Sociedade civil, instituições participativas e representação: da autorização à
legitimidade da ação
A participação política no Brasil democrático tem sido marcada por dois
fenômenos importantes: a ampliação da presença da sociedade civil nas políticas
públicas e o crescimento das chamadas instituições participativas. Do lado da
sociedade civil, diversos atores pertencentes a esse campo político
reivindicaram, desde o final do período autoritário, uma maior presença em
instituições encarregadas da deliberação sobre políticas públicas nas áreas da
saúde, assistência social e políticas urbanas (Coelho, 2004; Cunha, 2004;
Avritzer, 2006; no prelo). Tal reivindicação gerou uma série de formatos
híbridos caracterizados pela presença de instituições com a participação da
sociedade civil e de atores estatais nas áreas de assistência social, saúde,
meio ambiente e políticas urbanas (Coelho et alii, 2006; Abers e Keck, 2006).
Essa presença foi acentuada nos últimos governos, que legalizaram diversas
formas de inserção de associações da sociedade civil nas políticas públicas.
Essas instituições foram analisadas, até esse momento, sob a ótica do aumento
da participação. De fato, existem mais conselheiros no Brasil do que vereadores
e, em alguns casos, como o do orçamento participativo, a participação em alguns
anos alcançou a marca de quase 180 mil pessoas1. No entanto, à medida que o
envolvimento da sociedade civil nas políticas sociais aumentou, um problema
tornou-se inescapável: o surgimento de novas formas de representação ligadas a
ela.
As instituições participativas que emergiram no Brasil democrático implicaram
em um aumento da representação (Gurza Lavalle, Houtzager e Castello, 2006),
seja pelo fato de que os próprios atores sociais passaram a se denominar
representantes da sociedade civil, seja por que o Estado passou a lidar
institucionalmente com uma representação oficial da sociedade civil. Por
aumento da representação, entendo o crescimento das formas como os atores
sociais exercem, nessas instituições, a apresentação de certos temas, como a
saúde ou interesses urbanos e o fato de que, em instituições como os conselhos
de políticas, alguns atores são eleitos com o intuito de exercerem o papel de
representantes da sociedade civil. Não é difícil, no entanto, perceber que a
representação realizada pelos atores da sociedade civil é diferente daquela
exercida na instituição representativa por excelência, isto é, no Parlamento.
Dois aspectos diferenciariam a representação nas instituições participativas da
parlamentar: em primeiro lugar, não há o requisito explícito da autorização,
tal como elaborado por Hobbes e, posteriormente, desenvolvido por Hanna Pitkin.
Em segundo lugar, não há estrutura de monopólio territorial na representação
realizada por atores da sociedade civil, assim como não há o suposto de uma
igualdade matemática entre os indivíduos que dão origem à representação2. Pelo
contrário, a representação exercida pela sociedade civil é pluralista e, mesmo
quando coincide com um território determinado em uma estrutura de conselho, ela
também se superpõe a outras formas que, em geral, tomam decisões vinculantes em
relação ao mesmo tema, no mesmo território. Nesse sentido, a representação
realizada pela sociedade civil lembra mais a estrutura medieval de superposição
simultânea de diversos tipos de representações (Gierke, 1987)3 do que a
estrutura monopolista própria à modernidade (Pitkin, 1967; Mansbridge, 2003).
Assim, na maior parte das vezes, a representação da sociedade civil é um
processo de superposição de representações sem autorização e/ou monopólio para
o exercício da soberania.
A pergunta colocada para essas novas formas desencadeadas pela ação da
sociedade civil é a seguinte: seria essa proliferação de formas de
representação social uma distorção do próprio funcionamento da representação ou
seria apenas um caso entre muitos outros que tem servido para reelaborar a
própria noção de representação, os outros sendo as formas de superposição da
representação na Comunidade Européia (Held, 1995; Cohen e Sabel, 2005), assim
como a ação internacional de organizações não-governamentais ' ONGs como a
Anistia Internacional e o Greenpeace? A julgar pela proliferação recente de uma
literatura importante que reexamina a questão sob essa ótica (Abers e Keck,
2006; Mansbridge, 2003; Urbinati, 2006a; Warren e Castiglioni, 2006; Dryzek e
Niemeyer, 2006), a resposta que ofereço a essa questão é que vale a pena
reexaminar os fundamentos da discussão à luz dessas novas práticas. Este artigo
terá três partes: em uma primeira, reexaminarei os fundamentos do debate sobre
representação, tal como foi abordado por Hanna Pitkin e consolidado na teoria
democrática contemporânea. Discutirei seus principais elementos: o pressuposto
da autorização, a vinculação entre representação e eleição, a idéia do
monopólio e o argumento da territorialidade. Em uma segunda parte, abordarei
criticamente três análises recentes que procuram lançar uma nova luz sobre a
questão: a tentativa de Gurza Lavalle, Houtzager e Castello de defender uma
concepção de representação virtual baseada em Burke, a tentativa recente de
Nadia Urbinati de propor uma forma não-eleitoral de representação baseada na
idéia de Condorcet de extensão temporal e, em terceiro lugar, a tentativa de
John Dryzek de defender uma idéia de representação discursiva. Na parte final
deste artigo, proporei um conceito de representação relacional, no qual
tentarei, ao mesmo tempo, dissociar representação de autorização e associá-la a
um vínculo simultâneo entre atores sociais, temas e fóruns capazes de agregá-
los.
