Diário Trabalhista e democracia racial negra dos anos 1940
Depois da campanha abolicionista e da proclamação da República, a mobilização
política da população negra brasileira arrefeceu significativamente. O primeiro
movimento político negro no período republicano de caráter nacional ocorreu
apenas nos anos 1930, com a criação da Frente Negra Brasileira ' FNB em São
Paulo, que chegou a ter sucursais em vários outros Estados1. A agitação e a
arregimentação política dos negros eram feitas em torno de idéias e atitudes
algumas vezes contraditórias. De modo geral, no entanto, prevaleciam aqueles
que enfatizavam a origem mestiça e mulata do povo brasileiro, repudiavam os
costumes africanos sobreviventes e pregavam a necessidade de educar as massas
negras para livrá-las do preconceito e da ignorância; ainda que houvesse quem,
na imprensa negra da época, reafirmasse a raça e a importância da herança
cultural africana.
Negar que existisse preconceito de raça no Brasil, contudo, era algo que
perpassava todos os discursos. Não equivalia, entretanto, como pode parecer à
primeira vista, a desconhecer o preconceito de cor que atormentava os afro-
brasileiros. Ao contrário, este é afirmado enfaticamente por todos como sendo
praticado indistintamente por brancos e negros. A argumentação já aparece em
Luiz Gama (1989) que, como sabemos, reiterava o preconceito de cor dos mulatos
"esfolados", que se passavam por brancos. O cerne da argumentação é que os
brancos não nutriam ódio aos negros, e os mulatos e mestiços claros expressavam
mais freqüentemente preconceito em relação aos pretos. Não seria, pois, um
problema de preconceito de raça, como nos Estados Unidos, mas de cor.
O que acontece no período do pós-guerra (1945-1964), com o fim do Estado Novo e
a redemocratização do país? Como se reorganiza a identidade cultural e política
negra no período democrático, em que se forjou o discurso nacional da
democracia racial? (Guimarães, 2005).
A partir de 1944, os intelectuais negros que militaram ou estiveram próximos da
FNB voltam a se organizar, mobilizando-se com o objetivo de influenciar a
redação da nova Constituição. A mobilização espraia-se agora entre Rio de
Janeiro e São Paulo, e não mais de forma focada em São Paulo, como antes do
Estado Novo. Em 1944, é fundado, no Distrito Federal, por Abdias do Nascimento
e um grupo de amigos, o Teatro Experimental do Negro ' TEN2. Ainda no Rio de
Janeiro, em março de 1945, com o apoio da União Nacional dos Estudantes ' UNE,
é fundado, pelo mesmo grupo, o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, cujo
principal objetivo era lutar pela anistia dos presos políticos do Estado Novo.
Em novembro de 1945, ocorre em São Paulo a Convenção Nacional do Negro,
reunindo em sua maioria ativistas negros da capital paulista e do Distrito
Federal3. Posteriormente, haveria um outro encontro no Rio de Janeiro, em maio
de 1946.
O objetivo da Convenção era lançar as bases para a atuação do novo ativismo
negro. Essas bases estão expostas no Manifesto à Nação Brasileira, documento
que sumariava as reivindicações dos ativistas presentes e as colocava como
propostas a serem debatidas na Assembléia Nacional Constituinte. Os nomes que
assinam o manifesto nos fornecem uma idéia da rede que havia sido formada pelo
fundador do TEN e que seria fundamental para a sua ação nos anos seguintes4.
Neste artigo, nosso esforço é acompanhar em detalhes a formação desse novo
caminho de afirmação da especificidade cultural e política dos negros. Nossa
estratégia é analisar os textos publicados em 1946 em uma coluna do Diário
Trabalhista, do Rio de Janeiro, intitulada "Problemas e Aspirações do Negro
Brasileiro", sob a direção de Abdias do Nascimento. Revistas e jornais como
Senzala(1946) eA Alvorada(1936), em São Paulo, e Quilombo (1948-1950), no Rio
de Janeiro, entre outros, são também fontes preciosas. Nosso foco, no entanto,
nesse momento formador é particularmente ilustrativo do modo como, por exemplo,
as bandeiras da FNB (sobretudo a "segunda abolição") serão fundidas com as
emergentes ideologias da negritude e da democracia racial, poucos anos depois
celebradas pelos dois intelectuais negros mais proeminentes do TEN: o sociólogo
Guerreiro Ramos (1915-1982) e o teatrólogo e jornalista Abdias do Nascimento
(1914-_). Comecemos por esclarecer o que foi o Diário Trabalhista.
O DIÁRIO TRABALHISTA
No dia 15 janeiro de 1946, começa a circular, no Rio de Janeiro, o periódico
Diário Trabalhista, de propriedade de Eurico de Oliveira5, Antonio Vieira de
Melo, Mauro Renault Leite (genro do então presidente Eurico Gaspar Dutra) e
José Pedroso Teixeira da Silva. Os dois primeiros eram responsáveis pelo
funcionamento do jornal, enquanto os últimos eram acionários majoritários. De
acordo com Ferreira (2001:185-186), a despeito de exibir
[...] uma orientação política de caráter trabalhista, o jornal
visava, na verdade, garantir respaldo popular para o governo Dutra,
com quem possuía ligações. Embora Eurico de Oliveira tivesse
realmente compromissos com o trabalhismo, chegando a candidatar-se a
deputado pelo Partido Trabalhista Brasileiro ' PTB, em 1950, o jornal
teria, no fundo, restrições às posições petebistas, preocupando-se
basicamente em defender o governo.
O fim do mandato de Dutra, em 1950, foi acompanhado das saídas de Leite e Silva
do jornal, e o controle acionário passou para Pedro Moacir Barbosa, de modo
que, "daí em diante, a linha política do jornal tornou-se mais definida,
caracterizando-se por posições abertamente trabalhistas e comprometidas com o
governo de Getúlio Vargas" (ibidem). O periódico funcionou até 1961, quando
fechou por dificuldades financeiras.
Abdias do Nascimento trabalhou no Diário Trabalhista como repórter entre 1946 e
1948. Na data de lançamento do jornal, estreou uma coluna voltada para a
população afro-brasileira, intitulada "Problemas e Aspirações do Negro
Brasileiro", na qual anunciava a realização de uma enquete sobre a existência
ou não de um problema do negro e do preconceito racial ou de cor no Brasil. É
possível que nem todos os textos fossem de autoria de Nascimento, que, nessa
tarefa, foi auxiliado por Sebastião Rodrigues Alves, Ironides Rodrigues e
Aguinaldo Camargo.
O Que Pensavam os Redatores da Coluna
Aguinaldo Camargo é apresentado ao público do Diário Trabalhista como
"advogado, agrônomo e grande ator, além de filósofo e sociólogo" (Diário
Trabalhista, 17/2/1946, p. 4). Estaria escrevendo um livro sobre "o problema do
negro no Brasil". De fato, porém, como atesta uma das frases da apresentação,
exercia o ofício de comissário de polícia no quarto distrito do Rio de
Janeiro6. Como quase todos os envolvidos na mobilização negra desse período
(1944-1947), situava-se em uma posição intermediária da estrutura ocupacional
brasileira, de pouco prestígio, especialmente na burocracia estatal; posição
estável, mas de pouca remuneração e poder. Alguns, como ele, já tinham um
diploma universitário, outros eram estudantes universitários ou haviam
completado apenas o curso médio. Embora não fossem desprovidos de grandes
aspirações intelectuais e artísticas, nenhum deles desfrutava de reconhecimento
intelectual, como deixa claro o modo como Camargo é apresentado ao grande
público. A busca de reconhecimento era, certamente, o traço mais marcante dessa
geração.
Camargo era simples e reafirmava, sem grande rebuscamento, o principal para o
ativismo negro desse momento: havia um preconceito racial no Brasil que não
podia ser reduzido a um preconceito de classe:
Já disse atrás que existe o preconceito de cor no Brasil, porém a
posição social é que tende a fazer a "classificação étnica" do
indivíduo, mais que os característicos somáticos. O negro, mais que
qualquer outra classe social, sofre todos os horrores do capitalismo
internacional, e seu problema, apesar desse profundo lastro
econômico, não se confunde "in totum" com o problema do proletariado
brasileiro, cuja solução depende apenas de política governamental
(ibidem).
Interessante que são as ciências sociais que legitimam o novo discurso ativista
negro, ao contrário da biologia de antes da guerra. Assim, por exemplo, Camargo
parece ecoar o culturalismo de Arthur Ramos (1903-1949) ao dizer que "todas as
raças são iguais entre si, respeitando-se o momento cultural de suas evoluções
através do espaço e do tempo" (ibidem). Para ele, aparentemente, o povo
brasileiro é majoritariamente mestiço, sendo os negros (pretos) uma minoria.
Ironides Rodrigues é apresentado como estudante de direito. Sua preocupação
básica era afirmar o valor intelectual e artístico dos negros, assim como
estabelecer em bases científicas a existência de cultura na África. Leitor do
francês, Ironides será um dos principais responsáveis pela divulgação no meio
negro brasileiro do pensamento da negritude francesa, assim como dos escritores
da Harlem Renaissance. Já em 1946, apoiando-se na autoridade de Frobenius (que
provavelmente conheceu por meio da leitura de Arthur Ramos), afirmava a
existência de civilizações africanas, refutando nominalmente a opinião de
Sílvio Romero.
Sempre preocupado em contrapor-se àqueles que julgavam os negros
intelectualmente inferiores, é farto e generoso ao citar os intelectuais afro-
brasileiros de sua geração:
Raimundo Souza Dantas, no romance; Fernando Góis, contista e crítico
literário; Aguinaldo Camargo, sociólogo e ensaísta; Abdias do
Nascimento, romancista, faz ainda estudos psicológicos sobre os
negros; Lino Guedes, na poesia; Vicente Lima, no folclore e mocambos
pernambucanos; Solano Trindade, na sua poética impressionante (Diário
Trabalhista, 20/1/1946, p. 5).
