Análise comparada do fluxo do sistema de justiça para o crime de estupro
A produção nacional sobre a aplicação da Justiça para o crime de estupro é
pequena e caracteriza-se por limitar a investigação a uma etapa do
processamento penal. Esta produção distingue-se também por um certo
etnocentrismo, tendo em vista as pouquíssimas comparações efetuadas entre os
resultados aqui encontrados e aqueles obtidos em pesquisas realizadas em outros
países. Conseqüentemente, os padrões e as tendências nacionais identificados
têm sido interpretados como singulares e, muitas vezes, atribuídos
exclusivamente à incapacidade e à ineficiência das nossas polícia e Justiça
para lidar com as demandas da sociedade.
Neste artigo, objetivo mostrar as vantagens de se privilegiar a análise do
fluxo da produção decisória no processamento de determinado crime e de se
proceder à comparação dos resultados obtidos em pesquisas empíricas realizadas
em diferentes países. Para tanto, valer-me-ei do estudo por mim realizado sobre
o fluxo da Justiça Criminal para o crime de estupro em Campinas (Vargas, 2000;
2004) e do estudo de LaFree (1981; 1989) sobre o tratamento dado ao estupro na
Justiça Criminal norte-americana, realizado com base em dados levantados em
Indianápolis1.
Boa parte dos estudos internacionais sobre o tratamento dado ao estupro na
Justiça acompanha os desenvolvimentos teóricos dos estudos sobre decisão na
Justiça Criminal em geral e buscam, cada vez mais, verificar a interação das
chamadas variáveis legais, extralegais e de processamento (organizacionais) no
resultado das decisões2.
Contudo, de todas estas variáveis, as ditas legais são as menos problematizadas
(Pires e Landreville, 1985)3. Caberia então perguntar: regras jurídicas (de
incriminação e de decisão) equivaleriam a regras e normas sociais ou morais?
(Robert, 1991)4. Como se dá a articulação entre normas morais e regras legais?
Estas questões têm recebido especial atenção nos países de CivilLawTradition
(França e Bélgica, dentre outros), tendo em vista a importância dada às regras
de incriminação (substantiva) e de decisão (processual) nesta tradição.
Considerando a importância conferida no sistema de direito brasileiro às regras
codificadas e o fato de que o sistema criminal não se baseia na negociação como
princípio de administração dos conflitos, mas funda-se na descoberta da verdade
(Kant de Lima, 1997), interessa saber: qual o peso das regras jurídicas no
sistema de Justiça Criminal brasileiro para a atividade de subsunção dos casos
de estupro e em que medida elas orientam e delimitam as decisões na Justiça?
O propósito deste estudo é oferecer alguma contribuição para o conhecimento da
Justiça Criminal brasileira: de um lado, da sua capacidade em identificar,
processar e punir agressões sexuais e, de outro, da importância que esta
confere, no processamento do estupro, às regras legais formais, relativamente à
Justiça Criminal americana.
O FLUXO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
Foi dito que a forma mais adequada de investigar a resposta que o sistema de
Justiça Criminal oferece aos eventos sexuais, que são submetidos a sua
repressão, é reconstituir o fluxo de pessoas e procedimentos que atravessam as
diferentes organizações que compõem este sistema ' polícia, Ministério Público,
varas criminais, Tribunal de Apelação, Departamento Penitenciário (Coelho,
1986; Fundação João Pinheiro, 1987; Vargas, 2000).
Esta reconstituição não é tarefa fácil, nem mesmo em países como os Estados
Unidos, que possuem, desde a década de 1930, um sistema uniformizado de
contabilidade das ocorrências criminais e de sua repressão ' os Uniform Crime
Reporting' UCR ', integrando, em âmbito nacional, as estatísticas oficiais
provenientes da polícia e da Justiça.
Um dos problemas encontrados para a reconstituição desse fluxo é a dificuldade
de articulação das informações sobre o processamento dos casos e dos agressores
de forma a garantir seu acompanhamento no tempo. LaFree chama a atenção para
isso:
"Em Indianápolis, a polícia e as cortes atribuem números diferentes
de identificação para os mesmos casos. Assim, o único jeito de
combinar os dados da polícia com os das cortes consiste em comparar
os conteúdos dos casos, individuais. Em muitos casos, isto requer um
simples emparelhamento dos nomes dos agressores nos dados da polícia
e das cortes. Em se tratando de nomes comuns, é necessário comparar
outras características do caso para garantir uma combinação acurada"
(LaFree, 1989:92, tradução da autora).
O nome do acusado é, portanto, a peça-chave para a montagem do fluxo. Esta
constatação nos é revelada também no meu estudo, já referido, sobre crimes
sexuais e sistema de justiça (Vargas, 2000). Assim, o acompanhamento
praticamente individualizado dos casos explica o caráter localizado da grande
maioria dos estudos desta natureza, realizados a partir de bases de dados
relativamente pequenas. Este enfoque localizado e a desarticulação das
informações, observados nos dois países, parecem ser um forte indicador de um
certo grau de autonomia organizacional dos vários subsistemas5.
Apesar das diferenças nas tradições legais dos dois países ' Brasil e Estados
Unidos' e da diversidade de instituições, regras e procedimentos existentes em
seus sistemas de justiça ou, ainda, de práticas nacionais mais ou menos
institucionalizadas, como, por exemplo, a existência de mecanismos de
negociação como o plea bargainningno sistema americano, a comparação entre os
resultados desses estudos é possível e proveitosa, uma vez que eles privilegiam
mais ou menos os mesmos estágios de decisão.
