande, mas sempre pensada como tal ' da qual se pretendia representante no
trópico (Alonso, 2002:32 e introdução). Talvez a crítica mais incisiva deste
anacronismo tenha sido de Mário de Andrade, que desconfiava das generalizações
apressadas e das críticas prematuramente sintéticas e que, em matéria de
pensamento político-social brasileiro, mandava analisar autor por autor, quem
sabe obra por obra, antes de se lançar às construções típico-ideais. Como diz
em artigo de 1943 contra Tristão de Athayde, considerado então o mais
importante crítico do modernismo.
"Como crítico literário, Tristão de Ataíde sofria dos defeitos por
assim dizer já tradicionais da crítica literária brasileira desde
Sílvio Romero. Nesta barafunda, que é o Brasil, os nossos críticos
são impelidos a ajuntar as personalidades e as obras, pela precisão
ilusória de enxergar o que não existe ainda, a nação. Daí uma crítica
prematuramente sintética, se contentando de generalizações muitas
vezes apressadas, outras inteiramente falsas. Apregoando o nosso
individualismo, eles socializam tudo. Quando a atitude tinha de ser
de análise das personalidades e às vezes mesmo de cada obra em
particular, eles sintetizavam as correntes, imaginando que o
conhecimento do Brasil viria da síntese. Ora, tal síntese era,
especialmente em relação aos fenômenos culturais, impossível: porque
como sucede com todos os outros povos americanos, a nossa formação
nacional não é natural, não é espontânea, não é, por assim dizer,
lógica. Daí a imundície de contrastes que somos. Não é tempo ainda de
compreender a alma-brasil por síntese. Porque nesta ou a gente cai em
afirmações precárias, e ainda por cima confusionistas, como Tristão
de Ataíde quando declara que o sentimento religioso 'é a própria alma
brasileira, o que temos de mais diferente (sic), o que temos de mais
nosso' (:278); ou então naquela inefável compilação de fichário de
Medeiros de Albuquerque que censurava um poeta nacionalista por
cantar o amendoim 'frutinha estrangeira, talvez originária da Síria'"
(Andrade, 1978:8, grifos no original).
Não é o caso de discutir em pormenor esse programa de pesquisa, essa mistura de
niilismo e bom senso que consiste em pôr entre parêntesis toda e qualquer
tentativa de interpretar a evolução literária e intelectual brasileira como
conjunto, para concentrar os esforços nos fragmentos porque as trajetórias
individuais são erráticas, e o terreno social e ideológico no qual pisam parece
mais um atoleiro. De qualquer modo, de lá para cá ele foi em parte realizado '
pelo razoável acúmulo de estudos monográficos sobre autores e movimentos
culturais etc. ' e, como tal, superado, sem abrir mão, o que teria sido
estupidez, das interpretações abrangentes, como, aliás, a própria crítica
literária explorou mais e melhor do que ninguém.
Tirando de lado seu mau-humor, o fato é que, além de se livrar das bobagens
sobre o "caráter nacional", Mário de Andrade, entre outros, flagrou o substrato
real da vida intelectual brasileira e, em conseqüência, a dificuldade de
apanhar o que, referindo-se à música popular sofisticada, Caetano Veloso
denominou certa vez de "linha evolutiva" da cultura brasileira. Para evitar
qualquer teleologia, talvez deva falar sempre no plural: as linhas evolutivas.
De qualquer maneira, a dificuldade de detectá-la(s) não é apenas acadêmica, mas
tem a ver com um problema real: seja qual concepção se tenha do que deva ser a
"nação", o fato é que, comparada com outras (com as nações, digamos assim, cuja
construção não foi obra exclusiva de suas elites a cavaleiro do Estado, mas
contou com a participação ativa das classes subalternas, as quais por sua vez
conseguiram forçar a porta da nova ordem e tomar acento, ainda que lateral, à
mesa), a brasileira continua a ser marcada por heterogeneidades estruturais,
desigualdades entranhadas e existência de grupos sociais com restritas
possibilidades ou capacidades de secretar as instituições e valores que dariam
suporte à sua atividade espiritual e política.
