O sucesso inesperado das reformas de segunda geração: federalismo, reformas
constitucionais e política social
INTRODUÇÃO
Opresente artigo examina os determinantes institucionais e a estrutura do jogo
político que permitiram que mudanças profundas no padrão das políticas sociais
tenham tido lugar durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002). Transformações importantes, com efeito, ocorreram no conjunto das
políticas implementadas, e os indicadores de mudança foram expressivos. Esta
mudança de padrão ocorreu em vários âmbitos: na reorganização estrutural das
relações intergovernamentais no setor, no qual, embora tenha havido
continuidade do processo de descentralização setorial, ocorreu um expressivo
fortalecimento do controle exercido pelo âmbito federal; no processo
orçamentário setorial que se tornou marcadamente "rígido", com amplo e
significativo crescimento de despesas "vinculadas" na área social; e no
aggionarmento da área social que perdeu inegavelmente vários traços
clientelistas pretéritos, e onde ocorreu certo insulamento político do setor '
ou pelo menos uma reorganização do papel dos ministérios sociais na estratégia
de coalizão do governo e uma "periferização" dos espaços burocráticos onde a
patronagem política era exercida. Tais mudanças provocaram uma melhoria
inequívoca de alguns indicadores sociais, mas a mudança estrutural subjacente
tem sido pouco discutida na literatura1. Com efeito, alguns programas e
iniciativas ' o Bolsa Escola, o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e Valorização do Magistério ' Fundef, e o Fundo de Combate à Pobreza '
adquiriram notoriedade internacional. A magnitude dos investimentos realizados
no período também é expressiva2. O financiamento partiu de um fundo de pobreza
que contou, em 2002, com mais de R$ 2 bilhões (US$ 700 milhões). Por outro
lado, a criação do Fundef ' um programa de incentivos à descentralização e
melhoria dos salários dos professores e da performance das escolas ' foi
implementada ao mesmo tempo em que os gastos em educação, considerando-se todos
os níveis de governo no Brasil, também se elevaram de 4,2% para 5,6% do Produto
Interno Bruto ' PIB, no período 1995-2000. O número de matrículas no nível
primário expandiu de 89% para 96%, entre 1996 a 2001 (Word Bank, 2002). O
processo de descentralização também se acelerou. Os governos municipais que
eram responsáveis por 34% das matrículas do ensino primário em 1996 aumentaram
sua participação para 54% das matrículas em 2001 (idem, 2002).
Na verdade, as mudanças ocorridas são paradoxais. Como podemos explicar as
transformações que se dão no padrão das políticas sociais, se considerarmos os
formidáveis obstáculos fiscais e institucionais à mudança no país, pelo menos
na forma em que este é analisado na visão dominante na literatura? Tais
obstáculos não se resumiriam às restrições fiscais severas, mas incluiriam
também o fato de o Brasil possuir um sistema político fragmentado, conforme
sugerido por vários analistas, no qual as reformas são difíceis de serem
aprovadas e implementadas. Tais transformações são ainda mais intrigantes,
considerando-se que, por uma série de razões que serão discutidas neste artigo,
as reformas nessa área, em qualquer país, são vistas como problemáticas. As da
chamada área ou setor social constituem em um subconjunto das reformas
denominadas de segunda geração que apresentam características peculiares que as
tornam difíceis de aprovar e, em especial, de implementar. Este artigo fornece
uma explicação para esse paradoxo. A minha hipótese é que tais mudanças podem
ser fundamentalmente explicadas pela reestruturação do padrão de relações
intergovernamentais no país. O Executivo tinha incentivos e capacidades
institucionais para levar a cabo tal reestruturação. No artigo, argumento que a
mudança importante do federalismo brasileiro3 e a recentralização ocorrida
cumpriram papel fundamental em reduzir os efeitos desorganizadores dos
desequilíbrios fiscais subnacionais e do padrão centrado na patronagem
prevalecente no âmbito da política social. Um resultado desse jogo foi a
crescente vinculação ampla de recursos para a política social (para o que
também contribuiu a interação estratégica entre o Executivo e o Legislativo em
torno da extração de recursos tributários, em contexto de baixa confiança
recíproca). Esse jogo representa o mecanismo central do processo de crescente
enrijecimento e perda de graus de liberdade do processo orçamentário federal.
Devido ao alto nível de constitucionalização das políticas públicas no Brasil,
as reformas das relações federativas e das políticas sociais exigiram mudanças
constitucionais importantes. Isso explica por que as reformas constitucionais
se tornaram elementos vertebradores das transformações ocorridas. Este aspecto
é pouco reconhecido na literatura: o federalismo representou o núcleo duro do
movimento esforço de reforma da constituição desde sua promulgação.
O artigo é organizado da seguinte forma: na primeira seção, discuto os três
tipos de obstáculos identificados na literatura ' os associados à segunda
geração de reformas, os institucionais e os fiscais ' para as transformações
nas políticas públicas de cortes sociais. A seção dois ocupa-se dos legados de
políticas enfrentados no governo de Fernando Henrique Cardoso e discute o
contexto político no qual ele implementou as reformas, com foco no jogo
constitucional em torno da reforma do federalismo fiscal e das políticas
sociais do país. A terceira, por sua vez, examina as iniciativas de reforma em
três áreas: canalização de recursos à saúde e combate à pobreza, e o Fundef. A
última sumariza as conclusões.
POR QUE A REFORMA NÃO DEVERIA TER ACONTECIDO?
Contrariando as Expectativas: A Política das Reformas da Segunda Geração
A literatura contemporânea sobre as reformas de segunda geração enfatiza que
essas reformas são mais difíceis de aprovar e implementar do que suas
predecessoras da primeira onda e que, portanto, os esforços de reforma têm
grande chance de malograr. As reformas da primeira geração foram realizadas nos
anos 1980 e início dos anos 1990, com o objetivo de estabilizar e liberalizar a
economia. Elas consistiam de medidas pontuais como o corte no orçamento,
aumento de taxa de juros, redução da oferta monetária, episódios de
privatização etc. Em contraste, as reformas da segunda geração têm, em sua
maioria, um foco institucional, cujos objetivos são complexos e pouco tangíveis
para aperfeiçoar a provisão de serviços, as estruturas regulatórias e as
capacidades administrativas (Naín, 1995). Nesta perspectiva, as transformações
profundas no padrão de políticas públicas referido anteriormente exigem, sem
dúvida, uma explicação.
Deve-se mencionar que muitas das diferenças identificadas na literatura entre
as duas gerações não são informadas analiticamente, e sim ditadas pelas
escolhas a serem feitas em termos de políticas. As reformas da segunda geração
são, na verdade, um repertório de prescrições de políticas, formuladas em
resposta às falhas da primeira geração de reformas (Rodrik, 2004). O mais
problemático é que, como Navia e Velasco (2003) assinalam, as reformas da
segunda geração se definem em termos dos resultados a serem atingidos '
eficiência administrativa, eliminação da pobreza, ambientes regulatórios
adequados e estáveis ' mas tais resultados (ao contrário, por exemplo, de metas
de inflação a serem atingidas, típicas das primeiras reformas) são os que
tornam "avançadas as nações avançadas". A despeito desses problemas de
definição de reformas de segunda geração, importa destacar que a literatura
enfatiza uma série de fatores que contribuem para a dificuldade de realização
das reformas institucionais e sociais (Graham e Naín, 1999; Pastor e Wise,
1999; Nelson, 2000; 2004; Grindle, 2000; Kauffman e Nelson, 2004a; Schneider e
Heredia, 2003; Tulchin e Garland, 2000; Nelson e Tommasi, 2002). Primeiro, os
"custos de não reformar" são baixos (Nelson, 2000), o que tende a produzir
inércia decisória. No caso da primeira geração, os "custos de não reformar"
foram altos, visíveis e difusos (na forma de inflação, por exemplo). Muitos
analistas tentaram modelar as causas de tais reformas, identificando os fatores
mais prováveis de provocar impactos de curto prazo na inflação, receita
governamental, deflagrando processos de reforma. Nas reformas de segunda
geração não existem tais fatores, nem mesmo um senso de urgência, o que
significa que elas podem ser postergadas indefinidamente. Como assinalam
Kauffman e Nelson (2004b), nessa área as urgências são prementes, e os
incentivos para a reforma, fracos. Com freqüência, a reforma da educação ou as
reformas regulatórias, em geral, são citadas como bons exemplos disso.
Em segundo lugar, a primeira onda de mudanças foi levada a efeito em situações
de emergência, tendo sido implementada pelo Executivo mediante uma série de
instrumentos políticos (decretos especiais de emergência ou leis delegadas),
sem muita necessidade de negociação no Congresso ou com os interesses afetados.
Em contraste, as novas reformas têm sido implementadas em ambientes mais
democráticos, requerendo a formação de consenso, têm que ser negociadas no
Congresso para a obtenção de apoio Legislativo. A política congressual
"ordinária" substitui a política "extraordinária", típica de medidas de
emergência (Nelson, 2000). Além disso, as reformas de segunda geração envolvem
a cooperação dos atores, em diferentes níveis do aparato estatal, criando a
possibilidade de pontos de veto. Muitas das reformas da primeira onda na
América Latina foram realizadas furtivamente. Só exigiram decisões executivas
nas áreas do comércio exterior, monetária e fiscal, que são, em grande medida,
simples e self-enforced. A implementação foi razoavelmente fácil por não
requerer cooperação externa. A reforma do sistema educacional, por exemplo,
normalmente envolve tarefas bastante complexas, tais como as que buscam alterar
as rotinas burocráticas estabelecidas ou aperfeiçoar a qualidade dos serviços
prestados e a descentralização, as quais sem cooperação dos professores têm
baixas chances de sucesso. Em terceiro lugar, elas envolvem o realinhamento de
incentivos, gerando custos concentrados importantes para certos setores, como
sindicatos, burocracias ou parlamentares, ou ainda para as clientelas
privilegiadas dos programas existentes (Grindle, 2001). Ao contrário das
reformas da primeira geração, a cooperação desses atores ' particularmente dos
sindicatos do setor público ' é crucial (Maceira e Murillo, 1999). Nessa
perspectiva, prediz-se que, quanto mais estável ou democrático o país, em
termos institucionais, se torna mais difícil aprovar e implementar reformas. Um
aspecto correlato é que essas reformas se distinguem das voltadas para a
expansão de cobertura, nas quais o jogo é de soma positiva; pelo contrário, é
um jogo em que todos os participantes ganham. Ao contrário do processo da
"política de expansão", as reformas de segunda geração concentram-se na
eficiência e qualidade, o que tipicamente produz custos concentrados (e
conseqüentemente um padrão político específico à "política de eficiência").