Ironides mostrava-se cético em relação ao alinhamento político dos negros,
preferindo construir um movimento puramente cultural: "É preciso que os líderes
conduzam o povo negro do Brasil pelo caminho certo de sua valorização, não
permitindo que exploradores o levem à política partidária que somente interessa
aos brancos gananciosos de poder" (ibidem).
Sebastião Rodrigues Alves foi fundador, juntamente com Aguinaldo Camargo e
Abdias do Nascimento, no Rio de Janeiro, em março de 1945, do TEN e do Comitê
Democrático Afro-Brasileiro. Velho amigo de Abdias, serviu com ele o Exército
brasileiro e com ele foi também condenado à prisão, à revelia, por envolvimento
em uma briga de rua (Macedo, 2006). Em 1946, Sebastião era presidente da
Cruzada Afro-Brasileira de Alfabetização. Escreveu pouco, portanto. O que
conhecemos de seu pensamento restringe-se a suas declarações à coluna, nas
quais ressalta que a redenção do povo negro virá pela educação:
O essencial no momento é uma atitude desassombrada dos homens de boa
fé e esclarecidos no que se refere à educação do povo. Educar o
branco para receber o negro no seu convívio social, livre do medíocre
preconceito, educar o negro para participar em todos os setores da
vida sem o prejuízo do complexo de inferioridade que é uma herança da
senzala e do preconceito (Diário Trabalhista, 23/1/1946, p. 5).
De todos os redatores da coluna, Abdias do Nascimento é o mais refinado
politicamente. Seu pensamento, em 1946, refletia o diagnóstico do problema do
negro, corrente entre as lideranças, como veremos a seguir, e que seria
retomado anos mais tarde por Florestan Fernandes (1965): a abolição, do modo
como foi feita no Brasil, jogou de uma hora para outra a população negra em um
mercado de trabalho no qual não tinha habilidades para competir:
A base puramente romântica da campanha abolicionista, a ausência de
estudos sociológicos objetivos em torno da situação e do futuro da
raça e do povo brasileiro permitiram que os africanos e seus
descendentes fossem libertos do jugo escravocrata e se vissem de uma
hora para outra sem casa, sem comida, e sem trabalho. Já a ninguém
mais interessava o braço do negro, quando operários mais capazes
aportavam em nosso mercado, escorraçados pela grave crise européia,
provocada pelo surto industrial nascido após a descoberta da máquina
a vapor (Diário Trabalhista, 23/1/1946, p. 5).
Também já se encontra nos escritos jornalísticos de Abdias desses anos a origem
do que Florestan batizaria mais tarde, citando a frase de um ativista anônimo,
de "preconceito de não ter preconceito":
Causa direta do preceito jurídico de que todos os brasileiros são
iguais perante a lei criou-se também uma mentalidade preocupada em
negar qualquer preconceito de côr no Brasil, enquanto que [sic] os
negros, com poucas oportunidades de elevar seu "standard" de vida por
causa da atmosfera de desprestígio em que se viu cercado, refugiou-se
nos morros e deles fez seu "habitat" carregando às costas o terrível
ônus do analfabetismo, da subalimentação, da tuberculose e do atraso
em todos os sentidos (ibidem, ênfases no original).
Para Abdias, a reparação dos erros da República viria apenas com a segunda
Abolição, tema caro aos militantes da FNB, para quem a República fora madrasta
para com os negros7:
A República surgiu, e ao invés de estabelecer um plano de amparo e
readaptação social da gente negra, o que se visou foi procurar apagar
a "mancha" da escravidão na história pátria, chegando ao extremo de
cometer erros irresgatáveis como aquele do grande e admirável Rui
Barbosa, que na qualidade de ministro da Fazenda, mandou queimar todo
o arquivo referente à escravidão. Por causa dessa medida, ainda não
pudemos e nem poderemos nunca saber ao certo quantos negros entraram
no Brasil, nem as nações de origem daqueles que tão fundamente iriam
influir na estruturação espiritual e material da pátria em formação
(ibidem).
A preocupação de Abdias com a origem dos povos negros denuncia não apenas a
influência que Arthur Ramos e a antropologia culturalista já exerciam sobre
ele, mas certamente também a influência da négritude francesa, que lhe chegava
através de artistas e intelectuais próximos8.
O texto de lançamento da coluna, provavelmente escrito e revisto pelos quatro
redatores, intitulava-se "Os Negros Brasileiros Lutam por suas Reivindicações"
e começava assim: "No Brasil não existem preconceitos de raça; quando muito,
recalcitram algumas restrições individuais, vencidas, entretanto, e superadas
pela inteligência de homens de côr quando eles, como freqüentes vezes ocorre,
constituem intelectos privilegiados" (Diário Trabalhista, 15/1/1946, p. 5).
Passam em seguida a referir-se aos Estados Unidos, onde haveria preconceito de
raça, mas os negros foram capazes de construir uma civilização negra paralela e
tão pujante quanto a branca. O argumento, ao que parece, serve para estabelecer
como verdade a capacidade intelectual dos negros.
No Brasil, prosseguem os colunistas, não existe um problema do negro, mas um
problema nacional de pobreza e de falta de educação, que atinge brancos e
negros igualmente. Aqui, o "preto seria ainda mais preconceituoso que o branco"
(ibidem).
O restante do texto é dedicado a expor os pontos programáticos tirados da
Convenção Nacional do Negro, já citados, em que há ao menos três reivindicações
que parecem pressupor um "problema do negro" no Brasil: 1) o preconceito de cor
deve ser declarado um crime de lesa-pátria; 2) deve também ser perseguido
criminalmente; e 3) os negros devem ser pensionistas no sistema educacional
privado do país quando não houver vagas em escolas públicas. Essas
reivindicações são apresentadas como universalistas, mesmo a última, que, na
visão dos redatores, não parece comprometer o diagnóstico anterior de que não
há um problema do negro no Brasil. Ou seja, trata-se, na visão deles, de um
problema da massa da população brasileira, ela mesma mestiça, preconceituosa e
iletrada.
Muito significativo nesse texto de lançamento é também a fotografia que ilustra
a coluna ' um retrato do dr. José Pompílio da Hora, apresentado como vice-
presidente do Diretório Nacional da Convenção. Por que o retrato do vice-
presidente? Possivelmente Abdias não queria sobre si todos os holofotes e,
ademais, Pompílio era um dos homens negros mais bem reputados ' ainda que não
estabelecido ' no Rio de Janeiro de então. Voltaremos a esse ponto.
De modo geral, podemos dizer, a partir do que vimos até aqui, que esses
escritos revelam um momento em que Abdias do Nascimento, e com ele o movimento
negro brasileiro, transita do espaço regional de São Paulo para ocupar uma nova
posição nacional na capital da República. Nessa transição, era importante
buscar uma nova agenda para o movimento, refazer o diagnóstico do "problema do
negro", buscar novos aliados entre intelectuais, artistas e partidos políticos.
No entanto, não há como negar a pobreza intelectual do movimento nesse momento,
visível em vários aspectos: ausência de uma teoria sólida sobre os problemas
negros; inexistência de uma proposta política autônoma; posição social
subalterna dos dirigentes do movimento e, portanto, ausência de legitimidade
intelectual. Os integrantes eram despachantes da Alfândega, contadores,
estudantes universitários ou, quando muito, profissionais liberais distantes
das universidades. A legitimidade intelectual do movimento ainda repousava em
antropólogos ou sociólogos, como Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Thales de
Azevedo e outros intelectuais e artistas brancos.
Estamos nos adiantando. Voltemos ao que pensavam os negros entrevistados pela
enquete realizada pela coluna em sucessivas publicações.
O QUE PENSAVAM OS DEMAIS INTELECTUAIS NEGROS
Em 1946, os redatores da coluna "Problemas e Aspirações do Negro Brasileiro"
entrevistaram quarenta pessoas. Vejamos quem eram e o que pensavam os demais
entrevistados negros, cuja escolha seguiu aparentemente três critérios: 1)
participação na Convenção Nacional do Negro, ou seja, potencial liderança ou
proximidade com os líderes do movimento; 2) visibilidade intelectual e
artística, ou seja, capacidade de influenciar positivamente a opinião pública a
favor do movimento; 3) busca em retratar a opinião pública negra. Nesse caso,
os entrevistados seriam escolhidos aleatoriamente. Desses três grupos, o último
é muito menos representado na amostra.
Comecemos pelas grandes figuras intelectuais ou artísticas negras,
razoavelmente independentes do grupo de Abdias.
José Pompílio da Hora, cuja foto aparece na coluna inaugural, era formado em
direito pela Universidade de Nápoles e ensinava latim e grego em colégios
secundários do Rio de Janeiro. Sua formação escolar aprimorada garantia-lhe não
apenas circulação nos meios profissionais da capital, mas também a admiração
dos membros da Convenção. O que levaria um negro tão bem-educado e, portanto,
com reais chances de aceitação no mundo dos brancos, a unir-se a manifestantes
político-raciais? Afinal, desde a Colônia, não apenas os mulatos claros, mas os
escuros, e até mesmo alguns poucos pretos bem-educados, evitavam mobilizar-se e
protestar contra o preconceito de que eram vítimas, possivelmente porque tais
percalços não bloqueavam irremediavelmente suas carreiras. Havia vias abertas
de integração e mobilidade.
José Pompílio, recém-chegado da Itália havia pouco mais de um ano, talvez ainda
não houvesse tido essas oportunidades; talvez jamais viesse a tê-las8. O fato é
que, em 1946, era ácido sobre o caráter da democracia brasileira. Valorizava os
direitos da cidadania e da efetiva igualdade de oportunidades: "Existem leis
que rezam essa igualdade, no futuro próximo outras serão feitas na
Constituinte, mas isso quase que nada adianta, visto as leis brasileiras
sofrerem da subjetividade quando na sua aplicação" (Diário Trabalhista, 3/2/
1946, p. 7). No Brasil, existiria uma falsificação do espírito democrático: em
vez de governo do povo, a democracia promoveria a exclusão da população negra,
que, segundo ele, representava 75% da população do país, afastando-a dos altos
postos estatais e relegando-a aos cargos subalternos. Em síntese, "democracia
para os negros tem sido o direito de limpar ruas, construir prédios onde não
podem morar" (ibidem).