Não há nenhuma novidade nessa enunciação, cuja naturalidade foi exaustivamente
investigada por nossa sociologia política durante a segunda metade do século
XX. Cabe talvez acrescentar que a "imundície de contrastes" por Mário de
Andrade nomeada é conseqüência necessária, talvez inevitável, do processo pelo
qual o tipo de organização social que aqui se instaurou consagra a dissociação
entre "sociedade civil" e "Nação"; estrutura e dinâmica tão arraigadas que
mesmo o extraordinário progresso obtido no terreno da democratização política
nas últimas décadas tem sido insuficiente para cancelar a "variedade especial
de dominação burguesa" de que falava Florestan, "a que resiste organizada e
institucionalmente às pressões igualitárias das estruturas nacionais da ordem
estabelecida, sobrepondo-se e mesmo negando as impulsões integrativas dela
decorrentes" (Fernandes, 1976:302)31. Desse ponto de vista, as conseqüências
sociais e ideológicas desta situação afetam todas e cada particular
manifestação cultural e política, bem como todo e qualquer grupo social ou
intelectual no país.
Em um quadro como esse, em que linhas quebradas escondem ou se superpõem a
continuidades subterrâneas, não será surpresa constatar que tais "linhas
evolutivas", "famílias intelectuais" ou "formas de pensar" não são naturais nem
imediatas. De fato, as conexões e continuidades entre representantes de uma
mesma tendência ou família intelectual não são dadas espontaneamente, não fazem
parte da experiência existencial dos grupos intelectuais e políticos; nossas
linhagens não são do tipo que podem ser assumidas orgulhosamente. Fazendo uma
comparação: o senador Giorgio Amendola disse certa vez no Senado italiano: "meu
bisavô era mazziniano, meu avô era garibaldino, meu pai antifascista, eu sou
comunista ' esta é a marcha da civilização na Itália". Importa pouco aqui que a
história não tenha corroborado a conclusão do argumento, o ponto é que
continuidade espiritual desse tipo jamais pôde ser cabalmente estabelecida para
o Brasil, ainda que, para determinados grupos conservadores, o Império funcione
como uma espécie de idade de ouro da política. Reconhece-se certamente alguma
relação entre Pedro I, visconde de Uruguai e Getulio Vargas, mas, seja como
for, esta raramente foi uma relação existencial, vivida, mas quando muito
intelectual. Em outros termos, trata-se de algo que tem de ser reconstruído
intelectualmente para poder ser apropriado experimentalmente. Nesse sentido,
sua intelecção depende do momento histórico, isto é, do grau de consciência de
que os atores adquiriram de sua própria herança, o que supõe, por outro lado,
exploração empírica sistemática e trabalho teórico prévio, sem as quais tais
formas não serão expostas à luz, incorporadas à experiência.
Se a comparação acima cabe ' além da Itália, vale lembrar os efeitos culturais
dos casos "prussianos" de desenvolvimento do capitalismo, bem explorados pela
historiografia ', a fragmentária história brasileira levou a que os pensadores
começassem várias vezes do zero, freqüentemente ignorando os que antes deles
chegaram a diagnósticos parecidos e soluções similares, descobrissem por conta
própria uma série de formulações antecedentes, tivessem precária consciência
daqueles que, no passado, adotaram perspectivas "metodológicas" confluentes.
Convém observar que este é um fenômeno distinto daqueles investigados à
exaustão pela sociologia da ciência: dado o caráter coletivo da atividade
científica, há sempre a possibilidade de que pesquisadores façam quase ao mesmo
tempo as mesmas descobertas ' elas estavam, por assim dizer, no ar, na
atmosfera que todos respiravam ' ou mesmo reprimam inconscientemente a
influência que outros, especialmente mestres, adversários e mortos, exerceram
sobre eles. Nada disso elimina o caráter coletivo e acumulativo dessa
atividade. No plano que estamos tratando, ao contrário, o encontradiço é a
ocorrência de grupos intelectuais (e políticos) novos que se comportam como se
a história começasse com eles, como se existisse um grau zero na política ou em
qualquer atividade coletiva. Contrapartida de sua percepção da história sempre
a mesma, a novidade que esses grupos encarnam irrompe no cenário (político ou
cultural) como negação radical de tudo que "aí está"; e só depois de umas
tantas desilusões é que se percebe ' quando se chega a perceber! ' sua
homologia com tentativas pregressas, contra as quais se batia, de lidar com os
mesmos dilemas históricos e sociais.
