Classe social e desigualdade de gênero no Brasil
O mundo social é constituído da interação estrutural entre as categorias que o
dividem. Investiga-se aqui a proposição de que a desigualdade de gênero de
renda no Brasil seria influenciada pelo contexto de classe social. Estima-se a
distância de gênero de rendimentos entre homens e mulheres no Brasil aplicando
novas soluções metodológicas, que revelam a existência de uma elevada
desigualdade de tratamento de gênero entre pessoas situadas nas mesmas
circunstâncias sociais. São investigados determinados componentes relevantes
dessa desigualdade econômica de gênero e, por fim, analisados os efeitos
condicionantes dos contextos de classe na redução ou exacerbação da diferença
de gênero de rendimentos.
Esta iniciativa se inscreve em um programa de investigação de maior amplitude a
respeito da estruturação da desigualdade social na sociedade brasileira1. O
estudo focaliza a discrepância de gênero de renda - considerando a
especificidade de seus mecanismos - à luz do contexto subjacente da estrutura
da desigualdade econômica de classe. A noção sociológica de classe social foi
mensurada por meio de uma classificação socioeconômica que aperfeiçoa e
atualiza a tipologia utilizada em Estrutura de Posições de Classe no Brasil
(Figueiredo Santos, 2002). Os fundamentos teóricos, analíticos e metodológicos
das categorias empíricas dessa nova classificação foram formulados por mim em
outro artigo (idem, 2005a; 2006b). Ao explorar as interações entre classe e
gênero, este estudo vai além da prática comum de estimar uma diferença média de
gênero de renda, o que permite refletir as dimensões diferenciadas da
desigualdade de gênero.
São apresentadas, de modo sumário, as noções sociológicas de classe e de gênero
que orientam este artigo - entendidas como divisões sociais geradoras de
desigualdades -, assim como uma perspectiva de análise de classe da
desigualdade de gênero. Situam-se determinadas abordagens econômicas e
sociológicas correntes da desigualdade de gênero em recompensas econômicas. A
investigação empírica é antecedida pela definição dos objetivos do estudo e
pelas estratégias metodológicas escolhidas. Por fim, apresentam-se os
resultados da análise dos fatores que conformam a desigualdade de gênero no
Brasil e das manifestações mais relevantes do papel moderador das categorias de
classe na alteração da força dos efeitos de gênero na renda pessoal.
CLASSE, GÊNERO E DESIGUALDADE
Noção de classe em vertente da tradição marxista. A noção de classe na teoria
social focaliza o problema do entendimento dos sistemas de desigualdade
econômica. As diferentes agendas teóricas da análise de classe organizam-se em
torno de diferentes questões-chaves. O marxismo não só valoriza a perspectiva
de explicação relacional das oportunidades econômicas mas também se interessa
pela questão da variação histórica dos sistemas de desigualdade. O elemento
distintivo da agenda marxista, no entanto, encontra-se na noção de classe
social como um fundamento da opressão econômica e da exploração (Wright, 2004).
Na abordagem de Wright, as relações de classe envolvem a distribuição desigual
de direitos e poderes sobre os recursos produtivos básicos da sociedade e os
resultados de seu uso. Em decorrência da natureza dos poderes e direitos
exercidos sobre os recursos produtivos, a pessoa enfrenta uma estrutura de
oportunidades, dilemas e opções nas esferas do trabalho e do consumo. Em um
sistema de produção pensado em termos sociais relacionais, o que a pessoa tem
condiciona o que ela deve fazer para conseguir o que obtém. As relações de
classe geram um conflito social baseado nas assimetrias entre o que as pessoas
têm e o que fazem com o que têm. A noção de exploração pretende oferecer um
diagnóstico do processo por meio do qual as desigualdades de recompensa são
geradas por desigualdades nos direitos e poderes sobre os recursos produtivos.
A exploração caracteriza-se pelo fato de um grupo se beneficiar economicamente
à custa de outro pela apropriação dos frutos do trabalho do grupo explorado. A
apropriação do esforço de trabalho, por sua vez, requer que a atividade de
trabalho seja dirigida e controlada dentro da organização social da produção.
As interações de poder entre os atores sociais e os custos de extração do
esforço de trabalho põem em cena a operação de mecanismos de coerção e de
consenso dentro da produção. Como o explorador depende da atividade de trabalho
do explorado, este retém um tipo de poder social, enraizado nas
interdependências da exploração, que pode ser usado na luta por seus
interesses. O conceito de classe centrado na noção de exploração insere-se em
uma agenda teórica que vincula questões acerca dos interesses materiais das
pessoas, das bases do conflito social e das possibilidades de mudança histórica
(idem, 1997; 2004; 2005).
Noção de gênero: unidade e diversidade. A instituição do parentesco desempenha
um papel crítico na origem da situação peculiar feminina ao representar o lugar
social sancionado de encontro entre os sexos, mas o gênero enquanto princípio
de classificação opera em outras instâncias do mundo social (Heilborn e Sorj,
1999). Gênero é um sistema de práticas sociais existentes dentro da sociedade,
que define e constitui as pessoas como diferentes, de modo socialmente
significativo, e organiza relações de desigualdade baseadas em tais diferenças
(Ridgeway e Smith-Lovin, 1999). Opera em pessoas, interações sociais e
instituições. Processos de institucionalização e legitimação reproduzem as
desigualdades de gênero (Wharton, 2004). A noção de gênero como uma divisão
social realça a idéia de que as diferenças de gênero são predominantemente de
origem social e estrutural, de modo que o homem, como uma categoria, possui
mais poder social do que a mulher, também como uma categoria. A identidade de
gênero estrutura a experiência, o sentido dado ao mundo e as expectativas dos
outros. As relações de gênero, no entanto, ao representarem desigualdades
inscritas nas estruturas da sociedade, existem igualmente fora dos modos pelos
quais as pessoas categorizam homem e mulher. Gênero é uma construção social
usada para definir, explicar e justificar desigualdades (Abbott, 2000).
Abordagem de gênero como uma instituição social ajuda a realçar o caráter
social, a dinâmica, as complexas interseções e as múltiplas facetas das
práticas de gênero (Martin, 2004).
Preocupações emergentes na literatura recente alertam para a importância de se
dar "maior atenção aos níveis crescentes e elevados de desigualdade entre as
mulheres, por classe e raça, ao lado da ênfase atual na desigualdade de gênero
pelas feministas" (McCall, 2001:58). Convém considerar os elementos de unidade
e diversidade subjacentes à noção de gênero como categoria sociológica. A
sociologia deve desenvolver um entendimento mais adequado de como as mulheres,
diferentes em termos de circunstâncias e experiências - por exemplo, de classe,
raça e idade -, estão situadas dentro das dinâmicas da desigualdade de gênero.
Essa exploração da diferença e da diversidade, contudo, não deve ser feita em
prejuízo da unidade (Bradley, 1996:101-102).
A desigualdade de gênero no trabalho e na renda manifesta-se em praticamente
todos os países do mundo. As disparidades de renda entre o homem e a mulher, ou
a distância (gap) de renda de gênero, têm despertado um grande esforço de
investigação e interpretação tanto na literatura econômica quanto na
sociológica.
A desigualdade de gênero de renda na literatura econômica. A teoria econômica
neoclássica considera que cada pessoa recebe como recompensa o valor da
contribuição marginal do insumo (trabalho, capital ou terra) que agrega à
função de produção. Baseada no modelo neoclássico, a teoria do capital humano
postula que o trabalho seria recompensado pelos investimentos que as pessoas
realizam em sua própria educação, treinamento e cuidados de saúde; ou seja, em
seu "capital humano", que incrementa sua produtividade ou capacidade de
contribuição para o produto. Essa abordagem econômica convencional privilegia
as explicações pelo lado da oferta. Homens e mulheres ingressariam no mercado
de trabalho com diferentes características produtivas e inclinações. Nessa
ótica, parte importante da diferença de gênero de renda existente no mercado de
trabalho decorreria de diferenças nas características produtivas e nas
estruturas de preferência de homens e mulheres em função de escolhas
voluntárias ou de condicionamentos anteriores ao ingresso no mercado, que
explicariam as diferenças no montante, no tipo e no grau de depreciação do
capital humano de ambos (Blau, Ferber e Winkler, 1998:141-184; Jacobsen, 1997:
258-276).
A ocorrência de discriminação no mercado de trabalho desafia a ortodoxia
neoclássica ao introduzir um componente "irracional" de tratamento desigual de
trabalhadores igualmente produtivos, que contrasta com o princípio de
maximização do lucro. Duas teorias merecem destaque especial pelo modo com que
"ajustam" o princípio da racionalidade econômica com o fenômeno empírico da
discriminação. Embora compatíveis com os pressupostos neoclássicos, ambas podem
ser pensadas também em uma lógica explicativa diferente. A teoria da
discriminação estatística considera que o empregador usaria os atributos de
sexo e raça, como uma espécie de informação substitutiva, na ausência de
informação adequada para avaliar o potencial de produtividade do trabalhador a
um custo razoavelmente baixo, gerando uma discriminação estatística contra os
indivíduos pertencentes a grupos que teriam, em média, características menos
desejáveis. Já o enfoque de amontoamento considera que a concentração de certos
grupos, como as mulheres, em determinados tipos de emprego, gera como
conseqüência uma oferta excedente em relação à demanda por esses serviços. Isso
deprime a taxa de salário dessas ocupações, quaisquer que sejam as razões que
tenham levado ao amontoamento (Rima, 1996:260-271; Blau, Ferber e Winkler,
1998:207-211).