UM REEXAME DA TEORIA DA REPRESENTAÇÃO DE HOBBES A HANNA PITKIN
A moderna teoria da representação está baseada em três elementos: a
autorização, o monopólio e a territorialidade. Com o intuito de rever esses
três elementos, discutirei, nesta seção, a idéia de autorização na teoria da
representação. Em seu livro clássico sobre o assunto, Hanna Pitkin adotou uma
dupla estratégia de reconstrução do conceito de representação: de um lado,
examinou os sentidos do termo na modernidade, abordando da representação
teatral e jurídica à representação política; de outro, realizou um trabalho
histórico institucional de reconstrução da maneira como a representação
política se institucionalizou na modernidade. O conceito defendido pela autora
será o resultado do cruzamento das duas estratégias de construção conceitual
(Warren e Castiglioni, 2006). A primeira parte da obra de Pitkin, na qual ela
reconstrói a origem do termo representação na modernidade, está fortemente
baseada em uma releitura de Thomas Hobbes. Hobbes, no Leviatã, procurou lançar
os fundamentos de um conceito não-religioso capaz de romper com a doutrina
cristã. O autor buscou dois fundamentos seculares para a noção de
representação, um primeiro, na Grécia, com a idéia de prosopon, isto é, da
substituição de uma pessoa por outra no teatro, e um segundo, em Roma, com a
idéia do procurador em Cícero. Para este, o procurador representa o seu cliente
ao desempenhar três papéis distintos: "o meu, o do meu oponente e o do árbitro"
(Cícero, 1942, cap. III:104-105, tradução do autor). Em Cícero, a idéia de
representação envolve dois elementos: o da identificação e o da autorização. O
procurador identifica-se com a condição do representado antes de representá-lo,
e isso gera uma relação de afinidade. No entanto, da maneira como ela é
abordada por Thomas Hobbes, apenas a autorização adquire relevância.
Ainda no capítulo XVI do Leviatã, Hobbes faz a seguinte afirmação: "quanto às
pessoas artificiais, em certos casos algumas das suas palavras e ações
pertencem àqueles que as representam. Nesses casos, a pessoa é o ator e aquele
a quem pertencem as suas palavras é o autor, casos estes em que o ator age por
autoridade" (Hobbes, 1991:112). Temos aqui tanto os elementos principais de uma
teoria da representação, quanto, ainda que menos observado pelos comentaristas,
elementos importantes de uma teoria da participação. Hobbes introduz o termo
ação para designar todos os atos pelos quais os autores têm responsabilidade, a
qual pode ser tanto direta quanto transferida por um ato explícito de
autorização. No caso da representação, o problema central é como passar a
possuir as ações de um outro, debate que, como aponta Hanna Pitkin, gerou uma
vertente importante de discussão sobre a legitimidade do mandato no século XIX.
Hobbes, nesse caso, está interessado apenas em uma linha dessa vertente, a que
dá legitimidade ao ato da autorização: "porque aquele a quem pertencem direitos
e posses é chamado proprietário [...] quando se trata de ações é chamado de
autor. E tal como o direito de posse se chama domínio, assim também o direito
de fazer qualquer ação se chama autoridade" (ibidem). Ou seja, Hobbes reduz o
problema da representação ao problema da autorização e gera uma vertente dentro
da teoria democrática que irá se preocupar com apenas uma questão: teria o ator
ou agente político a autorização para agir em nome dos representados? Sem
entrar no mérito dessa questão que já foi bastante discutida na teoria
democrática (Manin, 1997), meu objetivo aqui é chamar a atenção para o fato de
esta ser apenas uma das perguntas que decorrem da afirmação de Cícero. Outra
pergunta que se faz é: em quais condições os indivíduos podem representar
outros indivíduos com legitimidade?
Há, também, um terceiro elemento fundamental na teoria hobbesiana da
representação: trata-se da diferenciação entre o autor limitado e o ator livre.
Hanna Pitkin atenta para uma passagem fora do Leviatã na qual Hobbes discute
esse ponto e faz a seguinte afirmação: "[...] utilizamos a palavra [pessoa]
corriqueiramente em inglês chamando àquele que age por sua própria autoridade,
a sua própria pessoa, e no caso daquele que age pela autoridade de outra
pessoa, [usamos a expressão] uma pessoa do outro" (Pitkin, 1993, cap. III:455,
tradução do autor). Nesse caso, devemos nos voltar para duas questões
diferentes: qual é o significado de assumir ou renunciar à posse das próprias
ações; e como e quando os indivíduos devem renunciar à autoria de algumas das
suas ações e quando eles não o devem fazer, assim como, quais são os tipos de
ações mais passíveis de provocarem renúncias de autoria e quais são aquelas nas
quais os indivíduos em geral tendem a manter a sua autoria. Evidentemente, esse
não foi um problema que preocupou Thomas Hobbes, posto que estava interessado
unicamente em estabelecer que o ato de transferência da autoria é um ato
legítimo e, enquanto tal, capaz de fundar o poder soberano legítimo.
"Quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga através disso o
autor, e não menos se esse mesmo o fizesse, nem fica menos sujeito às
conseqüências do mesmo. Portanto, tudo o que se disse sobre a
natureza dos pactos entre os homens em sua capacidade natural é
válido também para os que são feitos por seus atores, representantes
ou procuradores [...]" (Hobbes, 1991:112).
Certamente, no que diz respeito à representação, o problema hobbesiano limita-
se ao ato de provar a legitimidade dos pactos e acordos assinados pelos
representantes dos atores. Mas nós, autores da modernidade tardia, não
necessitamos parar onde Hobbes parou e, nesse caso, é possível perceber que o
autor do Leviatã nos dá pistas para pensar duas questões centrais para uma
teoria da participação da sociedade civil: a primeira é que, se introduzimos a
democracia como variável, a política carece tanto do ator que age limitado pela
autorização recebida e ao qual nos habituamos a chamar de representante quanto
do ator livre que, ao invés de delegar a representação dos seus atos, decide
responsabilizar-se por eles. Se o ator que age por sua própria conta fala em
nome de outros atores, não deixa de haver representação, ainda que, nesse caso,
ela se dê por identificação. Neste artigo, denominarei esse tipo de relação de
representação por afinidade. No entanto, antes de apresentar os principais
elementos dessa concepção de representação, abordarei a maneira como as idéias
de eleição, monopólio e territorialidade foram agregadas à idéia de autorização
no decorrer do debate.