Para tomar dois ou três exemplos no plano estritamente intelectual, não deixa
de ser surpreendente que o mais vigoroso intérprete liberal da história
brasileira, Raymundo Faoro, não reconheça analítica nem politicamente Tavares
Bastos como o seu ancestral, embora possa e deva ser lido como um grandioso
prolongamento deste em contexto radicalmente modificado. O fato de Os Males do
Presente e as Esperanças do Futuro ser um brilhante panfleto e Os Donos do
Poder, um clássico da história política, um essencialmente federalista e o
outro não, não deve obscurecer a substancial similaridade do andamento
analítico e do diagnóstico do país, em que pese visíveis diferenças de
avaliação de determinados atores e conjunturas, como na desqualificação das
revoltas regenciais e na crítica aos liberais do Império, com a qual Faoro
(1973) conflui surpreendentemente com o juízo depreciativo tornado hegemônico
pelos conservadores na historiografia brasileira. Na mesma direção, Maria
Sylvia de Carvalho Franco e Maria Isaura Pereira de Queiroz são capazes de
escrever brilhantes livros sobre o trágico destino dos homens livres em uma
formação escravocrata e sobre o caráter estrutural e não apenas histórico do
mandonismo na sociedade brasileira, e Oliveiros S. Ferreira de propor uma
inteira interpretação sobre os fundamentos da crise e dos dilemas latino-
americanos, todos eles ignorando ou não explicitando o quanto suas análises,
sem serem necessariamente conservantistas, são tributárias ou confluentes com
as de Oliveira Vianna32. E foi preciso passar um século de experiência
republicana para que elaboração tão estratégica dos fundamentos desta como a de
Ruy Barbosa pudesse ser reivindicada sem complexo de inferioridade pelos
liberais e posta novamente em circulação, como parecem indicar O Liberalismo e
a Constituição de 1988, no qual o organizador Vicente Barreto teve a feliz
idéia de alinhar os artigos correspondentes da primeira e da última
constituição republicana, e de usar os comentários de Ruy à de 1891 como se
fosse à de 1988; e principalmente o ensaio de Bolívar Lamounier sobre o líder
do movimento civilista e a construção institucional da democracia brasileira33.
De qualquer maneira, o conservantismo parece ter sido capaz de plasmar inteiras
formações intelectuais, como a dos saquaremas no Império ou a do pensamento
autoritário dos anos 1930, enquanto algumas das melhores leituras liberais
parecem façanhas de personalidades brilhantes isoladas (mais uma vez vem à
mente Tavares Bastos, cujas idéias corporificaram o primeiro projeto específica
e globalmente capitalista para o país e logo caíram no ostracismo por ausência
de portadores sociais; e Raymundo Faoro, cujo libelo contra o "estamento
burocrático", formulado em um período quando o Estado era o repositório das
esperanças nacionais, só obteve êxito década e meia depois, no momento em que
este deixara de ser solução das mazelas para ser visto como o problema).
Situação que, tudo leva a crer, se inverte em um momento como o atual, em que
as mutações ideológicas na cultura capitalista mundial, o fracasso do
socialismo como alternativa de modo de vida, a perda de capacidade hegemônica
da cultura de esquerda, o esgotamento do nacional-desenvolvimentismo, a memória
do comprometimento de boa parte do conservantismo com o estatismo e com o
autoritarismo, a consolidação de uma sociedade de consumo de massas e a
internalização dos valores individualistas possessivos na condução da vida
cotidiana abriram a possibilidade de que o liberalismo ' revitalizado pelo
papel que desempenhou nos estertores do regime militar e engordado pelos
migrantes do campo socialista e comunista em crise ' se torne finalmente uma
idéia dominante na formação social brasileira.