Começarei, então, apresentando os dados absolutos e as porcentagens referentes
às diferentes etapas de decisão, bem como a proporção dos casos que alcançam
uma condenação dentre aqueles que dão entrada no sistema, em ambos os estudos.
Antes de prosseguir, porém, gostaria de retomar algumas considerações sobre o
fluxo da Justiça Criminal em geral e para o crime de estupro em particular,
tendo em vista um melhor entendimento do tema em foco.
O fluxo da Justiça Criminal apresenta uma forma de funil. Inicia-se com um
grande número de casos reportados à polícia e termina, depois de seleções
sucessivas, com um pequeno número de casos sentenciados. Este efeito de funil é
uma característica inerente aos sistemas de Justiça Criminal modernos e se
apresenta para todos os tipos de ocorrências criminais6.
Se, de acordo com os códigos e com as atividades práticas dos operadores da
Justiça Criminal, para cada tipo de delito corresponde uma maneira singular de
tratamento dos casos, pode-se pensar que a natureza do delito intervém de
maneira decisiva na configuração que o fluxo assume. Partindo deste
pressuposto, comparar fluxos de diferentes crimes é menos elucidativo do que
comparar fluxos de crimes de mesma natureza, tratados por diferentes sistemas
de Justiça.
Estudos sobre o funcionamento da Justiça Criminal realizados em diferentes
países convergem ao apontar que a atuação desta é marcada muito mais por uma
ação reativa do que proativa7. No caso da repressão ao estupro, prevalece a
primeira, ou seja, o sistema reage após ser acionado e, só então, passa a
proceder à seleção e ao processamento dos casos e de seus autores (LaFree,
1989). No Brasil, esta reação encontra-se também definida nos códigos, na
natureza da ação penal. Isto é, em crime de estupro, exceto em alguns casos, a
decisão de acionar o sistema é de natureza privada.
Finalmente, nunca é demais lembrar que as informações produzidas pelo sistema
de Justiça Criminal não são um indicador da ocorrência da criminalidade, mas
antes da repressão exercida sobre ela por este sistema, pois ficam de fora
desta contabilidade os casos que não foram levados ao conhecimento da polícia.
É sabido que em crimes sexuais é alto o índice de casos em que as vítimas não
apresentam denúncia, atribuído a um padrão de comportamento de grande parte das
pessoas vitimadas ' o silêncio ou a resolução do conflito no âmbito privado.
Fluxo de Funcionamento da Justiça para o Crime de Estupro em Campinas
Em contraste com outros países, principalmente os de língua inglesa, o Brasil
tem pouca tradição de estudos empíricos sobre a aplicação da Justiça, e poucos
são aqueles que utilizam o modelo de fluxo para o estudo do funcionamento da
Justiça Criminal8. Na área dos estudos de gênero e justiça, são raros os
trabalhos que seguem esta orientação metodológica. Os dados apresentados na
grande maioria das pesquisas sobre o tratamento dado pela Justiça Criminal à
violência contra a mulher, à violência doméstica e, mais especificamente, à
violência sexual limitam-se a alguma fase do processamento penal, seja a
policial (Azevedo e Guerra, 1988; Feiguin et alii, 1987; Soares, 1996;
Saffioti, 1994), seja a judicial (Corrêa, 1983; Pimentel, Schritzmeyer e
Pandjiarjian, 1998). Apenas recentemente algumas pesquisas têm buscado a
reconstituição do fluxo da produção decisória da Justiça Criminal em todas as
suas fases. Especificamente em relação ao crime de estupro, até o momento, o
presente estudo é o único que se propôs a fazer tal reconstituição e a
quantificar esse fluxo de decisões9. Para tanto, foram analisados 444 Boletins
de Ocorrência ' BOs de estupros registrados na Delegacia de Defesa da Mulher '
DDM de Campinas no período entre 1988 e 1992 e verificados os seus
desdobramentos (incluindo o seu arquivamento) no fluxo procedimental da Justiça
até o ano de 2001.
No Estado de São Paulo, o registro de uma ocorrência criminal, denominado
boletim de ocorrência, é elaborado na Polícia Civil no momento em que a vítima
ou a pessoa responsável pela queixa procura a delegacia ou é a ela encaminhada
por policiais militares. Em Campinas, a averiguação de crimes de estupro e de
outros crimes cometidos contra a mulher é feita, desde 1988, pela delegacia de
defesa desta10. A instauração de um inquérito policial em caso de estupro
resulta de um conjunto de decisões. A primeira delas ocorre com a identificação
da ocorrência criminal pela autoridade policial, com base, inicialmente, nas
informações dos BOs, no laudo de exame de corpo de delito e, posteriormente,
nos depoimentos dos envolvidos. O procedimento seguinte consiste em submeter a
vítima e seu representante legal à decisão de iniciar a ação penal. Nas
ocorrências em que não existem indícios suficientes de autoria não é oferecida
a denúncia, e a queixa acaba arquivada na delegacia. Das 444 queixas iniciais
de estupro registradas em BOs na DDM de Campinas, apenas 128 foram
transformadas em inquéritos.
A responsabilidade da ação penal que dá origem à denúncia é do Ministério
Público, quando pública, ou do representante legal do ofendido, quando privada.
Vimos que, em caso de estupro, salvo condições especiais, a ação é privada. De
acordo com o Código Penal, uma ação privada pode tornar-se pública caso os
queixosos aleguem não poder arcar com as custas do processo. Na prática
observada na DDM de Campinas, quase todas, se não todas, as ações tornaram-se
de iniciativa do Ministério Público, ou seja, nos 71 casos de estupro
denunciados, a ação partiu do promotor.