A teoria da representação pode ser dividida em dois grandes momentos, um
primeiro, no qual a representação assumiu uma feição lógico-hipotética e no
qual não há uma instituição política capaz de instituir o ato da representação.
O debate sobre o assunto, então, se reduziu à discussão acerca da legitimidade
do contrato social no processo de constituição do governo. O contrato social,
nesse caso, constitui um ato meramente hipotético. O segundo momento da
emergência da centralidade da representação esteve pautado por uma teoria sobre
o revezamento dos governantes no poder, teoria esta que tem origem no
republicanismo (Manin, 1997:44-45). Como Bernard Manin aponta de forma
adequada, o republicanismo europeu jamais trabalhou com o conceito de eleição e
sim com a idéia do sorteio enquanto fundante do revezamento dos indivíduos no
poder. Manin mostra como o conceito de eleição foi sendo trazido
progressivamente para o centro da teoria republicana, levando a uma mudança de
concepção: em vez da legitimidade do revezamento dos indivíduos no poder, a
teoria da representação passou a se preocupar com que aquele que ocupasse o
poder detivesse a autorização de todos os indivíduos, transformando a
representação em uma forma de governo (idem:92)4. No entanto, o autor deixa de
tratar de uma questão que adquiriu centralidade na segunda metade do século XX:
a maneira como as eleições, enquanto instrumento da representação, adquiriram
status monopolista no interior de um determinado território.
Os conceitos de monopólio e territorialidade não são inerentes à idéia de
representação. Eles só foram associados a ela no decorrer do processo de
consolidação do Estado moderno. A princípio, as instituições representativas,
no fim do período medieval e no começo do período moderno, operavam por
superposição de soberania, isto é, elas decidiam em relação a algum aspecto da
ordem política e tal decisão era tomada em diversos lugares, gerando uma
superposição de soberanias ou formas de representação (Held, 1995). O processo
através do qual a representação adquire o monopólio da capacidade de
deliberação no interior do sistema político está ligado ao surgimento,
fortalecimento e desenvolvimento do Estado moderno (Tilly, 1986; 1993; Weber,
Gerth e Mills, 1958). Nesse processo, que inicialmente teve lugar nas esferas
coercitiva e administrativa, o Estado moderno vai se tornar a única instituição
com capacidade de ação no interior do território. Além do mais, vale a pena
lembrar que a construção do Estado moderno não foi apenas a construção de uma
ordem estatal homogênea, mas foi também um processo de homogeneização das
comunidades políticas (Anderson, 1991). Em cada unidade territorial na qual
ocorreu o estabelecimento de uma entidade estatal única, ocorreu também a
unificação da linguagem e da comunidade política (idem). No caso da França, por
exemplo, a Revolução Francesa aboliu o provençal e o Parlamento da Provence,
que esteve em operação até 1789. Assim, é importante perceber que não há uma
relação conceitual ou institucional entre a transformação da representação na
forma principal de operação das instituições políticas e sua modificação em
autorização na única forma de organização do sistema político no interior dos
estados modernos. Essa última está ligada apenas à maneira como os estados
europeus se unificaram em torno de uma única comunidade política homogênea.
Nesse sentido, posso concluir essa breve digressão sobre representação na
política moderna apontando para o fato de que, na sua origem, ela envolve a
idéia de representação por afinidade, dimensão paulatinamente substituída pela
idéia de monopólio da representação no interior do território. Na medida em que
o conceito monopolista entrou em crise, diversos autores lançaram outros tipos
de entendimento, entre os quais vale a pena destacar a representação virtual, a
com expansão temporal e a discursiva. Na seção seguinte, analisarei e
criticarei cada um desses conceitos antes de explicar como poderíamos
reconstruir o conceito de representação por afinidade.
A CRÍTICA DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO PELA TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
Diversos autores no campo da teoria política apontaram recentemente os limites
da forma como a representação opera nas democracias contemporâneas e, ao mesmo
tempo, tentaram concebê-la de uma maneira distinta. Nesta seção, abordarei
detalhadamente três tentativas de propor uma nova concepção de representação: a
virtual, feita por Houtzager, Gurza Lavalle e Castello; a de representação além
da dimensão eleitoral, feita por Nadia Urbinati; e a discursiva, feita por John
Dryzek.
A primeira dessas tentativas procura abordar a crise da representação pela
ótica do seu estatuto dual. Houtzager, Gurza Lavalle e Castello, em um artigo
recente sobre o assunto, relacionam os seus problemas atuais a uma dualidade
constitutiva entre a formação da vontade e sua institucionalização. Para os
autores, a história política moderna tem sido dominada por essa dualidade entre
"[...] a autonomia do representante versus o mandato dos
representados, o componente institucional legal da representação
versus o seu componente substantivo ou de formação da vontade, o peso
da delegação ou elemento fiduciário versus o peso da autorização ou
elemento do consentimento [...]" (Gurza Lavalle, Houtzager e
Castello, 2006:56, ênfases no original).
Assim, não haveria nada de novo no que diz respeito à crise da representação,
e, por isso, os autores buscam a solução dos problemas que eles apresentam em
um autor clássico do pensamento anti-revolucionário, Edmund Burke. A obra de
Burke tem dois componentes fundamentais: o primeiro deriva da sua condição de
representante dos eleitores de Bristol. Em um discurso, ao ser eleito
representante da cidade no Parlamento, Burke afirma que
"[...] a alegria e a glória do representante se dão a partir do
momento em que ele estabelece a mais estreita união e correspondência
e comunicação sem reserva com os seus eleitores [constituents]. Seus
desejos devem ter um grande peso, suas opiniões, um grande respeito,
seus negócios, uma atenção sem limites e, sobretudo, ele deve
preferir o interesse deles [seus eleitores] ao seu próprio interesse.