A tradição crítica da economia política analisa o tratamento adverso dado à
mulher como uma conseqüência das regras explícitas e implícitas que regulam a
sociedade. A discriminação não é vista como um comportamento apenas
"irracional", estranho à lógica do mercado, pois cabe considerar a existência
de incentivos econômicos para discriminar. Ela pode servir como um mecanismo de
enfraquecimento da solidariedade e do poder de barganha dos trabalhadores,
podendo ter implicações para os salários e para a segurança de emprego da
parcela dos trabalhadores que indiretamente se beneficiam dela. Além disso,
pode refletir um processo de adaptação organizacional que se manifesta na
tendência das firmas em adotar as convenções sociais prevalecentes na
sociedade. A discriminação deve ser vista como um fenômeno dinâmico,
influenciado pelos ciclos da economia e pela competição entre as firmas,
estabelecendo para as empresas a questão dos custos e riscos econômicos
associados a mudanças para sua redução (Albelda, Drago e Shulman, 2001:178-
195).
A desigualdade de gênero de renda na literatura sociológica. A sociologia
desenvolve um modo próprio de entender o papel da discriminação na explicação
da distância de gênero na renda. Tem sido longamente observado, no estudo da
desigualdade social, que as ideologias de diferença, como a visão essencialista
de gênero, são freqüentemente convertidas em ideologias de hierarquia, como a
consagração do valor cultural da primazia do homem (Charles, 2003:271). Uma
noção sociológica ampla de discriminação abarca as desvantagens geradas tanto
pelo tratamento diferenciado, baseado em uma categorização social atribuída às
pessoas, quanto pelo impacto diferenciado do tratamento, baseado em outros
fatores - associados à categoria em questão - que são insuficientemente
justificados (Blank, Dabady e Citro, 2004:39-40). Existe o processo de
discriminação alocativa, que faz com que a mulher seja diferencialmente alocada
em posições que oferecem menores recompensas. Cabe falar também em uma
discriminação valorativa enfatizada pelos estudos de valor comparável, que
demonstram como as mulheres recebem menores recompensas apesar de estarem em
situações de emprego comparáveis e possuírem requisitos de qualificação e
outras características semelhantes aos dos homens. As formas de discriminação
alocativa e valorativa implicam a segregação de homens e mulheres em diferentes
ocupações. Por fim, pode-se falar em uma discriminação interna ao emprego, ou à
posição, em que as mulheres recebem recompensas desiguais apesar de ocuparem a
mesma posição (emprego), situada exatamente no mesmo contexto (empresa)
(Petersen e Morgan, 1995:329-330).
Uma parte importante da literatura sociológica situa a segregação posicional
como o fator específico mais importante na explicação da diferença de gênero de
renda. O tratamento desigual se processa de forma mais eficaz e "justificável"
quando os diferentes grupos são separados em diferentes lugares e em papéis
desigualmente recompensados (Reskin e Padavic, 1994:46 e 118). As divisões de
gênero geram conseqüências no emprego e na renda por meio de determinados tipos
de mecanismo social e cultural, tais como a aquisição de diferentes tipos de
qualificação e credencial, papel familiar, aspiração de trabalho e familiar,
discriminação e rede social (Marini e Fan, 2001:745-747). Diversos estudos usam
um índice de segregação como medida sumária do fenômeno da segregação
posicional. O índice de Duncan, por exemplo, mede a proporção do grupo
segregado que teria de mudar de uma ocupação segregada para ambos os grupos
serem distribuídos de modo mais integrado. Essa abordagem convencional
unidimensional, no entanto, tem sido solapada por evidências empíricas que
registram índices estáveis e/ou elevados de segregação em países que viveram
modificações relevantes no status da mulher, como os países escandinavos e os
Estados Unidos, e índices comparativamente baixos de segregação em países em
que os papéis de gênero tradicionais são ainda fortes, como Itália, Portugal e
Espanha.
Defende-se como abordagem alternativa a distinção analítica entre as formas
horizontais e verticais de desigualdade distributiva a fim de captar melhor os
vários componentes da segregação e suas respostas diferenciadas às tendências
econômicas e sociais (Charles, 2003:268). Uma abordagem exclusivamente focada
nas tendências de comportamento do nível de segregação não permite apreciar
devidamente as diferentes caracterizações da desigualdade de gênero e seu papel
na explicação das trajetórias da segregação. Novas contribuições apontam para a
importância de atentar para o padrão de distribuição de gênero em termos dos
contornos ocupacionais específicos da segregação de gênero a fim de examinar se
e como as trajetórias de segregação variam através das ocupações (Weeden,
2004).
Emergem, particularmente na literatura mais recente, questionamentos acerca da
representatividade das medidas sumárias da desigualdade de gênero, tais como o
índice de segregação ocupacional de gênero e a diferença média de gênero de
renda, por não refletirem as dimensões diferenciadas e mesmo conflitantes da
desigualdade na atualidade (Charles e Grusky, 2004; McCall, 2001:25-26). McCall
enfatiza que a abordagem tradicional se revela incapaz de tratar, por exemplo,
as formas de desigualdade crescentes no mercado de trabalho feminino nos
Estados Unidos. Como alternativa, elabora a noção de configurações de
desigualdade e defende uma mudança de atenção para "a relação mutável e
contingente entre estruturas de oportunidades múltiplas e concorrentes em
economias regionais" (2001:21). Essa linha de investigação valoriza a
articulação das perspectivas de classe, gênero e raça, de modo que "cada
simples dimensão da desigualdade seja informada pelo contexto maior da
desigualdade e as condições econômicas a ele subjacentes" (ibidem:192). A
análise da diferença de renda, por gênero ou raça, não deve perder de vista o
contexto geral da distribuição de renda, ou seja, os níveis de renda e o grau
de concentração da distribuição de renda, assim como as tendências gerais de
seu aumento, estabilidade ou declínio (Morris e Western, 1999). Estudos
recentes indicam a importância de considerar a estrutura geral da desigualdade
para entender a desigualdade de gênero. A amplitude das escalas de renda, ou
seja, da distância entre os graus (rungs) da distribuição de renda, assim como
a posição em que fica o trabalhador feminino mediano, afetaria fortemente o
padrão prevalecente da desigualdade de gênero na renda (Gornick, 1999:231).
A desigualdade de gênero em recompensas econômicas no Brasil. No Brasil, a
situação da mulher no mundo do trabalho revela-se marcada por elementos de
continuidade e mudanças. Os fatores de continuidade expressam-se na
concentração das mulheres em empregos de menor remuneração no setor de serviços
e particularmente no segmento informal e mais desprotegido do mercado de
trabalho. De outro lado, como expressão de mudanças, aumentou a participação de
mulheres em ocupações não-manuais de melhor remuneração, em cargos de comando,
profissões de prestígio e mesmo como proprietárias de negócios no comércio e em
serviços. As discrepâncias de gênero de rendimentos persistem, apesar do
progresso ocupacional, sendo que as diferenças de ganhos não podem ser
atribuídas a diferenças em termos de números de horas trabalhadas e
escolaridade, devendo ser creditadas aos processos de discriminação (Bruschini,
2000). Estudo dos efeitos da composição por gênero das ocupações sobre os
salários mostra que persiste no Brasil uma penalidade salarial para aqueles que
estão inseridos em ocupações tipicamente femininas, sendo que essa penalidade
se mostra mais forte para as mulheres do que para os homens. A análise temporal
do período que vai de 1981 a 1999 revelou uma tendência de aumento do hiato
salarial de gênero (Oliveira, 2003:135-136).
Análise de classe da opressão e da desigualdade de gênero. A opressão de gênero
define-se como uma situação em que homens e mulheres, enquanto categorias
distintas de atores, diferem sistematicamente em termos de poder social e bem-
estar material. As relações de gênero geram uma opressão da mulher na medida em
que ela, enquanto categoria, sofre diferentes tipos de prejuízo em virtude dos
padrões sociais prevalecentes nas relações entre homens e mulheres. Gênero não
representa um fenômeno apenas interpessoal, pois arranjos macrossociais, tais
como as leis do Estado, a estrutura do mercado de trabalho e a divisão do
trabalho, afetam as práticas de gênero e são moldados por essas mesmas relações
de gênero. Entretanto, não existem contradições distintivamente de gênero na
esfera macro, como ocorre no caso de classe social, de modo que as intervenções
emancipadoras de gênero não precisam enfrentar os complexos problemas de
coordenação no âmbito sistêmico para garantir a reprodução da sociedade como
uma totalidade articulada (Wright, 1994:211-233).