Com a denúncia, inicia-se a instrução criminal, que consiste em vários ritos
nos quais são ouvidos réus e testemunhas e se manifestam o Ministério Público e
a Defesa. Ao final, o juiz pronuncia-se por meio da sentença. Dos 71 casos
denunciados, 41 receberam sentença condenatória, 25 tiveram sentença
absolutória, em três casos o réu era revel e, em dois não foi possível saber o
desfecho.
Das sentenças de condenação ou de absolvição cabe a apelação do promotor, do
querelante ou da Defesa. Se aceita, os autos são julgados por um Tribunal de
Segunda Instância. De acordo com os dados levantados, em 24 casos houve
apelação. Destes, em sete a condenação foi mantida, em 10 ela foi diminuída, um
caso de condenação em primeira instância obteve absolvição na segunda e dois
casos de absolvição resultaram em condenação no Tribunal.
Conforme o previsto (Gráfico_1), o fluxo do crime de estupro, em Campinas,
inicia-se com uma grande base para, em seguida, assumir a forma de um funil. O
que mais chama a atenção é a grande filtragem operada na fase policial, quando
71% dos BOs iniciais são arquivados. Uma segunda seleção ocorre antes da fase
judicial. Nesta, prosseguem 55% dos inquéritos instaurados. Dos casos
denunciados, 58% resultam em condenação, mas esta porcentagem representa apenas
9% dos registros iniciais. Portanto, verifica-se uma baixa probabilidade de
condenação dos casos que deram entrada no sistema.
Por si sós, os dados nos mostram que a fase policial é a de maior filtragem dos
casos e que há uma probabilidade muito baixa de condenação desses casos que
deram entrada no sistema (menos de 10%). Portanto, pode-se concluir que a
punição para este tipo de crime é bastante remota. Surge, então, a pergunta: a
dificuldade de passagem da queixa à configuração jurídica do crime e a
impunidade em relação ao estupro são características singulares do país que
devem ser atribuídas às nossas agências responsáveis pela repressão a este
crime? Para responder a esta pergunta, valer-me-ei dos dados apresentados na
pesquisa de LaFree (1989) sobre o fluxo da Justiça para o crime de estupro
realizada em Indianápolis e proceder a um exercício comparativo dos seus
resultados.
Fluxo de Funcionamento da Justiça para o Crime de Estupro em Indianápolis
Em meados da década de 1970 ' na esteira dos movimentos feministas, do
interesse da criminologia pelo poder dos grupos dominantes na aplicação da lei
e pelo processo de construção social do crime, em especial daquele desempenhado
pelas agências de controle social ' surgiram, nos Estados Unidos, as primeiras
pesquisas buscando avaliar o tratamento dado pela Justiça Criminal ao estupro.
O trabalho de LaFree (idem) inscreve-se neste contexto e continua sendo o
estudo mais completo e importante realizado sobre o tema. Conforme o proposto,
passo, a seguir, a descrever a base de dados e o fluxo reconstituído por este
autor.
A base de dados do estudo de LaFree compõe-se de 881 casos de estupro
reportados à polícia, em Indianápolis, em 1970, 1973 e 1975 e seus desfechos,
incluindo dados coletados nas cortes, de julho de 1978 a setembro de 1980, e
dados de entrevistas com policiais, promotores, advogados, jurados e juízes,
que processaram os casos incluídos no estudo.
Os 881 casos iniciais de estupro referem-se aos registros dos oficiais
despachados à cena quando solicitados através de demanda ou às ocorrências
reportadas diretamente à polícia. Destes, 328 resultaram em arrest, ou seja,
foram submetidos à investigação da polícia, que decidiu prender o suspeito. Os
outros foram arquivados, ou porque a queixa foi considerada infundada, ou
porque o suspeito não foi identificado ou, ainda, porque a vítima não quis
cooperar na investigação.
As detenções por ofensas potencialmente sérias são revistas por advogados da
Promotoria (felony screener), em consulta aos investigadores. Os advogados
examinadores procuram verificar a seriedade do caso, se há elementos de prova,
se a vítima vai testemunhar, e decidem-se por uma das quatro opções:
arquivar o caso, por verificarem que não há evidências suficientes;
encaminhá-lo para a Corte Municipal, quando consideram a ofensa
menor ou que a vítima não irá testemunhar;
apresentar o caso ao Grand Jury, quando há problemas com
evidências;
enviar o caso diretamente para a Corte Criminal, preservando a
acusação inicial.
Após esta seleção, 153 casos foram encaminhados como crime (felony charged).
Destes, 125 tiveram a sua denúncia (prosecution) estabelecida, sendo que 74
casos resultaram em guilty pleae 50 foram julgados por tribunal11. Em 104
casos, o réu foi considerado culpado e, em 83, foi decretada a sentença de
execução. Em 42 casos, esta teve de ser cumprida em penitenciária.
Observa-se que a maior filtragem ocorre na fase policial, com o arquivamento de
62,8% dos casos iniciais, e, posteriormente, com a nãotransformação em crime de
53,4% dos casos de arrest.O fluxo revela que, dos casos reportados
inicialmente, apenas 11,8% obtiveram sentença de condenação e somente 4,8%
obtiveram penas mais graves, que resultaram na prisão em penitenciária.
Esta breve comparação da descrição quantitativa das decisões tomadas nestes
diferentes sistemas de Justiça Criminal (Brasil e Estados Unidos) para o crime
de estupro, embora ainda pouco aprofundada para se pretender o rigor de um
estudo comparativo, permite, por ora, algumas constatações. Em primeiro lugar,
ela corrobora os muitos estudos sobre a Justiça Criminal que afirmam que o
fenômeno do atrito se apresenta de forma bastante acentuada nos crimes de
estupro, em que menos de 12% das queixas iniciais terminam em condenação. Em
segundo lugar, aponta a fase policial como aquela em que ocorre o grande
processo de seleção e filtragem dos casos.