Mas a sua opinião sem preconceitos, o seu julgamento maduro e a sua
consciência iluminada não devem ser sacrificadas para a vigência do
julgamento deles [dos eleitores] nem para a de qualquer homem ou
grupo de homens vivos [...]" (Burke, 1774, tradução do autor).
O discurso de Burke sobre a autonomia dos representantes no exercício do seu
mandato, posição que prevalece na modernidade política, é exemplar (Pitkin,
1967; Manin, 1997). No entanto, dificilmente serve para o objetivo para o qual
Gurza Lavalle, Houtzager e Castello parecem querer empregá-lo, o de ser uma
defesa da representação virtual entendida como uma representação "[...] não
formalmente reconhecida ou aceita" (Gurza Lavalle, Houtzager e Castello, 2006:
89-90). Nesse caso, os autores parecem perder de vista a outra dimensão da obra
de Burke na qual o conceito de representação virtual parece se aplicar mais
fortemente, a da defesa da representação sem eleições das monarquias pré-
Revolução Francesa.
Burke, em seu livro mais conhecido, Reflexões sobre a Revolução em França,
encarrega-se de levar a uma radicalidade ainda maior o seu argumento no
discurso para os eleitores de Bristol contra a correspondência entre exercício
do mandato e eleição. Partilhando o verdadeiro horror que a Revolução Francesa
causou nas elites conservadoras européias, Burke argumenta não somente contra o
regime no qual o povo é a origem da representação, o regime que está emergindo
na França, mas também contra a própria idéia de que a única monarquia legítima
seria a inglesa, porque apenas ela haveria assegurado a autorização dos
representantes (Burke, 1982:55). Para Burke,
"[...] em um ou outro momento, todos os fundadores de dinastia foram
escolhidos pelos que os chamaram a governar, e pode-se sustentar a
opinião de que todos os reinos da Europa foram, no passado, eletivos,
com mais ou menos limitações no objeto de escolha [...] [Hoje, os
reis adquirem a soberania][...] por uma ordem de sucessão fixa, de
acordo com as leis de seu país, e enquanto as condições legais do
pacto de soberania forem preenchidas [...] ele possuirá a sua coroa
sem ter de se preocupar com a escolha da sociedade da revolução"
(idem:56).
Não é difícil perceber, a partir da interpretação adequada das intenções de
Burke, o tamanho do equívoco que é trazer essa discussão para o debate sobre a
forma de representação instituída pela sociedade civil. Burke está, com toda a
força do seu argumento, tentando estabelecer a legitimidade da representação
não-eleitoral realizada pelos reis europeus5. Não existe qualquer dúvida de
que, nessa discussão, ele foi derrotado e que o modelo inglês de legitimação da
monarquia pelo Parlamento se generalizou para a Europa como um todo. Tal modelo
é hoje limitado pela emergência de novos fenômenos como atores da sociedade
civil ou formas de legitimidade discursivas. A questão, no entanto, é que, na
ânsia de legitimar uma forma de representação pós-eleitoral, Gurza Lavalle,
Houtzager e Castello acabam resgatando um argumento pela legitimidade da
representação pré-eleitoral. Ao proceder assim, eles jogam fora a criança junto
com a água do banho, não conseguindo propor um conceito de representação que vá
além da autorização via eleição. Examinarei em seguida tentativas mais exitosas
de justificar a representação não-eleitoral.
Nadia Urbinati (2006a) abriu uma segunda linha importante de reflexão em um
livro recente sobre a democracia representativa, assim como em diversas outras
contribuições6. O ponto de partida de Urbinati é avançar em relação à maneira
como Hanna Pitkin abordou o conceito de representação, teorizando-o a partir
dos diferentes usos linguísticos do termo. A autora resgata o método utilizado
originalmente por Pitkin e acrescenta a ele um novo conjunto de utilizações do
referido vocábulo. Para Urbinati, a concentração do conceito de representação
em torno de questões como a autorização e a accountability
"[...] deixou de ser satisfatória devido a transformações na política
doméstica e internacional. Cada vez mais atores internacionais,
transnacionais e não-governamentais desempenham um papel importante
na implementação de políticas públicas a favor dos cidadãos. Neste
sentido, eles agem como representantes. Esses atores 'falam por',
'agem por' e 'defendem posições em nome de' indivíduos no interior do
Estado nacional" (Urbinati, 2006b, tradução do autor).
Assim, através da utilização do mesmo método empregado por Pitkin, Urbinati
lança luz sobre as formas não-eleitorais, mas legítimas de representação
política. A questão que se coloca é: como justificar a legitimidade dessas
novas formas de representação?
Urbinati faz duas contribuições importantes ao debate ao tentar justificar um
conceito mais amplo. A primeira é mostrar que a eleição é uma entre as
múltiplas dimensões da representação e da relação entre Estado e sociedade
civil.
"No momento em que as eleições se tornaram um requisito indispensável
e solene da legitimação política e da designação de magistrados,
Estado e sociedade civil não puderam mais ser separados, e o desenho
das fronteiras separando e conectando as suas esferas de ação tornou-
se uma questão a ser permanentemente negociada e reajustada" (idem,
tradução do autor).