Estudos comparativos internacionais conduzidos por Wright exploraram a tese
geral do reforço mútuo entre as formas de desigualdade de classe e aquelas
baseadas em fatores atribuídos como raça e gênero. Na hipótese de que as demais
formas de desigualdade se traduzem em desigualdade de classe, a mulher e os
grupos racialmente oprimidos devem estar sobre-representados na classe
trabalhadora e sub-representados nas localizações de classe privilegiadas.
Obteve-se a confirmação empírica de que a mulher, na força de trabalho, é mais
proletarizada; há uma significativa desigualdade de gênero em autoridade no
local de trabalho; negros são significativamente mais proletarizados; a mulher
negra é o grupo mais proletarizado. Na hipótese de que a desigualdade de classe
se traduz em outras formas de desigualdade, ao serem comparados países situados
em determinado nível de desenvolvimento capitalista semelhante, quanto mais
desiguais as relações de classe dentro do capitalismo, mais desiguais as demais
formas de divisão social.
Entretanto, os estudos do autor revelaram certas surpresas empíricas sobre a
questão de gênero nos seguintes aspectos: a diferença de gênero em autoridade
no local de trabalho é menor nos Estados Unidos, onde existe maior desigualdade
de classe, em comparação com os países social-democratas Suécia e Noruega, onde
a desigualdade é menor; maridos fazem pouco trabalho doméstico
independentemente da composição de classe do domicílio. Esses resultados
levaram Wright (1997) a propor como reconstrução teórica a formulação de que as
opressões de classe e gênero podem variar bem independentemente uma da outra.
Isso significa que as lutas contra a desigualdade de gênero podem ter uma
amplitude dentro do capitalismo maior do que o marxismo usualmente admitia. Na
visão de Wright, os avanços na análise de classe de gênero e na análise de
gênero de classe dependem de pesquisas que contribuam para clarificar, em
relação a objetos de explicação (explananda) específicos, as formas de
interação entre classe e gênero como processos causais. A importância causal
relativa de classe e gênero depende do objeto de explicação específico em foco
(idem, 2001:29-30 e 38).
HIPÓTESES, MÉTODOS E BASE DE DADOS
Em um contexto de elevada desigualdade de renda, como o prevalecente no Brasil,
não seria adequado focalizar apenas as desvantagens de oportunidades associadas
aos atributos de gênero, sem considerar a estrutura da desigualdade econômica.
O estudo da desigualdade de gênero, à luz da desigualdade de classe, representa
uma forma, ainda que parcial, de introduzir a questão mais geral da estrutura
da desigualdade econômica na interpretação da desigualdade baseada nos
atributos de gênero das pessoas.
Hipótese 1. Tendo em vista a tese geral marxista do reforço mútuo das formas de
opressão de classe e aquelas não baseadas em classe, pretende-se investigar a
hipótese de que as mulheres, em comparação aos homens, estariam relativamente
mais representadas nas categorias de classe exploradas e economicamente
oprimidas, e relativamente menos representadas nas localizações de classe
privilegiadas. Para essa finalidade, será aferida a distribuição geral de
gênero dentro das categorias de classe desigualmente recompensadas e entre
elas. Serão estimados índices de representação de gênero para as diferentes
categorias de classe. Esse índice mostra o quanto um grupo está representado em
uma categoria em comparação à sua representação global na população ocupada. A
paridade perfeita de representação equivale a 1, e o índice varia para menos ou
mais conforme o sentido da desproporção (Sokoloff, 1992:30 e 69).
Hipótese 2. Classe social apresenta-se como uma variável moderadora ao
estabelecer as condições que qualificam a associação entre a variável
independente focal gênero e a variável dependente renda. Pretende-se investigar
a hipótese da relevância do papel moderador da esfera da desigualdade de
classe, em relação aos efeitos de gênero na renda, considerando o impacto das
posições de classe constituídas, com seus mecanismos geradores de renda
característicos, na acentuação ou atenuação da distância de renda associada aos
atributos de gênero.
A análise da intensidade e da composição da desigualdade de gênero de renda no
Brasil será realizada estimando-se a distância de gênero em sucessivos modelos
lineares generalizados, que incluem outros fatores com impacto importante na
renda e que podem estar associados às divisões de gênero. O uso desses
"experimentos estatísticos" permite conhecer os principais fatores mediadores
da desigualdade de gênero e estabelecer os efeitos diretos, e não mediados, das
divisões de gênero. Dessa maneira, é possível distinguir entre a desigualdade
de gênero que emerge devido ao acesso ou à alocação desigual de homens e
mulheres em posições, recursos ou contextos que afetam a renda e aquela que
resulta das recompensas desiguais atribuídas aos grupos de gênero inseridos nas
mesmas circunstâncias sociais. A medida apropriada da distância de gênero
depende do propósito da análise. Este estudo abarca o conjunto da estrutura
social, e não apenas o mercado de trabalho. A diferença de gênero de renda
estimada aqui, variável na dimensão e no significado conforme o modelo usado,
reflete diversas formas de desvantagem de gênero; não apenas aquelas que
ocorrem no âmbito da inserção no mundo do trabalho mas também as conseqüências
decorrentes de escolhas e trajetórias empreendidas sob a influência de
constrangimentos vividos ou antecipados (Gunderson, 1989:48-49). Os diversos
modelos não controlam estatisticamente os fatores que expressam, nas relações
de parentesco, as discrepâncias categóricas de gênero, como condição na família
e presença de filhos menores. Dado o objetivo deste estudo, não teria sentido
controlar o próprio efeito do condicionamento de gênero.
Estabelecidos a existência e o montante da distância de gênero, o foco da
análise dirige-se para o papel moderador dos contextos de classe na diferença
de gênero de renda, ou seja, a contribuição dessa fonte interativa ou
multiplicativa específica da desigualdade de gênero. Segundo Hoyle e Robinson,
moderadores são variáveis que representam constructos
propostos para aumentar, atenuar, cancelar ou reverter a
associação entre duas variáveis. Moderação estatística pode
tomar diferentes formas, mas a característica definidora de
um efeito moderador é que a associação entre a variável
independente e a variável dependente difere em força ou
forma a diferentes níveis [ou categorias] do moderador
(2004:213-214).
Visando remover uma fonte de heterogeneidade interna às categorias de classe,
no modelo interativo será controlada a segregação ocupacional de gênero por
meio de uma medida de composição de gênero das ocupações.
Escolha do modelo estatístico e da forma funcional do rendimento. Na análise de
regressão da desigualdade de rendimento - uma variável contínua e positiva -,
geralmente se realiza a escolha entre usar uma especificação linear ou uma
especificação semilogarítmica da equação de regressão. Na especificação linear,
a variável dependente representa o rendimento em valor monetário original; na
semilogarítmica, o logaritmo natural do rendimento. A presente investigação
beneficia-se da proposição metodológica formulada pelo professor Trond
Petersen, da Universidade da Califórnia-Berkeley, que retém a vantagem
interpretativa da especificação semilogarítmica, em termos de diferenças
relativas de rendimento médio, mas que evita o problema inerente à transposição
dos resultados para a forma original da variável dependente (Petersen, 2006;
Goodman, 2006).
Sabe-se que os resultados da regressão sumarizam um aspecto específico da
distribuição condicional da variável dependente dada a especificação do modelo.
A especificação linear compara a média aritmética da variável não transformada,
enquanto a semilogarítmica compara a média aritmética do logaritmo da variável.
Entretanto, na especificação semilogarítmica, após a aplicação do antilog ou
exponencial, visando converter de volta os valores para a métrica original, os
valores assim obtidos passam a corresponder às diferenças relativas em termos
de médias geométricas. As divergências entre as médias aritmética e geométrica
podem transformar uma relação 0 (ou positiva) em uma relação negativa e vice-
versa. Os coeficientes já convertidos da especificação semilogarítmica não
podem mais ser interpretados como diferenças relativas nos rendimentos médios
entre as categorias. Entretanto, uma breve amostragem de jornais de economia e
de sociologia, realizada por Petersen, mostra que isso não é incomum, antes,
parece representar a norma. Uma especificação loglinear de um Modelo Linear
Generalizado (Generalized Linear Model), defendida pelo professor, produz
interpretações de diferenças relativas em termos de médias aritméticas, que são
a medida de interesse comum nesse tipo de estudo (Petersen, 2006; Goodman,
2006).
O presente estudo utilizará uma especificação exponencial ou multiplicativa do
Modelo Linear Generalizado, com uma distribuição Gamma e uma função de ligação
logarítmica (Petersen, 2006). A distribuição Gamma é apropriada quando a
distribuição do erro é positivamente assimétrica em vários graus. Todos os
modelos lineares generalizados foram estimados usando o programa estatístico
Stata, versão 9.2 (Stata, 2005). Os coeficientes da especificação loglinear
fornecem diferenças relativas entre as categorias e, por isso, ajustam-se bem à
lógica teórica do estudo da desigualdade. Essa especificação, além disso, ajuda
a corrigir a forte assimetria positiva da distribuição e contribui para reduzir
a influência na estimativa dos valores extremos dissonantes do conjunto.