A comparação da produção quantitativa das decisões nas diferentes fases do
fluxo entre os dois países possibilita uma primeira exploração sobre o
tratamento dado ao crime de estupro pela Justiça. A seguir, procuro aprofundar
essa investigação, comparando os determinantes das decisões da fase policial '
porta de entrada no sistema de Justiça ' identificada como a mais problemática
nos dois estudos. Interessa saber se também os determinantes das decisões da
fase policial são os mesmos. Mas, antes, faz-se necessária uma descrição das
pessoas implicadas (vítima e agressor) e das características das ocorrências
apresentadas nesta fase nas duas pesquisas.
Perfis dos Envolvidos e Características das Ocorrências de Estupro na Fase
Policial em Indianápolis
Os dados referentes às queixas iniciais apresentados no estudo de LaFree (1989)
estão exibidos na Tabela_1. Sobre as características das vítimas e dos
agressores, estes dados indicam que 65,6% das vítimas tinham 18 anos ou mais de
idade e que 73% dos agressores tinham mais de 21 anos. Queixas envolvendo
vítimas e agressores pretos são as mais representadas (44,1%), seguidas
daquelas envolvendo vítimas e agressores brancos (33%) e vítimas brancas
agredidas por pretos (22,9%).
Estupros de vítimas pretas por agressores brancos foram excluídos devido ao
pequeno número de casos registrados. No que se refere ao contexto interpessoal
de relação entre vítima e agressor, os dados informam que os agressores
desconhecidos representam 49,7% dos casos, e os conhecidos, 50,3%. A maioria
das ocorrências deu-se fora de casa (69,3%), predominantemente com um único
agressor (74,8%), sem o uso de arma (68,4%) e com lesão física de menor
gravidade (66,1%). Quanto ao comportamento da vítima, foi alegada não-
concordância em 3,4% dos casos e resistência física em 22,3% dos casos. Quanto
aos resultados, 93,4% das queixas foram consideradas fundadas, 35,8% resultaram
em detenção (arrest); destas, 45,7% foram encaminhadas como crime.
Perfis dos Envolvidos e Características das Ocorrências de Estupro na Fase
Policial em Campinas
Os dados referentes à fase policial em Campinas estão apresentados na Tabela
212. A seguir, selecionarei algumas variáveis para comparar as distribuições
encontradas em ambos os estudos. Começarei com a "composição racial", não sem
antes lembrar que, no Brasil, a raça tem sido representada como "cor"13.
Os dados de Campinas indicam que a maior parte das queixas podem ser
classificadas como de estupro intra-racial, com um agressor branco acusado de
estupro de uma vítima branca (43%). Entretanto, não são poucas as queixas
interraciais com vítima branca. Estas representam 27,5% do total de queixas,
sendo 16% contra um agressor pardo e 11,5% contra um agressor preto.
Se comparada ao estudo de LaFree (1989), que encontrou uma proporção de vítimas
e agressores pretos no total das queixas de 44,1%, a composição vítima e
agressor de cor preta encontrada em Campinas é muito baixa, representando
apenas 3% do total das queixas. Tal composição continua baixa mesmo se somarmos
estes últimos com as vítimas e agressores pardos, o que irá representar 14% do
total de queixas. A proporção de vítimas pardas que deram queixas contra um
agressor branco, no total das queixas, é de 9%. A proporção mais baixa
encontrada neste total é, assim como no estudo de LaFree, a da queixa da vítima
de cor preta contra agressor de cor branca (1%). Observa-se que as vítimas nos
dados de Campinas são mais jovens do que aquelas apresentadas no estudo
americano. Tal diferença certamente se deve ao fato deste autor ter excluído
statutory rapede sua análise14.
Nota-se, quanto à relação de conhecimento entre vítima e agressor, uma
proporção maior nos dados de Campinas de "conhecidos". As classificações
deduzidas dos registros de Campinas foram agrupadas inicialmente em "conhecido"
e "desconhecido" e, com o intuito de qualificar melhor o grau da relação de
conhecimento, foram agrupadas em: "pai", "padrasto", "namorado", "marido",
"outro parente", "vizinho", "conhecido", "relação de trabalho" e "outros". A
classificação "outro parente" engloba tio, avô, irmão, cunhado etc. Já a
classificação "conhecido", agrupa aqueles suspeitos que aparecem, deste modo,
nos relatos, mas cujo grau de relação com a vítima não é explicitado15.
Quando se correlaciona a idade da vítima com a relação entre a desta e a do
agressor, verifica-se que 89% das vítimas de 0 a 8 anos e 84% das vítimas de 9
a 13 anos deram queixas contra agressores conhecidos. Esta porcentagem para as
vítimas de 14 a 19 anos é de 55%. Desta faixa etária em diante (com exceção das
faixas etárias dos 35 aos 39 anos e dos 45 aos 49 anos), a proporção de
agressores desconhecidos sobressai-se à dos conhecidos.