Seu irmão Laurindo Pompílio da Hora, também educado na Itália, em carta à
coluna sistematiza em que consiste, em sua visão, o problema do negro:
preconceito de cor que sofre e complexo de inferioridade que interioriza. Sobre
o primeiro, cita as barreiras encontradas para o ingresso na carreira
diplomática, na Marinha, na Academia Militar, em lojas comerciais etc., ou no
acesso a hotéis e a cassinos grã-finos, e arremata: "Aqui nesta terra de
negros, mulatos e creoulos, onde as raças se fundem em um só bloco, existe uma
luta surda e passiva contra a gente de cor, só por ser de cor" (Diário
Trabalhista, 12/3/1946, p. 6). Sobre o segundo, diz: "[...] os nossos negros
sentem, aqui na própria terra que redimiram com o próprio sangue [...], um
complexo de inferioridade que os afasta das atividades sociais e os diminuem
[sic] na luta pelos seus direitos e os traz para um pólo negativo, de onde
dificilmente se separam" (ibidem).
Outro intelectual negro, Guerreiro Ramos já despontava como um sociólogo
brilhante quando concede uma entrevista a Abdias do Nascimento. Eles se haviam
conhecido sete anos antes (1939), quando Nascimento estava residindo pela
segunda vez na capital federal e Ramos, cursando a Universidade do Brasil. Os
dois tinham maneiras divergentes de pensar a questão negra, sobretudo no que
tange à função e à atuação das associações negras. O pensamento de Guerreiro
não se afastava muito do mainstream das ciências sociais da época.
Comparando o Brasil com os Estados Unidos, diz: "Deste modo, na grande terra de
Roosevelt, o que se chama de problema do negro é um verdadeiro conflito de
raças. O negro americano está segregado da comunidade para cuja grandeza ele
coopera" (Diário Trabalhista, 24/3/1946, p. 6). Já no Brasil, a situação seria
diferente, pois "o preconceito existe, mas é mais disfarçado e o negro sofre
uma discriminação menos ofensiva. Entre nós, o preconceito racial perde em
importância para os outros dois aspectos da questão: o preconceito de classe e
a incompatibilidade de dois mundos mentais distintos" (ibidem).
A "incompatibilidade dos mundos mentais distintos" seria provocada pela cultura
compartilhada por negros das camadas populares que, de certo modo, impedia que
os negros em ascensão social participassem efetivamente da cultura e do estilo
de vida das classes dominantes. O sociólogo baiano explica esse aspecto e
sugere como saída o "branqueamento" sociocultural:
Por outro lado, grande número de negros brasileiros ainda não se
incorporou à cultura dominante no Brasil, que é a européia de base
latina. Existe uma cultura negra no Brasil com seu sincretismo
religioso, seus hábitos alimentares, sua medicina de "folk", sua
arte, sua moral, etc. O mundo mental destes grupos é incompatível com
o das classes dominantes. O negro brasileiro pode "branquear-se", na
medida em que se eleva economicamente e adquire os estilos
comportamentais dos grupos dominantes. O "peneiramento" social do
homem de cor brasileiro é realizado mais em termos de cultura e de
"status" econômico, do que em termos de raça (ibidem).
No que diz respeito à função e à atuação das entidades afro-brasileiras,
Guerreiro Ramos afirmava:
Os meios de luta do negro brasileiro não devem ser demagógicos nem
sentimentais, têm que ser adequados ao modo como se coloca o problema
no Brasil. Penso que os homens de cor não devem jamais organizar-se
para combater o preconceito racial. Nesta parte, sua atitude deve ser
tanto quanto possível de indiferença e até humorística, nunca de
indignação (ibidem).
A resposta de Abdias merece uma citação um pouco longa, mas que dispensa
comentários posteriores:
Até aqui o depoimento do prof. Guerreiro Ramos. [sic] Consoante com
nossa linha de conduta, respeitamos-lhe com absoluta fidelidade o
pensamento e as expressões. Seja-nos lícito agora discordar de uma
passagem da sua entrevista, aquela em que diz "[...] os homens de cor
não devem jamais organizar-se para combater o preconceito racial.
Neste ponto, sua atitude deve ser tanto quanto possível de
indiferença e até humorística, nunca de indignação".
Realmente, aí está firmado um princípio negativista. Durante quase
todo o período de após abolição, o negro rezou por essa cartilha de
assistir de braços cruzados e sorriso nos lábios, à sonegação dos
seus direitos de cidadão. Sua decadência atual, em grande parte, pode
ser levada à conta desse comportamento contemplativo e resignado. E
isso é tão verdade quando se examina o combate ao racismo no Brasil.
Este se voltou com maior violência contra o negro e somente amparado
na força de suas entidades ele pôde reagir, oferecendo um combate
tenaz às forças declaradas ou ocultas que o traziam semi-escravizado.
[...] Inegavelmente suas realizações artísticas têm o papel mais
importante nesse trabalho de esclarecimento e harmonização social.
Porém não fosse a corajosa campanha iniciada por associações tais
como a Convenção Nacional do Negro Brasileiro, União Democrática
Afro-Brasileira, Associações dos Negros Brasileiros (S. Paulo), União
dos Negros Brasileiros (Porto Alegre), Centro Cruz e Souza (Recife) e
muitos outros espalhados pela imensidão do Território Nacional e
talvez a estas horas não tivessem alcançado esse avanço na luta anti-
social representado pelo discurso do prof. Hamilton Nogueira. [...] É
preciso viver no seio das organizações negras para se constatar que o
seu espírito de luta não é demagógico nem puramente sentimental. O
que há é o aproveitamento das lições sociológicas de Gilberto Freyre
e Arthur Ramos, orientando suas atitudes em bases democráticas, sem
sectarismos, e longe dos ódios que isolam e separam os homens
(ibidem).
O escritor Raimundo Souza Dantas é outro intelectual negro de idéias moderadas,
no que diz respeito a temas raciais, ainda que tenha "posto sua cultura e
inteligência a serviço da causa do proletariado" (Diário Trabalhista, 1/8/1946,
pp. 6-8). Em matéria intitulada "A Questão Negra no Brasil Não É Caso para
Partidos", o romancista afirma que "a existência de um problema do negro'
implica a existência de uma reivindicação específica. Seria um grande erro
político, como também alarmante prova do desconhecimento do homem de cor
brasileiro, afirmar existir em nossa terra um problema do negro'" (ibidem).
Por outro lado, isso não significava inexistir o "preconceito de cor" ou o
"preconceito racial", que, em sua opinião, não partiria do povo, mas de algumas
associações e de determinados setores da sociedade. Só teria sentido, na
opinião do entrevistado, falar em problema do negro no Brasil, se a situação
vivida por essa população em São Paulo pudesse ser generalizada para todo o
país, o que não ocorria. O preconceito, para o romancista, era uma
peculiaridade de alguns centros e de algumas organizações.
Souza Dantas, no entanto, ainda que considere não haver lugar para uma luta
específica do negro, separada da massa proletária branca, não vê riscos na
"organização de homens de cor mais esclarecidos, que se batem por seus
direitos", ou seja, não condena o movimento negro, desde que em sua luta
reivindicatória, não parta do "princípio de que há no Brasil o preconceito do
branco contra o negro". Para ele, a extinção do preconceito viria com o
desenvolvimento de uma campanha "da prática positiva da democracia, não somente
econômica, mas política e humana" (ibidem). Por fim, o escritor adverte: "A
questão do negro no Brasil não é para partidos. E sei bem o que digo, pois digo
na qualidade de membro de um grande partido do povo. A questão do negro no
Brasil tem que ser resolvida pelo povo" (ibidem).
Em 15 de agosto, a coluna publica a matéria "O Teatro Experimental do Negro e a
Cultura do Povo", na qual anunciava a visita do poeta Solano Trindade,
presidente do Centro de Cultura Afro-Brasileiro, junto com outros membros dessa
associação, com o intuito de protestar contra a interrupção de uma temporada do
TEN no Teatro Fênix. Solano Trindade ressaltava a necessidade de um teatro
social realizado por proletários e negros que haviam contribuído
significativamente para a formação da cultura nacional. Acusava o Estado de não
patrocinar atividades relacionadas à "cultura negra" em um país que se dizia
democrático, pois, até em um país onde a democracia era parcial, como nos
Estados Unidos, isso ocorreria. O poeta criticava a imagem exótica a que muitas
vezes o negro era reduzido:
O negro tem sido estudado como elemento antropológico, etnológico e
pitoresco. A macumba, tão condenada pelos burgueses, é para os
estudiosos a primeira coisa procurada (e também pelos turistas de
casa e além mar). Porém, temos que aproveitar mais do que a macumba,
não sou contra ela, considero-a uma das provas de que a cultura negra
não é inferior as demais culturas (Diário Trabalhista, 15/8/1946, p.
4).
Trindade lista, então, uma série de atividades e de incentivos que deveriam ser
fornecidos a outras formas e modalidades de cultura negra e a suas entidades
promotoras, como as apresentações da Orquestra Afro-Brasileira, as peças do TEN
e as atividades organizadas pelo Centro de Cultura Afro-Brasileiro. Terminava
afirmando que "esse trabalho, essa ajuda, não devia ser exclusivo do negro, mas
de todos os homens de bem, brancos ou pretos, amarelos ou judeus, porque os
negros do Brasil, em raríssimas exceções, quer [sic], cada vez mais, que
desapareçam os últimos sinais do preconceito de cor" (ibidem). Para Solano
Trindade, outro homem negro de esquerda, portanto, a democracia americana, que
restringia os direitos dos negros, não seria um modelo; do mesmo modo que a
cultura negra não estaria restrita às práticas religiosas afro-brasileiras.