Finalmente, como destacado por Nelson (2000), ao contrário das políticas
monetárias e fiscais, não há padrões ou modelos claros de políticas a serem
seguidos, apenas princípios norteadores, como a descentralização, arranjos
competitivos dentro do setor público e assim por diante. Isso torna difícil a
formação de consenso. Navia e Velasco argumentam com muita propriedade que
"[...] ao contrário das reformas da primeira geração, que foram, de
fato, diretrizes a respeito dos instrumentos a serem usados e dos
resultados necessários, para a redução da inflação com o corte da
oferta de moeda e do déficit em conta corrente, muitas das reformas
da segunda geração são diretrizes a respeito dos resultados desejados
(reforma do serviço público ou aperfeiçoamento da arrecadação
tributária), sem uma idéia clara do desenho das políticas" (2003:
278).
Grindle (2004) examina as reformas da educação bem-sucedidas na América Latina
e discute os fatores que explicam o seu êxito, a despeito das expectativas. A
autora enfatiza o papel da liderança e janelas de oportunidade. Grindle (idem)
argumenta que muitos dos obstáculos citados na literatura são relacionados ao
contexto e podem ser superados a partir de negociações em torno das reformas.
Pela ação estratégica na definição da distribuição de custos e benefícios de
determinada iniciativa de política, setores reformistas podem superam
resistências.
Devido à sua ênfase no desenho das políticas, no entanto, a autora não destaca
o papel independente das instituições políticas, especialmente das relações
Executivo-Legislativo, na sua explicação. Ainda que explorem janelas de
oportunidade, os reformadores operam dentro de um conjunto institucionalmente
constrangido por regras que definem as capacidades e os incentivos que têm para
realizar a reforma.
A "abordagem das gerações de reforma" tem sido tema comum na discussão da
dinâmica das reformas de políticas, e é a linguagem que informa o debate
sobretudo no âmbito das instituições multilaterais. Essa abordagem padece de
problemas para a discussão de países, tais como o Brasil, onde os dois tipos de
reformas se confundiram com o passar do tempo. As do primeiro tipo '
privatização, estabilização monetária e liberalização do mercado ' foram
implementadas simultaneamente com reformas regulatórias, administrativas e ' o
que é mais importante para os nossos propósitos aqui ' dos setores sociais.
Embora Fernando Collor de Mello (1991-1992) tenha tomado algumas medidas para
privatizar as empresas estatais, foi o governo de Fernando Henrique Cardoso que
promoveu a privatização em larga escala de empresas públicas. Seu governo
engajou-se simultaneamente em ambicioso programa de estabilização, deflagrando
um processo de reforma do sistema previdenciário, da administração pública e
dos setores sociais. O ímpeto reformista de sua administração arrefeceu ao
longo do tempo na passagem do primeiro para o segundo mandato. A estratégia de
empreender reformas simultaneamente em vários setores exigiu muita negociação
no Legislativo e nutriu-se do sucesso do plano de estabilização monetária. O
big bang do governo de Fernando Henrique Cardoso (Navia e Velasco, 2003) ' o
lançamento simultâneo dos dois tipos de iniciativa de reforma ' contrasta com a
trajetória e seqüências observadas em muitos países da região. O enorme sucesso
na redução da inflação foi essencial para superar muitos dos obstáculos
apontados pela literatura4. Isso lhes permitiu fazer mudanças em larga escala
ao mesmo tempo em que fortaleceu as bases institucionais do Executivo (Alston
et alii, 2004; ver também Treisman, 2004).
A hipótese central deste artigo é que a capacidade do Executivo (e seus
incentivos) para implementar reformas é explicada por uma combinação de
variáveis institucionais e de desenho de políticas. Na seção seguinte,
discutirei as bases institucionais da reforma das políticas sociais. Nela
examino a visão predominante sobre a natureza do sistema político brasileiro e
analiso sumariamente a recente produção acadêmica que desafia tal visão.
Instituições Políticas e a (In)capacidade de Reformar
A visão da literatura comparativa sobre as políticas de reforma é que as
instituições políticas brasileiras geram paralisia decisória e inércia
política. Espera-se que as reformas só venham a ocorrer após negociações
prolongadas envolvendo o presidente e o Congresso, e com um alto custo social
(Samuels, 2003; Ames, 2001; Mainwaring, 1999). Os problemas de governabilidade
seriam causados por diversas características do sistema político, tais como a
estrutura federativa, o bicameralismo simétrico, o presidencialismo e as
instituições eleitorais. O sistema político tem sido descrito como
excessivamente descentralizado e fragmentado. Para Mainwaring e Shugart (1997),
o federalismo brasileiro é robusto e apresenta grande desequilíbrio. Essa
perspectiva de análise destaca que os estados gozam de autonomia fiscal e
política, e que aproximadamente metade da receita pública está nas mãos dos
estados e dos 5.600 municípios. Além disso, um terço das receitas fiscais é
arrecadado diretamente pelos governos subnacionais, e os estados têm a
competência de arrecadar o imposto que gera mais receita (VAT). Apesar das
enormes diferenças econômicas e demográficas, os estados dispõem de igual
representação no Senado. Esta representação exagerada dos estados menores e
menos desenvolvidos repete-se em grau muito menor na Câmara dos Deputados, na
qual as unidades menores têm um número proporcionalmente maior de deputados.
Tal característica se combina com um padrão de lealdades de corte regional,
produzindo um sistema no qual o executivo federal tem de negociar, fazendo
concessões para os interesses subnacionais (Samuels, 2003). De acordo com essa
linha de interpretação, os interesses subnacionais ' especialmente os
governadores ' exercem poderes de veto em muitas questões nacionais importantes
(Ames, 2001).
Para muitos analistas, o desenho constitucional brasileiro, na verdade, contém
uma combinação explosiva de presidencialismo e multipartidarismo. Os deputados
federais são eleitos através de um sistema de representação proporcional em
lista aberta, e os estados são distritos-membros, cuja magnitude varia de oito
a 70. Após a mudança para a democracia, em 1985, o sistema bipartidário que
existia no regime militar deu lugar a um sistema multipartidário com um número
enorme ' e sempre crescente ' de partidos efetivos (oito). A disciplina
partidária também é fraca, uma vez que a lista aberta encoraja os
comportamentos individualistas dos parlamentares e não permite muito controle
partidário na seleção dos candidatos. Conseqüentemente, os partidos não têm
conseguido criar fortes identidades nem possuir raízes profundas com a
sociedade. A migração interpartidária de parlamentares (pelo menos dentro de um
"espaço" ideológico aproximadamente similar) enfraquece a base organizacional
dos partidos. O sistema político emergente no Brasil tem sido descrito como um
presidencialismo de coalizão. Os presidentes, bem como os governadores e
prefeitos, são eleitos pelo voto direto e contam com o apoio de grandes
coalizões. No governo de Fernando Henrique Cardoso, nenhum dos três maiores
partidos ' incluindo o dele (Partido da Social Democracia Brasileira ' PSDB)
conseguiram mais do que 20% dos assentos da Câmara dos Deputados.
Como já amplamente reconhecido, o problema dessa linha de interpretação é que
ela subestima as conseqüências de o presidente possuir grande poder, incluindo
uma série de prerrogativas que o ajudam a superar a fragmentação partidária e
assegurar a implementação de sua agenda (Figueiredo e Limongi, 1999). O grande
número de prerrogativas inclui, inter alia: uso de medidas provisórias (MPs) '
decretos com força de lei, que têm de ser votados em 30 dias (e que mudou para
60 dias), caso contrário perderiam sua eficácia; competência exclusiva para
propor legislação tributária, fiscal e administrativa; faculdade de exigir
votação imediata de determinados projetos de lei; e veto parcial. Tudo isso se
adiciona ao controle da patronagem na imensa máquina administrativa federal e
da elaboração discricionária de emendas orçamentárias pelos parlamentares
(Pereira e Mueller, 2003; Souza, 2003). A organização interna do Congresso
proporciona também instrumentos importantes para a administração da coalizão
pelo Executivo. O Congresso é estruturado a partir de uma lógica partidária que
confere grandes poderes aos líderes dos partidos (Figueiredo e Limongi, 1999).
Segundo Alston et alii (2004), isso não significa que o Congresso é inerte. Na
verdade, o presidente age como gestor da coalizão e negocia a distribuição de
favores em troca de suporte para sua agenda.
Em suma, há um grande número de forças centrípetas e centrífugas no sistema
político brasileiro. Exemplos das primeiras são a legislação eleitoral, a
autonomia fiscal subnacional, o regionalismo e o faccionalismo de base
regional, além de partidos fracos e sistemas partidários fragmentados. As
segundas têm origem nos poderes constitucionais dos presidentes, bem como na
organização interna do Congresso e, o que é mais significativo, nos imensos
recursos controlados pelo presidente, os quais podem ser usados para garantir
apoio político. São forças notadamente clientelistas ' como programas de
distribuição de favores para a base constituinte de determinado parlamentar '
ou, simplesmente, conseqüências da participação no governo. A capacidade
política dos presidentes é essencial para a superação das forças fragmentadoras
do sistema político. As forças centrípetas acima mencionadas representam
restrições importantes à capacidade do presidente em aprovar e implementar sua
agenda (idem, 2004). Meu argumento é que os presidentes operam em um espaço
político e institucional sujeito a restrições, o que não tem, todavia,
produzido impasses ou entraves significativos. Os presidentes tiveram os
incentivos e a capacidade de implementar suas agendas de reformas. A estrutura
de incentivos com a qual os presidentes se defrontam será discutida na seção
seguinte.
O senso comum a respeito das questões fiscais do Brasil é que um dos principais
problemas se encontra no sistema de relações intergovernamentais do país. O
suposto excessivo poder exercido pelos interesses subnacionais, em particular
os governadores estaduais, provocaria fortes distorções de natureza fiscal
(Burki, Perry e Dillinger 1999; Dillinger e Webb, 1999; Haggard e Webb, 2004).
Rodden (2003:213) enfatiza a "gravidade dos desafios para a gestão
macroeconômica impostos pela descentralização fiscal num contexto de
desigualdades, fragmentação política e um federalismo robusto", mas não é capaz
de fornecer uma explicação para as medidas radicais e recentralizadoras
adotadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso nessa área. Sem dúvida, se
"o 'centro' [governo federal] for pouco mais do que uma tênue coalizão de
grupos de interesse baseados nos estados" (Rodden, 2003:244), como tais medidas
poderão ser explicadas? De acordo com esse argumento, a descentralização no
Brasil tem gerado mais problemas do que benefícios. A visão do "federalismo
predatório" (Abrucio, 1998) ' um executivo federal fraco, incapaz de superar as
pressões da periferia do sistema político ' é estranha ao quadro do federalismo
no governo de Fernando Henrique Cardoso. Como afirmei no início do artigo, esse
argumento não é consistente com a transformação observada no padrão das
políticas públicas sociais no Brasil. Neste artigo, argumento que ocorreu uma
transformação importante na estrutura federativa brasileira, que foi
essencialmente uma reação ao choque externo produzido pela Constituição de
1988.