Vítimas muito jovens apresentam queixas principalmente contra agressores
íntimos, geralmente parentes: pai (47%), padrasto (6,5%), outro parente (27%) e
conhecidos: vizinho (6,5%), conhecido (6,5%), outro (6,5%). Na faixa seguinte,
dos 9 aos 13 anos, há queixas contra os parentes: pai (25%), padrasto (10%) e
outro parente (12,5%), mas também contra agressores só conhecidos (19,5%),
namorados (21%), vizinhos (8%), relação de trabalho (4%). Queixas contra
conhecidos acentuam-se na faixa seguinte (dos 14 aos 19 anos), diminuindo a
freqüência de parentes: pai (19%), padrasto (4%), outro parente (15%) e
aumentando a de namorado (11%) e conhecido (35%), além de vizinho (4%) e
relação de trabalho (7%). Na faixa dos 20 aos 29 anos, mais da metade das
queixas são contra agressores apenas conhecidos. Na faixa dos 30 aos 39 anos,
destacam-se os maridos e os apenas conhecidos. Dos 50 anos em diante,
predominam, nos poucos registros, os agressores desconhecidos das vítimas.
Estes resultados aproximam-se daqueles encontrados em estudos mais recentes e
indicam que o estupro não é uma categoria homogênea, apontando para a
existência de mudanças quanto à natureza das queixas feitas na polícia, agora
apresentando um maior número de queixas contra agressores conhecidos e íntimos
(Estrich, 1987; Harris e Grace, 1999)16.
Finalmente, observa-se, tanto no estudo de LaFree quanto nos dados de Campinas,
que, na maioria dos casos (mais de 60%), não foi relatado o uso de arma; e,
embora não seja possível comparar a proporção dos casos no que diz respeito às
variáveis "vontade da vítima de processar" e "não identificação do suspeito",
verifica-se, no estudo de Campinas, que estas são duas importantes
características deste crime, no que se refere à decisão da polícia de dar (ou
não) prosseguimento ao caso.
DETERMINANTES DAS DECISÕES DA FASE POLICIAL PARA O CRIME DE ESTUPRO EM
INDIANÁPOLIS
Nesta seção, compararei os determinantes das decisões das vítimas e operadores
para o prosseguimento da ação judicial encontradas nas duas pesquisas. A Tabela
3 apresenta o resultado da análise de regressão múltipla, realizada por LaFree
(1989), e mostra os maiores preditores para cada uma das três decisões
identificadas por este autor, na fase policial, ordenados de acordo com os seus
coeficientes de regressão estandardizados. Os maiores determinantes da decisão
de se considerar a queixa de estupro fundada são a identificação do suspeito e
a vontade da vítima de processar o autor.
Influencia a decisão de não considerar a queixa fundada a não-conformidade da
vítima a padrões de comportamento estabelecidos. Na decisão de acusar (charge),
o tipo de ofensa, o uso de arma e a idade da vítima aparecem como determinantes
importantes. LaFree (idem) verificou que também influencia esta decisão o fato
de o agressor ser preto e a vítima, branca. Na decisão de encaminhar o caso
como crime sério (felony), os principais determinantes são a seriedade da
ofensa e a vontade da vítima de testemunhar.
Os principais determinantes das decisões da fase policial foram interpretados
por LaFree (1981) como fatores considerados relevantes pelos operadores para
dar prosseguimento ao processamento dos casos na Justiça e classificados como
predominantemente legais, em oposição, portanto, à orientação dos estudos
anteriores, que enfatizavam as atitudes discriminatórias dos policiais em
relação às vítimas de estupro.
Contudo, atitudes discriminatórias da polícia em relação a certo tipo de
vítimas ou de agressores (fatores classificados como extralegais) foram
identificadas na decisão de não considerar a queixa fundada, quando a conduta
da vítima não se apresenta em conformidade com os padrões estabelecidos, bem
como na decisão de considerar a queixa fundada, quando um agressor negro é
suspeito de estuprar uma vítima branca.
DETERMINANTES DAS DECISÕES DA JUSTIÇA CRIMINAL PARA O CRIME DE ESTUPRO:
SUBMETENDO O DIREITO À ANÁLISE
A interpretação de LaFree (1981) dos determinantes encontrados na fase policial
nos suscita uma reflexão sobre as variáveis por ele trabalhadas, para além da
dicotomia legal/extralegal usualmente utilizada. Tal dicotomia obscurece o fato
de que discriminações de raça, de gênero e de idade podem estar embutidas nos
critérios legais normalmente considerados legítimos e neutros (Pires e
Landreville, 1985). A discussão do conteúdo social das variáveis legais, tal
como o da variável "prisão durante o processo", buscando identificar como ela
pode assumir um caráter extralegal, quando revela tratamento discriminatório
dado a certos réus, deverá ser trabalhada em outro momento. Por ora, quero
chamar a atenção para o fato de que variáveis consideradas extralegais, tal
como a "idade da vítima", podem também assumir um caráter legal em razão da
aplicação de certas prescrições jurídicas. Com isto, pretendo averiguar o
aspecto legal prescritivo delimitador das decisões contido nesta variável, bem
como na variável "vontade da vítima de processar", aspecto este não explorado
por LaFree em particular, nem nos estudos sobre o tratamento dado ao estupro na
Justiça Criminal em geral. Portanto, passo agora a descrever as variáveis
"vontade da vítima de processar" e "idade da vítima".
a) A variável "vontade da vítima de processar"
Já foi dito que a ação penal em caso de estupro é privada. Em determinadas
circunstâncias, o Ministério Público pode promover a ação, tornando-a pública
mediante representação. Para tanto, ele precisa ter a manifestação ou
autorização da vítima. São os casos em que a vítima ou seus pais não podem
pagar as custas do processo sem privar-se de recursos indispensáveis à
manutenção própria ou da família. Em casos em que o suspeito é pai, padrasto ou
tutor da vítima, a ação penal é pública incondicionada, isto é, o Ministério
Público deve acionar a Justiça independentemente da vontade da vítima (art.