Características do Modelo Linear Generalizado. O Modelo Linear Generalizado
permite trabalhar com dados em que a média da variável dependente é uma função
não-linear dos parâmetros de regressão e a variável dependente não é
normalmente distribuída. Ele separa a distribuição do erro da função de ligação
e permite estender o modelo de regressão padrão de dois modos diferentes:
escolhendo uma distribuição do erro não-normal e usando uma função de ligação
não-linear. Isso representa uma inegável vantagem em relação à simples
transformação da variável dependente em um modelo linear padrão, pois esta
assume que a distribuição do erro é normal na escala transformada. O modelo
lida sem problemas com distribuições de probabilidade do erro que não seguem
uma forma normal e podem ser expressas na forma exponencial. Ele assume que uma
função da média, em vez da própria média, é a função linear das variáveis
independentes. A função de ligação é a transformação da média da variável
dependente de modo que essa variável transformada seja uma função linear dos
parâmetros da regressão (Dunteman e Ho, 2006). No modelo de regressão padrão,
usado nos estudos de determinação de renda, a simples transformação logarítmica
da variável dependente cria um inconveniente problema de interpretação. Os
valores ajustados, assim como os parâmetros estimados, estão todos, em termos
de resposta, em logaritmo. Uma abordagem melhor é internalizar dentro do
próprio modelo a transformação logarítmica da variável dependente. No Modelo
Linear Generalizado, a função de ligação logarítmica exponencializa o preditor
linear em vez de fazer a transformação logarítmica da variável dependente. Tal
procedimento, implícito no algoritmo do modelo, permite fácil interpretação dos
parâmetros estimados, assim como dos valores ajustados (Hardin e Hilbe, 2007:
74).
A questão das horas trabalhadas. Na especificação da equação de rendimentos
para estimar a distância de gênero, o tratamento das horas trabalhadas exerce
um papel bastante importante. Os rendimentos derivados da atividade de trabalho
são considerados, na ótica mais influente da investigação econômica e
sociológica, o produto de todas as horas trabalhadas e da taxa de rendimento
média. Conforme tal enfoque, a equação rendimento = horas trabalhadas * taxa de
rendimento hora especifica a relação estrutural entre horas trabalhadas,
rendimento hora e desigualdade de rendimento da atividade de trabalho (Wu,
2002:8-10). Uma especificação usual na literatura de estudos de recompensa
computa a taxa de rendimento implícita dos dados de rendimento e tempo de
trabalho. A variável dependente fica expressa como taxa de rendimento horário =
rendimento / horas trabalhadas, que representa uma equação equivalente à
anterior. Entretanto, essa equação de rendimento padrão implicitamente assume
uma taxa de rendimento constante independentemente do número de horas
trabalhadas. O coeficiente das horas trabalhadas não é estimado; ele é
constrangido a ser igual a 1. A suposição, ao usar o rendimento hora, é que a
recompensa em determinado período é uma função linear das horas trabalhadas
(Morgan e Arthur, 2005:383-385). Essa questão possui uma importância especial
para a estimativa da diferença de gênero, já que a distribuição das horas
trabalhadas varia significativamente entre homens e mulheres.
Supondo-se que o retorno relativo para as horas trabalhadas adicionais diminua
com o incremento das horas, a penalidade de recompensas das mulheres será
subestimada, uma vez que elas trabalham menos horas do que os homens. Uma
especificação mais apropriada é usar o log dos rendimentos como variável
dependente e o log do tempo trabalhado como variável independente de controle.
Além disso, de modo complementar, cabe permitir que o retorno para o
equivalente em log das horas trabalhadas varie de modo seccional (piecewise),
em uma função spline, através do espectro de horas trabalhadas (ibidem:398-
401). Uma spline linear possui valores especificados para um número finito de
partes em que seu domínio é dividido e consiste de segmentos ligados suavemente
nos pontos de junção (knot)2. As variáveis correspondentes aos segmentos da
spline linear foram criadas por meio do comando mkspline do programa
estatístico Stata, versão 9.2. Uma spline linear estima a relação entre y e x
como uma função composta de segmentos lineares (Stata, 2005).
Tratamento dos efeitos interativos. Cada variável envolvida em termos
interativos possui diferentes efeitos que dependem do nível das outras
variáveis com as quais ela interage. Diferentemente do coeficiente de x em um
modelo linear aditivo, os efeitos de x em y não são constantes em um modelo
interativo; variam dependendo dos coeficientes de x e xz, assim como do valor
de z. Isso significa que o peso e o sinal do efeito de x podem depender
criticamente do valor fixado da outra variável, z, e vice-versa. No modelo
interativo, o efeito de x fornece o efeito estimado da mudança em uma unidade
de x, mantendo a variável z fixa em 0. O efeito de x em y, dado z = 0, é muito
diferente do efeito de x em y, controlando a variabilidade associada ao
terceiro fator, z, que existe no modelo linear aditivo de regressão. Em se
tratando de variáveis contínuas, esse tipo de especificação pode não fazer
muito sentido, particularmente se não existem situações no mundo real em que a
variável condicionante seja realmente 0. Esse problema cria a necessidade de
calcular efeitos marginais e erros padrões que tenham um significado
substantivo. O pesquisador pode calcular os valores preditos de y usando
valores variáveis de x, mantendo constante z em determinado valor
significativo, como o valor médio ou outro valor interessante (Kam e Franzese,
2007:18-27; Brambor, Clark e Golder, 2006:73-74).
Quando são construídos termos interativos entre variáveis binárias, como classe
social e gênero, a interpretação dos coeficientes estimados exige menos
trabalho, pois o efeito condicional ao valor 0 refere-se naturalmente à
categoria de referência (omitida) da outra variável que compõe o termo
interativo. Na perspectiva da presente investigação, gênero representa a
variável independente focal qualitativa; classe, a variável moderadora
qualitativa. A análise das variações da distância de gênero, conforme as
categorias de classe, utilizará a estratégia de "recodificação das variáveis
binárias", em que são realizados sucessivos recálculos da equação de regressão
e produzidas estatísticas relevantes, após a especificação de cada categoria de
referência de interesse (o efeito condicional ao valor 0) (Jaccard e Turrisi,
2003:55-60).
Base de dados. A pesquisa quantitativa utiliza a base de microdados da PNAD/
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE de 2005. A PNAD é
realizada por meio de uma amostra probabilística de domicílios obtida em três
estágios de seleção: municípios, setores censitários e unidades domiciliares. O
levantamento abarca o conjunto do território brasileiro (IBGE, 2006). A amostra
utilizada neste estudo é composta de 165.147 casos, que possuem informações
válidas para todas as variáveis. Em virtude da escolha da especificação
loglinear de um Modelo Linear Generalizado, a análise foi restrita aos casos
com renda positiva. Utiliza-se apenas a renda do trabalho principal, por motivo
de ajuste, já que a classificação socioeconômica usada para mensurar o conceito
de classe social foi construída com base no trabalho principal da pessoa.
CLASSE SOCIAL E DISTÂNCIA DE GÊNERO DE RENDA
O confronto das diferenças de renda média entre homens e mulheres - conforme as
categorias de classe -, oferecido pela Tabela_1, serve para introduzir uma
abordagem de classe da diferença de gênero de renda. Essa incursão inicial visa
basicamente detectar padrões relevantes, ainda que provisórios, pois a produção
de evidências empíricas mais sólidas envolve a introdução da análise de
regressão. Vejamos primeiramente os contextos que mais exacerbam a distância de
gênero de renda. Essa distância se revela extremamente pronunciada entre os
conta-próprias precários (75,64%), em que a presença feminina ocorre em elevada
proporção (44%). A inserção das mulheres nessa categoria destituída, que
representa 10,8% do conjunto da estrutura social, intensifica fortemente sua
penalidade de gênero. Uma distância ainda maior ocorre entre os conta-próprias
agrícolas (107,03%); porém, há aí uma incidência muito reduzida de mulheres
como titulares desse tipo de empreendimento (11,9%) (ver, na Tabela_2, a
distribuição de gênero das categorias de classe).
Entre os empregadores, a diferença de gênero aparece alta para os capitalistas,
mas bem menor para os pequenos empregadores, categoria em que há menos
capitalização e mais personalização do empreendimento, o que sinaliza um padrão
oposto ao manifestado no efeito de classe na distância de raça (Figueiredo
Santos, 2005b; 2006a). Já a categoria de conta-própria não-agrícola apresenta
um patamar de distância similar ao dos capitalistas, apesar das marcantes
diferenças no montante e na natureza do controle de ativos de capital.
Entre os empregados, a diferença mostra-se particularmente elevada entre os
assalariados de classe média, ou seja, empregados especialistas e gerentes. Já
nas situações ambíguas de classe de empregados qualificados e supervisores,
existe um contraste entre a numericamente importante categoria de empregados
qualificados, com elevada distância de gênero (43,75%), e a situação da pequena
categoria de supervisores (9,62%).