A revisão da literatura apresentada nesta seção sugere que o Brasil não é um
caso provável de sucesso na reforma das políticas sociais. Mas há bases
empíricas e analíticas para se esperar o contrário. Como assinalado, o padrão
de relações Executivo-Legislativo pós-constituinte, na realidade, indica que o
Executivo tem poderes institucionais importantes para aprovar políticas e
implementar sua agenda. Minha hipótese é que um importante fator que viabilizou
a implementação da agenda de reformas nos setores sociais foi a capacidade do
governo de reestruturar as relações intergovernamentais ' particularmente o
federalismo fiscal do país. Vale ressaltar que outros aspectos também
importaram, como a reorganização do lugar da política social na distribuição
negociada do portfólio ministerial, e ao mesmo tempo a redefinição do padrão de
patronagem nessa área. A estratégia big bang utilizada, em razão da qual o
apoio ao seu programa de estabilização monetária se estendeu às suas outras
iniciativas, foi também parte integrante do apoio dado ao programa de reforma
das políticas sociais nos dois governos do presidente Fernando Henrique
Cardoso.
CONCILIANDO A REFORMA DE POLÍTICA E O MANEJO DA COALIZÃO DE GOVERNO
Nesta seção examino três processos inter-relacionados. Em primeiro lugar,
discuto como o Executivo pôde levar a cabo uma reforma importante das relações
financeiras intergovernamentais; Em segundo lugar, demonstro como o federalismo
e a política social estavam no núcleo duro do processo amplo de reforma
constitucional da década de 1990; e, finalmente, apresento evidências de que
houve modificações importantes no lugar ocupado pelos ministérios sociais na
política de montagem de gabinetes de coalizão.
Incentivos Presidenciais, Restrições Fiscais e Federalismo
A Constituição de 1988 foi elaborada sob circunstâncias excepcionais. O
Executivo não desempenhou efetivamente qualquer papel no processo, enquanto os
atores subnacionais, em particular os governadores, jogaram um papel central.
Dado que as primeiras eleições diretas durante o jogo de transição política
foram para governador, em 1982, os governadores adquiriram grande legitimidade
e tornaram-se os guardiões do novo regime, negociando ativamente a transição
com os militares. O processo de elaboração da Constituição foi, portanto,
marcado por uma forte influência dos interesses subnacionais. As implicações
fiscais da Constituição foram percebidas no início dos anos 1990, e a
subseqüente evolução das relações intergovernamentais no governo de Fernando
Henrique Cardoso refletiram a reação do governo federal contra tal estado de
coisas.
Como Alston et alii (2004) argumentam, os presidentes brasileiros têm fortes
incentivos para estabilizar a economia e adotar políticas fiscais sólidas
basicamente em função de dois fatores. O primeiro é que o eleitorado se tornou
altamente avesso à inflação, principalmente depois dos efeitos devastadores da
hiperinflação na vida dos brasileiros nos anos 1980 e início dos anos 1990. Por
conta das experiências heterodoxas fracassadas durante os governos de José
Sarney e Fernando Collor de Mello ' Planos Cruzado e Collor, respectivamente '
os cidadãos estavam dispostos a punir eleitoralmente os governos que
implementassem práticas fiscais heterodoxas. Mas o Executivo federal teve que
conciliar suas preferências fiscais com medidas que teriam conseqüências na sua
sobrevivência política, inclusive nas áreas de políticas pelas quais eles
arcariam os custos políticos no caso de fracasso. Apesar do controle da
inflação, os presidentes seriam punidos pelo aumento da taxa de desemprego e
pela baixa performance dos indicadores sociais que adquiriram crescentemente
visibilidade nas áreas de saúde e educação. A capacidade do Executivo em
conciliar esses dois imperativos explica parte do seu sucesso.
As estratégias políticas do governo de Fernando Henrique Cardoso foram
profundamente constrangidas pela agenda política que herdou e que ele próprio
ajudou a formar. Os elementos mais importantes dessa agenda foram os seguintes:
em primeiro lugar, a sustentabilidade do Plano Real. A primazia deste na agenda
de governo deve-se ao fato de ter sido o sucesso do Plano que, primeiramente,
conduziu Fernando Henrique à presidência (o que aconteceu também com os
governadores que se beneficiaram dos efeitos de coattail [efeito de uma eleição
sobre outra] produzidos em 1998). Além de ter sido escolhido como candidato à
presidência por causa do Real, sua reeleição na campanha presidencial de 1998
também dependeu do seu sucesso em controlar a inflação. Isso explica por que a
sustentabilidade do Plano Real se tornou, ao longo do tempo, um elemento
essencial do discurso e da prática política da sua coalizão de governo. As
falhas sucessivas dos planos de estabilização ' principalmente o Plano Collor,
que congelou os preços e impediu, durante um ano, a utilização da poupança e
das aplicações financeiras mantidas pelos agentes econômicos ' causaram grande
impacto na população. No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, a
questão fiscal adquiriu importância ainda maior devido à corrida contra o Real,
no final de 1998, que teve início com a crise da Rússia, provocou a
desvalorização da moeda e uma grande instabilidade nos mercados internacionais.
A inflação era percebida como sendo causada, em primeiro plano, pela dívida do
setor público. Várias medidas foram tomadas para estabilizar a economia no
primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, inclusive a privatização das
estatais ' particularmente as empresas de utilidade pública ' com a redução do
número de funcionários federais e do gasto com pessoal, bem como a reforma da
previdência social. Enquanto o governo federal implementava tais medidas, os
estados e municípios operavam em uma situação de soft budget constraint '
restrição orçamentária fraca ' com elevado e crescente endividamento. A dívida
subnacional tornou-se a fonte primária de desequilíbrio fiscal no país. Os
estados operavam fora do controle do Banco Central, uma vez que os tesouros
estaduais emitiam títulos da dívida, os quais eram absorvidos por instituições
do setor público financeiro estadual. Isso culminou na inadimplência do Estado
de Minas Gerais em 1998, que teve fortes impactos no risco-país no curto prazo.
Defrontando-se com tal estrutura de incentivos, o executivo federal engajou-se
em uma série de reformas que redefiniram as relações financeiras
intergovernamentais.
A primeira iniciativa importante foi a renegociação da dívida dos estados, que
ocorreu em meados dos anos 1990 e envolveu a federalização de aproximadamente
US$ 80 bilhões de débito subnacional. Em troca do refinanciamento da dívida, o
governo federal impôs várias condicionalidades, dentre as quais a privatização
dos bancos e das empresas públicas estaduais (a maioria delas fornecedoras de
energia elétrica). Ao mesmo tempo, o governo federal aprovou diversas emendas
constitucionais, estipulando mecanismos mais restritos de suspensão de
transferências previstas na Constituição para os estados inadimplentes. A
estratégia federal esteve ancorada fundamentalmente em jogo de cenoura e
porrete, no qual os primeiros foram operações de adiantamento pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ' BNDES de recursos em
antecipação às receitas futuras dos leilões de privatização.
A estratégia fiscal do governo federal na administração de Fernando Henrique
Cardoso também envolveu o aumento da carga tributária (através de impostos não
sujeitos à partilha federativa), ao mesmo tempo em que restringiu o
comportamento fiscal das unidades subnacionais. Entre 1994 e 2002, a carga
tributária subiu de 24% para 34% do PIB ' um acréscimo de 10% em uma única
década. Isto se deu principalmente através das contribuições sociais ' tributos
cujas receitas não são constitucionalmente partilhadas com os estados e
municípios. A parcela das contribuições na receita total cresceu de 11% para
49%. Como resultado, até o final da década de 1990, dois terços de toda a
receita arrecadada pela Receita Federal vieram das contribuições (ver Gráfico
1). O aumento dos impostos federais concentrou-se nas chamadas contribuições
sociais por três razões. Ao contrário do imposto de renda e do Imposto sobre o
Valor Acrescentado ' IVA, elas não requerem a partilha com os estados e
municípios. Além disso, a exigência de que os novos impostos só podem entrar em
vigor no ano fiscal seguinte não se aplicava a elas, as quais já podiam ser
cobradas depois de três meses. Em terceiro lugar, o principal componente do
déficit fiscal era a dívida da previdência social, de mais de 4% do PIB, que
foi em parte financiada com o aumento das contribuições. Essa dívida tinha dois
pilares: o desequilíbrio atuarial do sistema especial de pensão dos servidores
públicos e o imenso regime não-contributivo das pensões rurais (Melo, 2004).
O governo federal conseguiu também reter parte dos fundos que eram previstos
constitucionalmente para distribuição entre os estados e municípios. Para
tanto, aprovou várias emendas constitucionais que desvinculavam os impostos de
aplicação específica. Antes da distribuição, os recursos alimentariam um fundo
controlado pelo governo federal (o Fundo Social de Emergência ' FSE) por um
período específico de tempo. Essa estratégia contábil foi reafirmada
posteriormente com o Fundo de Estabilização Fiscal ' FEF e, mais recentemente,
com a Desvinculação de Receitas da União ' DRU (ver Gráfico_2). O governo
federal conseguiu flexibilizar a parcela de recursos discricionários no
orçamento e, ao mesmo tempo, limitar a autonomia fiscal dos estados e
municípios. O ápice desse processo foi a aprovação da Lei de Responsabilidade
Fiscal, em maio de 2000. Como resultado, os três níveis de governo começaram a
produzir superávits primários desde 2001 (Alston et alii, 2005; Alston et alii,
2004; Schneider, 2004).
Em suma, o governo federal ajustou-se razoavelmente às restrições fiscais
impostas pela alta dívida interna do país (Alston et alii, 2004; Goldfajn e
Guardia, 2003). O governo conseguiu controlar a principal fonte de
desequilíbrio ' o comportamento fiscal subnacional ' e, ao mesmo tempo, elevar
a carga tributária. Isto exigiu uma dupla estratégia. Por um lado, reduziu o
gasto subnacional e limitou a autonomia fiscal dos estados e municípios. Por
outro, alargou o espaço fiscal do Poder Executivo federal, ao expandir a base
tributária ao seu dispor e, ao mesmo tempo, ampliar sua discricionariedade. No
restante deste artigo, discutirei como esse processo ocorreu no setor social.
A Trajetória das Reformas Constitucionais
Como afirmei anteriormente, a reforma dos setores sociais implicaram em
importantes mudanças na Constituição de 1988. A Constituição representou o
momento fundador de um novo padrão, com importantes conseqüências path
dependent [dependente da trajetória]. O texto constitucional incorporou uma
série de demandas políticas, sociais e corporativistas, não atendidas. A
Constituição ficou inusitadamente longa, com 250 artigos no texto principal e
outras 75 disposições constitucionais transitórias, abrangendo várias questões
de políticas específicas e não-constitucionais. Esta hiperconstitucionalização
da política pública reflete a sobrecarga da agenda do novo regime democrático e
a insatisfação com os padrões observados na formulação de políticas nos
governos militares. A Constituição incorpora as exigências em torno de uma
formulação de políticas mais descentralizada, democrática e de interesse
público. Em termos de relações fiscais e intergovernamentais, a Constituição
devolveu autonomia administrativa aos governos subnacionais e determinou uma
nova redistribuição funcional de responsabilidades. Além disso, ela instituiu
um novo regime de atribuições tributárias no qual os estados e municípios
receberam não apenas novos poderes de tributar, mas conseguiram, também,
assegurar uma parcela maior das receitas tributárias federais.