225, § 1º, II do Código Penal). A ação penal também é pública no caso de haver
lesão corporal grave, gravíssima, ou morte da vítima17.
A vontade da vítima de processar tem sido interpretada como uma decisão
instrumental (Kerstetter, 1990), legal (LaFree, 1981), ou como uma decisão que
envolve a interação da vítima com os operadores, sendo, muitas vezes, marcada
por atitudes discriminatórias dos policiais ou dos promotores (LaFree, 1989;
Frohmann, 1991; Bryden e Lengnick, 1997). No banco de dados, esta variável
aparece como uma das categorias da variável "solução dada à queixa", quais
sejam: 1 = "sem acesso à informação"; 2 = "arquiva-se por vontade da vítima"; 3
= "arquiva-se por determinação da autoridade"; 4 = "aguardar em cartório outro
procedimento"; 5 = "arquiva-se suspeito não-identificado"; 6 = "representação
feita pela vítima"; 7 = "representação feita pelo Estado"; 8 = "outros". Vê-se,
pois, que considerei as outras hipóteses de ação neste tipo de crime para
definir esta variável e que a não-identificação do suspeito, categoria
considerada importante no estudo de LaFree (1989), também está aqui
representada18.
b) A variável "idade da vítima"
O Código Penal prevê que se presuma a violência da ocorrência quando a vítima
não é maior de 14 anos, é débil mental e o agente conhecia este fato, ou por
qualquer outra razão (embriaguez, inconsciência, enfermidade) que a impediu de
resistir ao ato (art. 224 do Código Penal) ' uma maneira de procurar proteger
as vítimas que apresentam menor possibilidade de defesa. Em relação à presunção
da violência em razão da idade, o Código, promulgado em 1940, apóia-se na
presunção de que até esta idade a vítima é desconhecedora dos assuntos sexuais,
de modo que o seu consentimento não deve ser considerado válido19.
Vê-se, pois, que a variável "idade da vítima" agrega um conteúdo jurídico que
delimita a atividade de seleção e de interpretação dos casos exercida pelos
operadores. Suponho, e procurarei verificar ao longo deste artigo, que o
critério jurídico que define ser a violência presumida para vítimas menores de
14 anos funciona como fator de progressão destas no fluxo, uma espécie de
discriminação positiva, pois, para estes casos, dispensam-se as provas de
violência e do não-consentimento. Assim, a variável "idade da vítima" foi
categorizada como 0 = "até 14 anos " e 1 = "com 14 anos ou mais".
DETERMINANTES DAS DECISÕES DA FASE POLICIAL PARA O CRIME DE ESTUPRO EM CAMPINAS
As Tabelas_4 e 5 apresentam os dois modelos resultantes da regressão logística
que considera a categorização dicotômica da decisão da polícia com respeito ao
inquérito: indiciamento do suspeito versusnão-indiciamento. O que se busca
verificar, por meio desta técnica, são os fatores que afetam a probabilidade de
essas decisões ocorrerem.
O primeiro modelo mostra que os principais determinantes da decisão com
respeito ao indiciamento do suspeito em inquérito para as queixas de estupro
registradas em Campinas são a vítima querer processar e a não-identificação do
suspeito. A representação feita pela vítima é o fator que mais determina o
indiciamento do suspeito. O arquivamento por vontade desta e a não-
identificação do suspeito são os fatores que mais determinam a não-instauração
do inquérito. Estes resultados coadunam-se com aqueles encontrados no estudo de
LaFree (1989) e também com o meu estudo anterior (Vargas, 2000). Entretanto, a
presente análise permite quantificá-los melhor. Ela nos mostra, por exemplo,
que, quando a vítima decide processar o agressor, a chance de instauração do
inquérito aumenta 55 vezes, comprovando que, nesses crimes, é basicamente a
vítima quem abre a porta de entrada do sistema. Já a chance de não-instauração
do inquérito aumenta 32 vezes quando a vítima não quer processar o agressor e
28 vezes quando não foi possível identificar o suspeito.
Estes resultados mostram, de um lado, ser plausível a minha hipótese da
importância das regras legais como delimitadoras de comportamentos e ações dos
operadores do sistema de Justiça, a qual pode ser verificada em relação à
decisão da vítima de processar o agressor. De tal forma que a regra da ação
penal privada se constitui como condição de instauração de inquérito e, por
isto, deve ser considerada parte integrante da variável dependente (daí a
necessidade de constituição de um segundo modelo sem considerar a variável
"solução"). De outro lado, os resultados também reforçam um aspecto importante,
já por mim explorado, qual seja, o problema da investigação da autoria neste
tipo de crime, que, nas DDMs em geral, assume um caráter dramático (idem).
Antes de discutir esta última afirmação, quero explorar melhor a questão das
regras e de sua aplicação.
Vimos que a ação privada pode se tornar pública, mediante representação da
vítima ou de seu responsável legal, quando esta alega não poder arcar com as
custas do processo. Na atividade cotidiana dos operadores da Justiça, esta
prescrição tornou-se uma prática. As queixosas, cujos casos ensejam a
instauração de inquérito e que querem acionar a Justiça, são orientadas a
assinar um termo de representação, alegando não poder pagar pelo processo e
pedindo a ação do Estado. O conflito, que era privado, torna-se, então,
público, e a Justiça Criminal é acionada para resolvê-lo. Portanto, como
afirmado anteriormente, é a decisão da vítima que aciona o sistema neste tipo
de crime. Trata-se de uma regra definida pelo direito, prevista em código, que
delimita o comportamento dos queixosos e o trabalho dos operadores e, a meu
ver, explica, em parte, como se dá a seleção dos casos nesta primeira fase do
fluxo.