Nesse sentido, diferentemente de Gurza Lavalle, Houtzager e Castello, Urbinati
dá um passo à frente nesse debate ao mostrar que o problema da representação
contemporânea está ligado à evolução das práticas políticas que tornam sua
modalidade eleitoral uma maneira relevante, mas incapaz de dar conta da
totalidade das relações de representação entre os atores sociais e o Estado.
A segunda contribuição de Urbinati ao debate é a sua tentativa de desvincular a
relação entre soberania e representação, ao mostrar a inadequação da forma como
Rousseau associou uma e outra dimensão. Segundo Urbinati
"[...] a teoria da incompatibilidade [entre a democracia e a
representação] é filha adotiva da moderna concepção de soberania.
Suas coordenadas conceituais assentam-se no cerne do
constitucionalismo moderno tal como elaborado por Montesquieu e
Rousseau, os primeiros teóricos a argumentarem [por diferentes
motivos] acerca da tensão insolúvel entre democracia, soberania e
representação" (Urbinati, 2006a:6, tradução do autor).
Urbinati destaca o fato de o modelo rousseauniano da perda da soberania ser na
realidade um modelo privatista. Na formulação bastante conhecida do "Contrato
Social", Rousseau diz que o indivíduo ou é livre para exercer a sua própria
soberania ou ele a delega a um outro e, ao fazê-lo, torna-se um escravo. Boa
parte das teorias da participação política estão baseadas no contraste proposto
por Rousseau, que, na verdade, tem como modelo não a representação pública e
sim a forma contratual e privada de alienação de direitos (Urbinati, 2003).
Este é justamente o problema com a crítica da representação vinculada à
soberania em Rousseau: ele não consegue evoluir de um modelo privado para um
público e se prende a uma forma elementar de não-delegação da soberania. No
entanto, todas as formas de participação, até mesmo as mais diretas possíveis,
implicam em delegação de soberania, e a questão é justamente pensar quais são
as suas formas políticas.
Ambas as contribuições de Urbinati à questão da representação são inspiradas em
Condorcet e na substituição do conceito de soberania pelo conceito de
julgamento político7. Este envolve a construção de um cenário hipotético de
realizações políticas que podem ou não se confirmar. Enquanto tal, ele requer
uma abrangência temporal mais ampla para a relação entre o representante e o
representado na qual a eleição seria apenas um momento (Urbinati, 2006a:199). O
elemento novo da crítica de Urbinati seria uma tentativa de integrar a eleição
no interior de um conceito mais amplo de julgamento político que envolveria
outras temporalidades e outras formas não-eleitorais de representação e até
mesmo a possibilidade da revogação da autorização concedida. Apesar do
brilhantismo da sua crítica às limitações do conceito eleitoral de
representação, a contribuição de Nadia Urbinati à discussão padece de um
problema: ela não consegue pluralizar as fontes que geram o julgamento político
de modo a integrar as novas formas de participação ao conceito que ela propõe.
Baseada em Condorcet, ela proporá duas formas de ampliação da representação: a
ampliação temporal, através do referendum revogativo do mandato, e a
possibilidade de revisão das leis (idem:205-206). Ambas as propostas são
importantes e já constituem parte da institucionalidade do mundo anglo-saxão.
No entanto, a questão que torna a solução proposta por Urbinati vulnerável é
que ela não consegue incorporar, na sua perspectiva de representação política,
nenhuma nova institucionalidade capaz de dar vazão seja à advocacia8, seja à
representação da sociedade civil.
John Dryzek foi, entre os três autores, o que melhor percebeu as antinomias da
forma contemporânea de representação. Já no seu livro Deliberative Democracy
and Beyond, o autor propôs uma diferenciação relevante entre a representação de
pessoas e interesses e a de discursos, visando diferenciar sua abordagem da
deliberação democrática daquela proposta por John Rawls, que associa o
constitucionalismo liberal à democracia deliberativa. Para Dryzek, há dimensão
discursiva ignorada pelo constitucionalismo liberal que precisa ser elaborada
em separado (Dryzek, 2000:19), e seria necessário um desenho da dimensão
discursiva que, para além das eleições, fosse capaz de contemplar novas formas
de discurso não necessariamente expressas pela via eleitoral (idem). Nesse
sentido, a preocupação inicial da obra de Dryzek é separar a dimensão
discursiva da dimensão eleitoral e pensar nos desenhos institucionais que a
pluralidade discursiva é capaz de gerar.
Em alguns escritos posteriores, Dryzek abordará a crítica da representação como
a crítica à exclusividade do demos, o tema deste artigo (Dryzek e Niemeyer,
2006). De forma semelhante à crítica de Urbinati, Dryzek aponta que a concepção
eleitoral de representação supõe que a categoria demos enquanto agregação da
totalidade dos indivíduos não seria capaz, através do sufrágio, de reunir as
múltiplas dimensões da política moderna. Seria, justamente, essa dimensão que
estaria sendo posta em xeque pela emergência de uma pluralidade de discursos
não necessariamente expressos pela via eleitoral (idem:6). A solução de Dryzek
é pensar a possibilidade de criação de uma câmara de discursos que exista ao
lado das formas de representação dos indivíduos. Seria necessário identificar
um conjunto de discursos diferentes e dar a eles vazão em uma câmara onde
estivessem em oposição uns contra os outros. Como apontam Dryzek e Niemeyer,
"Membros da câmara de discursos não poderiam ser eleitos, porque se o fossem
passariam a representar indivíduos. Outra opção seria a seleção aleatória de
membros [dessa câmara]" (ibidem). A proposta de Dryzek avança em relação à de
Urbinati em uma direção importante, qual seja, a de perceber que os novos
atores e as novas formas de associação colocam em xeque o funcionamento da
representação baseada no demos enquanto instância monopolista de agregação de
indivíduos. Dryzek dá um passo adiante ao pensar uma câmara de discursos e,
portanto, ao romper com a idéia habermasiana de uma esfera pública informal de
feição não-institucional, tal como eu já havia proposto (Avritzer, 2002). No
entanto, a proposta de Dryzek tem três limitações importantes: em primeiro
lugar, separa representação de indivíduos daquela de idéias, o que me parece um
pouco difícil de ser feito, e ignora o fato de que não se representam só
discursos, mas também interesses, valores e idéias. Em segundo lugar, tal como
Urbinati, mas equivocadamente, ele supõe que a sociedade civil se limita à
advocacia de idéias quando, na verdade, se percebe cada vez mais um
associativismo ligado a interesses e valores e propostas específicas de
políticas públicas (Warren e Castiglioni, 2006). O conceito de advocacia parece
insuficiente para lidar com esse vasto campo de representação não-eleitoral,
uma vez que os atores não-governamentais freqüentemente se engajam em políticas
específicas, criando novas arenas políticas nas quais suas idéias possam ser
implementadas. Em terceiro lugar, Dryzek ignora que a maior parte das vezes nas
quais a sociedade civil está exercendo funções de representação, ela está
apoiada em organismos deliberativos com os quais divide prerrogativas com
membros do Poder Executivo9 e, portanto, a criação de uma câmara unicamente
discursiva não resolveria o problema da legitimidade da representação. A
questão seria justificar ou negar a representação específica que a sociedade
civil exerce em arenas deliberativas. Na próxima seção, proporei uma forma
diferente das expostas até aqui de se pensar a legitimidade da representação da
sociedade civil.