Intelectuais negros menos conhecidos, quase orgânicos, para usar a expressão
gramsciana, também pensavam de modo semelhante. Em 18 de julho, o entrevistado
da coluna foi Luís Lobato. A fala do professor perpassa quatro questões
principais: preconceito racial ou de cor; socialização dos lucros das empresas;
visão do negro como "povo"; e por fim, a polêmica em torno de um partido
exclusivo dos afro-brasileiros. No que diz respeito ao preconceito, Lobato
julgava que sua base era econômica, de modo que, "encontrada a premissa no
setor econômico e considerando que o negro brasileiro é, geralmente, pobre, o
preconceito contra o negro toma um aspecto de classe social, não podendo jamais
ser resolvido pelo prisma racial" (Diário Trabalhista, 18/7/1946, p. 4).
O professor autodeclarava-se socialista e propunha a participação dos
empregados nos lucros das empresas. Afirmando que "o negro é povo" no Brasil9,
chegava à conclusão de que "a distribuição igual nos lucros educará o povo, em
geral, no sentido evolutivo para o desaparecimento do preconceito de cor, já
que este é uma decorrência da própria condição econômica do negro" (ibidem).
Lobato também se dizia contra a organização de partidos políticos só de negros.
Em sua opinião, essa atitude não passava de uma jogada política de supostos
líderes que não tinham compromisso com os negros e procuravam beneficiar a si
próprios. Não haveria recursos para realizar tal empreitada, nem uma "filosofia
como raça", de modo que esses partidos só serviriam como massa de manobra dos
grandes partidos.
Já os ativistas do TEN adotavam, como era de se esperar, um discurso militante.
Maria de Lourdes Nascimento, por exemplo, afirmava que os responsáveis pela
situação da mulher negra eram os brancos:
Eles nos escravizaram material e espiritualmente. Violentaram a nossa
tradição cultural e religiosa, e de tanta pressão psicológica sobre
os negros, isto durante tantos séculos, conseguiram perverter-lhe a
estrutura moral. Hoje é dificílimo conseguir-se que a massa das
mulheres negras estude e lute por um melhor padrão de vida (Diário
Trabalhista, 5/4/1946, p. 5).
Maria de Lourdes, natural de Franca, São Paulo, conterrânea de Abdias, com quem
estudara na Escola Técnica de Comércio, teria mais tarde, no jornal Quilombo,
uma coluna própria para tratar dos problemas da mulher negra.
Em discurso durante as comemorações do 13 de maio de 1946, reproduzido na
coluna, Maria de Lourdes traz ao conhecimento de todos a situação em que viviam
os negros de sua cidade natal. Os negros de Franca estariam submetidos a
situações de discriminação e desprovidos de acesso à educação formal, saúde,
moradia e a empregos dignos. A elite econômica e intelectual da cidade seria
composta por barões do café ali instalados. Além disso, a discriminação em
relação aos negros teria o respaldo policial. Como exemplo, citava o caso do
passeio público, que tinha espaços vedados à circulação dos negros. Maria de
Lourdes termina seu discurso fazendo um elogio à mestiçagem: "A mulher negra
está aqui agora e estará sempre unida em carne e espírito pelo alevantamento e
valorização do nosso grande povo brasileiro, o mais belo povo mestiço do mundo"
(Diário Trabalhista, 16/5/1946, p. 5).
Nair Gonçalves, jovem atriz formada pelo TEN, por outro lado, expressa o modo
amplo como é definido o negro e a postura "trabalhista" do movimento:
A mulher negra, todas elas, de qualquer condição social ' digo isso
por causa de umas tantas, que por serem formadas, não se julgam mais
negras e nem pertencentes a nossa classe de trabalhadores ' todas
elas devem colaborar com fé e entusiasmo. Somente através desse
movimento que estamos levando a efeito, os negros podem ter esperança
de um dia terem seus direitos reconhecidos de verdade e não apenas no
papel (Diário Trabalhista, 5/4/1946, p. 5).
OS NEGROS DO "POVO"
O restante dos entrevistados negros deveria ilustrar o que seria o pensamento
dos homens e mulheres comuns. O primeiro a ser ouvido na coluna foi Fernando
Oscar de Araújo, apresentado como "pequeno funcionário do DNC" ' Departamento
Nacional de Comércio. O diálogo é ambíguo e interessante. O entrevistado afirma
que não existe "preconceito de cor" no Brasil, mas sim a "covardia da raça
negra". A solução para a situação dos negros, de acordo com ele, seria que os
"patrícios" tivessem mais confiança própria.
Muitos desses entrevistados negavam a existência de um "problema do negro" no
Brasil, geralmente associado a algo semelhante ao que ocorria nos Estados
Unidos, mas reafirmavam a existência do preconceito de cor entre nós. Era o
caso de Valdomiro Machado, estudante de comércio no Liceu de Artes e Ofícios e
datilógrafo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ' IBGE, que
declara à coluna: "Evidentemente não há um problema do negro no Brasil. E é até
lamentável ter-se de falar em problema do negro, simplesmente porque certos
indivíduos, em casas comerciais, para falar claro, tentam implantar no país a
superioridade da raça'" (Diário Trabalhista, 1/2/1946, p. 7).
Quem o entrevistava, provavelmente Abdias, imediatamente procura convencê-lo do
contrário: "Demos um aporte explicando ao nosso entrevistado que eram
precisamente as desvantagens do negro, por ele mesmo apontadas, que se
considerava [sic] como o problema do negro no Brasil, bem diferente do problema
racial dos Estados Unidos" (ibidem). O jovem datilógrafo teria sido convencido
pelo repórter.
O estudante de medicina Walter Cardoso afirma que, no Brasil, não se trata
"apenas de um problema de raça ou de classe, mas sim de um problema nacional".
A solução viria através da educação formal para o negro, que, por meio dela,
poderia elevar-se social e economicamente, além de romper com seu sentimento de
inferioridade, pois, em sua opinião, o verdadeiro problema estava na situação
educacional e econômica da população afro-brasileira. Ele termina a entrevista
em tom otimista, sugerindo que o mundo, após o fim da Segunda Guerra Mundial,
vivia um momento de afloramento democrático e que o Brasil não ficaria fora
disso (Diário Trabalhista, 21/3/1946, p. 6).
Em 16 de fevereiro, o entrevistado da coluna foi Adhemar Homero, de ocupação
não declarada, dizendo apenas que foi estudante de direito na juventude. Homero
tece as mesmas críticas à situação a que foram relegados os negros, citando
algumas instituições que vedariam a entrada da população "de epiderme mais
escura" ' o Itamaraty, a Escola Naval, a Aeronáutica e o Exército. Para o
entrevistado, "cada vez mais se acentua o malfadado preconceito de cor. Não
adianta querer negá-lo. É verdade que usam aproveitar alguns mulatos de talento
em cargos de destaque para tentar mascarar a verdade. Porém, esta é mais forte
que todas as camouflages" (Diário Trabalhista,16/2/1946, p. 7).
O depoimento mais interessante de todos foi dado por Aladir Custódio,
ascensorista de um prédio no centro do Rio de Janeiro. Apresentado como poeta,
Aladir demonstra conhecimento da poesia de Langston Hughes, assim como das
idéias de Roquette Pinto e de Euclides da Cunha. A entrevista é exemplar ainda
porque ele discorre sobre todos os tópicos que vinham insistentemente sendo
abordados pela maioria das personalidades questionadas pela coluna. O poeta
critica o modo como foi feita a Abolição, "uma grande vitória do nosso povo
sobre os opressores escravocratas" (Diário Trabalhista, 8/9/1946, p. 6),
abandonada a seguir pela República, que, em vez de estabelecer um plano de
elevação moral, econômica e cultural dos ex-escravos e de seus descendentes,
teria amparado e incentivado o progresso dos imigrantes.
Em seguida, Custódio ataca aqueles que viam a miscigenação como um dos motivos
do nosso atraso. Citando Roquette Pinto, contra-argumenta que o nosso grande
problema era a educação: "O homem no Brasil não precisa ser substituído, mas
educado" (ibidem). Busca ainda em Os Sertões, de Euclides da Cunha, um exemplo
de como o homem brasileiro mestiço era tenaz e valoroso.
Questionado sobre a existência ou não de preconceito racial no Brasil, Custódio
afirma: "No Brasil ' por força da nossa própria formação étnica ' o preconceito
nunca chegou a alcançar um caráter tão grande como nos Estados Unidos, onde
existe uma colored line' que limita e define a raça e a cor" (ibidem). Por
outro lado, o preconceito vigente no Brasil seria "traiçoeiro e estúpido",
processando-se nas carreiras diplomática e militar, nas casas noturnas e no
comércio. Conclui que "nisto há qualquer coisa do poema Eu também sou a
América', do consagrado poeta negro norte-americano Langston Hughes: Quando
chegam visitas, eles mandam-me comer na cozinha'" (ibidem).
Custódio volta-se para a situação dos negros em São Paulo e cita o incidente
ocorrido em 1944 na rua Direita onde se tentou proibir a circulação de negros e
em seus arredores10. Para ele, isso seria, na verdade, um exemplo de
preconceito econômico, mascarado de "preconceito de cor". Em sua opinião,
ecoando talvez as idéias de Mário de Andrade (1938), o preconceito era uma
superstição que só a educação e uma maior aproximação social e cultural
poderiam com o tempo extinguir. Também seria necessário evitar a formação de
quistos raciais, sobretudo em partidos políticos, algo que afetaria nossa
tradição de tolerância. A entrevista termina com o poeta exaltando os trabalhos
das associações afro-brasileiras, pois estas não segregavam o negro, mas o
colocavam mais próximo, cultural e socialmente, do branco. Auxiliariam no
combate às restrições que impediriam a marcha "de uma nação pelo caminho largo
da Democracia" (Diário Trabalhista, 8/9/1946, p. 6). O poeta, humilde
ascensorista, mas lido e refinado, pensava como um homem bem-educado de seu
tempo.
Destoando desse tom moderado, a empregada doméstica Arinda Serafim inicia a
entrevista referindo-se à situação de desamparo do negro após a Abolição para
criticar a atitude do governo no dia de retirar famílias, em sua maioria
negras, do morro do Jacarezinho, ação que Arinda chamou de "cerco do
Jacarezinho". Ela afirma ser "necessário que a democracia se torne realidade
também nos morros" (Diário Trabalhista, 13/2/1946, p. 4), retomando aqui uma
das palavras de ordem do protesto negro e do país naquele momento. Arinda
valoriza a educação como meio de o negro buscar consciência de si como homem e
cidadão. A ausência de educação é entendida como geradora do preconceito de
raça, de cor e do complexo de inferioridade. Por fim, interpretando livremente
Arthur Ramos, a doméstica afirma que o preconceito de cor e o complexo de
inferioridade são problemas que surgem em virtude da divisão da sociedade em
classes. Ambos se extinguiriam a partir da liquidação das diferenças
econômicas.