Quando a vítima ou seus responsáveis legais não se manifestam oficialmente por
queixa privada (queixa-crime) ou não requerem, por meio de representação, que o
Ministério Público denuncie o acusado, o caso é arquivado.
Os resultados do segundo modelo da regressão logística, que não comporta o
efeito da variável "solução", mostram que a vítima ter até 14 anos, ser
conhecida do réu e a ocorrência ter sido em sua residência aumentam as chances
de instauração do inquérito. Vimos, anteriormente, que vítimas de até 14 anos
(89% das vítimas de 0 a 8 anos e 84% das vítimas de 9 a 13 anos) deram queixas
contra agressores conhecidos. A análise mostra agora que as chances de
instauração de inquérito para estes casos são maiores do que para as vítimas de
14 anos ou mais, faixa na qual se encontra uma proporção maior de vítimas que
acusam de estupro suspeitos desconhecidos.
A explicação usualmente dada à influência da idade no tratamento penal do
estupro centra-se, de um lado, em uma maior reação dos operadores ao estupro de
vítimas muito jovens e uma grande dificuldade em reconhecer a agressão, quando
a vítima é adolescente ou adulta (especialmente quando vítima e agressor se
conhecem) e, de outro, no cálculo instrumental feito por estes da probabilidade
de o caso prosseguir no sistema, incentivando ou não a queixosa em sua decisão
de acioná-lo (Spohn, Beichner e Davis-Frenzel, 2001).
Quero sugerir como explicação adicional o fato de se presumir a violência
quando a vítima tem até 14 anos. A presunção de violência para a vítima de até
14 anos facilita a constituição de evidências pelos policiais (não sendo
preciso provar o não-consentimento e a violência) e, por outro lado, evidencia
a dificuldade encontrada pela polícia para constituir provas de não-
consentimento para as vítimas de 14 anos ou mais, ainda nesta fase do fluxo.
Mas a idade da vítima também influencia a não-instauração do inquérito por uma
outra razão. A classe "14 anos ou mais" é a mais representada na não-
instauração do inquérito policial, quando a solução é a "não-identificação do
suspeito", reforçando os achados anteriores a respeito da relação entre a idade
da vítimaearelação de conhecimento desta com o agressor. No estudo anterior
(Vargas, 2000), a pesquisa de campo permitiu observar que, nas situações que
envolvem suspeitos desconhecidos da vítima, é comum que estes não venham a ser
identificados, uma vez que a prática das policiais da DDM (que se enquadra no
comportamento das policiais das DDMs em geral) é, na maioria dos casos, não
proceder à investigação. Assim, a análise dos dados de Campinas revela que um
fator de natureza organizacional, possivelmente característico da realidade das
delegacias especializadas no Brasil (e talvez não só delas), que afeta
negativamente a apreensão do crime de estupro pela Justiça Criminal é a
ausência de investigação20.
Os casos que necessitam de menos investigação são justamente aqueles em que
vítimas e agressores se conhecem e, não poucas vezes, trata-se de familiares
que habitam a mesma residência. Nestes casos, é mais fácil para as policiais
localizar os envolvidos e as testemunhas, condição que, na prática, se revela
essencial para dar início à instauração do inquérito policial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dificuldade de passagem da queixa à constituição jurídica do estupro, bem
como a baixa proporção de condenação em relação aos casos iniciais apresentam-
se como regularidades na resposta que a Justiça Criminal brasileira e a
americana oferecem ao crime de estupro.
Atribuí a uma regra de incriminação e de decisão ' a que estabelece as
hipóteses da ação penal em crime de estupro ' boa parte da explicação do
atrito, isto é, do arquivamento dos casos, particularmente acentuado nos dois
países. E sugeri que tal regra, assim como a regra de presunção da violência,
desempenha um papel importante no processamento do estupro na Justiça Criminal
brasileira. Busquei empiricamente demonstrar a tese da importância das regras
legais como delimitadoras de comportamentos, especialmente, com a análise da
variável referente à decisão da vítima de processar o agressor. Tal variável
foi de tal maneira determinante da decisão de instauração do inquérito policial
que precisou ser considerada como parte integrante desta variável independente.
O mesmo não ocorreu com a variável "vontade da vítima de processar", enfatizada
por LaFree como variável legal e identificada, apenas, como um importante
preditor das decisões de dar prosseguimento ao processamento na Justiça. Quanto
à regra da presunção da violência, estudos mais aprofundados sobre a fase
judicial no Brasil e também sobre a jurisprudência com respeito ao estupro são
necessários para investigar como esta tem fundamentado as decisões nesta fase.
Por ora, pode-se pensar que o papel desempenhado pelas regras legais no
processamento judicial do crime de estupro poderia ser um indicador de que
reformas na legislação com respeito a este crime podem contribuir
substantivamente para mudar o modo como ele vem sendo processado no Brasil21.
Estudos norte-americanos mostraram que, naquele país, o impacto das reformas
feitas na legislação tem sido bem menor do que o esperado (Berger, Searles e
Neuman, 1988). É provável, mas não é certo, que reformas no mesmo sentido
consigam surtir mais efeito no Brasil, tendo em vista a importância assumida
pelas regras de incriminação e de procedimento no nosso sistema de direito, em
comparação com o sistema americano.
NOTA
1. O estupro é enquadrado no artigo 213 do Código Penal brasileiro como
"constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça: Pena
' reclusão de seis a dez anos". A Common Lawdefine rapecomo penetração sexual
feita por um homem a uma mulher, que não seja sua esposa, com o uso da força e
sem seu consentimento. Como resultado dos movimentos feministas, a maioria dos
estados americanos introduziu algum tipo de reforma na legislação (Berger,
Searles e Neuman, 1988).