Seja como for, parece razoável considerar a precária consciência da
historicidade das idéias e das formas de pensar como expressão da debilidade
destas, e não é de estranhar que historicamente tenha afetado menos os
intelectuais (e políticos) conservadores do que as correntes (de alguma forma)
críticas ao status quo. De fato, é natural que os primeiros sejam mais
conscientes dos seus laços de parentesco, pois ao contrário de seus adversários
liberais ou esquerdistas ' que encaram o passado como fardo e o futuro como
tempestade ' se nutrem do poder e fazem da continuidade não apenas a
constatação de algo empiricamente existente, mas um princípio ideológico que
enquadra antecipadamente a pesquisa e norteia posteriormente a ação. Mas a
conseqüência dessa opacidade para os destinos da sociedade e dos agrupamentos
sociais e políticos por ela afetados não é pequena: não será a consciência da
herança, a possibilidade de falar em nome de uma tradição, de se legitimar como
intérprete e dono da história de um país, uma das condições básicas de qualquer
grupo ou elite política que aspire à direção intelectual e moral de grandes
grupos sociais?
Nada disso, por suposto, tem a ver com talento individual, honestidade
intelectual, relações de causalidade imediatas, ou mesmo influências
ideológicas ou conceituais diretas. Ninguém duvida também que descontinuidades
são socialmente inevitáveis, que tais rupturas, sendo falsas, são, não
obstante, verdadeiras. Reconhecê-lo, no entanto, exige investigar tanto a
estrutura dessas constelações intelectuais cuja unidade nem sempre é dada e
cujas ligações nem sempre são visíveis, como as conseqüências políticas e
ideológicas dessa inconsciência da historicidade das idéias e das formas de
pensar; trata-se de individualizar especialmente os limites que impõem a
autocompreensão dos sujeitos que a protagonizam. Desse ponto de vista, a
estratégia andradina acima referida pode ser suposta na partida, mas agora a
pesquisa acumulada permite avançar além dos limites fixados pelo modernista, e
a análise circunstanciada torna possível dar conteúdo positivo ao que não
passava então de hipótese negativa: o que "ainda não existe" cede lugar ao
exame das propostas concretas de sua criação e desenvolvimento. Assim, o estudo
de cada autor específico, de cada corrente, é não só guiado por hipótese global
' sim, estamos diante de formas de pensar que contém modelos de sociedade e de
Estado distintos e práxis relativamente diferenciadas, e não apenas de autores
isolados e idéias arbitrárias, não só de diferenças de estratégia em função de
objetivos que todos compartilham ' como sua demonstração, longe de adiar, exige
a intervenção generalizadora.
Feitas as contas, talvez o auto-esclarecimento que tal investigação propicia
seja justificativa nada desprezível para a ocupação com o estudo do pensamento
político-social brasileiro, este gênero reflexivo considerado a um tempo
"menor" e indispensável.
NOTAS
1. O autor esclarece que a amostragem usada, restrita a lista dos cientistas
sociais com os quais se corresponde pela Internet, foi de 49 intelectuais, dos
quais dez são sociólogos, treze cientistas políticos, quatorze economistas,
seis antropólogos, alguns historiadores e gente proveniente das áreas de
direito, filosofia e administração. Citado como um dos mais influentes, o livro
de Cardoso e Faletto (1970), não teria sido reconhecido como de mérito
equivalente aos demais.