No universo dos trabalhadores sem exercício de autoridade e sem qualificação
diferenciada, cabe contrastar a distância significativa registrada entre os
trabalhadores típicos (27,75%) - abaixo da diferença média (40,55%) - e a
diferença ínfima entre os trabalhadores elementares (3,40%), que formam um pólo
fortemente destituído no interior do trabalho assalariado. A distância aparece
com força entre os empregados domésticos (34,27%), categoria em que existem
pouquíssimos homens (6,7%), mostrando uma elevada diferença de gênero nesse
terreno francamente feminino. Cabe considerar, no entanto, o que vai ocorrer
com esses padrões com a introdução dos controles estatísticos realizados pela
análise de regressão.
Interseções entre classe e gênero. A Tabela_2 retrata a distribuição
diferenciada de homens e mulheres nas categorias de classe e introduz a questão
da desigualdade de alocação no mundo das classes sociais ou de acesso de gênero
a esse mundo. As mulheres estão em clara minoria entre os controladores de
ativos de capital, em seus vários graus e tipos, do capitalista à categoria de
conta-própria não-agrícola, mas já representam uma minoria relevante.
Entretanto, ao contrário do que ocorre com as divisões de raça, retratadas em
Figueiredo Santos (2005b; 2006a), não existe um bloqueio muito forte no acesso
a ativos maiores de capital, tipificados na categoria de capitalistas.
As mulheres inserem-se fortemente em posições privilegiadas ou mais vantajosas
na ordem de classe através do controle de ativos de qualificação e perícia,
como pode ser constatado por meio de sua representação entre as categorias de
empregados especialistas, especialistas autônomos e empregados qualificados. Na
dimensão de exercício de autoridade, as mulheres atingem uma presença
expressiva (38,2%) - praticamente casada com sua inserção geral na estrutura
social - na importante categoria de gerentes, o que mostra sua ascensão aos
escalões de poder do mundo das organizações empregadoras e do Estado. Já sua
participação na categoria de supervisores se mostra bem débil (19,8%), o que
pode estar associado ao papel da indústria de transformação na reprodução dessa
categoria de classe3.
A classe trabalhadora típica mostra uma composição feminina mais destacada
(37,4%), perto do índice de equilíbrio, quando comparada à sua participação
global na população com posição de classe assinalada (39,9%). Os trabalhadores
elementares, categoria em que predominam as atividades manuais agrícolas e não-
agrícolas, revelam uma presença feminina bem minoritária (20,1%). Na verdade,
entre os segmentos economicamente oprimidos, as mulheres concentram-se mais nas
categorias de conta-próprias precários e empregados domésticos, que totalizam
32,1% das posições de classe do gênero feminino (distribuição entre as
categorias de classe na Tabela_2).
A distribuição de gênero entre as categorias agregadas de classe, feita na
Tabela_3, mostra que as mulheres possuem um acesso mais difícil, mas ainda
assim ponderável (25,7%), ao controle de ativos de capital. Em decorrência
particularmente da pequena representação das mulheres entre os conta-próprias
agrícolas, a pequena burguesia não-agrícola e agrícola possui uma feição menos
feminina (20,7%). Já no grande agregado formado pelos trabalhadores, empregados
qualificados e supervisores, as mulheres estão em situação de equilíbrio,
considerando seu peso global entre as posições constituídas, conforme captado
pelo índice de representação. Fica patente a polarização de classe existente no
universo feminino quando são confrontadas as distribuições das mulheres nos
agregados de classe média e de trabalhadores fortemente destituídos. As
mulheres sobrepujam os homens no relativamente reduzido (7,6%), mas fortemente
privilegiado agregado de classe média, considerando a distribuição de gênero
entre as categorias de classe (8,7% contra 6,8%). Além disso, a representação
feminina dentro do agregado de classe média (45,8%) ultrapassa seu peso global
(39,9%), o que não ocorre com os homens. Por outro lado, a distribuição de
gênero entre as categorias de classe demonstra que 38% das mulheres, contra
apenas 26,6% dos homens, se inserem na ordem de classe como trabalhadoras
elementares, empregadas domésticas e conta-próprias precárias, que possuem uma
densidade social bem maior em comparação aos estratos de classe média.
A Tabela_4 permite comparar as manifestações da distância de classe de renda
nos universos masculino e feminino. Constata-se, em primeiro lugar, a forte
dominância da desigualdade de classe em relação à desigualdade de gênero, pois
o padrão constituído pelo ordenamento de classe revela-se marcante e análogo em
ambos os universos de gênero. Entretanto, os dados mostram igualmente uma
incidência um tanto menos acentuada das assimetrias de classe entre as
mulheres, ao serem consideradas as vantagens de renda das categorias designadas
de classe em relação à categoria de referência (omitida) de trabalhador
elementar, com o controle estatístico de um leque amplo de fatores, quais
sejam: alocação de gênero na ordem de classe, raça, educação, anos de trabalho,
anos no trabalho principal, região geográfica, status de migração, residência
urbana/rural, setor privado/público e seis grandes setores econômicos.
Dimensão e composição da distância de gênero de renda. Na análise de regressão
aplicada a dados observacionais, o êxito do empreendimento depende, na maioria
das vezes, justamente da definição das variáveis a serem incluídas no modelo
estatístico. A diferença de gênero de renda será investigada através de uma
abordagem seqüencial ou hierárquica, em que as variáveis independentes
relevantes são acrescentadas cumulativamente em uma ordem predeterminada pela
estratégia analítica (Cohen et alii, 2003:158-162). O método hierárquico
permite que o pesquisador tenha maior controle sobre o modelo de regressão e
explore relações causais entre as variáveis conduzindo o que seriam
"experimentos estatísticos" (De Vaus, 2002:362-365). Os vários modelos de
regressão são sucessivamente abrangentes, ou seja, as novas variáveis são
acrescentadas mantendo-se as anteriores. Parte-se da distância bruta de gênero,
não controlada, e procura-se perscrutar a relação original entre gênero e renda
considerando os diversos fatores relevantes que intersectam, afetam ou compõem
a relação original. Utiliza-se o conceito de coeficiente parcial de regressão
com o objetivo de medir o impacto da variável independente gênero na variável
dependente renda, após a remoção da influência de outras variáveis relevantes.
A utilização dessa noção permite olhar a estrutura subjacente aos dados a fim
de trazer à superfície determinados padrões não imediatamente óbvios, que
indicam as relações mais profundas entre as variáveis (Mukherjee, White e
Wuyts, 1998:170-173). Os ensinamentos oferecidos pela "matemática dos
controles" podem ser estendidos para a análise da regressão e para o
entendimento do controle estatístico que ela opera. As diferentes formas de
controle, como a realizada pela "classificação de subgrupos" em tabelas de
contingência ou o coeficiente parcial de regressão, são similares em sua
função: "Elas são diferentes expressões de um único princípio: controle
significa controle da variância" (Pedhazur, 1982:98). A relação original entre
as variáveis gênero e renda envolve o complexo conjunto de associações parciais
que a constituem, em que entram correntes e contracorrentes. Essas associações
parciais ou contingentes, formadas pelas associações de gênero e renda com
outras variáveis, combinam-se de várias maneiras para gerar a relação observada
e podem operar em diferentes direções no interior do nexo estabelecido entre as
duas variáveis (Rosenberg, 1976:281- 282). A Tabela_5 apresenta as estimativas
da distância de gênero de renda entre homens e mulheres, conforme os diversos
modelos estimados, sendo que os coeficientes de regressão aparecem já
convertidos em diferenças percentuais a favor dos homens4.
O modelo 1, sem nenhuma variável independente de controle, constata uma
diferença bruta de renda de 39,01% a favor dos homens. Esse modelo, no entanto,
não distingue a desigualdade de renda formada propriamente pelas diferenças nas
"taxas" de recompensa econômicas obtidas daquela derivada das diferenças de
horas trabalhadas entre os grupos. Em se tratando das divisões de gênero, cabe
considerar de modo especial esses dois mecanismos distintos de geração de
desigualdade de renda (Birkelund, 1992:55).