A DIMENSÃO NÃO-ELEITORAL DA REPRESENTAÇÃO: A REPRESENTAÇÃO POR AFINIDADE
Parece claro que o ponto de partida para a construção de um conceito mais amplo
de representação que envolva tanto a sua dimensão eleitoral, quanto a sua
dimensão não-eleitoral, reside no questionamento da relação direta entre
representação e soberania. Se é verdade que ambos os conceitos estão em crise,
as duas crises são motivadas por fenômenos completamente diferentes. No caso da
soberania centrada no Estado moderno, tudo indica que a sua crise é inexorável,
sendo causada por um enfraquecimento paulatino do Estado e pelo papel cada vez
maior de instituições internacionais no campo da economia e das trocas
internacionais. Em todos esses casos, a presença de atores com origem fora do
Estado nacional é inevitável (Held, 1995; 2003). Já, no caso da representação,
a questão é como reconstruí-la de modo a integrar seu elemento eleitoral com as
diversas formas de advocacia e participação que têm origem extra-eleitoral. É
desejável que uma reconstrução adequada do conceito de representação reforce
tanto os seus elementos eleitorais quanto os não-eleitorais e, para isso, é
importante ter como ponto de partida que a situação na qual a representação vai
operar daqui em diante é a das múltiplas soberanias (Held, 1995). Tanto a
contribuição de Urbinati pensando o político como um contínuo no qual a eleição
é um momento relevante, ainda que apenas um momento, quanto a contribuição de
Dryzek, pensando a necessidade de institucionalizar novas formas de discurso,
são contribuições de interesse. No entanto, cada uma delas sofre de uma
deficiência importante: no caso de Urbinati, a incapacidade de pensar a
institucionalidade do continuum da representação, e, no caso de Dryzek, a
incapacidade de pensar os elementos não-discursivos das novas formas de
representação. Uma combinação da contribuição dos dois autores me parece mais
adequada.
Para se pensar uma maneira de articular essas novas dimensões, é necessário
pensar o contexto no qual a representação pode operar e no qual irão conviver a
representação eleitoral e a representação da sociedade civil. É importante
também entender qual é o papel da autorização na criação de legitimidade nesse
novo contexto. A meu ver, o elemento mais importante desse debate é perceber
que existem diversos tipos de autorização relacionados a três papéis políticos
diferentes: o de agente, o de advogado e o de partícipe. Em todos os três
casos, há o elemento do "agir no lugar de", tão ressaltado por Hanna Pitkin. O
importante é, no entanto, perceber que o "agir no lugar de" varia de
perspectiva e pode ser justificado de diferentes maneiras. No caso do agente
escolhido pelo processo eleitoral ' o caso clássico de representação ', ele não
precisa ser discutido em detalhes neste artigo (Pitkin, 1967). Mas as mudanças
recentes são essenciais nos dois últimos casos, e vale a pena discutir a sua
legitimidade.
O caso da advocacia de causas coletivas vai além das discussões feitas por
Hobbes a Hanna Pitkin sobre o papel do advogado ou ativista. Até muito
recentemente, o advogado era escolhido pela própria pessoa ou conjunto de
pessoas e agia a partir de instruções precisas destes atores. Nas últimas
décadas, emergiu um conceito de advocacia de causas públicas ou privadas que
prescinde dessa dimensão. Organizações não-governamentais que trabalham causas
fora dos seus estados nacionais defendem atores que não as indicaram para tal
função, como é o caso da Anistia Internacional ou do Greenpeace. Aí, a
advocacia de temas parece prescindir da escolha ou de qualquer outro tipo de
autorização. Existem casos ainda mais problemáticos para uma teoria da
representação, como aqueles em que algumas organizações de direitos das
mulheres defendem a autonomia das mulheres em países nos quais elas não têm
direito e, se consultadas, provavelmente diriam que não são a favor desses
direitos (Kandiyoti, 1991). Em todas essas circunstâncias, não é a autorização,
e sim a afinidade ou identificação de um conjunto de indivíduos com a situação
vivida por outros indivíduos que legitima a advocacia. Assim, pode-se dizer que
a mulher norte-americana ou européia tem uma relação de identificação com a
situação de uma mulher indiana ou muçulmana, mas certamente não detém a
autorização para representá-las. Na melhor das hipóteses, o que se pode
presumir é que, em condições abertas de troca de informações, os atores
envolvidos teriam posições diferentes em relação a seus próprios direitos, o
que, de toda maneira, é apenas uma suposição. Nesse sentido, o elemento central
da advocacia de temas não é a autorização, e sim uma relação variável no seu
conteúdo entre os atores e os seus representantes. Se voltarmos a Cícero e sua
descrição do papel do procurador, percebemos que a identificação com a causa se
tornou mais importante que a autorização explícita para representá-la. Nesse
caso, o que as ONGs internacionais estão representando é um discurso sobre os
direitos das mulheres em geral e não um conjunto específico de pessoas.