A Constituição concedeu um novo status constitucional aos municípios ' o único
país do mundo a fazer isto ' que, juntamente com os estados, se tornaram
unidades constituintes autônomas da federação. Criou também novas receitas para
os estados e municípios, ao estabelecer novas transferências automáticas de
recursos federais. A Constituição determinou também a descentralização de
políticas públicas em um grande número de áreas sociais, como saúde, educação e
assistência social. Além disso, instituiu arranjos participativos em diferentes
níveis, tendo por objetivo o controle social. Suas inovações específicas foram:
a redistribuição gradual da receita pública ' os estados e municípios
garantiram uma parcela maior das receitas tributárias, 10% e 15%,
respectivamente; a exigência de que a participação comunitária, o
universalismo, a transparência e a redistribuição sejam estabelecidos como
princípios para a organização da administração pública; e diversos dispositivos
específicos de natureza redistributiva, que ampliaram consideravelmente os
direitos sociais, tais como a equalização dos benefícios de seguridade social
urbanos e rurais. Muitas das reformas subseqüentes do governo de Fernando
Henrique Cardoso implicaram, portanto, em questões de desconstitucionalização,
ou seja, a supressão de artigos da Constituição e posteriormente (mas nem
sempre) introdução de legislação sobre a questão por meio de leis ordinárias. O
nível inicial de constitucionalização produziu grande rigidez nas políticas
públicas em geral (Melo, 2002; 2003; Alston et alii, 2005). Isto, todavia, não
impediu que o governo de Fernando Henrique Cardoso aprovasse seus programas de
reforma. Um alto grau de constitucionalização afeta a formulação de políticas
sociais, porque, especialmente em uma federação grande e robusta como o Brasil,
onde os municípios são consideravelmente autônomos, qualquer mudança nas
relações intergovernamentais ou na taxação requer alterações na Constituição. A
maior parte das iniciativas na política social e redução da pobreza foi
implementada via emendas constitucionais, o que envolveu intensas negociações
dentro da coalizão governamental e com a oposição.
Os Gráficos_3, 4 e 5 fornecem dados sobre as 50 emendas à Constituição de 1988,
apresentadas até janeiro de 2004. Dez das emendas procederam a Era Cardoso, ao
passo que cinco foram promulgadas no primeiro ano do governo de Luiz Inácio
Lula da Silva (duas das quais foram propostas pelo governo de Fernando Henrique
Cardoso, mas promulgadas posteriormente). Quase metade (42%) das emendas
constitucionais aprovadas refere-se diretamente a aspectos do federalismo
brasileiro. Para as emendas propostas durante os dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, o número correspondente é maior ainda (48,5%). Do total de
emendas pertinentes ao federalismo, mais da metade (53%) relaciona-se a
políticas e direitos sociais5. A centralidade dessas questões no processo de
mudança constitucional pode ser medida em comparação com outros grandes temas.
Enquanto o federalismo foi questão temática em quase metade das emendas, a
economia e os aspectos "institucionais" não-relacionados ao federalismo foram o
alvo de, respectivamente, 22% e 32% de todas as emendas. Deve-se notar também
que houve um intenso esforço reformista no primeiro ano do governo de Fernando
Henrique Cardoso ' 1995 (veja os Gráficos_4 e 5). Esse foi o ano do big bang de
Fernando Henrique Cardoso, com uma grande concentração de emendas: metade de
todas as emendas propostas pelo seu governo ' e mais de um terço (34%) das que
foram apresentadas em um período de 16 anos.
Como se vê, a política social e o federalismo adquiriram grande centralidade no
esforço reformista do governo de Fernando Henrique Cardoso. Na realidade,
grande parte das transformações ocorridas no padrão da política social no
período foi viabilizada através de mudança constitucional e se inscrevem em um
processo de reação à hiperconstitucionalização ocorrida. O êxito desse
movimento reformista é a fortiori mais surpreendente tendo em vista as
dificuldades procedimentais para a aprovação de emendas à Constituição
(aprovação em dois turnos nas duas Casas legislativas, maioria de três quintos,
dentre outras) em relação à aprovação de legislação ordinária.
O Portfolio Ministerial e o Novo Lugar da Política Social
Uma mudança importante ocorreu no papel dos ministérios e burocracias centrais
da área social na formação de gabinetes no país. No período democrático
recente, a estabilidade das coalizões políticas é determinada em grande medida
pela taxa de coalescência entre o portfolio ministerial e a base aliada (Amorim
Neto, 2002). Esse padrão é determinado, como amplamente discutido, pela
natureza do presidencialismo brasileiro que se assenta em grandes coalizões. Ao
contrário de países de desenho constitucional majoritário, o espaço político
para as iniciativas do Executivo é fortemente constrangido, e a política de
coalizão é um traço essencial do sistema político brasileiro (idem, 2002;
Loureiro e Abrucio, 1999). Esta formulação geral não deve obscurecer uma
mudança importante no conteúdo setorial das negociações. Nos gabinetes pré-
Fernando Henrique, os ministérios sociais participaram da partilha de recursos
organizacionais como moeda de troca com partidos da base. Os ministérios da
área econômica, as empresas estatais e bancos públicos federais eram reservados
à cota pessoal do presidente ou no mínimo ao seu partido. A distribuição de
pastas na área de infra-estrutura tradicionalmente ocupava o segundo no
ordenamento de preferências do Executivo. Nos dois governos de Fernando
Henrique, os ministérios da área social foram preservados para os setores mais
próximos do Executivo. Os ministérios da área de infra-estrutura, por sua vez,
foram distribuídos para os parceiros da coalizão de apoio. Um indicador
relevante das preferências do Executivo é a taxa de turnover no cargo. Conforme
mostram os Gráficos_6 e 7, o tempo médio de permanência no cargo dos ministros
da área social é muito mais elevado durante o governo de Fernando Henrique
Cardoso do que nos governos anteriores. No âmbito do governo de Fernando
Henrique Cardoso, a taxa de turnover na área social é semelhante à observada na
área da Fazenda ' apenas um ministro ocupou o cargo nos ministérios da Fazenda
e da Educação durante os oito anos de mandato. O perfil dos ocupantes também
muda no plano social de ministros que estão entre as lideranças importantes (do
Partido da Frente Liberal ' PFL no caso da educação), para ministros de perfil
eminentemente técnico, ou com forte componente técnico (todos os ministros das
áreas de Educação e Saúde apresentam forte formação técnica). O perfil da área
social contrasta com a da infra-estrutura, na qual o número de ministros é, não
só elevado (os ministérios dos Transportes e Indústria e Comércio tiveram seis
e oito ocupantes, respectivamente), mas também de perfil político ' todos os
ex-ministros de Minas e Energia e de Transportes foram parlamentares, este
último com uma singela e breve exceção.
Vale ressaltar, no entanto, que a estratégia de insulamento da área social se
restringia às estruturas centrais dos ministérios. As representações regionais
desses ministérios, bem como as fundações, autarquias e órgãos nos estados eram
peças importantes nos esquemas clientelistas dos parceiros da coalizão do
governo, que praticamente manteve inalterado o padrão de patronagem na
periferia de sua estrutura organizacional. Daí ter me referido no início deste
artigo ao processo de "periferização" da patronagem na área social. O governo
optou por insular a administração central, para a qual indicou especialistas,
muitos deles com formação em economia. Pela primeira vez, foram nomeados
economistas para os cargos de ministro da Economia e da Educação e também para
secretário executivo (o segundo em importância, depois do ministro) nas duas
organizações6. Em suma, ao longo dos dois mandatos, observou-se uma mudança no
papel desses ministérios que importou em uma estrutura dupla na gestão social:
a estrutura organizacional central foi insulada do mercado político, ao mesmo
temo em que se reproduzia na periferia do sistema o mecanismo tradicional de
alianças e patronagem. Embora o governo tenha deixado tais estruturas fora do
alcance dos seus parceiros de coalizão e reservado os principais cargos nesses
ministérios para aliados leais ao partido e para especialistas, a estrutura
burocrática mais ampla foi partilhada entre os parceiros da coalizão. O
fortalecimento do núcleo de comando do Executivo federal permitiu assegurar a
condução da política social, contrabalançando as forças centrífugas que
operavam no sentido de fragmentar as políticas públicas de corte social. Esse
processo representou, no plano programático e administrativo, o equivalente
funcional das transformações ocorridas na gestão fiscal e das relações
financeiras intergovernamentais.
A POLÍTICA DAS VINCULAÇÕES NAS ÁREAS DE SAÚDE, REDUÇÃO DA POBREZA E EDUCAÇÃO
O Fundo de Combate à Pobreza
Após uma intensa mobilização em torno do combate à pobreza no início e em
meados dos anos 1990 ' o que levou à apresentação de 98 propostas legislativas
na Câmara e no Senado ', o Congresso criou uma Comissão Especial para examinar
a questão de redução da pobreza. A Comissão tornou-se uma plataforma importante
para os políticos de oposição criticarem as políticas do governo,
particularmente a macroeconômica. A questão da pobreza tornou-se altamente
politizada, gerando diversas propostas legislativas para a obtenção de recursos
antipobreza. Setores conservadores e de oposição lutaram ferozmente pela
autoria das propostas (Congresso Nacional, 1999). O governo de Fernando
Henrique Cardoso opôs-se à idéia de um fundo porque implicaria em "rigidez
orçamentária". Para os gestores macroeconômicos, a vinculação era o resultado
menos preferido, ao contrário da discrição alocativa nas escolhas
orçamentárias. A Comissão elaborou a emenda constitucional que criou o Fundo de
Combate à Pobreza. A proposta original previa diversas fontes de receita para o
fundo, inclusive a taxação da riqueza e ativos individuais, que havia sido
proposta pelo presidente enquanto parlamentar. A proposta ' que veio a ser a
Emenda Constitucional nº 31 ' foi aprovada através de prolongado período de
negociação.
O relatório da Comissão destacou que não se propôs a criação de impostos
adicionais porque a questão estava sendo discutida na proposta de reforma
tributária. A alternativa foi aumentar a alíquota de um imposto já em vigor. A
maior fonte de receita viria do imposto existente sobre as transações
financeiras (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira ' CPMF).
Esse imposto havia sido criado em 1993 por uma cláusula transitória da
Constituição, legalmente válida por dois anos. A solução foi um compromisso no
qual o governo endossaria a proposta ' considerando-se a preponderância do
Executivo no funcionamento do Congresso como uma precondição para que ela fosse
submetida à votação ' se a CPMF fosse renovada. A aprovação implicou, portanto,
na troca da renovação da validade do "imposto" ' a rigor, uma contribuição '
pela criação de uma nova fonte de recursos. O governo apoiou a proposta da
Comissão, concordando que fosse destinado ao fundo um aumento na alíquota do
imposto. A Emenda Constitucional nº 12/1996 havia criado a CPMF com uma
alíquota de 0,25%. O imposto era vinculado à área de saúde e tinha validade de
dois anos. A Emenda Constitucional nº 21 estendeu a validade por mais três
anos. A alíquota foi elevada para 0,38% no primeiro ano, ficando em 0,30% nos
dois anos restantes ' mas a receita seria destinada à previdência social. O
Fundo de Erradicação da Pobreza garantiu que a alíquota de 0,38% seria mantida.