2. É de justiça lembrar que foi Wanderley Guilherme dos Santos quem primeiro e
mais energicamente reagiu contra a tentativa de transformar divisão acadêmica
do trabalho intelectual em critério de verdade, no exato momento em que tal
perspectiva começava a se tornar hegemônica. Por mais reparos que se possa
fazer à sua crítica da periodização da história do pensamento político
brasileiro pelas etapas de institucionalização da atividade científico-social,
sua reação não só criou um nicho para todos que recusavam o cientificismo ' que
tinha o seu momento de verdade como arma de combate contra o diletantismo
intelectual ' como contribuiu para legitimar na universidade o trabalho com
história das idéias, ao recusar-se a vê-las como variável dependente das
instituições (ver Santos, 1966; 1967; 1970). Também o termo "pensamento
político-social", que a rigor seria mais adequado para caracterizar a natureza
da reflexão, foi apresentado por Santos (2002) e recentemente reafirmado em seu
Roteiro Bibliográfico do Pensamento Político-Social Brasileiro (1870-1965).
3. Sem esquecer o papel pioneiro do Instituto Superior de Estudos Brasileiros '
ISEB em quase todos esses pontos, não dá para deixar de assinalar que o projeto
da Cadeira de Política da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, dirigida por Lourival Gomes Machado até os anos 60,
recusava a separação entre explicação sociológica e explicação histórica '
cerne do projeto do Florestan Fernandes dos anos 50 e de sua desconfiança para
com a história das idéias e a tradição do ensaio histórico à qual se renderia
nos anos 70 ', e privilegiava: a) a interpelação dos clássicos da teoria
política, de Maquiavel a Marx e a Weber, como se depreende do programa de
traduções e das teses do próprio Lourival Gomes Machado sobre Rousseau, Célia
Galvão Quirino sobre Tocqueville, Oliveiros S. Ferreira sobre Gramsci, a edição
de alguns dos melhores comentadores dos pensadores políticos clássicos, feita
por Célia Galvão Quirino e Maria Teresa Sadek, e a coletânea tardia organizada
com preocupações didáticas por Francisco C. Weffort sobre os clássicos da
política; b) a história das instituições políticas, especialmente as
brasileiras, abarcando desde as investigações de Paula Beiguelman sobre a
formação política do país até as teorias de Weffort sobre o sindicalismo
populista e a especificidade da "democracia populista" vis-à-vis a
"representativa", das pesquisas eleitorais de Oliveiros S. Ferreira aos estudos
de Maria do Carmo Campello de Souza sobre a evolução dos sistemas partidários
na república e de Eduardo Kugelmas sobre a difícil hegemonia de São Paulo na
Primeira República; e c) a história do pensamento político brasileiro e mesmo
latino-americano, incluindo os estudos de Gomes Machado sobre o jusnaturalismo
de Tomás Antonio Gonzaga e sobre a ligação entre o barroco e o Absolutismo, de
Célia Galvão Quirino sobre a administração colonial e sobre o papel da
maçonaria na Independência, de Paula Beiguelman sobre a teoria política do
Império, de Oliveiros S. Ferreira sobre Haya de la Torre etc. Cf. o artigo de
Célia Galvão Quirino (1994), comemorativo dos 60 anos da Faculdade. Deve-se a
Lourival Gomes Machado, também, a introdução, na segunda metade dos anos 50, da
disciplina "Instituições Políticas Brasileiras", até então, salvo engano,
inexistente no currículo dos cursos de ciências sociais. Tudo somado, e sem
negar a hegemonia da sociologia naqueles anos, permite relativizar a idéia de
que a ciência política no Brasil é uma invenção dos anos 80 ou algo que tem uma
pré-história nos anos 30 e 50 e depois o silêncio antes do fiat lux pronunciado
pelos heróis fundadores que estudaram nas universidades norte-americanas ou
foram financiados pela Fundação Ford.
4. O diagnóstico é de muitos, a expressão, salvo engano, é de Guillermo
O'Donnell (1974).
5. Sobre o conceito de critical junctures, ver, entre outros, Von Mettenheim
(2004).
6. Em O Idealismo da Constituição, pode-se ter um estudo mais sistemático sobre
os conceitos de "idealismo orgânico" e "idealismo constitucional".