Outro depoimento interessantíssimo foi o segundo prestado por Fernando Oscar de
Araújo, em que discordava das conclusões de Donald Pierson (1900-1995) sobre a
não existência de "preconceito racial" no Brasil. Araújo afirma ter lido uma
reportagem de Justino Martins intitulada "Gafieiras do Brasil", publicada na
Revista do Globo, de Porto Alegre, em que o professor norte-americano traça um
"paralelo" entre a situação do negro no Brasil e nos Estados Unidos:
Nos Estados Unidos os negros, como grupo biológico diferente dos
brancos, estão se multiplicando gradativamente, enquanto no Brasil, o
mesmo caso se verifica em sentido contrário, isto é, há uma notável
tendência para a pressão do subtipo comum ' o mulato. Especialmente
no nordeste do território brasileiro, onde os negros estão sendo
dizimados biologicamente pelos mulatos e estes pelos brancos...
Conclusão: O preconceito existe no Brasil, mas é de classe existe
[sic] e não de raças (Diário Trabalhista, 17/3/1946, p. 6).
Araújo nega que tenha a pretensão de discordar de Pierson, mas não aceita sua
conclusão e argumenta: se, por um lado, aos negros americanos era negada a
integração na sociedade branca americana, por outro, haviam construído "um
verdadeiro país de negros", no qual tinham o direito de se educar para atuar
nos mais diversos setores ' ciência, literatura, artes, finanças etc. Já no
Brasil, a situação do "povo de cor" seria de extrema decadência. O entrevistado
conclui com uma pergunta: "Sob o ponto de vista da evolução, do progresso e da
felicidade dos pretos, qual a melhor solução, a norte-americana ou a
brasileira?"; e arremata, enfaticamente: "Julgo que o professor não estudou tão
profundamente o preconceito no Brasil ou ao contrário não quis ser
indiscreto... O preconceito de cor está aí lanhando as cores [sic] do negro
para quem quiser ver. O mais não significa toda a verdade [...]" (ibidem).
Teriam realmente existido todos esses "homens do povo" ou teriam sido, pelo
menos alguns, personagens ficcionais de nossos colunistas, a expressar críticas
que eles não se sentiam com autoridade intelectual para sustentar em público?
As discrepâncias entre as primeiras declarações de Fernando Oscar de Araújo,
prestadas em 18 de janeiro, e as que acabamos de ler, de 17 de março, são tão
gritantes que cabe a indagação sobre a existência real desse personagem.
OS POLÍTICOS BRANCOS
O Partido Comunista Brasileiro ' PCB foi o primeiro a tentar uma aproximação
com o TEN sem, entretanto, nunca ter vencido a resistência dos negros, que
procuravam impor uma agenda própria, independente "da luta do proletariado". As
relações do TEN com a UNE, por exemplo, foram bastante conflituosas, assim como
foram sempre difíceis as relações do TEN com os intelectuais negros ligados ao
Partidão, como Edison Carneiro, Souza Dantas e Solano Trindade.
No plano da política partidária, em 1946, um dos grandes aliados do movimento
que crescia em torno do TEN era o senador Hamilton Nogueira11, alcunhado de
"senador dos negros". Em entrevista publicada no Diário Trabalhista, o senador
dizia que "os pretos não estão criando nenhum problema" e defendia os líderes
negros acusados de estarem "criando um problema que não existiria no Brasil".
Se por um lado a defesa refletia a preocupação de acalmar a opinião pública,
por outro, dá a noção exata da negociação em que o movimento negro tinha de se
empenhar. Comprovar a existência de um "problema do negro" no Brasil
significava também buscar a tutela de figuras importantes no mundo político e
social.
Nogueira encontrava-se no início de sua carreira política. Após a deposição de
Vargas, em outubro de 1945, elegeu-se senador do Distrito Federal à Assembléia
Nacional Constituinte pela legenda da União Democrática Nacional ' UDN. De
acordo com Barbosa (2004:60), teria participado da Convenção Nacional do Negro
em 1945. Em 21 de fevereiro de 1946, o então senador proferiria um discurso na
Constituinte propondo a criminalização das práticas de discriminação por cor ou
raça, endossando uma das reivindicações do manifesto. O Diário Trabalhista, ao
destacar o pronunciamento do senador Nogueira, republica na íntegra o manifesto
da Convenção Nacional do Negro Brasileiro, que, em determinado trecho, afirma:
Temos consciência da nossa valia no tempo e no espaço. O que nos
faltou até hoje foi a coragem de nos utilizarmos dessa força por nós
mesmos e segundo a nossa orientação. Para tanto é mister, antes de
mais nada, nos compenetrarmos, cada vez mais de que devemos estar
unidos a todo o preço, de que devemos ter o desassombro de ser, antes
de tudo, negros e como tais os únicos responsáveis por nossos
destinos em consentir que os mesmos sejam tutelados ou patrocinados
por quem quer que seja. Não precisamos mais de consultar nossos
direitos, da realidade angustiosa de nossa situação e do
cumpliciamento de várias forças interessadas em nos menosprezar e
condicionar, mesmo, até o nosso desaparecimento (Diário Trabalhista,
30/4/1946, p. 5).
Nogueira, no entanto, não era a UDN. Em 1946, Abdias já se aproximava do PTB '
ao qual se filiaria mais tarde ', partido que permanece durante todo o período
democrático melhor sintonizado com os "problemas e aspirações do negro
brasileiro". Não foi, contudo, uma aproximação fácil. A esse respeito, o texto
"A Bancada Trabalhista Dá Todo o seu Apoio às Reivindicações do Negro", que
tinha como subtítulo "Entrevista-relâmpago na Sede Central do PTB ' Como
falaram ao Diário Trabalhista' os deputados Segadas Vianna, Manoel Benício
Fontenelle, Rubens de Mello Braga, Baeta Neves e Benjamin Farah", é digno de
nota. Apesar de o título sugerir que o PTB apoiava as reivindicações dos
negros, a realidade era um pouco diferente, como deixava entrever o texto da
matéria.
O primeiro deputado interpelado, Baeta Neves, esquiva-se da pergunta que lhe
dirige o repórter, deixando-a ao deputado Rui de Almeida. Este responde ao
jornal que em suas veias corre sangue negro, alicerce da nacionalidade. Quando
questionado sobre as restrições sofridas pelos negros nas Forças Armadas e na
diplomacia, responde que, se aparecesse um caso concreto, deveria ser levado ao
conhecimento da Câmara. O próximo deputado abordado, Rubens de Mello Braga, diz
desconhecer o problema do negro por ser do Paraná, onde não haveria restrições
ao afro-brasileiro. O terceiro, Segadas Vianna, evita o repórter com andar
apressado, mas não sem deixar um recado: "Confirmo tudo o que já disse antes".
O colunista trata de explicar a posição do deputado que, por várias vezes,
falara em favor das causas negras. O quarto político, Benjamin Farah, não sabe
o que responder e diz que falará com o repórter mais tarde. Baeta Neves, que
primeiramente havia escapado, oferece uma saída para o problema do negro, que
soa, no mínimo, cômica:
Reitero que já tive oportunidade de dizer à imprensa sobre o assunto,
isto é, que apresentarei à Câmara uma legislação especial em que
fique demonstrado que em nosso país não existe de fato o preconceito
de cor, raça ou religião. Com essas leis se coibirá o abuso dos mais
reacionários, que ainda hoje prejudicam essa grande parcela do povo
brasileiro (Diário Trabalhista,8/2/1946, p. 5).
Quando o repórter já se ia, um último político, o deputado Manoel Benício
Fontenelle, chama-o e diz que, quando não houvesse mais ninguém para defender o
negro na Câmara, ele o faria.
Essa cena ilustra a subalternidade do tema para os políticos. Talvez, por isso,
no TEN, houvesse atores, como Ruth de Souza, que defendiam uma postura autônoma
do movimento em relação aos partidos políticos. Depois de uma solenidade de
agradecimento ao senador Hamilton Nogueira, disse a jovem atriz:
Em parte não gostei da maneira como decorreu a homenagem mais do que
justa ao senador Hamilton Nogueira. Estávamos reunidos para prestar
uma homenagem ao defensor da raça e não a um partido. Alguns
trouxeram atitudes partidárias. Falo de irmãos negros, naturalmente.
Atitude realmente lamentável, pois foi quebrado o espírito de união
que deve presidir a nossa luta (Diário Trabalhista, 5/4/1946, p. 5).
A busca de Abdias do Nascimento por um partido político termina em novembro de
1946, com a criação de um Diretório Negro no PTB (ver Quadro_1). O PTB decide
também lançar um candidato a vereador que tenha vínculos estreitos e liderança
na comunidade negra do Rio de Janeiro.
OS INTELECTUAIS BRANCOS
O esforço de Abdias em aproximar-se da elite intelectual brasileira, seja para
legitimar seu movimento, seja para encontrar aliados no mundo intelectual,
evidencia-se na lista dos entrevistados pela coluna "Problemas e Aspirações do
Negro Brasileiro": Rossine Camargo Guarnieri, Joaquim Ribeiro, Arthur Ramos,
Rômulo de Almeida, Gentil Puget, Thales de Azevedo, Herman Munoz Garrido,
Ricardo Werneck de Aguiar. O que pensavam esses intelectuais sobre o problema
do negro? Vejamos alguns deles.
O primeiro a ser entrevistado, Arthur Ramos, era também o mais próximo,
apresentado nesses termos:
O Prof. Arthur Ramos, como autêntico homem de nosso século, que não
admite "torres de marfim" diferenciadas da vida cotidiana da
humanidade, tem participado dos movimentos pró-reivindicações
democráticas e a sua atuação social entre a gente de cor lhe conferiu
o título de "amigo número 1 do negro", expressão muito comum entre a
coletividade afro-brasileira (Diário Trabalhista, 9/2/1946, p. 4).