O fundo gerou certa rigidez porque, caso a receita anual arrecadada não
alcançasse R$ 4 bilhões, o governo federal cobriria a diferença com a receita
tributária geral.
O presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, apresentou a proposta final,
que foi aprovada como a Emenda Constitucional nº 31. O partido do senador, o
PFL, ficou com a maior parte dos dividendos políticos do trabalho da comissão.
A emenda final foi resultado do trabalho conjunto da comissão. Note-se que, na
proposta original de Magalhães, o fundo consistia de diversas fontes de
receita, incluindo novos impostos (ou novas alíquotas para impostos antigos),
mas não incluía nada que se relacionasse à CPMF. O governo de Fernando Henrique
Cardoso aprovou a emenda constitucional e estendeu a validade do imposto para
mais dois anos. Já que o fundo duraria 10 anos, a possibilidade de novas
renovações estaria assim "pré-estabelecida". A tentativa prima facie de
introduzir rigidez no orçamento com o propósito de redução da pobreza pode ser
entendida como parte de negociações e logrolling entre os Poderes Executivo e
Legislativo. O Executivo garantiu a estabilidade fiscal, ao aumentar os
impostos no âmbito federal, e, em troca, o Congresso teve acesso a alguns
programas de redução de pobreza protegidos contra cortes discricionários do
Poder Executivo ' já que a emenda proibia a desvinculação de recursos do fundo.
A prática de vinculação dividiu o Executivo internamente. De um lado, os
gestores macroeconômicos e, do outro, os ministérios das áreas sociais.
Conforme o arquiteto do FUNDEF e da proposta de sua vinculação ao setor de
saúde, afirmou: "nós éramos radicalmente favoráveis e eles eram radicalmente
contra" (Barjas Negri, entrevista não publicada concedida à Mônica Teixeira,
2003). O Executivo prefere discricionariedade no âmbito federal, e vinculação e
controle no subnacional. Entretanto, apóia a vinculação caso o Congresso tenha
sucesso no aumento da tributação e/ou no caso de haver um consenso muito forte
intra-executivo. A vinculação era, portanto, um second best para o Executivo.
Para entender completamente a estratégia do Executivo, é preciso enfatizar que
ele usou a pressão do PFL estrategicamente em favor do fundo. Os políticos
queriam ter seus nomes associados à proposta por causa dos óbvios dividendos
eleitorais que seriam gerados. Como o administrador da coalizão, o Executivo
operava estrategicamente considerando as preferências dos parlamentares de sua
base. O Executivo enfrentou a resistência dos seus setores fazendários e do
planejamento, bem como as restrições fiscais impostas pelo acordo com o Fundo
Monetário Internacional ' FMI. A solução permitiu que a coalizão ficasse com a
autoria da proposta, ao passo que o Executivo foi capaz de transferir para os
seus parceiros o ônus pelo impacto fiscal dessa iniciativa. Fernando Henrique
Cardoso também queria ter um programa que fosse carro-chefe do seu segundo
mandato e esperava que inovações nas políticas sociais desempenhassem tal
papel. Essa linha de interpretação é endossada por atores importantes que
estiveram envolvidos no jogo político (Vilmar Faria, entrevista ao autor,
várias datas; 2002). Vale reter dessa discussão que o crescente enrijecimento
do orçamento federal ' que ocorre sobretudo na área social e com as
contribuições ' é resultado desse jogo de interação estratégica entre o
Executivo que busca extrair recursos crescentes da sociedade através da taxação
e um Congresso que quer garantir recursos carimbados para a área social. Esse
jogo não é de soma zero, porque o Executivo também tem preferência pela
melhoria dos indicadores sociais. No entanto, esse jogo produziu um certo
desequilíbrio dinâmico, na medida em que a elevação do gasto social em
programas universalistas teve impacto difuso e não garantiu uma apropriação
individualizada de benefícios, como no caso de emendas para a execução de obras
de infra-estrutura. Para os parlamentares, o encolhimento crescente do
orçamento de infra-estrutura e a expansão crescente do gasto social representam
uma perda. Mas muitos parlamentares podem se apropriar da expansão do gasto
social de forma indireta seja na forma de controle da operação do programa na
ponta ou através dos ganhos indiretos advindos do sucesso da coalizão de
governo.
A Política das Vinculações de Recursos para a Saúde
Um passo importante para assegurar mais recursos para o social foi dado na área
da saúde. Isso envolveu duas emendas constitucionais que, como já assinalado,
eram necessárias face ao alto nível de constitucionalização das políticas no
Brasil. Elas podem ser vistas como estratégias de introduzir inovações
institucionais como mecanismos de pré-compromisso que asseguram o seu
cumprimento. A vinculação representava um mecanismo para garantir credibilidade
a transações políticas. Em outras palavras, compromisso intertemporal. Na
ordenação de preferências do Executivo, o que importava em primeiro lugar era
garantir recursos fiscais. Como já mencionado, a Constituição de 1988 criou um
orçamento unificado para aposentadorias, benefícios de assistência social e
saúde pública ' o chamado orçamento da seguridade social. Isso era parte da
demanda por um sistema universalista de proteção social e constituiu uma
importante bandeira setorial na Assembléia Constituinte. Assim, foi criada uma
fonte diversificada de recursos. Os grupos que apoiavam a idéia consideravam
tal arranjo institucional um mecanismo que desvincularia as contribuições do
acesso ao sistema, tornando-o mais democrático e redistributivo. Foi também com
esse propósito que a Constituição garantiu acesso universal à saúde pública,
através do então recentemente criado Sistema Unificado e Descentralizado de
Saúde ' SUDS. Introduziu também generosos benefícios de assistência social,
como os três meses de licença-maternidade. Os principais componentes do
orçamento da previdência social eram a Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido ' CSLL, a contribuição sobre o lucro líquido das empresas, a
Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social ' COFINS e a
Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social. A fusão dos gastos com
saúde pública e aposentadorias no mesmo orçamento produziu, ao longo do tempo,
uma dinâmica de crowding out [efeito de deslocamento] do orçamento da saúde
pública. Isso porque as aposentadorias são desembolsos contratuais, e não são
"comprimíveis"; são fluxos de compromissos futuros que só terminam com a morte
dos pensionistas. Em contrapartida, os gastos com saúde são, na sua maioria,
despesas correntes, sendo, por definição, vulneráveis no contexto da gestão
fiscal. Como já mencionado, os compromissos previdenciários, ao longo do tempo,
comprometeram os gastos com saúde. Não levou muito tempo para a situação ficar
crítica. Isso porque, antes da Constituição de 1988, os desequilíbrios fiscais
na estrutura de aposentadorias não eram significativos e, mais importante
ainda, as aposentadorias não eram indexadas, resultando gradualmente em uma
erosão acentuada do valor real dos benefícios. Ao determinar a manutenção das
aposentadorias no seu valor real, a Constituição de 1988 proibiu a utilização
do valor das aposentadorias como a variável de ajuste do sistema. Além disso,
ela expandiu dramaticamente o quantitativo de servidores civis no Regime
Jurídico Único, pelo qual os benefícios são calculados com base na média dos
últimos vencimentos, equiparou as aposentadorias não-contributivas e os
benefícios sociais rurais às aposentadorias urbanas e, finalmente, fixou o piso
das aposentadorias em um salário mínimo. Isso produziu um choque externo no
sistema e pressionou os gastos com saúde logo após sua implementação7.
A crise na área de saúde aumentou a visibilidade das questões de saúde pública
no país. O Brasil apresenta taxas de mortalidade infantil bem acima dos países
com semelhantes níveis de desenvolvimento, medidas em termos de renda per
capita. Como assinalado, a questão da melhoria dos indicadores sociais do
governo era central na agenda do governo. Reestruturar o sistema de saúde de
acordo com um estado de Bem-Estar universalista compatível com as condições de
um país em desenvolvimento era também uma prioridade importante para o governo.
Na administração de Fernando Henrique Cardoso, durante as discussões sobre como
eliminar a pobreza e melhorar as condições de vida, o ministro da Saúde, Adib
Jatene, começa uma cruzada para expandir os recursos da saúde pública. Muitas
propostas foram apresentadas para vincular recursos para a área da saúde, as
quais foram criticadas por círculos das Finanças e do Planejamento como um
retrocesso que causaria mais rigidez fiscal em um contexto de declínio
acelerado dos graus de liberdade do orçamento.
O argumento de que seriam assegurados mais recursos para a área de saúde foi
usado até mesmo nas negociações que deram origem ao Fundo Social de Emergência,
em 1994, que consistiria essencialmente na retenção de 20% dos impostos e
contribuições, os quais poderiam, então, ser livremente alocados pelo
Executivo. A estratégia de Fernando Henrique Cardoso consistiu essencialmente
em dar apoio a tais propostas ' as quais geraram dividendos políticos para a
sua coalizão ' considerando que elas não entravam em conflito com seu objetivo
principal da estabilidade fiscal na medida em que implicavam na expansão dos
recursos fiscais disponíveis. As medidas para assegurar o financiamento da área
de saúde culminaram na proposta de reformulação da CPMF e vinculação de parte
dela para o sistema de saúde. Como assinalado, a CPMF foi criada pela Emenda
Constitucional nº 3, de 1993, um dispositivo transitório que só valeria por
dois anos. Como discutido anteriormente, a primeira mudança importante aprovada
pelo governo de Fernando Henrique Cardoso ocorreu em 1996, quando a Emenda
Constitucional nº 12 reafirmou a CPMF e a vinculou à área da saúde. Entretanto,
garantir uma fonte estável de recursos para a área de saúde não foi o
suficiente, considerando-se as vicissitudes do federalismo brasileiro. A
implementação das políticas dependia dos governos subnacionais e dos escalões
burocráticos situados na periferia da estrutura organizacional dos ministérios
sociais ' tais como os escritórios regionais, os departamentos e as divisões,
os quais eram controlados basicamente pelos parceiros conservadores da
coalizão. O elemento-chave foi, contudo, o comportamento dos prefeitos e
governadores. Reconhecendo que o poder deles era um impedimento ao uso efetivo
dos recursos da saúde, o governo de Fernando Henrique Cardoso deu início a
mudanças institucionais importantes. Nesse caso, o ministro da Saúde e futuro
candidato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, José Serra, teve um papel
fundamental. Serra apoiou a proposta apresentada em 1995, a qual, porém, só
veio a ser aprovada em 2000, na forma da Emenda Constitucional nº 29. A emenda
estipulou valores mínimos para os investimentos na área de saúde nos três
níveis de governo. Para o governo federal, o orçamento de 2000 foi fixado com
um acréscimo de 5% em relação ao de 1999. Definiu-se que, para o período 2001-
2004, o valor dos gastos em saúde seria reajustado pela variação anual do PIB
nominal. 15% desses gastos deveriam ser destinados aos procedimentos básicos de
saúde pública dos municípios e distribuídos de acordo com a população. No caso
dos estados, 12% da receita ' deduzidas as transferências para os municípios '
devem ser gastos na área de saúde. Requer-se dos municípios, por sua vez, que
gastem 15% de seu orçamento na saúde pública. Os estados e municípios que
tivessem em 2000 gastos inferiores ao estipulado deveriam reduzir a diferença a
uma razão de um quinto ao ano. A falta de cumprimento permitiria a intervenção
federal nos governos subnacionais. A lei estabeleceu também que todas as
transferências seriam canalizadas para um fundo sujeito a auditorias.