7. Cf. para a primeira, a entrevista de Antônio Candido à revista Trans/form/
ação, do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista ' UNESP-
Assis, em 1974, parcialmente republicada em Teresina etc. Para a segunda, o meu
A Esquerda Positiva (As Duas Almas do Partido Comunista ' 1920/1964),
especialmente o último capítulo, em que analiso o impacto cultural e ideológico
do que chamei de marxismo de matriz comunista e exploro observações feitas
originariamente por Prado Júnior (1977:29), Ribeiro (1929:201) e Pedreira
(1964:176-177).
8. Ver, nesse sentido, a crítica de Alexander (1999).
9. Aproveito, em função de meu objetivo, regra hermenêutica que Gabriel Cohn
formulou em outro contexto, cf. Cohn (1979).
10. Embora não desenvolva o argumento, o leitor perceberá que aqui também se
recusa outra premissa fundamental do contextualismo lingüístico, aquela segundo
a qual o sentido de uma obra só pode ser estabelecido correlacionando-o com as
intenções manifestas pelo autor. Não só tal intencionalidade poderia ser
tranqüilamente reconstituída como toda interpretação só pode ser válida se
compatível com ela, e de um modo que poderia ser aceito pelo próprio autor ' o
que na verdade supõe uma confiança irrestrita na transparência do mundo social.
Sem querer simplificar demais, quem sabe uma boa olhada no capítulo sobre o
fetichismo da mercadoria de O Capital ajude a matizar a questão.
11. No mesmo sentido, os trabalhos de Werneck Vianna (1977; 1999) Salvo engano,
um dos primeiros a reconhecer linhagens intelectuais desse tipo foi Guerreiro
Ramos em seus textos dos anos 50, mas elas só foram realmente mapeadas a partir
dos estudos de Paula Beiguelman, Roque Spencer Maciel de Barros, Wanderley
Guilherme dos Santos, Bolívar Lamounier, Luiz Werneck Vianna, José Murilo de
Carvalho e outros. Em todos esses casos ' na verdade, na maioria dos trabalhos
sobre pensamento político-social no Brasil ', pesou a influência direta ou
indireta dos esquemas de Karl Mannheim, especialmente os de Ideologia e Utopia
e o estudo sobre o pensamento conservador. Evidentemente, cada um distingue e
explica a seu modo o que considera essencial e acidental, central e periférico,
o continente e as ilhas etc., mas os contornos gerais do território foram
razoavelmente estabelecidos. As referências feitas acima são a: Tavares Bastos
(1975); Faoro (1973); Schwartzman (1975; 1982).
12. Cf. Guerreiro Ramos (1983a; 1983b); Santos (1978); Lamounier (1985; 1981)
13. Cf. nota 7.
14. Ver especialmente os artigos de Miceli (2001a; 2001b) e de Almeida (2001).
15. A economia do texto não permitirá, adiante, aprofundar estas últimas
caracterizações, que serão melhor trabalhadas em outra ocasião.
16. Löwy extrai as coordenadas do conceito em Goethe e Weber, mas o uso que
dele faz para a história intelectual ultrapassa largamente suas fontes. A idéia
da mistura tão encontradiça entre ética de "esquerda" e epistemologia de
"direita" foi formulada com ânimo polêmico por Georg Lukács (2000) no prefácio
de 1962 à reedição de A Teoria do Romance.
17. Neste ponto, a referência fundamental continua a ser Thompson (1987:9).
18. Cf. a intervenção de Celso Furtado na mesa redonda "A Revolução de 30 em
Perspectiva: Estado, Estrutura e Poder e Processo Político". A citação completa
é: "O controle de câmbio não surgiu de uma escolha e sim da necessidade de
sobreviver face à brutal baixa da entrada de divisas. Ninguém queimou café por
masoquismo e sim para reduzir os imensos gastos de armazenagem e a pressão dos
estoques sobre o mercado internacional. Ninguém dirá que José Maria Whitaker, o
ministro da Fazenda da época, tinha idéias econômicas diferentes das de
Murtinho, como também não demonstrara tê-las Getulio Vargas quando ocupara a
pasta da Fazenda do governo Washington Luís. Evidentemente, as mentes menos
dogmáticas, menos formadas ou deformadas pelas idéias ortodoxas sobre
equilíbrio orçamentário, inflação etc., tenderam a prevalecer. Anos depois tive
com Oswaldo Aranha uma conversa sobre esses acontecimentos e ele me observou:
'Celso, você me explicou o sentido do que fizemos nessa época; então eu não
sabia de nada'" (Furtado, 1983:716-717).