2. A este respeito ver Bryden e Lengnick (1997), que fizeram uma revisão sobre
os estudos americanos que trataram do estupro na Justiça Criminal, e também
Vargas (2004).
3. Segundo estes autores, a recusa em submeter o direito à análise encontra-se
tradicionalmente presente nos estudos sobre decisão.
4. Segundo este autor, boa parte da criminologia produzida até então tem
manifestado um desinteresse pelo papel do direito na constituição do crime.
5. Ao analisar o tratamento dado aos crimes sexuais em Campinas, pude observar,
por exemplo, que em situações em que não ocorre a prisão do suspeito, a
polícia, em geral, age sozinha e de forma independente até a instauração do
inquérito. Após a instauração deste, o Ministério Público passa a ter acesso
aos autos e a exercer um controle formal sobre o inquérito, ainda que, na
grande maioria das vezes, apenas via papel.
6. Em sua revisão dos estudos realizados sobre o tratamento dado ao estupro
pela Justiça Criminal americana, Bryden e Lengnick (1997) mostram que o atrito,
isto é, as perdas ou arquivamento dos casos que acontecem em cada fase
decisória, é bastante enfatizado e que boa parte dos estudos o atribui à
sistemática discriminação do estupro entre conhecidos pelos operadores do
sistema. Ainda segundo estes autores, estudos mais recentes buscaram comparar
os padrões de atrito do estupro com aqueles observados em outros crimes e
concluíram, primeiro, que se poucos estupros resultam em acusação e condenação,
isto também ocorre para a maioria dos outros crimes, exceto para o homicídio, e
segundo, que a diferença nos casos de atrito de crimes cometidos por estranhos
e conhecidos não é específica ao crime de estupro, sendo também observada em
outros crimes.
7. Lévy (1987) faz uma revisão detalhada das pesquisas que trataram do modo de
apreensão dos casos pelo Sistema de Justiça Criminal, especialmente pela
polícia, porta de entrada do sistema.
8. A este respeito ver Fundação Seade (2001).
9. Vale registrar o estudo sobre violência doméstica física e sexual, com
recorte nacional, realizado por Saffioti (2002), baseado em boletins de
ocorrência (BOs) e seus desdobramentos até a sentença.
10. Em 1985, a partir da iniciativa de um grupo de mulheres, do Conselho
Estadual da Condição Feminina e do governo do Estado de São Paulo, foi criada
na capital paulista a primeira delegacia voltada ao atendimento de mulheres. O
seu objetivo era investigar e instaurar inquéritos de casos de violência contra
a mulher sem que fossem tomadas atitudes discriminatórias contra as vítimas.
11. Falta a descrição do desfecho de um caso, não fornecida pelo autor. Ver
LaFree (1989:59, 60).
12. As análise e crítica dos dados dos BOs foram desenvolvidas anteriormente
(Vargas, 2000). Foram identificadas diversas lacunas nos registros, e a
principal delas se deve à ausência de dados sobre o agressor.
13. Em trabalho anterior (Vargas, 1999) enfatizei os problemas da variável cor,
tanto para a vítima quanto para o agressor. Em geral, esta informação é
fornecida pela vítima, e sua categorização é feita na interação com a policial,
ou definida por esta.
14. O statutory rapeequivale, na legislação brasileira, ao estupro com
violência presumida. A exclusão deste tipo de estupro da análise de LaFree
limitará consideravelmente, conforme veremos mais à frente, a comparação entre
os dois estudos.
15. Além de um índice razoável de ausência de informação para estas variáveis
(25%), é também necessário considerar que esta ausência ou presença de
informação não é distribuída na mesma proporção para cada categoria.
16. Uma revisão dos estudos sobre o tratamento dado ao estupro pela Justiça
Criminal mostra que houve uma série de mudanças em relação à natureza das
queixas e em relação ao modo dos pesquisadores classificá-las e interpretá-las.
A este respeito, ver Vargas (2004).
17. Estes casos não são contemplados neste estudo porque são encaminhados para
delegacias que investigam homicídios.
18. É bom lembrar que a variável "solução" foi construída a partir dos
procedimentos anotados pela autoridade policial nos BOs e que, por estes não
serem sempre manifestos, ou por haver uma série de situações que a própria
polícia considerou indefinidas, foi encontrada uma alta porcentagem de BOs sem
referência à solução dada ao caso, sendo esta informação também codificada.
19. Há, atualmente, bastante polêmica na doutrina e na jurisprudência em
relação a este preceito. O entendimento que ora prevalece é o de que a
presunção não é absoluta, mas relativa, e que deve ser avaliada em cada caso,
muito embora este entendimento, nas decisões absolutórias, seja, muitas vezes,
justificado pelo comportamento da vítima e não pelo seu consentimento ao ato
(Eluf, 1999).
20. A respeito da ausência de investigação nas delegacias especializadas no
atendimento ou de defesa da mulher, ver o relatório da America's Watch (1992).
A respeito do baixo percentual de elucidação policial e da complexidade deste
trabalho no caso do crime de homicídio, especialmente daquele relacionado ao
tráfico de drogas, ver Miranda (2006).
21. Vale destacar, dentre estas propostas de mudanças, a ação penal pública
para vítimas menores, a fusão do crime de estupro com o de atentado violento ao
pudor, a ampliação da definição da relação sexual, com a inclusão do coito anal
e oral, bem como mudanças referentes ao modo como devem ser conseguidos os
elementos da prova do não-consentimento.