Questionado se existiria ou não um problema do negro no Brasil, termo oriundo
da tradição de estudos ao qual se filiava, é categórico: "Não existe só um
problema ' respondeu-nos S.S. ' mas vários problemas do negro no Brasil:
sociológico, antropológico, biológico etc." (ibidem).
Rossine Camargo Guarnieri compara a situação do negro em diferentes regiões do
país. São Paulo é retratada por ele como a cidade em que o preconceito contra
os negros era explícito, mas também onde o ativismo negro havia feito suas
maiores conquistas. O poeta vê a questão racial como subordinada à luta de
classes. Em sua opinião, o negro deveria juntar-se aos "irmãos proletários de
todas as raças", "ingressar nas organizações de massa", pois, só "marchando com
a classe operária", conseguiria libertar-se do preconceito que o afligia. No
final da entrevista, Guarnieri reverencia a Convenção Nacional do Negro como "o
melhor que se fez num sentindo orgânico" em relação aos negros nos quadros da
democracia. Os "partidos de massa" deveriam inserir como reivindicações na
Constituinte todos os pontos levantados pelo manifesto da convenção (Diário
Trabalhista, 25/1/1946, p. 7).
Dois dias depois dessa entrevista, o professor Joaquim Ribeiro reafirmava que
existia preconceito contra os negros. Sua origem, contudo, seria social e
econômica, e não racial. A Abolição teria sido incompleta. Segundo o professor,
a reabilitação dos negros deveria ser iniciativa do Estado, a partir de um
"serviço de assistência social a [sic] família negra" e de um programa que
visasse à "assistência cultural ao estudante negro" (bolsas de estudo). Tanto
negros quanto brancos são vistos por ele como sofrendo de certa patologia
racial. Enquanto nos últimos ela se manifestaria pelo "preconceito racial", nos
primeiros se configuraria em um "complexo de inferioridade":
Este é o mais delicado. Se o branco, desrazoadamente ainda guarda
vestígios do preconceito racial, o negro, por sua vez, também sofre
de "complexo de inferioridade" por se saber descendentes de escravos.
É necessário que se faça, entre eles, forte campanha de "higiene
mental" a fim de extinguir os resquícios dessa dolorosa "vivência"
que já pertence ao passado (Diário Trabalhista, 27/1/1946, p. 7).
Em 28 de fevereiro, o entrevistado foi Rômulo de Almeida, economista de
formação e amigo de Abdias desde as fileiras integralistas. Questionado se
existiria ou não um problema do negro no Brasil, responde:
Opino que sim, e acho contraproducente ocultá-la ou desconhecê-la,
embora esta atitude seja para muitos inspirada no desejo de que não
houvesse ou no intento de contribuir para que a sociedade a esqueça.
Em grande parte o problema do preto é o problema do povo, do povo
pobre. Mas está longe de ser apenas isto. Resiste também um
preconceito que tem sido quiçá reforçado por alguns fatores: as
correntes imigratórias provindas dos povos com sensível consciência
de superioridade racial, os reflexos dos pruridos racistas e a
coincidência de se sedimentarem os pretos na camada de inferior
condição educacional, técnica e econômica, fato em que muitos
encontram a "evidência", um "documento" de inferioridade da raça
(Diário Trabalhista, 28/2/1946, p. 7).
Para Rômulo, a questão racial confundir-se-ia, muitas vezes, com a questão
social. O preconceito, por sua vez, manifestar-se-ia de forma mais forte nas
relações afetivas, sendo o casamento inter-racial um tabu para pessoas das
classes mais abastadas. Entre a população mais pobre, predominantemente negra
ou mestiça, esses impedimentos seriam menores.
"A solução essencial já está encaminhada pela melhor tradição brasileira, que
nunca levou muito a sério o preconceito" (ibidem), conclui Rômulo, conclamando
os afro-brasileiros a agir de maneira mais enérgica quando forem vítimas de
preconceito.
A entrevista de Thales de Azevedo ganhou mais destaque: "A discriminação de cor
é fato infelizmente verdadeiro no Brasil". Depois de distinguir "discriminação
de cor" de "preconceito racial" como o fizera anteriormente Frazier (1942),
Thales afirma que há "discriminação de cor" nos mais diversos âmbitos da
sociedade baiana, como no trabalho, na educação e no lazer, ainda que, contra
os menos escuros, a discriminação seja mais branda12. Também nos
relacionamentos afetivos das classes altas haveria a tendência a não se
aceitarem casamentos ou uniões entre cônjuges de cores muito diferentes. Para
Thales,
Em resumo, a discriminação de cor é fato infelizmente verdadeiro no
Brasil, embora sem rancores nem radicalismos. Para superá-la, como é
necessário, devemos esforçar-nos por elevar os padrões econômicos,
educacionais e biológicos de todo o nosso povo não fazendo separações
em grupos de "Henriques" e de brancos de tão precária pobreza como
somos nós, com poucas exceções. Também é preciso resistir
dedicadamente às tentativas de incitamento à luta de classes que
agentes políticos e pesquisadores de temas afro-brasileiros andam a
provocar sob os mais variados disfarces. Isso é tanto para os
intelectuais sinceramente humanos, patriotas e democratas (Diário
Trabalhista, 10/4/1946, p. 4).
O redator, por sua vez, finaliza a matéria de maneira muito parecida,
ressaltando as palavras do "renomado acadêmico e cientista" sobre a existência
de "discriminação de cor" na Bahia. Em face do consenso científico e popular
sobre a inexistência desse tipo de problema "nas terras do Senhor do Bonfim",
arremata desafiadoramente: "Porém agora, o que dizer em face desta tremenda
denúncia do professor Thales de Azevedo? Que respondam os negros, brancos ou
brancos da Bahia' [...]" (ibidem).
O último intelectual branco entrevistado pela coluna, em 1946, foi Ricardo
Werneck de Aguiar, responsável pela tradução da peça de Eugene O'Neill, O
Imperador Jones(1920), encenada pelo TEN no ano anterior. Quando questionado
sobre a existência ou não de um problema do negro no Brasil, a resposta de
Aguiar foi que o problema do negro estava vinculado ao "grande problema humano
universal"; o negro era uma criatura humana, e não membro de uma raça. O
problema do negro seria, antes de tudo, um capítulo do grande problema social.
O tradutor acreditava na existência do preconceito de cor, resquício da
sociedade escravista, patriarcal e agrícola responsável pela "desvalorização do
trabalho", que atingia os indivíduos de todas as classes no Brasil.
Ainda de acordo com Aguiar, as soluções para esses problemas caberiam a
economistas, sociólogos e ao Estado. Aguiar concordava com a existência de
restrições deliberadas a negros em determinadas áreas, como a carreira militar
ou diplomática, mas discordava de que esse fato deveria se tornar motivo de
reivindicação dos afro-brasileiros. O tradutor acreditava, sim, "na valorização
do trabalho e do trabalhador [...] através da união, disciplina e luta das
classes operárias em prol da melhoria dos seus padrões de vida" (Diário
Trabalhista, 16/8/1946, p. 3). Questionado a respeito dos movimentos negros
brasileiros e a campanha pela segunda Abolição, o tradutor afirmava que o
movimento vinha sendo bem conduzido, pois se processava mais no terreno
cultural e artístico, não estabelecendo "confusões" nem criando questões
alheias ao quadro geral dos nossos problemas raciais.
A DEMOCRACIA RACIAL NEGRA
Como vimos, foram raros os momentos, em 1946, em que o protesto negro atingiu
graus de radicalidade que pusessem em risco idéias bem consolidadas sobre a
harmonia racial brasileira e o caráter mestiço e miscigenado do povo
brasileiro. Encontramos esses raros momentos em desabafos de homens como
Pompílio da Hora, que enfatizava a desigualdade sociopolítica entre negros e
brancos e punha em xeque o caráter subordinado da democracia brasileira para os
negros, ou em Abdias do Nascimento, quando duvidava de nossa "democracia de
cor", como na passagem a seguir:
A fictícia igualdade social de todos os brasileiros, a nossa
decantada democracia de cor, tão engalanada de lantejoulas e jóias de
ouropel, não resistiu à análise fria e imparcial da ciência. A
sociologia e a antropologia falaram através de autoridades como
Gilberto Freire e Artur Ramos, denunciando os atentados criminosos
sofridos pelos negros em seu patrimônio espiritual e cultural. Muitos
outros observadores e pesquisadores ergueram sua voz, entre os quais
se destaca o sincero e desassombrado jornalista R. Magalhães Jr.
condenando os processos ignóbeis forjados para ainda uma vez mais
escravizar os descendentes do povo africano (Diário Trabalhista, 9/3/
1946, p. 6, ênfases dos autores).
No entanto, mesmo nesses momentos, a autoridade intelectual de figuras como
Gilberto Freyre ou Arthur Ramos, que lutavam pela "democracia racial", era
utilizada para legitimar as posições radicais.
Muitas idéias-chaves para a formação da identidade afro-brasileira circularam
intensamente entre ativistas e intelectuais negros brasileiros no período pós-
Abolição. Algumas, insistentemente veiculadas nos anos 1930, retêm nossa
atenção porque permanecem importantes para a política étnica atual.
A primeira foi magistralmente exposta por Mário de Andrade (1938) em um pequeno
artigo intitulado "A Superstição da Cor", no qual argumenta que a cor da pele
seria uma característica irrelevante dos seres humanos, não fosse a cor preta
objeto de intensa superstição nas civilizações humanas, sempre associada à
escuridão e ao mal. Em conseqüência, os homens pretos sofrem pela ignorância e
superstição associada à sua cor. Somente a educação dos povos poderia pôr um
fim a tal superstição, já que a cor é um simples acidente na condição humana.
Essa idéia vocalizada por Mário é ainda influente no cotidiano e no senso comum
brasileiros, mas, nos anos 1940, tinha muito mais vigor e curso, como atesta o
ditado "a cor é apenas um acidente".