As iniciativas que tinham por objetivo vincular recursos para a saúde podem ser
vistas como tentativas de controlar e assegurar o gasto subnacional naquela
área, em um contexto de rápida descentralização e, conseqüentemente, de grande
incerteza a respeito dos resultados dessa questão cada vez mais central no
governo de Fernando Henrique Cardoso. É significativo o fato de que, no
contexto do ajuste fiscal, as transferências voluntárias para a saúde ' que
são, de longe, as maiores do país na categoria ' tornaram-se cruciais para a
sobrevivência fiscal dos estados e municípios. Isso tornou ainda mais crítico
para o governo de Fernando Henrique Cardoso o controle do gasto subnacional, o
que é consistente com o jogo político discutido na seção dois deste artigo. O
Executivo prefere vincular o gasto subnacional porque isso lhe concede
discricionariedade fiscal no âmbito federal e lhe possibilita superar os
problemas de assimetria de informação em relação a agentes na ponta do sistema:
prefeitos, governadores e burocracias responsáveis pela implementação.
Mudando a Estrutura de Incentivos na Federação Brasileira: O Fundef
Em dezembro de 1996, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 14,
instituindo o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério, o FUNDEF. Tendo sido proposto pelo Executivo
federal, o Fundef representou um mecanismo engenhoso criado no governo de
Fernando Henrique Cardoso para redefinir a estrutura de incentivos vigente na
provisão de educação básica no Brasil. O Fundo representa um exemplo
paradigmático de reforma de segunda geração. A política de educação é outra
área que ilustra o uso de inovações institucionais como mecanismos de pré-
compromissos para assegurar que sejam cumpridos. Como no caso da saúde pública,
os ensinos fundamental e médio eram considerados cruciais pela coalizão
governamental, requerendo insulamento do logrolling ordinário no Congresso.
Como assinalado, o first best para o Executivo seria ter total
discricionariedade na alocação de fundos na área social. Mas em troca da
aprovação do Congresso para a criação de novos tributos, ou para a instituição
de programas que aumentariam o controle do governo central no gasto
subnacional, a vinculação representava o second best. Sem dúvida, no caso do
Fundef, o controle fiscal e a elevação do desempenho educacional eram os
objetivos principais. Nesse caso, a principal questão fiscal do governo central
era garantir que os recursos para a educação primária e secundária fossem de
fato aplicados pelos governos subnacionais de forma específica. Note-se que a
educação primária e a secundária não são da competência funcional de um nível
específico de governo. De acordo com a Constituição de 1988, a provisão de
educação primária deveria ser atribuição dos municípios, com assistência
técnica e financeira do governo federal e dos estados (Art. 30 da
Constituição). A Emenda Constitucional nº 14 contém artigos definindo as
prioridades de cada nível de governo sem, porém, determinar uma clara
especialização de competências. Entretanto, ela introduziu um sistema de
incentivos que punia os municípios que não se especializassem na provisão de
educação básica.
Em comparação com o setor de saúde, a vinculação de recursos para a área da
educação começou bem mais cedo. A Constituição de 1988 continha dispositivos
vinculantes mas mesmo antes de sua promulgação havia outros instrumentos com o
mesmo propósito. Nos anos 1930, Vargas decretou que pelo menos 10% das receitas
fossem gastos com educação. A Constituição de 1934 fixou tal percentual em 10%
e 20% para os estados e municípios, respectivamente. A Constituição de 1946,
por sua vez, continha dispositivos semelhantes (Sena, 2004: 3-4), os quais
foram extintos durante o regime militar. Em 1983, porém, foi proposta uma
emenda constitucional, a chamada emenda Calmon ' que estipulava níveis mínimos
de gasto para a educação. A emenda Calmon destinava 13% das receitas
tributárias líquidas para o governo federal (o que entrou em vigor apenas em
1985). A Constituição de 1988 aumentou para 18% o percentual do governo federal
e estabeleceu que 25% das receitas tributárias líquidas iriam para os governos
subnacionais. No caso do governo federal, o art. 60 das cláusulas transitórias
da Constituição (ADCT) determinou que, por um período de 10 anos, 50% do
montante equivalente a 18% das receitas seriam alocados em programas de
alfabetização e na cobertura universal da educação básica. A proposta sofreu a
resistência das burocracias do planejamento e fazendárias e de parlamentares
que tinham ligações estreitas com esses círculos.
No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, a centralidade da educação para
o desenvolvimento tornou-se uma questão recorrente na agenda pública. Tanto no
meio empresarial quanto nos movimentos sociais, emergiu um consenso para a
elevação da qualidade da educação. O compromisso do governo de Fernando
Henrique Cardoso com a reforma da educação refletiu-se na nomeação de um dos
principais assessores econômicos para o cargo de ministro da Educação, em um
novo padrão de recrutamento para cargos da maior importância, e na reforma
importante da estrutura organizacional do setor8. O executivo estava empenhado
no insulamento político do setor. O novo ministro da Educação era professor de
economia e ex-reitor da Universidade de Campinas ' de onde também se originou
uma parte importante dos novos gestores do setor (uma parte importante dos
quais esteve envolvido na criação do Bolsa Escola de Campinas). A principal
questão de políticas era como melhorar a educação e promover a descentralização
do setor9. Em muitas escolas da zona rural nordestina, a faixa salarial estava
abaixo do salário-mínimo. Com recursos vinculados na Constituição, o desafio
agora era garantir que os professores recebessem melhores salários. Em 1989,
foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito ' CPI para investigar a
emenda Calmon. A comissão verificou que os estados gastavam em salários menos
do que 20% das despesas constitucionalmente destinadas à educação. A conclusão
geral foi que os salários extremamente baixos dos professores e a falta de
treinamento estavam entre as principais razões da baixa qualidade da educação.
A mobilização nacional em torno da educação resultou finalmente na instituição
do Fundef através da Emenda Constitucional nº 14 e na aprovação da Lei de
Diretrizes e Bases ' LDB, a lei complementar que define as diretrizes básicas
da educação, ambas de 1996. O projeto da LDB tinha sido aprovado na Câmara
durante o governo Itamar Franco, mas a nova administração se opôs a muitos de
seus dispositivos, particularmente na área de finanças públicas, por exigirem
grande vinculação das finanças federais. Um projeto de lei completamente
diferente foi então apresentado por um senador da oposição, Darcy Ribeiro
(Partido Democrático Trabalhista ' PDT-RJ), sendo finalmente aprovado. O Fundef
exigia que, por um período de 10 anos, pelo menos 60% dos 25% dos recursos
subnacionais destinados à educação fossem gastos no pagamento dos professores
ativamente envolvidos em atividades de sala de aula ou em treinamentos de
professores. Determinou também o estabelecimento de estruturas de carreira para
os professores. Os recursos necessários para o aumento salarial e treinamento
viriam de um fundo específico ' ou fundos, melhor dizendo, porque, na verdade,
cada estado tinha o seu próprio). A maior fonte de recursos do Fundo consistia
em 15% do Fundo de Participação dos Municípios ' FPM; 15% da receita estadual
do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços ' ICMS; e
uma contribuição suplementar do governo federal10. Esta última seria a quantia
necessária para equalizar o gasto per capita em municípios cujos níveis de
gasto estavam abaixo do gasto mínimo nacional per capita definido na lei
orçamentária anual do país. Todas as transferências para o Fundef e os saques
efetuados seriam automáticos e dependentes das transferências
intergovernamentais definidas constitucionalmente.
A mais importante inovação consistia dos mecanismos que regiam a alocação dos
recursos do fundo, os quais são distribuídos de acordo com o número de
matrículas escolares em cada nível de governo. Isto produziu uma revolução na
estrutura de incentivos da educação. Os prefeitos empenharam-se ativamente em
atrair novos alunos porque receberiam mais transferências do fundo. Além disso,
este encorajou a descentralização dos estados para os municípios, dado que
haveria transferências negativas em alguns municípios se os serviços
educacionais fossem prestados pelos estados. A nova estrutura de incentivos
produziu dois resultados importantes: criou fortes incentivos para os governos
municipais expandirem a cobertura nos seus territórios; e encorajou os
municípios a assumirem os serviços educacionais prestados pelos estados. Os
municípios onde a maior parte da educação básica era prestada pelos governos
dos estados tinham que contribuir compulsoriamente com um mínimo de 25% de suas
receitas para o Fundef, mas não poderiam receber recursos do fundo. Tal padrão
prevaleceu em estados como São Paulo e Paraná. Em contrapartida, nos estados
onde a educação básica já havia sido descentralizada para o âmbito municipal '
como ocorreu no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e na maioria dos estados
nordestinos ' haveria uma redistribuição de recursos do estado para os
municípios, especialmente para os municípios menores e periféricos.
Por ser o Executivo federal quem estabelecia o nível nacional de gastos per
capita, ele possuía, em última análise, discricionariedade sobre o montante de
recursos que canalizava para o Fundef. Em 1997, o nível per capita foi fixado
em R$ 300,00. A Lei nº 9429/96 exigia que, para 2001 (cinco anos depois), esse
nível mínimo deveria levar em conta os recursos necessários para garantir um
padrão básico de qualidade. A lei também determinava que o mínimo per capita
para cada ano não deveria ser inferior à razão entre a receita esperada total
do fundo no ano e o número de matrículas, conforme fornecido pelo censo
educacional prévio, mais quaisquer acréscimos estimados11. Requeria também que
as diferenças nos custos de prestação dos serviços de educação para todos os
níveis escolares (1ª a 4ª séries; 5ª a 8ª séries; estudantes especiais etc.)
fossem levadas em conta. O valor per capita de 1997 foi baseado apenas na
receita projetada para aquele ano. Com o valor fixado em R$ 300, 00, o governo
federal teve que liberar fundos de equalização para oito estados (de um total
de 25) ' todos no norte e no nordeste do país ' cujo gasto per capita era
inferior àquele valor. No período de 1998-2002, o governo federal não fixou o
padrão mínimo nacional de qualidade para a educação que a lei exigia. E, o que
é mais importante, o gasto per capita não foi calculado com base na receita
estimada do fundo. O nível inicial de R$ 300,00 permaneceu como o único
parâmetro.
Um baixo gasto per capita gerou, na prática, um decréscimo nas transferências
que o governo federal deveria fazer para o Fundef, no período de 1998 a 2003.