O modelo 2 introduz o controle das diferenças de horas trabalhadas (spline
linear), o que reduz a distância de gênero bruto para 31,85%, ou seja,
desaparece quase um quinto da diferença original. Isso significa que uma parte
da desigualdade de gênero, ao ser considerado o trabalho principal dos
indivíduos, ocorre sob a forma de diferenças no montante de engajamento nas
atividades de trabalho devido aos condicionamentos de gênero, como revelado
pelas diferenças de horas trabalhadas. A introdução da spline linear comprova a
proposição de que a taxa de rendimento hora não pode ser tratada como uma
constante. Em todos os modelos, a taxa de recompensa por hora varia claramente
conforme o espectro de horas trabalhadas. O modelo 8, reproduzido na Tabela_1-
A do Anexo Estatístico, que possui todos os controles, exceto a composição
ocupacional de gênero, mostra um coeficiente de regressão (em log) de 0,2785
para a faixa de 1 a 29 horas por semana; de 0,8932 para a faixa de 30 a 39
horas; de apenas 0,2003 para a faixa de 40 a 49 horas; e de 0,3083 para a faixa
de 50 ou mais horas5. Os coeficientes spline representam a inclinação da
relação entre o rendimento e a hora trabalhada para cada faixa de horas
trabalhadas. A título de comparação, na especificação de rendimento hora, que
não foi usada aqui, é como se todos os coeficientes spline implícitos tivessem
um multiplicador do termo de horas constrangido a 1. Na especificação spline da
equação, ao contrário, o rendimento do indivíduo é uma função das diversas
variáveis de controle, das horas trabalhadas e do termo de erro. Se os
coeficientes spline fossem constrangidos a 1, como ocorre na especificação de
rendimento hora, o multiplicador do termo de horas seria igual às horas
trabalhadas, fazendo do rendimento o produto simples da taxa de rendimento e
das horas trabalhadas (Morgan e Arthur, 2005:396-398). Note-se que apenas na
faixa de 30 a 39 horas o rendimento aumenta a uma taxa próxima de 1, ou seja, o
rendimento está mais diretamente vinculado às horas de trabalho. Nas demais
faixas, embora o rendimento aumente com as horas de trabalho, isso ocorre a uma
taxa mais reduzida. Considerando que as mulheres estão mais presentes nas
faixas de horas trabalhadas com taxa de rendimento hora maior, conforme
descrito na nota 5, esse resultado demonstra que a introdução do rendimento
mensal como variável dependente e do log das horas trabalhadas como variável
independente de controle evita a subestimação da distância de gênero de renda.
A utilização do rendimento hora como variável dependente em um Modelo Linear
Generalizado, não mostrado aqui, similar ao modelo 8, reduz a estimativa da
vantagem masculina para apenas 21,29%. Note-se que esse grau tão grande de
discrepância entre as especificações foi apontado no inovador trabalho
metodológico de Morgan e Arthur (2005), no qual se respalda o tratamento
adotado aqui6.
O controle dos efeitos das divisões de raça, acrescentado no modelo 3, faz com
que a diferença de gênero aumente. Cabe preliminarmente definir que efeitos
estão sendo controlados. O modelo "remove" da distância de gênero os efeitos da
distribuição diferenciada dos gêneros entre os grupos raciais e das diferenças
de recompensa entre os grupos raciais. Na especificação do modelo de regressão
3, em que são considerados apenas os efeitos aditivos entre as variáveis, os
diferenciais de renda a favor dos brancos seriam equivalentes para homens e
mulheres (Hardy, 1993:25-26). Cabe considerar, no entanto, os "efeitos de
composição" entre as variáveis. As mulheres possuem uma representação
privilegiada no grupo racial branco (49,87%), superior à representação dos
homens (46,36%). Visto que os brancos possuem enorme vantagem de renda sobre os
não-brancos (ver modelo 3 na Tabela_1-A do Anexo Estatístico), com exceção da
ínfima categoria de amarelos, na qual existem também mais mulheres, ao ser
controlado o efeito da maior inserção direta das mulheres brancas na ordem de
classe, ocorre, como seria de se esperar, uma ampliação da diferença de gênero
de renda a favor dos homens7.
O controle estatístico realizado no modelo 4, das diferenças de educação, faz
com que a distância de gênero salte para 52,54%. Cabe precisar em que consiste
o controle estatístico da variável educação, que foi mensurada em quatro
categorias, representando as transições mais importantes na aquisição de
credenciais educacionais no Brasil: menos de 8 anos de educação (categoria de
referência na regressão), 8 a 10 anos, 11 a 14 anos e 15 anos ou mais8.
Controla-se o efeito na diferença de gênero de renda da desigualdade de
educação entre os grupos de gênero e dos diferenciais de renda por nível
educacional. Na especificação do modelo de regressão sem termos interativos
entre gênero e educação, os diferenciais de renda por nível educacional seriam
equivalentes para homens e mulheres9. Isso significa que o efeito produzido na
distância de gênero de renda decorre, dados os diferenciais existentes de renda
por nível educacional, da desigualdade de educação entre homens e mulheres.
Sabe-se que no Brasil existe uma associação muito forte entre educação e renda
em virtude, particularmente, da grande desigualdade de educação, ao lado dos
diferenciais de renda por nível educacional (Figueiredo Santos, 2002:253-262).
Supõe-se que a distância de renda entre homens e mulheres não se alteraria se a
distribuição da educação e sua potência causal sobre a renda fossem neutras em
relação ao gênero. Na medida em que parte da diferença de renda fosse mediada
pela educação, deveria ocorrer uma redução dessa discrepância de gênero quando
fosse introduzido o controle das credenciais educacionais. Esse não é o caso
aqui, pois as mulheres possuem atualmente uma escolaridade maior do que a dos
homens no Brasil10. Ocorre então que a distância de gênero aumenta
pronunciadamente à medida que o controle estatístico "remove" o efeito dessa
vantagem de escolaridade das mulheres inseridas na ordem de classe. O controle
da vantagem de escolaridade das mulheres, que representa um componente de
acesso a um recurso valioso, serve para demonstrar ou realçar o peso da
discriminação de valor de gênero, ou seja, do tratamento desigual que decorre
do status da mulher como uma categoria socialmente construída, que não se
exerce por meio de mecanismos mediadores.
As mulheres contam com uma educação maior, mas têm uma desvantagem de "anos de
trabalho" e "anos no atual emprego". O controle desses fatores introduzidos no
modelo 5, ou seja, de sua desvantagem, faz com que a distância de gênero desça
para 43,43%11. Fazem-se sentir aqui os condicionamentos de gênero associados à
maternidade, ao cuidado dos filhos pequenos, às definições de prioridades no
âmbito de família e às exigências dos postos de trabalho, que comprometem a
trajetória de engajamento no trabalho da mulher. A diferença de renda real
seria de fato um tanto menor, pois o indicador usado em anos de trabalho não
considera as interrupções de trabalho a que as mulheres estão mais sujeitas em
virtude das responsabilidades familiares, o que possivelmente superestima a
exposição da mulher à atividade de trabalho (Duncan, 1996:460).
O modelo 6 controla o efeito de obter renda em determinadas regiões, morar na
área urbana ou rural e ser ou não um migrante (nascer ou não no município de
residência). A distância de gênero de renda se eleva 3% devido ao controle
estatístico de um "efeito de composição" favorável para a mulher, que expressa
sua inserção na ordem de classe em regiões com renda média maior. Observe-se
que esse modelo, ao considerar apenas a existência de "efeitos equivalentes",
assume o pressuposto simplificador de que a distância de gênero seria idêntica
em todas as regiões e que as diferenças regionais de renda seriam iguais para
homens e mulheres. Entretanto, a investigação de "efeitos interativos ou não
equivalentes" entre gênero e região vai além do escopo da presente
investigação.
O modelo 7 controla os efeitos na renda associados com a inserção das pessoas
nos seis grandes setores de atividade econômica e seu posicionamento na divisão
entre setor público e privado. Cabe inicialmente fazer uma idéia clara de que
efeitos estão sendo controlados estatisticamente na regressão. Nesse modelo,
além das variáveis anteriores, estão sendo controlados dois novos tipos de
efeito existentes na relação original entre as variáveis gênero e renda:
distribuição diferenciada de gênero e diferenças de renda entre os setores. A
título de exemplo, controlam-se nesse modelo tanto o efeito da distribuição
desigual dos gêneros na divisão público/privado quanto o efeito da vantagem de
renda de se estar no setor público. A redução em quase 2% da diferença de renda
revela uma desvantagem de distribuição das mulheres entre os seis grandes
setores econômicos. Elas estariam mais presentes em setores econômicos com
rendas médias menores, embora possuam uma vantagem de acesso ao setor
público12.
O modelo 8 introduz o controle de classe social nos dois sentidos do controle
estatístico, ou seja, como "remoção" da relação original entre gênero e renda
dos efeitos da composição de gênero das categorias de classe e das diferenças
de recompensa entre as categorias de classe. De modo diferente dos modelos 3 a
7, ocorre uma redução ponderável da distância de gênero. Essa situação revela o
papel mediador de classe na distância de renda ao captar a parte da diferença
de gênero que se exerce através da ordem de classe, ou seja, em virtude da
alocação desigual de gênero entre as categorias de classe desigualmente
recompensadas, de modo totalmente independente das demais variáveis.
Naturalmente, parte do efeito mediador de classe pode já ter sido captado por
outras variáveis anteriores, como educação, região e setor, pois existe uma
associação desses fatores com a ordem de classe, de modo que as categorias de
classe incluídas no modelo apareçam como uma nova fonte independente de
variabilidade, não compartilhada pelas demais variáveis. O modelo 8 apresenta o
que seria uma estimativa da distância líquida de gênero no Brasil para as
pessoas situadas nas mesmas circunstâncias sociais de classe, educação, região,
setor econômico etc.
O modelo 9 agrega o controle da composição de gênero das ocupações. A
segregação ocupacional de gênero representa naturalmente uma fonte importante
de desigualdade de alocação ou acesso presente na distância de gênero de renda.