O terceiro caso é o da representação da sociedade civil. Esta, que tem se
tornado muito forte nas áreas de políticas públicas no mundo em
desenvolvimento, se dá a partir da especialização temática e da experiência.
Organizações criadas por atores da sociedade civil e que lidam por muito tempo
com um problema na área de políticas sociais tendem a assumir a função de
representantes da sociedade civil em conselhos ou outros organismos
encarregados das políticas públicas. Esta situação é diferente das outras duas:
de um lado, há freqüentemente, especialmente no Brasil, eleições para esses
representantes, mas o eleitorado tem características muito específicas10. Há um
grupo no qual está a origem da representação exercida por esses representantes,
mas esse grupo pode incluir ou não todas as associações ligadas ao tema ou
mesmo não estar organizado em associações. Em um caso, estamos falando de uma
representação quase coletiva e, no outro, de uma forma coletiva e não-
institucionalizada de ação que gera a representação. Este último não possui as
características da igualdade matemática da soberania, tão cara à idéia de
representação eleitoral, e não possui o elemento monopolista territorial na
medida em que partilha a capacidade de decisão com outras instituições
presentes no território. O importante em relação a essa forma de representação
é que ela tem sua origem em uma escolha entre atores da sociedade civil,
decidida freqüentemente no interior de associações civis. Estas exercem o papel
de criar afinidades intermediárias, isso é, elas agregam solidariedades e
interesses parciais (Warren, 2001). Ao agregarem estes interesses, elas
propiciam uma forma de representação por escolha que não é uma representação
eleitoral de indivíduos ou pessoas. A diferença entre a representação por
afinidade e a eleitoral é que a primeira se legitima em uma identidade ou
solidariedade parcial exercida anteriormente.
O que fornece a legitimidade da representação por afinidade? A legitimidade do
representante entre outros atores que atuam da mesma maneira que ele. Neste
sentido, a questão das identidades parciais na política reassumem um novo papel
que foi, de alguma maneira, abolido pela política moderna11. A pragmática da
legitimação é diferente, na medida em que a legitimação se dá pela relação com
o tema. É ela que gera a legitimidade e não o contrário, como na representação
eleitoral. O Quadro_1 pretende sintetizar as diferentes formas de representação
discutidas aqui:
Se pensarmos esses três aspectos da representação, é possível perceber como se
pode teorizar a representação de uma maneira diferente. Em primeiro lugar, a
representação eleitoral deve significar a abertura de um quadro de
relacionamento entre diferentes tipos de soberania (Young, 2000)12. Nesse
sentido, a eleição decide uma maneira através da qual corpos representativos se
relacionarão com a advocacia e a representação da sociedade civil. Esta relação
pode ser mais ou menos complementar, dependendo da proposta política eleita,
ainda que no Brasil a relação entre representação eleitoral e não-eleitoral
tenha sido um dos elementos comuns dos últimos governos. No caso do Brasil, a
eleição tem determinado também a maneira como um tipo de representação é capaz
de legitimar o outro. Assim, no governo Fernando Henrique Cardoso, os
presidentes de conselhos nacionais eram indicados pelo presidente, ao passo
que, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, os presidentes de conselhos
nacionais são eleitos pela sociedade civil (Avritzer, no prelo). Isso mostra
que uma forma de representação pode tanto emprestar legitimidade para a outra
como também questioná-la.
Um aspecto importante dessas novas formas é que elas não aparecem puras na
política contemporânea. As eleições continuam sendo a maneira mais democrática
de escolha dos representantes, mas, uma vez eleitos, estes se encontram com a
advocacia de temas e a representação da sociedade civil. Aqueles representantes
que ignoram essa representação, seja no âmbito nacional, seja no internacional,
tendem a se deslegitimar entre os seus próprios eleitores e têm sido muitas
vezes incapazes de implementar a sua própria agenda13. Assim, é cada vez mais
freqüente o encontro entre representantes eleitos e advocacia de ONGs
internacionais ou de representantes eleitos e representantes da sociedade civil
em instituições híbridas (Avritzer e Pereira, 2005) no campo das políticas
públicas. Tais encontros mostram que, diferentemente do suposto por Urbinati, o
continuum da política assume formas institucionais diversas que devem ser parte
da discussão e que, diferentemente do suposto por Dryzek, põem conjuntamente
representantes eleitos por diversos processos. Nesse sentido, a questão
colocada pela política contemporânea deve ser uma redução da preocupação com
legitimidade dessas novas formas de representação e um aumento da preocupação
sobre de que modo elas devem se sobrepor em um sistema político regido por
múltiplas soberanias. O futuro da representação eleitoral parece cada vez mais
ligado à sua combinação com as formas de representação que têm sua origem na
participação da sociedade civil.
NOTAS
1. Esse dado referente ao ano de 2004 foi obtido somando-se a adesão aos
orçamentos participativos nas cidades de São Paulo (80 mil pessoas), Porto
Alegre (30 mil), Belo Horizonte (30 mil) e Recife (40 mil). O envolvimento de
quase 200 mil pessoas em políticas participativas mostra que a participação é
uma forma relevante de exercício da soberania política no Brasil hoje.