Entre 1998 e 2002, o PIB nominal cresceu 46,0%, a receita do Fundef subiu
76,5%, e a quantidade de matrículas aumentou 5,3%. Todavia, o valor mínimo per
capita cresceu apenas 42,1% (veja a Tabela_1). Isso, combinado ao fato de as
receitas do Fundef terem sido sistematicamente subestimadas, produziu um nível
baixíssimo de execução das transferências federais orçadas (uma média de 67,8%
para o período 1998-2003, conforme a Tabela_2). A parcela dos estados e
municípios cresceu de forma semelhante. A lei que criou o Fundef era ambígua em
relação a como o gasto per capita mínimo deveria ser calculado. O governo
argumentou que, em razão de o Fundef ser um fundo de nível estadual, o valor
per capita nacional deveria ser calculado como a média de todos os fundos
estaduais (Ministério da Educação, 2003). Tal questão se tornou objeto de
enorme controvérsia, envolvendo principalmente os partidos de oposição, as
instituições representativas do setor educacional e a Procuradoria Geral da
União. Se um mínimo nacional fosse calculado com base na receita total esperada
das fontes vinculadas ao Fundef (dividido pelo número total de matrículas), o
valor seria fixado em um nível muito alto e, em conseqüência, as contribuições
do governo federal seriam mais elevadas. Sem dúvida, de acordo com estes
últimos critérios, o nível nacional per capita seria estabelecido em R$ 418,70
(em vez de R$ 315,00), em 1998, e a parcela do governo federal subiria 423%. O
número de estados que se beneficiariam do programa subiria de sete para 17. Em
todo o período 1998-2002, as contribuições do governo federal representaram
apenas 15,6% do montante total estimado, com o qual ele deveria ter contribuído
no caso de o parâmetro mínimo nacional ser usado (idem:8).
Quem se opôs ao Fundef? Quem ganhou e quem perdeu com ele? Em termos de
beneficiários diretos, estes foram, no curto prazo, os professores e municípios
nos quais os salários eram baixos. Houve também redistribuição, dos municípios
urbanos para os rurais dentro de um mesmo estado. O impacto do Fundef também
dependeu fundamentalmente da relação entre o total de matrículas nas escolas
estaduais e municipais em cada estado. Como visto anteriormente, os estados com
as quantidades mais altas de matrículas no curto prazo beneficiar-se-iam mais.
Em contrapartida, onde o percentual de matrícula fosse pequeno, quem ganharia
seriam os municípios. Os estados mais pobres também ganhariam, já que estariam
qualificados a receber transferências equalizadoras do governo federal.
Observe-se que os professores seriam os maiores beneficiários,
independentemente de tal relação, por causa do gasto mínimo obrigatório de 60%
em salários ou treinamentos de professores12. Por essa razão, os sindicatos de
professores deram certo apoio ao Fundef. Contudo, os movimentos de esquerda e
partidos opuseram-se ao programa do governo de Fernando Henrique Cardoso. O
maior dos sindicatos, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação '
CNTE, fazia parte da Central Única dos Trabalhadores ' CUT.
A CNTE, uma confederação de sindicatos de âmbito estadual, cujos empregadores
eram os estados e municípios, estava fragmentada no nível nacional (em
contraste com suas congêneres na maioria dos países latino-americanos, onde os
docentes tinham como empregadores os governos federais). O aumento de salário
dos professores era uma das bandeiras da CNTE, a qual fazia pressão para a
criação de um piso salarial nacional. De fato, a CNTE, juntamente com a União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação ' UNDIME e o Conselho Nacional
dos Secretários Estaduais de Educação ' CONSED, conseguiu chegar a um acordo
nesse sentido com o governo Itamar Franco, durante a Primeira Conferência
Nacional da Educação. No acordo, assinado em 1994, foi fixado um piso salarial
mínimo para os professores de R$ 300,00. Todavia, por razões de ordem política
e técnica, o governo foi contra a proposta (Maria Helena Castro, em entrevista
com o autor). Primeiro, acreditava-se que o programa daria origem à criação de
um movimento sindical muito mais forte no setor da educação, o qual era
dominado pelo Partido dos Trabalhadores ' PT. Nas palavras de Castro: "quando
os professores entrarem em greve no Acre, os de São Paulo seguirão o exemplo.
Seria a federalização das greves"13. Embora muitos assessores importantes do
governo ' inclusive a Primeira Dama, professora Ruth Cardoso, que liderava o
Comunidade Solidária ' a tivessem apoiado, a proposta não foi aprovada (Gilda
Portugal, em entrevista com o autor, 2003). Segundo, muitos assessores
argumentavam que a proposta não era consistente com a estrutura federativa
brasileira. Os municípios apresentavam grandes diferenças econômicas, fiscais e
de custo de vida. Terceiro, muitos municípios pagavam os professores com base
em uma quantidade específica de horas-aula, o que tornava impossível a adoção
do piso nacional. As outras partes envolvidas na discussão representavam os
interesses do setor público. Os atores principais na discussão da iniciativa
eram duas instituições: a UNDIME e o CONSED. Apesar de manterem vínculos
(embora mais fracos) com os partidos de oposição, elas apareciam como entidades
não-partidárias. A entidade mais ativa era a UNDIME, que compartilhava muitos
interesses com a CNTE (CNTE, 1999; UNDIME, 1999)14.
Apesar de louvar a iniciativa, a UNDIME argumentou que o Fundef era um
mecanismo de "redistribuição dos recursos já disponíveis no nível estadual" e
que, ao fixar o valor per capita em um nível tão baixo, o governo federal
conseguiu gastar menos recursos na educação primária (UNDIME, 1999). Durante a
aprovação do Fundef, o presidente vetou três dispositivos, atraindo
subseqüentemente várias críticas da UNDIME e da CNTE. Eram dispositivos que
permitiam a inclusão de jovens e adultos no programa; proibiam o governo
federal de usar sua quota no imposto cobrado dos empregadores para a educação
(o Salário Educação) nas transferências de equalização para o Fundef; e que
exigiam a transferência automática das quotas estaduais para os municípios, em
vez do Fundef. Os vetos tiveram por objetivo garantir que o governo federal
reduzisse suas contribuições para o fundo e mantivesse controle sobre o Fundef
e sobre o comportamento dos municípios. É interessante notar que tais
associações terminaram por não desempenhar o papel de críticos ou de opositores
do Fundef, mas de seus mais fortes apoiadores. Isso ocorreu por ter se
convertido em críticos da alegada falta de aplicação ou de implementação das
suas disposições.
Em termos do que prediz a literatura sobre as reformas de segunda geração, esse
resultado é um paradoxo. Em vez de se opor à iniciativa de reforma, as forças
de oposição pressionaram para uma implementação mais efetiva das reformas. É
significativo que o PT tenha votado contra o Fundef nos dois turnos de votação
na Câmara, mas tenha sido favorável na votação do Senado. Uma oposição mais
explícita à reforma ocorreu no caso dos governadores dos estados no qual a
descentralização já havia sido substancial. Durante as negociações da emenda e
da Lei nº 9424, os governadores dos estados que eram "perdedores potenciais"
pressionaram por um período de transição de cinco anos, ao invés dos três meses
propostos, e por um esquema de compensação. O que ocorreu foi a extensão do
período de transição por um ano, além de um programa de modernização e
ampliação das escolas secundárias. Esse programa foi a "moeda política" para a
aprovação do Plano Avança Brasil (Maria Helena Castro, em entrevista com o
autor).
A tramitação legislativa da proposta do Fundef durou quase um ano. Um passo
crucial deu-se quando uma disposição sobre a autonomia das universidades, que
estava bloqueando as negociações, foi removida. Em suma, o mecanismo do Fundef
foi uma iniciativa altamente bem-sucedida do governo de Fernando Henrique
Cardoso, que produziu uma intensificação da descentralização da educação no
Brasil. Contribuiu também para a melhoria das condições de trabalho e dos
salários dos professores, particularmente no nordeste, onde subiram em média
70%, entre 1997 e 2000 (dados supridos pelo INEP). A proporção de professores
leigos nos sistemas municipais caiu de 12% dos professores em 1997 para 5% em
2000. O aumento na cobertura exigiu também a contratação de mais professores.
No período de 1997 a 2000, o número de professores municipais cresceu de
600.000 para aproximadamente 750.000 (World Bank, 2002). Ao mesmo tempo, o peso
dos diferentes níveis de governo foi alterado, com os governos municipais agora
representando quase 38% dos gastos, em comparação com 27% dos gastos em 1995.
Os municípios, como um todo, gastaram quase R$ 24 bilhões em educação no ano
2000, quase o dobro do que gastaram, em termos reais, em 1995 (idem).
Muitas mudanças foram realizadas a um baixo custo para o Executivo, o qual
conseguiu revolucionar a estrutura de incentivos dos prefeitos e governadores
na área educacional. Tal iniciativa refletiu a preocupação da sociedade e das
elites burocráticas do governo com a educação e, ao mesmo tempo, contribuiu
para garantir a manutenção do controle federal sobre o processo. Foi também
consistente com a preocupação do governo federal com as questões fiscais. Os
constrangimentos fiscais levaram o governo a não aumentar o nível per capita,
apenas a ajustá-lo à taxa da inflação. De fato, o governo reduziu a parcela dos
fundos de equalização na receita total ao longo do tempo. A lógica das
iniciativas do governo federal foi semelhante às que envolveram o sistema de
saúde pública: tentativas de controlar e assegurar o gasto subnacional, em um
contexto de rápida descentralização e, conseqüentemente, de alta incerteza em
relação aos resultados. A unificação dos recursos em uma única conta foi
essencial para assegurar o controle federal do gasto subnacional. De forma
consistente com suas preferências de expansão fiscal no âmbito local, os
governos subnacionais têm pressionado o governo federal a aumentar o nível per
capita nacional. Entretanto, as necessidades fiscais têm levado o governo a não
o reajustar. O governo federal quer controlar tanto as prioridades quanto os
gastos subnacionais, ao mesmo tempo em que mantém suas próprias metas fiscais
como a principal variável de ajuste.
O caso do Fundef ilustra como o desenho da reforma pode contribuir para a
superação da resistência às reformas. Assume-se normalmente que as reformas da
segunda geração produzem apenas "perdedores" e poucos, ou não tão claros,
"vencedores". Os benefícios da reforma são geralmente considerados bens
públicos. No caso do Fundef, ficou claro que ela beneficiou um setor específico
' os professores e os municípios pequenos. Os sindicatos dos professores e os
interesses do setor educacional acabaram sendo, portanto, não pontos de veto,
mas atores pró-reforma. Embora muitos desses interesses fossem ideologicamente
opostos ao governo de Fernando Henrique Cardoso, eles não foram capazes de se
opor à proposta de reforma como tal. Uma explicação alternativa para esse
fenômeno, com base na literatura discutida na seção inicial deste artigo, é
que, no caso do Fundef, a "política de eficiência/qualidade" se confundiu com a
"política da expansão". Buscou-se a qualidade e a eficiência de forma indireta,
pela melhoria dos salários, e não pela imposição de metas de qualidade. A
interpretação alternativa neste caso é que a reforma a criação do Fundef não
constituiria um caso típico ou puro de reforma de segunda geração. Neste caso a
tipologia de reformas necessitaria de ser reformulada.