Em geral, só faz sentido introduzir como controle estatístico uma dimensão
constituinte do fenômeno da discriminação de gênero, nesse caso, a desigualdade
de alocação de gênero na ordem ocupacional, se esse procedimento ajudar a
entender os componentes do fenômeno e os mecanismos por meio dos quais este
gera efeitos na renda. A introdução dessa variável independente de controle
visou remover o efeito específico da heterogeneidade ocupacional de gênero
interna às categorias de classe. Esse último controle estatístico reduz a
diferença de gênero, como seria de se esperar; porém, chama a atenção a
persistência de uma elevada diferença de gênero (27,26%), não mediada pela
distribuição ocupacional de gênero.
Efeitos de classe na distância de gênero de renda. Investiga-se a partir deste
ponto a influência dos contextos de classe na acentuação ou atenuação dos
efeitos dos atributos de gênero na renda das pessoas. A Tabela_6 apresenta os
resultados do Modelo Linear Generalizado, com as variáveis interativas entre
classe e gênero, que estimam as "relações condicionais" entre gênero e renda ao
especificar "as condições segundo as quais a relação original se fortalece ou
se enfraquece" (Rosenberg, 1976:125). São apresentadas estimativas sem e com
controle da composição ocupacional de gênero. Esse procedimento visa aferir e
controlar as diferenças de composição interna de gênero das categorias de
classe e produzir um resultado mais robusto. Pretende-se demonstrar, com isso,
que o efeito estimado decorre do contexto comum de classe, não podendo ser
atribuído aos padrões de composição de gênero dos grupos ocupacionais ou das
subcategorias existentes dentro de cada categoria de classe. Tomemos o caso da
categoria de gerentes. Existem diferentes níveis de gerência, e os gêneros
podem estar distribuídos desigualmente, por exemplo, entre "executivos" e
"gerentes operacionais". O controle da composição de gênero dos grupos
ocupacionais de gerentes permite afirmar, com mais segurança, que a distância
de gênero encontrada na categoria decorre da especificidade do mecanismo de
exercício de dominação sobre ativos humanos, estando, portanto, dissociado do
simples efeito de composição interna de gênero presente na categoria ampla de
gerentes. Ao ser controlado o efeito da "composição ocupacional de gênero",
torna-se mais robusta a conclusão de que o efeito em questão decorre do
"contexto comum de classe" e do mecanismo gerador de renda característico da
categoria. Nesse sentido, a parte principal da análise será feita considerando
a diferença com o controle da composição ocupacional de gênero.
Constata-se uma elevada distância de gênero entre os capitalistas (47,00%),
mostrando a força da operação conjugada tanto da desigualdade de acesso de
gênero, já mostrada na Tabela_2, quanto da desigualdade de tratamento revelada
agora. Entre os empregadores, a distância de gênero aparece alta para os
capitalistas e bem menor para os pequenos empregadores, o que sugeriria um
padrão divergente daquele registrado para a diferença de raça nessas
categorias, em que a maior capitalização e a menor personalização do
empreendimento parecem comprometer o poder gerador de efeitos dos mecanismos da
discriminação racial (Figueiredo Santos, 2005b; 2006a). A distância de gênero
de renda, por outro lado, não segue um padrão de relações condicionais com uma
lógica claramente consistente em termos da dimensão de ativos de capital
controlados. A menor distância existente entre os três tipos de portadores de
recursos de capital está justamente na categoria intermediária de pequenos
empregadores (19,34%). Os conta-próprias não-agrícolas, como menos ativos de
capital, registram uma diferença bem superior aos pequenos empregadores
(31,48%). O controle da composição ocupacional de gênero, como seria de se
esperar, quase não afeta o valor original da distância entre capitalistas e
pequenos empregadores, mostrando que o processo independe da especificação
ocupacional do empregador.
A enorme diferença encontrada entre os conta-próprias agrícolas mostra que essa
atividade se revela uma área inóspita para a presença da mulher como titular
isolada ou uma dos titulares do empreendimento familiar, ou seja, cujo status
no emprego garanta uma "retirada" de renda individualizada. Quando isso ocorre,
por opção ou contingência (morte ou migração do cônjuge), o processo se faz em
condições extremamente difíceis.
A distância de gênero de renda atinge um patamar elevado entre os empregos de
classe média, particularmente entre os gerentes, mostrando que esses contextos
oferecem um espaço maior ou um ambiente mais propício para a manifestação dos
efeitos da divisão de gênero. O acesso das mulheres (majoritariamente as
brancas) ao exercício de autoridade no âmbito do trabalho, ou seja, sua
"vantagem de classe", realiza-se à custa de uma elevada penalidade salarial de
gênero. A vantagem de escolaridade feminina permite entender os avanços obtidos
pelas mulheres no acesso aos empregos de especialistas e de empregados
qualificados. Apesar disso tudo, no entanto, ocorre uma elevada penalidade de
gênero na categoria de especialistas, mostrando que esse contexto de classe
deprecia o valor econômico da qualificação profissional e do conhecimento
perito ostentados pelas mulheres. Merece destaque, por fim, o fato de que, para
a categoria de gerente, a composição ocupacional de gênero gera uma redução
ínfima da distância de gênero de renda, o que mostraria a inexistência de um
efeito de discrepância de gênero na alocação entre os grupos ocupacionais de
gerentes, conforme sua tipificação na classificação ocupacional da PNAD. Já o
pequeno segmento altamente remunerado de profissionais autônomos, ao registrar
uma distância de 23,68%, parece mostrar, por contraposição, que a relação de
emprego assalariado e de trabalho coletivo entre homens e mulheres, como ocorre
entre os empregados especialistas, favorece o aumento da discrepância de gênero
na remuneração, já que entre esses últimos ocorre uma diferença de 34,49%.
As situações de classe ambíguas de empregados qualificados e supervisores
mostram um quadro claramente divergente. O controle de ativos de qualificação,
em um grau intermediário, pelos empregados qualificados, gera uma distância
superior aos próprios empregados especialistas. Já entre os supervisores ocorre
a segunda menor distância entre todas as treze categorias de classe e um claro
contraste com a diferença muito mais elevada registrada entre os gerentes.
Os trabalhadores revelam uma distância de gênero de renda (22,63%) abaixo da
distância média geral (27,26%), mas ainda assim elevada, considerando que foi
feito o controle estatístico da composição ocupacional de gênero da categoria.
A idéia de que a condição de exploração de classe comum dos trabalhadores
diminuiria o papel da opressão (não-classista) de gênero encontra aqui uma
aplicação parcial e limitada, mostrando a existência de certa autonomia da
divisão de gênero em relação ao condicionamento de classe. Em um sentido
relativo ou comparativo, essa tese encontra uma expressão mais aceitável para a
categoria de trabalhadores elementares, em que se conjugam trabalho assalariado
e profunda destituição.
A situação encontrada entre os conta-próprias precários, categoria em que
existe uma elevada diferença de gênero, merece uma ênfase especial,
considerando seu grande peso relativo na estrutura social e o fato de o destino
econômico de muitas mulheres depender desse contexto de classe. Na verdade,
considerando a especificidade da estrutura de classe de países como o Brasil, a
situação revelada nessa categoria mostra, de modo novo e inusitado, a
importância de se considerarem os contextos de classe na análise da distância
de gênero, visto que as mulheres não sofrem do mesmo modo e na mesma
intensidade o ônus da penalidade de gênero. Os processos agudos de destituição
de recursos, quando realizados fora da esfera comparativamente mais
"padronizada" do trabalho assalariado proletarizado, parecem exacerbar
significativamente a desigualdade de gênero em termos de capacidade geradora de
renda. Esse contraste surge naturalmente da comparação da distância dessa
categoria com os patamares encontrados entre os trabalhadores típicos, os
trabalhadores elementares e os empregados domésticos.
Os empregados domésticos, por fim, revelam uma diferença de gênero (23,36%)
próxima da distância média (27,26%), depois do controle estatístico da
composição ocupacional de gênero. Esse resultado revela a força da desigualdade
de tratamento de gênero, mesmo em uma categoria de renda média muito baixa,
cujo efeito independe da segregação ocupacional de gênero existente no interior
da categoria.
A comparação entre as divisões de gênero e de raça representa uma estratégia
interessante para realçar as características da desigualdade de gênero e de
suas interações com a desigualdade de classe no Brasil. Vejamos o comportamento
da distância bruta de renda, entendido como as diferenças globais, não
controladas, entre as rendas médias das categorias. Essa diferença bruta de
gênero de renda, com o controle apenas das horas trabalhadas, mostra-se muito
menos pronunciada que a distância bruta de raça (32% contra 75%). A ordem de
classe e a segregação ocupacional atuam como relevantes fatores mediadores na
produção da desigualdade de gênero, explicando quase 40% dessa desigualdade,
como mostra a redução da distância não explicada ocorrida na passagem do modelo
7 para o modelo 9. A maior parte da diferença de gênero, porém, não se exerce
através de mecanismos mediadores. Grande parte da distância de raça de renda
decorre das desigualdades de acesso, em que entram naturalmente os componentes
de discriminação incidentes nos processos de alocação. Já as mulheres,
particularmente as brancas, possuem vantagens de acesso às credenciais
educacionais.