Outra idéia muito influente foi expressa por Donald Pierson (1942) em sua
versão liberal. A classe, e não a raça, é a categoria que explica o
"preconceito de cor" existente no Brasil. Isso significa, em última instância,
que o preconceito de que os negros se ressentem se deve a diferenças de
oportunidades econômicas e culturais entre brancos e negros. Em sua versão
marxista, expressa pela primeira vez por Luis Aguiar Pinto (1953), é a
exploração capitalista o principal problema que desafia os negros brasileiros,
o preconceito de cor sendo apenas sua face alienada. Para os marxistas, somente
uma frente comum dos explorados, brancos e negros, poderia fazer face à
situação a que os negros, ou seja, grande parcela do povo brasileiro, estavam
sujeitos. Praticamente todos os entrevistados por Abdias em 1946 repetiram ou
se referiram a esse argumento qualificando-o ou desqualificando-o.
A natureza mestiça do povo brasileiro é a terceira idéia-chave, quase perene,
nos debates e nos discursos de negritude dos anos 1940. Provavelmente vem das
lutas pela Independência, sendo difícil apontar um autor exemplar que a tenha
expressado. Poderíamos, entretanto, citar Von Martius (1845). No meio negro,
essa idéia adquiriu um novo contorno no começo do século XX, quando autores
mulatos, como Manuel Querino (1980), passaram a se referir ao mulato como o
tipo genuinamente brasileiro. Uma importante variante dessa idéia, encontrada
por nós nas entrevistas de 1946, foi enunciada por Luís Lobato, um professor
negro do Rio de Janeiro, que definiu o povo brasileiro como negro, algo que
seria retomado e plenamente desenvolvido politicamente por Guerreiro Ramos nos
anos 1950, em sua Introdução Crítica à Sociologia Brasileira.
As duas próximas idéias são contemporâneas do material que examinamos. A
segunda Abolição, que floresceu durante a FNB, e o elogio à cultura africana,
como tendo qualidades emocionais e artísticas distintas e superiores, que
devemos à influência da negritude francesa e dos antropólogos culturalistas.
A segunda Abolição é a um só tempo diagnóstico e programa de ação. A Abolição
de 1888 teria deixado os ex-escravos e o povo negro em geral sem nenhuma
proteção do Estado, ao mesmo tempo livres e despossuídos, escorraçados do
mercado de trabalho pelos imigrantes europeus, que os substituíram, caindo
facilmente na pobreza e na imoralidade. A segunda Abolição seria o momento de
redenção e de integração dos negros à nação brasileira, por meio da educação e
da restauração moral. Segundo Karin Kössling (2000), tal idéia foi elaborada
primeiramente pelos integralistas paulistas antes de ganhar a imaginação dos
ativistas negros dos anos 1930 e 1940.
O elogio à herança africana no Brasil tem como precursores Nina Rodrigues
(1862-1906) e Manuel Querino (1851-1923), mas encontrou nos estudiosos dos
costumes africanos, do candomblé e da aculturação negra no Brasil seus
principais porta-vozes. Paralelamente a esses, mais bem situados nos meios
acadêmicos, intelectuais negros como Ironides Rodrigues, um dos entrevistados
de 1946, difundiram as idéias dos modernistas europeus e dos militantes da
negritude sobre a emoção, a beleza e o refinamento estético da arte e das
civilizações africanas. No entanto, há de se precisar que a influência dos
modernistas europeus chegou aqui bem antes (em 1920) ' e foi decisiva para o
modernismo brasileiro ' do que a dos ativistas da negritude francesa, que só
depois da Segunda Guerra Mundial passou a ser relevante, e ainda assim limitou-
se ao meio negro.
Todas essas idéias brevemente mencionadas reverberaram de forma intensa nas
entrevistas que analisamos. Constituíram, na verdade, a matéria-prima para o
futuro discurso negro sobre a democracia racial.
Até os anos 1940, essas idéias estavam agrupadas em, pelo menos, duas
constelações discursivas. A primeira, muito influente na Bahia e no norte do
Brasil em geral, amalgamava a idéia do Brasil como nação mulata e a valorização
da herança africana como folclore afro-brasileiro, assim como a negação do
preconceito de raça no Brasil. A segunda, desenvolvida sobretudo pelo movimento
negro em São Paulo, enfatizava a segunda Abolição, a necessidade de os negros
se livrarem das superstições e dos costumes africanos, trabalhando unidos pela
redenção e pelo soerguimento moral do povo negro. O discurso sobre o
preconceito de cor era ambíguo. Muitas vezes era apenas a negação do racismo
dos brancos e a afirmação de que o preconceito era alimentado pelos mulatos e
mestiços claros. Ao mesmo tempo, foi em São Paulo que se desenvolveu, na
política, o sentimento de orgulho de se pertencer à raça negra.
Como essas constelações foram suplantadas em meados dos anos 1940? Muitos
intelectuais e ativistas estiveram na prisão durante o Estado Novo, sobretudo
integralistas e comunistas. Foi na prisão, por exemplo, que Abdias se
familiarizou com algumas idéias decisivas para a reconstrução democrática de
1945 e 1946, e foi na conjuntura de redemocratização que Abdias, Camargo,
Sebastião, Ironides e outros também ativos na FNB, como Francisco Lucrécio e
Correia Leite, se reorganizaram para influenciar a redação da nova Constituição
brasileira. O fato político novo era a presença ativa do movimento negro no Rio
de Janeiro, que antes se limitara quase exclusivamente a São Paulo. Qual o teor
do novo discurso negro?
Ainda que, em 1946, a segunda Abolição fosse central ao discurso de mobilização
dos negros, novas idéias relativas à democracia e à injustiça raciais foram
desenvolvidas. A democracia norte-americana, sempre vista como modelo, era
encarada como incompleta e insuficiente pela unanimidade desses ativistas e
intelectuais, pois não garantia plena igualdade de direitos aos negros. Para
alguns, como o advogado negro Pompílio da Hora, também a democracia no Brasil
estava truncada e limitada, uma vez que as leis não eram cumpridas.
No entanto, essa crítica radical às desigualdades raciais teve como
conseqüência apenas a proposição de maior universalidade das leis. A totalidade
dos intelectuais brancos e negros entrevistados por Abdias, mesmo reconhecendo
os direitos de os "homens de cor mais esclarecidos" se organizarem
politicamente, era contrária à criação de um partido negro. De modo geral,
todos advogavam que o Estado brasileiro deveria melhorar e universalizar a
educação e a saúde públicas, assim como apoiar fortemente a valorização da
cultura afro-brasileira.
Além da resistência à criação de um partido político ou mesmo de diretórios
partidários negros, também foi rechaçada a implementação de políticas públicas,
como bolsas de estudos, que privilegiassem negros em relação a brancos. Tal
resistência vinha tanto da esquerda, sobretudo de membros ou simpatizantes do
PCB, para quem a organização da classe operária e sua indivisibilidade eram
quase dogmas, quanto dos conservadores, para quem o negro sofria de
inferioridade se não biológica, ao menos cultural, sendo responsáveis por sua
própria sorte.
A resposta dos colunistas liderados por Abdias foi jogar luz sobre as relações
raciais em outras regiões do país, além de Rio de Janeiro e São Paulo. Em 12 de
outubro, a manchete da coluna "Problemas e Aspirações do Negro Brasileiro" fala
em "O Negro em Marcha" e "O Movimento Negro em Todo o Brasil", trazendo
notícias de Pernambuco, Rio Grande do Sul e Alagoas, além de São Paulo. Do
mesmo modo, idéias consensuais, legitimadas pelas ciências sociais, sobre a
inexistência do preconceito racial no Brasil eram sorrateiramente minadas por
declarações de pessoas do povo entrevistadas pela coluna.
Na maioria das vezes, porém, Abdias e seus companheiros estavam na defensiva,
tentando convencer a opinião pública de que havia realmente um "problema do
negro" no Brasil e de que eles não o estavam criando do nada. Três pontos eram
regularmente citados como compondo o "problema do negro": alienação econômica e
social dos negros na pós-Abolição; preconceito de cor e inaceitável
discriminação dos negros no comércio, nas Forças Armadas e no Itamaraty; o
sentimento de inferioridade dos próprios negros.
Os remédios para o "problema do negro" seriam, em primeiro lugar, a mobilização
dos próprios negros e sua representação política autônoma no sistema eleitoral,
como é expresso no Manifesto à Nação Brasileira; em segundo, a inovação
cultural ' o projeto de desenvolver uma moderna cultura negra tanto popular
quanto erudita, em vez de tratar a cultura negra como folclore ou objeto de
estudos antropológicos. O TEN, a Orquestra Afro-Brasileira, de Abigail Moura, e
o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, de Solano Trindade, eram as melhores
expressões dessa vontade, assim como o eram os jornais negros de São Paulo,
como A Alvorada e Senzala, e a coluna de Abdias no Diário Trabalhista, depois
transformada na revista mensal Quilombo.
Representar-se no sistema político, entretanto, era realmente difícil. O grande
desafio consistia justamente em construir alianças políticas no Brasil sem
aceitar a proteção paternalista dos brancos. Depois do rompimento com os
comunistas, que preferiam um Teatro Popular, voltado ao povo em geral, ao
teatro negro, a estratégia de Abdias foi aproximar-se do PTB. Primeiro, como
vimos, o grupo do TEN encontrou no senador branco Hamilton Nogueira um
protetor, mas, no final de 1946, Abdias já fora capaz de criar, na Assembléia
Municipal do Rio de Janeiro, um Diretório Negro do PTB.
Em termos ideológicos, todos os esforços do movimento concentraram-se em
diferenciar a situação dos negros brasileiros da dos norte-americanos, buscando
assim afirmar a especificidade do preconceito racial no Brasil, em vez de negá-
lo. Não era uma tarefa fácil, uma vez que caberia à ciência social ' e não à
política ' fazer o diagnóstico, e o movimento negro não contava com cientistas
sociais em seus quadros. Os líderes negros estavam longe não apenas das
posições universitárias, mas também das posições sociais de prestígio; como já
mencionado, eram contadores, delegados de polícia, pequenos servidores
públicos, estudantes e, quando muito, profissionais liberais.