19. Além da apresentação de José Murilo, outra cuidadosa análise do pensamento
do visconde pode ser encontrada em Ferreira (1999).
20. No mesmo sentido, ver Faoro (1973).
21. Nesse sentido, ver a nota "O fracasso dos conservadores", publicada em
Política Democrática.
22. A defesa clássica dessa forma de ver a política é, como se sabe, dessa
figura complexa e contraditória que é Edmund Burke (1999). Talvez seja o caso
de chamar a atenção para a similaridade com o modelo habermasiano (ver
Habermas, 1997). Para uma caracterização negativa do "governo pela discussão",
ver Schmitt (1992).
23. Sobre Tavares Bastos, cf. Rego (2002); e o livro de Ferreira (1999).
24. Cf. Bernardes (2001); Mello (2004); Flores (1982) e Pesavento (1990), entre
outros.
25. Influenciado por Spencer, Salles vê a federação não apenas como um arranjo
artificial, uma construção política, como nos federalistas norte-americanos,
mas como uma lei biológica que regula as complexas funções dos organismos. Ver,
nesse sentido, o seu "Catecismo republicano" (1885), republicado como apêndice
ao livro de Vita (1965, esp. pp. 191-195).
26. Sobre as concepções políticas de Celso Furtado, ver Cepêda (2001). Tratei
da corrente comunista em uma comunicação apresentada no XIII Encontro Anual da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais ' ANPOCS,
em 1989, intitulada "O Poder Local: O PC às Vésperas da Cisão Marighellista",
mas há referências a ela nos livros de Vinhas (1982:241) e Perrone (1988:66).
27. Merquior não nega, em princípio, a legitimidade da empreitada (como se
comprova também pela simpatia e entusiasmo com que acolhe o "transepocalismo"
de Os Donos do Poder, com o qual tende a concordar tanto do ponto de vista
ideológico como político), mas rejeita o culturalismo e as conclusões teóricas
e políticas comunitaristas e anti-racionalistas que Morse dele deriva. O tema
da "Ibéria" (e da Ibéria americana) como matriz civilizacional alternativa à
anglo-saxã foi também explorado por Barboza Filho (2000).
28. A referência ao "espírito do capitalismo" foi feita por Fernandes (1976:21-
22, passim), para qualificar a natureza revolucionária da opção da elite
fundadora do Império em um contexto em que o capitalismo estava longe de
possuir bases materiais internas ao país. Florestan situa o desencadeamento da
"ordem social competitiva", como se sabe, no último quartel do século XIX, com
a Abolição criando as bases jurídicas e sociais sobre as quais esta se
assentará. Na mesma direção, e em franco antagonismo com a historiografia que
faz da nação um produto do Estado, o trabalho de Jancsó e Pimenta vem
explorando as diferenças de tempo entre construção do Estado e construção da
nação, entre a percepção do país e a emergência de uma identidade nacional
brasileira (Jancsó e Pimenta, 1999).