2. Esse é um aspecto fundante da teoria da representação desde os seus
primórdios. A representação aparece em Locke e até mesmo em Rousseau associada
a um princípio de igualdade matematicamente estabelecido, a partir do qual o
voto de cada indivíduo tem exatamente o mesmo peso. Vide Rousseau (1997).
3. Otto Gierke (1987) chamou, pela primeira vez, atenção para o fato de que a
estrutura de soberania do final do período medieval era uma estrutura de
superposição de entidades soberanas. Estado, governos locais e instituições
como a Igreja católica decidiam, simultaneamente, sobre questões distintas no
mesmo território sem que nenhuma das instituições reivindicasse um monopólio
total da soberania naquele território. A associação entre território e
monopólio só surge com o Estado moderno. David Held (1995) recentemente
observou um retorno da concepção medieval de superposição de soberanias a
partir da criação da Comunidade Européia.
4. Discutir o debate em torno da representação não é o mesmo que discutir as
virtudes e os problemas do governo representativo. A diferença reside na
questão do monopólio da representação entre aqueles que defendem o governo
representativo como a única forma de governo. O estudo de Bernard Manin
concentrou-se mais na segunda dimensão entendida como a autonomia dos
governantes em relação à vontade dos representados (Manin, 1997:6). Nadia
Urbinati critica a redução do debate sobre a representação ao funcionamento do
governo representativo ao afirmar que é um erro supor que a singularidade da
representação reside nas eleições. Para ela, estas são parte do processo de
estabelecimento da representação e, neste sentido, o governo representativo não
pode ser reduzido à representação eleitoral. Vide Urbinati (2006a:9).
5. Vale a pena lembrar também que, durante o processo de independência dos
Estados Unidos, a Coroa inglesa utilizou o conceito de representação virtual
para defender que os interesses dos cidadãos das 13 colônias estavam
representados no Parlamento inglês (vide Wood, 1969:180). A discussão inglesa
mostra a correção da reconstrução do conceito de representação por Manin, que
postula a identidade entre representação e autorização por todos os indivíduos.
6. Vide também uma série de artigos publicados nas revistas Political Theory e
Constellations. Nesses artigos, Urbinati tratou de questões como advocacia e
representação e a crítica ao modelo de representação presente na obra de
Rousseau. Vide Urbinati (2000; 2003; e 2006b).
7. Um dos pareceristas deste artigo discordou do argumento aqui apresentado,
defendendo que a substituição do conceito de vontade pelo conceito de juízo
proposto por Urbinati não implicaria na desvinculação entre soberania e
representação. Este autor discorda desta interpretação não apenas pelo fato de
a autora explicitamente afirmá-lo (Urbinati, 2006a:6) mas também porque é muito
difícil que o conceito de juízo se articule com o de soberania, já que esta
última demanda uma autorização explícita para "agir no lugar de". O conceito de
juízo, devido a sua extensão temporal, implica em cada cidadão se colocar no
lugar do soberano e julgá-lo. Nesse sentido, há sim uma desvinculação entre
soberania e representação. Vide Urbinati (idem:105).
8. Um dos pareceristas deste artigo sugeriu corretamente que a tradução do
termo advocacy por advocacia não gera o mesmo sentido na língua portuguesa. Ele
ou ela sugere, no lugar, militância ou ativismo. Apesar da correção da
observação lingüística, optei por manter advocacia na maior parte do texto,
porque militância ou ativismo na língua portuguesa parecem mais ligados à
intensidade de algumas formas de ação política de esquerda do que à exposição
de idéias e de atores. Em algumas passagens nas quais advocacia me pareceu
totalmente inadequado, acrescentei o termo ativismo.
9. Este é sem dúvida o caso do Brasil, mas parece ser o caso no mundo em
desenvolvimento em geral. Formas de participação da sociedade civil no Peru, na
Argentina, na Índia e até mesmo nos Estados Unidos, nos chamados programas
habitat, funcionam dessa maneira. A exceção, e que pode ser o caso que Dryzek
tem em mente, são as reuniões paralelas das Nações Unidas nas quais a sociedade
civil se reúne separadamente dos organismos que exercem a representação de
países. Vide Panfichi (2003).
10. Existem diferentes casos de eleições entre os quais devem ser destacadas as
eleições para o conselho de habitação de São Paulo, durante a gestão Marta
Suplicy, em que votaram mais de 30 mil pessoas. Existem também casos nos quais
alguns conselhos chegaram a normatizar em profundidade o que é um representante
da sociedade civil, como o conselho de saúde da cidade. Vide Avritzer (2004).
11. Até o começo da era moderna, todas as formas de representação de interesses
eram particulares por definição. As diferentes formas de representação
corporativa que sobreviveram em alguns países da Europa até o começo do século
XIX são um bom exemplo das formas de representação particular. O Estado moderno
dissolveu-as na representação dos indivíduos, supondo que esta diluiria os
interesses particulares.
12. Iris Young, em seu livro Inclusion and Democracy, tratou da idéia da
representação como uma relação, mas de um modo distinto daquele que estamos
propondo aqui. Para ela, a relação de tipos diferentes envolvida na
representação limita-se a diferentes tipos de relação entre o representante e
as suas bases. Vide Young (2000:128).
13. Entre os exemplos mais importantes, podemos destacar a questão dos direitos
da mulher em diversos países do mundo árabe e questões ambientais em muitos
países, entre os quais o Brasil. As audiências públicas introduzidas pelo
governo Lula em questões com forte impacto ambiental, como a construção da BR-
163 e a transposição das águas do rio São Francisco, são um exemplo da
necessidade de governos eleitos se legitimarem para implementar políticas em
áreas como o meio ambiente.