Abdias, contudo, construiu uma importante rede de relações pessoais nos meios
artísticos, acadêmicos e intelectuais do Brasil. Alguns desses homens foram de
grande importância para o movimento, à medida que emprestavam seu prestígio
para legitimar os pleitos dos ativistas negros, a começar pela afirmação de um
"problema do negro", como fez Arthur Ramos, ou, como Thales de Azevedo, ao
afirmar a discriminação racial no comércio e nos clubes sociais da Bahia, vista
então como a cidade de maior integração racial do Brasil.
A necessidade de os líderes negros contestarem Pierson era tanta que não apenas
acadêmicos brancos, mas quase trinta personalidades negras, profissionais
liberais ou gente simples do povo foram mobilizados pela coluna de Abdias para
testemunhar sobre a atualidade da discriminação racial em várias regiões do
Brasil, e não apenas em São Paulo, como era voz corrente.
Seria ocioso lembrar a grande reação à mobilização política dos negros vinda do
establishmentconservador. O jornal O Globo, por exemplo, nunca aceitou nem
mesmo a existência do TEN, visto como racismo às avessas.
Os argumentos também variavam. Alguns argüiam que a situação dos negros em São
Paulo, estado de origem de grande parte dos líderes negros, não podia ser
generalizada para o resto do país; outros argumentavam que a discriminação se
limitava a algumas poucas instituições; havia também quem sugerisse que a
natureza mestiça do povo brasileiro não permitia mobilizações raciais, enquanto
outros advertiam que tal mobilização terminaria por criar quistos raciais no
Brasil. Havia aqueles para quem não existia, no Brasil, um "problema do negro",
mas um "problema do povo brasileiro".
Abdias do Nascimento e seus camaradas foram capazes, entretanto, de forjar no
Brasil dos anos 1940 um movimento negro em aliança com artistas e intelectuais
brancos, que lhes abriram as portas aos partidos políticos e à vida cultural
brasileira. Estes talvez tenham tido uma enorme influência no sentido de livrar
o movimento negro do pós-guerra do ranço puritano e pequeno-burguês que teve a
FNB. A luta contra o preconceito racial, contudo, continuou a ser a bandeira a
unir os negros brasileiros, e o termo "negro" foi mantido para nomear a
identidade grupal, ainda que a palavra "afro-brasileiro", designando tanto a
cultura quanto as pessoas, definitivamente fosse incorporada ao vocabulário da
mobilização negra no Brasil. A autodeterminação política, porém, limitou-se às
iniciativas culturais e educacionais e à formação do Diretório Negro do PTB.
"Democracia", significando igualdades de direitos e de oportunidades, foi, em
1946, um ideal que não se realizou. Para um país que saía de uma ditadura, em
um mundo em que o fascismo acabara de ser vencido, mas em que o racismo contra
os negros nos Estados Unidos tornara-se ainda mais visível, a palavra
"democracia" ganhava múltiplos significados que tanto liberais quanto
comunistas procuravam fixar. O argumento de que a democracia americana era
imperfeita por causa de seu viés racial, ao contrário da emergente democracia
brasileira, era uma idéia sedutora para todos, inclusive para os negros.
O protesto negro, em 1946, estava no lugar adequado e na hora certa, mas um
sólido consenso nacional sobre a harmonia racial como objetivo político fazia
com que a justiça racial fosse pensada como decorrente das regras democráticas.
Longe de ser uma variante da supremacia branca, a democracia racial era um
constructo utópico nascido da colaboração tensa entre radicais negros e
progressistas brancos. No final da década, já em 1951, com a promulgação da Lei
Afonso Arinos, quase todas as demandas do manifesto de 1946 tinham sido
atendidas. A autonomia política dos negros, assim como o entendimento da
democracia como respeito integral à cidadania e aos direitos individuais
teriam, entretanto, de esperar uma nova ruptura democrática e uma nova
redemocratização para se tornarem realidade. Ironicamente, para que a
democracia pudesse existir, seria preciso que, antes, a "democracia racial"
fosse denunciada como mito e ilusão.
NOTAS
1. Sobre a FNB, ver, entre outros: Fernandes (1965), Bastide (1983), Ferrara
(1986), Leite (1992), Mitchell (1977), Moura (1980), Pinto (1993), Andrews
(1998), Barbosa (1998), Butler (1998), Oliveira (2006).
2. Sobre o TEN, ver, entre outros, Motta-Maués (1988), Müller (1988) e Macedo
(2006); sobre Abdias do Nascimento, ver Police (2000), Nascimento (2003), Semog
(2006) e Macedo (2006).
3. Os ativistas eram: Francisco Lucrécio, tenente Francisco das Chagas Printes,
Geraldo Campos de Oliveira, Salatiel dos Santos, José Bento Ângelo Abatayguara,
Emílio Silva Araújo, Aguinaldo Oliveira Camargo, Sebastião Rodrigues Alves,
Ernani Martins da Silva, Benedito Juvenal de Souza, Ruth Pinto de Souza, Luís
Lobato, Nestor Borges, Manoel Vieira de Andrade, Sebastião Baptista Ramos,
Benedito Custódio de Almeida, Paulo Morais, José Pompílio da Hora, René Noni,
Sofia Campos Teixeira, Cilia Ambrósio, José Herbel e Walter José Cardoso
(Nascimento, 1982:60-61).
4. As reivindicações aprovadas no evento político eram seis, a saber: "1- Que
se torne explícita na Constituição de nosso país a referência à origem étnica
do povo brasileiro, constituído das três raças fundamentais: a indígena, a
negra e a branca; 2- Que se torne matéria de lei, na forma de crime de lesa-
pátria, o preconceito de cor e de raça; 3- Que se torne matéria de lei penal o
crime praticado nas bases do preceito acima, tanto nas empresas de caráter
particular como nas sociedades civis e nas instituições de ordem pública e
particular; 4- Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus,
sejam admitidos brasileiros negros com pensionistas do Estado, em todos os
estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do
país, inclusive nos estabelecimentos militares; 5- Isenção de impostos e taxas,
tanto federais como estaduais e municipais, a todos os brasileiros que
desejarem se estabelecer em qualquer ramo comercial, industrial e agrícola, com
capital superior a Cr$ 20.000.00; 6- Considerar como problema urgente a adoção
de medidas governamentais visando à elevação do nível econômico, cultural e
social dos brasileiros (Nascimento, 1982:59).
5. Eurico de Oliveira (1903-1998) era natural do Rio de Janeiro e filho do
jornalista Domingos Alves de Oliveira. Formado em direito pela Faculdade
Candido Mendes, trabalhou como jornalista em vários jornais do então Distrito
Federal, como Correio da Noite, A Pátria, Jornal do Brasil, O Imparcial e A
Noite, até fundar o Diário Trabalhista. Nas eleições de 1950, candidatou-se a
deputado pelo Partido Trabalhista Brasileiro ' PTB, conseguindo apenas a
suplência.
6. "Fomos encontrá-lo no quarto distrito policial, onde é comissário [...]"
7. A idéia de uma "segunda abolição", segundo Kössling, vem do integralismo e
tem ressonância na FNB devido aos pontos em comum entre as duas organizações.
Segundo ela: "A participação simultânea do afro-descendente na Ação
Integralista Brasileira e Frente Negra Brasileira não se deve ao acaso.
Partilhando de concepções sobre o Brasil e sobre a raça brasileira', ambas as
organizações obtiveram a atenção dos afro-descendentes em São Paulo, e a
comunidade entre estes parece ter sido intensa, como demonstram as notícias
veiculadas pelo jornal integralista A Acção, de maio de 1937, que divulgou os
eventos em comemoração à Abolição realizados pela FNB, que levou palestrantes
integralistas às festividades [...]". A grande preocupação apresentada pelos
editoriais da Acção era a crítica à situação política decorrente do
capitalismo. Nesse sentido, propunha uma Segunda Abolição, "elaborando uma
grande força de libertação nacional, de um novo e amplo 13 de maio para o povo
brasileiro [...]", pois não se observava, portanto, que o problema social
vivenciado pelo afro-descendente era algo específico, decorrente de um sistema
de exclusão racial que a Abolição não havia resolvido e que, muito ao
contrário, gerara novas complicações (Kössling, 2004:22).
8. José Pompílio da Hora foi a principal liderança da União dos Homens de Cor
no Rio de Janeiro nos anos 1950. Ver Silva (2003).
9. Está para ser estudada a influência que por acaso teve Roger Bastide, Arthur
Ramos e Gilberto Freyre, entre outros, na divulgação das idéias da négritude
entre os negros brasileiros. Ironides Rodrigues já manifestava alguma
familiaridade com essas idéias em 1946, como vimos.
10. A idéia de que o negro no Brasil é o povo será, como sabemos, muito melhor
articulada ao discurso do protesto negro por Guerreiro Ramos em sua Introdução
Crítica à Sociologia Brasileira. Sobre a evolução do pensamento de Guerreiro
Ramos, ver, entre outros, Oliveira (1995) e Barbosa (2004).
11. Sobre desdobramentos desse episódio, ver Andrews (1998:270-281), Bastos
(1991) e Duarte (1947).
12. Hamilton Nogueira (1897-1981), médico, natural de Campos (Rio de Janeiro),
fez a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, turma de 1918. Recém-formado,
foi trabalhar em Muzambinho (Minas Gerais), onde se tornou discípulo de Jackson
de Figueiredo (1819-1928), ingressando no movimento católico denominado
Apostolado. De volta ao Rio de Janeiro em 1921, ajudou a fundar o Centro Dom
Vital, principal núcleo católico do Distrito Federal até a fundação da
Pontifícia Universidade Católica ' PUC, em 1941. Entre 1921 e 1941, trabalhou
no Hospital Pedro II, chegando a diretor.
13. Tal interpretação representou um passo importante para contestar a
afirmação de Pierson de que o preconceito de cor era simplesmente de classe,
algo de que os liberais e os socialistas ainda hoje se servem fartamente.