29. No caso de Caio há, sem dúvida, diferenças de ênfase na periodização, com
Evolução Política do Brasil acentuando a descontinuidade e a Independência como
revolução, e Formação do Brasil Contemporâneo acentuando a continuidade, como
mostra Costa (2003:26). Convém, entretanto, não extremar a diferença, como o
próprio texto citado indica. De fato, e como adverte Costa o que interessava a
Caio era mostrar, contra a historiografia conservadora, que a colônia não podia
gerar nação, a emancipação política foi processo que se estendeu de 1808 a 1831
e mesmo a 1848 e que não coincide com a criação da nacionalidade. Nesse
sentido, a descontinuidade no plano da política não nega, mas se articula com a
continuidade no plano das estruturas profundas. Posto isto, é de justiça
reconhecer que ele não tem esse cuidado quando analisa processos
contemporâneos, o que acaba por levar ' provavelmente pela necessidade de
radicalizar no combate à tese feudal sobre as relações agrárias, pelo modo
estreito como concebe a permanência do colonial na nação incompleta, pela
subestimação das modificações induzidas pela industrialização, ou mesmo pela
escassa capacidade de analisar processos políticos in fieri ' água para o
moinho da imagem do Brasil continuísta. Talvez seja o caso de assinalar, por
isso, que a tentativa mais radical de romper com a "história imóvel" que afeta
a maioria das interpretações da trajetória brasileira da colônia para cá é a de
Ignácio Rangel (1957), desde o notável Dualidade Básica da Economia Brasileira
até "A História da Dualidade Brasileira" (1981), em que refina suas hipóteses.
30. Embora a problemática subjacente seja a de toda e qualquer história
intelectual de país de economia reflexa e subordinada aos fluxos do capitalismo
e da cultura mundial, foi Sérgio Miceli (1979; 2001a; 2001b), salvo engano,
quem usou de maneira mais sistemática o conceito (ou analogia?) de
"substituição cultural de importações", especialmente em Intelectuais e Classes
Dirigentes no Brasil (1920-1945), republicado em Intelectuais à Brasileira.
Como o leitor terá percebido, estou retomando-o com ênfase, digamos, menos
"infra-estrutural", da formação de um público leitor, mercado editorial,
institucionalização das atividades intelectuais, iniciativas empresariais
voltadas para a produção e consagração de bens culturais etc., que Miceli
explorou consistentemente, e mais "superestrutural", compreendendo a destilação
de teorias, conceitos, ideologias, problemáticas intelectuais enfim que vão
sendo compartilhadas, de um conjunto de problemas e soluções teóricas, de tal
modo que ao longo do tempo se vai formando uma tradição, um processo pelo qual
o "mercado interno de idéias" acaba por funcionar como um filtro, selecionando
por mil ensaios e erros o que absorver, transformar ou rejeitar do mercado de
idéias mundial. Talvez possamos enfatizar "substituição de importações
culturais" para o primeiro caso, e "substituição cultural de importações" no
segundo. Ampliando a analogia, é evidente que a maturidade intelectual de um
país terá a ver com sua conversão num pólo de desenvolvimento, capaz não apenas
de oferecer matéria-prima para consumo e industrialização pelos intelectuais
dos países centrais, mas também de produzir teoria e inovações metodológicas à
altura dos padrões científicos universais.
31. Ou como dizem Jancsó e Pimenta (1999:174), "a identidade nacional
brasileira emergiu para expressar a adesão a uma nação que deliberadamente
rejeitava identificar-se com o corpo social do país, e dotou-se para tanto de
um Estado para manter sob controle o inimigo interno". Exploro um pouco mais
esta tese de Florestan em "Democratização e Desenvolvimento: Um Programa de
Pesquisa" (Brandão, 2004).
32. Cf. Franco (1983); Queiroz (1976); Ferreira (1971). Sobre as aproximações e
distâncias de boa parte da sociologia política uspiana dos anos 1950-1970 com
os pensamentos de Oliveira Vianna e de Raymundo Faoro, ver Brandão (1999). Os
intelectuais que compunham o ISEB ' Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Nelson
Werneck Sodré etc. ' estavam mais conscientes do que deviam aos seus
predecessores.
33. Cf. Barreto (1991) e Lamounier (1999). Talvez se deva acrescentar a
interpretação do Brasil contida nos trabalhos de José Murilo de Carvalho sobre
o Império e a República, na qual é central a oposição entre estadania e
cidadania, e que pode ser lida como expressão de um liberalismo democrático
revigorado e em franco dissídio com o neoliberalismo (Carvalho, 1987; 1990).