As divisões de gênero revelam uma diferença controlada significativamente maior
em comparação com as divisões de raça. A vantagem líquida de renda (controlada
a desigualdade de acesso) dos homens sobre as mulheres em circunstâncias
sociais semelhantes, de 35,16%, mostrada na Tabela_6, suplanta em muito a
vantagem líquida de raça dos brancos sobre os não-brancos, de apenas 12,86%,
usando fatores de controle equivalentes (Figueiredo Santos, 2005b; 2006a). Os
processos de seletividade social anteriores, muito mais fortes no caso de raça,
determinam naturalmente a alocação das pessoas às circunstâncias. Ao serem
controlados os resultados das desigualdades de gênero no acesso às várias
circunstâncias ou recursos valiosos, a fim de isolar os efeitos diretos (não
mediados) de gênero, independentes das associações parciais com outras
variáveis, os dados obtidos mostram um elevado impacto da "desigualdade de
tratamento" de gênero na renda das pessoas situadas nas mesmas circunstâncias
sociais.
Embora as mulheres estejam inseridas de modo significativo particularmente em
posições que controlam ativos de qualificação e exercem autoridade, ainda assim
elas estão mais concentradas em posições de classe que oferecem menores
recompensas, cujo agregado possui uma densidade bem maior na estrutura social,
o que mostra a persistência de desvantagens de acesso. A condição de classe
exerce um importante efeito moderador sobre a desigualdade de gênero de renda,
particularmente entre os capitalistas, os gerentes e os detentores de ativos de
qualificação, no sentido de sua acentuação, e entre os trabalhadores
elementares, no sentido de sua atenuação. Esse efeito condicional, porém, é
menos pronunciado e mais irregular quando comparado às interações entre classe
e raça. Os condicionamentos de classe acentuam as distâncias de gênero de renda
em pólos extremos da estrutura de classe, como capitalistas e autônomos
precários, o que realça de modo diferenciado a importância dos efeitos
contextuais e instiga a reflexão teórica sobre os mecanismos que geram essas
conseqüências. O gênero se revela uma divisão social mais autônoma em relação à
classe social quando essa divisão é confrontada com a divisão de raça. Existe
no Brasil uma elevada desigualdade de tratamento de gênero, que parece
suplantar a desigualdade de acesso a contextos e a recursos valiosos, e
representa um ônus comum compartilhado pela mulher como uma decorrência direta
do poder causal do atributo de gênero.
NOTAS
1. Esse programa de investigação foi iniciado em 2004, quando, com o suporte de
uma bolsa de pós-doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Capes, estive como Honorary Fellow do Departamento de
Sociologia da Universidade de Wisconsin-Madison, beneficiando-me da colaboração
acadêmica do professor Erik Olin Wright. Foi elaborada, no período, uma nova
classificação socioeconômica para o Brasil, operacionalizada para os microdados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. A validação de
constructo dessa classificação explorou o condicionamento exercido pela esfera
da desigualdade de classe sobre a desigualdade de raça no Brasil (ver
Figueiredo Santos, 2005a; 2005b; 2006a; 2006b).
2. O modelo linear piecewise é um caso especial de um conjunto muito maior de
modelos ou relações denominadas funções spline. Essas funções possuem partes
distintas, mas o traçado representando o conjunto dos segmentos, ou potenciais
quebras estruturais, é uma função contínua, e não necessariamente uma linha
reta (Pindyck e Rubinfeld, 1998:136).
3. 47,9% dos supervisores estão na indústria de transformação, contra apenas
16,3% dos gerentes, 15,8% dos empregados qualificados e 10,5% dos empregados
especialistas.
4. A especificação Log-Gamma do Modelo Linear Generalizado, usada neste estudo,
pode produzir um coeficiente estimado menor da distância de renda, em
comparação à especificação linear - embora não exista um padrão sistemático
nessa diferença - e à especificação Log-Poisson, devido ao fato de o modelo
Log-Gamma realizar uma correção mais forte de heterocedasticidade (Petersen,
2006). Estimativas feitas por mim com uma especificação Log-Normal do Modelo
Linear Generalizado mostraram distâncias de renda mais elevadas a favor do
homem.
5. O coeficiente estimado é maior nas duas primeiras faixas compreendidas,
respectivamente, entre 1 e 29 horas e entre 30 e 39 horas trabalhadas, em que
as mulheres estão mais concentradas (45,5% de mulheres contra 21,36% de
homens). A taxa de rendimento hora é menor na faixa de 40 a 49 horas
trabalhadas, em que os homens estão mais concentrados (56,7% de homens contra
42,8% de mulheres). Na última faixa, de 50 ou mais horas, em que existem mais
homens (21,9% de homens contra 11,7% de mulheres), o coeficiente fica em um
patamar próximo ao da primeira faixa, de 1 a 29 horas, em que existem mais
mulheres (31,7% de mulheres contra 12,3% de homens). Além disso, um Modelo
Linear Generalizado, não mostrado aqui, com a introdução do termo interativo
entre gênero e log das horas trabalhadas, constata que as mulheres possuem uma
vantagem geral no efeito das horas trabalhadas.
6. No estudo em questão, ao ser mudada a especificação, a penalidade de ser
mulher passa de -4,6% para -7,6% entre os profissionais assalariados e altera-
se de -1,8% para -13,0% entre os médicos. Mesmo entre categorias ocupacionais
mais homogêneas, como profissionais e médicos, são bastante sérias as
implicações das diferenças de especificação. O estudo do conjunto da estrutura
social em um contexto de elevada desigualdade de renda, como o existente no
Brasil, implica maior variabilidade e heterogeneidade de renda de gênero dentro
das categorias. As diferenças entre as estimativas em função das especificações
dos modelos são o resultado das diferenças na distribuição de homens e mulheres
entre as horas trabalhadas e das diferenças nos coeficientes estimados das
splines do log das faixas de horas trabalhadas. Ao constranger implicitamente
em 1 o coeficiente do log das horas trabalhadas, o modelo de rendimento hora
infla artificialmente o retorno das horas nas faixas de mais horas trabalhadas.
Visto que os homens estão mais concentrados em tais regiões, em comparação com
as mulheres, isso faz com que uma parte maior do nível de rendimento maior do
homem seja creditado às horas trabalhadas em virtude desse erro de
especificação, de modo que o diferencial não explicado de rendimento entre
homem e mulher fique artificialmente menor (Morgan e Arthur, 2005:399-400).
Esse resultado divergente ocorre em estimativas com diferentes variáveis de
controle, como pode ser visto nos vários modelos que constam da Tabela_1-A do
Anexo Estatístico.
7. O presente estudo abarca todas as pessoas que possuem um vínculo direto com
a ordem de classe, ou seja, que possuem uma posição de classe assinalada.
Apesar da variável classe não constar do modelo de regressão 3, podemos
considerar a questão da maior inserção direta das mulheres brancas na ordem de
classe. No artigo "A Interação Estrutural entre a Desigualdade de Raça e de
Gênero no Brasil", ainda inédito, desdobro este estudo e analiso as variações
raciais da distância de gênero de renda em virtude dos efeitos interativos
entre as duas divisões sociais.
8. Menos de 8 anos representa sem educação fundamental completa; 8 a 10 anos
equivale à posse de educação fundamental completa até o ensino médio
incompleto; 11 a 14 anos representa ensino médio completo até curso superior
incompleto; já 15 anos ou mais equivale à posse de curso superior completo. Em
um Modelo Linear Generalizado semelhante, com a educação introduzida como
variável contínua, a diferença de gênero estimada fica em 54,67%.
9. Caberia considerar também a hipótese de que o "valor econômico" da educação
pode variar conforme o gênero das pessoas, de modo que os homens poderiam, por
exemplo, obter mais renda por nível de escolaridade, apesar de terem menos
escolaridade, ao passo que as mulheres precisariam de mais escolaridade para
obter avanços na renda. Esse ponto foi aprofundado no artigo "Discrepâncias de
Gênero no Valor Econômico da Educação", ainda inédito.
10. Entre as pessoas com uma posição de classe assinalada, renda positiva e
informação válida para todas as variáveis do estudo, que compõem a amostra da
presente pesquisa, as mulheres alcançam uma média de 8,68 anos de estudo
completos contra 7,13 anos dos homens. A média de escolaridade das mulheres
supera a dos homens em quase todas as categorias de classe, exceto na dos
conta-próprias agrícolas.
11. Os homens inseridos diretamente na ordem de classe em 2005 possuem em média
23,6 anos de trabalho contra 20,6 anos das mulheres; de modo semelhante,
possuem em média 7,8 anos no trabalho atual contra 5,9 anos das mulheres.
12. O setor público engloba 11,89% das posições em 2005, mas 17,39% das
mulheres estão nele, contra apenas 8,24% dos homens. A renda média do setor
público supera em 19,22% a do setor privado, segundo estimativa baseada no
modelo 8. Conforme o mesmo modelo, os setores econômicos que possuem maior
renda média em 2005 são, na ordem, serviços produtivos, serviços de
distribuição, indústria de transformação, serviços sociais, indústria extrativa
e serviços pessoais (categoria de referência omitida).