O caso do Fundef mostra também que uma classe importante de perdedores ' os
governadores estaduais ' não conseguiu impedir as reformas. Eles foram
parcialmente compensados pelo governo federal. O Executivo conseguiu superar a
resistência ao reconstruir o federalismo brasileiro em favor do Centro. Além
disso, o caso do Fundef ilustra como o governo federal conseguiu pôr em prática
a reforma em um contexto de austeridade fiscal. O aumento das alíquotas e o
aperfeiçoamento da arrecadação dos impostos ligados ao Fundef causaram o
declínio gradual dos fundos de equalização do governo federal, porém mais
recursos foram canalizados para a educação primária.
CONCLUSÕES
Neste artigo, argumento que a transformação no padrão da política social foi
possível como resultado de uma combinação de fatores. Primeiro, o Executivo no
Brasil têm a capacidade institucional de implementar sua agenda. Em que pesem
os constrangimentos da política de coalizão, eles possuem a capacidade de
aprovar reformas no Congresso. Os presidentes são poderosos institucionalmente
e têm a capacidade de restringir o comportamento fiscal subnacional. Como
assinalado, a ampla reestruturação das relações intergovernamentais mostrou-se
fundamental para a transformação do padrão de políticas sociais no país.
Segundo, os presidentes também têm incentivos para tomar medidas fiscalmente
responsáveis e, ao mesmo tempo, implementar reformas sociais. Os presidentes
são punidos ou premiados pelo seu desempenho no combate à inflação e em
assegurar baixos níveis de desemprego. Nos anos 1990, o eleitorado tornou-se
avesso à inflação e, ao mesmo tempo, emergiu um consenso na opinião pública,
nas elites empresariais e entre os parlamentares em torno da redução da
pobreza. O produto final desse consenso foi o jogo constitucional em torno da
vinculação de recursos para as áreas sociais da saúde e da redução da pobreza
em geral. As emendas constitucionais representaram compromissos críveis no
sentido de que os recursos seriam alocados nas áreas sociais. O Congresso
aceitou a instituição de novos impostos ou alíquotas para os impostos
existentes em troca de mais recursos fiscais, inclusive para os setores sociais
que passaram a absorver uma parcela cada vez mais expressiva do orçamento. O
Executivo foi capaz de conciliar as demandas de sua coalizão de apoio com o
insulamento da política social da competição política mais ampla. Isso implicou
na reorganização do lugar dos ministérios sociais no jogo da política de
coalizão. Ademais, o Executivo conseguiu reduzir as "perdas de agência"
associadas à descentralização, fazendo uso de uma estratégia dupla: criando uma
estrutura de incentivos que permitiu o alinhamento dos interesses do governo
federal e das unidades subnacionais, particularmente dos governos municipais
(vide Fundef) e estipulando regras fiscais severas para governos subnacionais.
Tal estratégia foi apenas parcialmente bem-sucedida porque os prefeitos e
outros atores locais ainda podiam controlar um mecanismo importante: o registro
de beneficiários dos programas de transferências sociais.
A literatura sobre a segunda geração de reformas de fato tende a exagerar os
mecanismos de resistência à reforma. Uma série de fatores contribuiu para que
essa resistência fosse superada. A estratégia big bang do governo de Fernando
Henrique Cardoso mostrou-se efetiva no estabelecimento de um vínculo entre o
programa altamente popular de controle da inflação e o restante de sua agenda.
Segundo, houve amplo consenso nacional sobre a necessidade de combate à
pobreza. Esta, quando extrema, era vista não apenas como abjeta, mas também
como prejudicial à competitividade do país. Isso contribuiu para formar um
consenso e criar apoio para a redução da pobreza. No entender de Nelson (2000),
o consenso aumentou os custos políticos de não fazer a reforma. Na verdade, tal
consenso se manifestou na competição política em torno da paternidade do Fundo
de Combate à Pobreza (e particularmente do Bolsa Escola). Terceiro, a
inexistência de modelos de reforma na área social pareceu ser uma vantagem, ao
invés de um problema. A transferência de políticas normalmente gera problemas
de implementação pela dificuldade de adaptação a modelos exógenos. No caso
brasileiro, o conhecimento especializado de políticas nas áreas sociais foi
essencial para o processo de inovação doméstica. De fato, o Fundef (como também
o Bolsa Escola) foram programas desenhados nos principais ministérios sociais,
e não importados. A resistência dos provedores de serviços ' professores,
sindicatos e empregados do setor de saúde ' foi muito menor do que o esperado,
devido à estrutura de incentivos criada para a descentralização.
No texto também destaquei dois aspectos negligenciados na literatura. Primeiro,
a política de formação de ministérios no país sofreu uma ruptura em torno de
seu conteúdo substantivo setorial. Segundo, que o amplo processo de reforma
constitucional esteve ancorado na reforma do federalismo brasileiro. As
implicações dessa transformação para o funcionamento do sistema político e para
as políticas públicas em geral são seguramente uma importante tarefa para o
futuro.
NOTAS
1. Cf entre as exceções Draibe (2004) e Almeida (2004). Em geral, a literatura
tende a apenas privilegiar um aspecto do conteúdo programático da política
social ' a expansão e predominância de programas universais ' ignorando-se as
mudanças ocorridas.
2. Em 2002, o Bolsa Escola envolveu gastos da ordem de US$ 800 milhões. A
cobertura e capilaridade do programa também foram significativas: o programa
beneficiou 11 milhões de crianças e cerca de 5 milhões de famílias; uma em cada
três crianças do país, com idades entre 7 e 14 anos, recebeu a bolsa em 2002.
3. A rigor a transformação centrou-se nas relações intergovernamentais e não no
federalismo enquanto desenho constitucional. A fronteira entre os dois
aspectos, como se notará ao longo da análise, é freqüentemente tênue. Agradeço
à Celina Souza por chamar a atenção para este ponto.
4. A literatura sobre a economia política das reformas chama a atenção para
problemas de inconsistência temporal em reformas seqüenciadas que podem levar
ao malogro, mas destacam também que as reformas tipo big bang podem se tornar
inviáveis se um componente essencial do pacote de reformas falhar, contaminando
por extensão os outros componentes.
5. Categorizamos as emendas da seguinte forma (cinco categorias foram
utilizadas): as questões relacionadas aos setores econômicos (tais como
telecomunicações, monopólios públicos etc.) foram classificadas como
"econômicas"; as questões pertinentes a instituições políticas, regras de
decisão, cidadania etc. foram classificadas como "institucionais"; as questões
de "controle fiscal" referem-se a todas as emendas com o objetivo específico de
controle de gastos e de disciplina fiscal; as emendas que têm implicações
relevantes para as relações intergovernamentais são classificadas como
"federalismo"; "políticas e direitos sociais" são auto-explicativos. Estas
categorias não são mutuamente exclusivas, dentre outras coisas porque muitas
emendas são longas peças legislativas "multidimensionais", mas ajudam a
destacar a importância do federalismo. Sobre a hiperconstitucionalização no
Brasil cf Melo (2006).
6. Cf Corrales (2003) para a discussão do fenômeno em outros países.
7. O mecanismo descrito acima foi gerado durante a descentralização da saúde
pública. O ponto de partida foi, como discutido anteriormente neste artigo, a
Lei Orgânica da Saúde (1990), que regulamentou as provisões constitucionais
voltadas para a descentralização. A descentralização foi significativa: os
municípios foram responsáveis por 9,6% do gasto total em saúde pública em 1985
(Arretche, 2003:331-332). Esse percentual subiu para 35% em 1996 e atingiu 43%
em 2000. A mudança, em termos de fonte de recursos para a saúde pública, foi
igualmente significativa. O percentual subiu de 9,3% em 1985 para 28% em 1996.
Por sua vez, a parcela do governo federal declinou de 73% para 53% no mesmo
período. Em 2000, os municípios eram responsáveis por 89% dos procedimentos
básicos de saúde ' tal percentual era 65% em 1995.
8. Deve-se notar que, ao contrário de países como Argentina e México, a
educação primária no Brasil já era razoavelmente descentralizada.
Historicamente, o governo federal não tem tido papel algum na educação básica.
Seria mais apropriado descrever o processo como uma intensificação da
descentralização, em um arranjo institucional já descentralizado.
9. Outras fontes menos importantes incluíam: 15% do Imposto sobre Produtos
Industrializados ' IPI, fixados como proporção das exportações dos estados e
15% das perdas estaduais oriundas da exclusão do ICMS sobre as exportações. Ver
Castro (1998).
10. No começo do ano, o governo federal fixaria o montante de recursos devido a
cada município, o que era estabelecido como um percentual da receita esperada
do Fundo e calculado com base na matrícula dos alunos.
11. Os aumentos nos recursos municipais ocorreram principalmente com a
redistribuição de recursos dos estados para os municípios. O mecanismo do
Fundef gera redistribuição apenas dentro de um mesmo estado, e não de um estado
rico para os menos abastados. Os governos estaduais do nordeste e o Rio de
Janeiro são responsáveis por grande parte das transferências redistributivas.
Um número relativamente pequeno de estados é responsável por um grande volume
na redistribuição de recursos, embora haja uma certa redistribuição dos
municípios ricos para os pobres. Só o governo estadual do Rio de Janeiro
representa quase um quarto das transferências de estados para municípios,
enquanto os nove estados do nordeste constituem metade da redistribuição do
Fundef (World Bank , 2002). O Fundef também promove distorções entre os
diversos níveis da educação básica (infantil, fundamental e médio). Cf Ulyssea,
Fernandes e Gremaud, 2005.
12. Ver também Souza (2002) a respeito da "federalização das greves".
13. A UNDIME foi criada em 1986, durante o processo de transição para a
democracia, logo se tornando um fórum de articulação de demandas no setor
educacional na Assembléia Constituinte e para a discussão da Nova Lei de
Diretrizes da Educação, de 1996. Deve-se notar que muitas das demandas da
UNDIME foram incorporadas na proposta do Fundef, inclusive a proposta para
"municipalizar" a educação fundamental e buscar mais recursos para o pagamento
e treinamento dos professores. A ex-presidente da UNDIME, no período 1994-1995
' Maria Helena Castro ' foi indicada para diversos cargos no Ministério da
Educação, como secretária do Ministério da Educação e presidente do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira ' INEP (o think
tank do MEC). A CNTE e a UNDIME criticaram fortemente o nível fixado para o
mínimo per capita. Chegaram a acionar judicialmente o governo, alegando
descumprimento da Constituição ' por não ter implementado a emenda
constitucional que ele mesmo propôs. Além disso, criticavam a retenção de
recursos como o FEF e o DRU pelo governo federal. A CNTE e a UNDIME
pressionaram pela inclusão de adultos analfabetos e alunos deficientes no
Fundef.
14. Ver também Souza (2004:89-91).