Definindo a arena política local: sistemas partidários municipais na federação
brasileira
INTRODUÇÃO
Este artigo trata da conexão entre a arena política local e as arenas estaduais
e nacional considerando o prisma do sistema partidário. Quisemos verificar em
que medida e de que forma a dinâmica político-eleitoral nos municípios é
tributária do que se passa nas outras esferas da Federação.
A experiência democrática brasileira não pode ser adequadamente estudada sem se
levar em conta que ela ocorre nos marcos de um sistema federativo. A Federação
brasileira tem mais de cem anos e constitui uma das instituições mais
relevantes para o entendimento da estruturação do sistema político brasileiro e
dos processos que o movimentam. Entretanto, só recentemente se tornou objeto da
atenção sistemática dos cientistas políticos. Estudos recentes têm contribuído
para revisar teorias, formular novas hipóteses e juntar evidências sobre
dimensões diversas de nossa estrutura federativa.
Em conseqüência do interesse renovado pelo tema, existe hoje um número razoável
de trabalhos cujo foco não está na esfera nacional, mas sim nas instituições e
nos processos políticos subnacionais, especialmente nos estados (Lima Junior,
1997; Abrucio, 1994; 1998; Abrucio e Samuels, 1997; Abrucio e Costa, 1998;
Santos, 2001; Souza, 2003).
Este artigo se inscreve na perspectiva de análise do sistema político sob o
prisma das esferas subnacionais; porém, seu objeto não são os estados, mas os
municípios. Trata-se de um estudo exploratório. Buscamos caracterizar se e de
que maneira os sistemas partidários que emergem na disputa eleitoral nos
municípios se articulam e podem ser explicados pela disputa por votos nos
planos estadual e nacional.
A exposição está dividida em cinco partes. Na primeira, discutimos o problema à
luz da bibliografia. Na segunda, tratamos dos incentivos institucionais à
independência ou, inversamente, à articulação do sistema partidário local com
as demais esferas em função do marco legal que rege a política municipal. Em
seguida, estabelecemos nossas hipóteses e descrevemos os dados utilizados. Na
quarta parte, detalhamos suposições e o modelo de análise. Por fim, discutimos
os resultados.
O PROBLEMA
Dadas as características da Federação, das regras eleitorais e daquelas que
presidem a organização partidária, a articulação do sistema de partidos nas
três esferas não está garantida e requer esforços de coordenação por parte das
lideranças. Lavareda (1991) foi o primeiro a atentar para esse fato e a buscar
evidências sobre a articulação do sistema de partidos no Brasil ao longo das
instâncias federativas durante a vigência da Constituição de 19461.
Entretanto, boa parte da literatura que tratou do tema pôs ênfase no efeito
desarticulador da Federação, combinado às regras eleitorais e de organização
partidária. Assim, não foram poucos os autores que, observando nosso
multipartidarismo fragmentado, enfatizaram a fragilidade, a baixa
institucionalização e a incoerência político-ideológica resultantes dessa
peculiar combinação de instituições. Em conseqüência, o Brasil foi considerado
um caso de notório subdesenvolvimento partidário (Lamounier e Meneguello,
1986). Aqui prevaleceram "partidos do tipo catch-all, descentralizados,
comparativamente indisciplinados e comparativamente individualistas"
(Mainwaring, 1999:5). A arregimentação dos políticos estaria determinada mais
por considerações relacionadas à política estadual ou local do que por
clivagens nacionais. A importância das carreiras nos níveis subnacionais
(Samuels, 1998; Mainwaring, 1999) contribuiria, de certa forma, não só para a
existência de um multipartidarismo fragmentado ao extremo como também para sua
falta de inteligibilidade político-ideológica2.
A literatura especializada tem razão quando afirma o caráter descentralizado do
sistema de partidos, a importância da disputa política no nível subnacional e,
especialmente, a contenda eleitoral nos estados para a definição de suas
feições. Contudo, dessas características não se pode inferir que haja
desconexão entre os diferentes níveis do sistema, muito menos que sua base - a
esfera municipal - seja sempre moldada de forma idiossincrática pelas disputas
locais.
Nosso propósito é, pois, verificar como, em que medida e em que condições o
sistema partidário que resulta das eleições municipais se articula com aquele
produzido pelas disputas estaduais e nacional.
Desde a publicação de Making Votes Count (Cox, 1997), sabemos que a organização
de um sistema partidário nacional envolve sempre diferentes problemas de
coordenação e que resultados eleitorais dependem tanto de instituições quanto
de estratégias dos atores políticos. O suposto teórico é que os eleitores votam
de forma instrumental, ou seja, calculam a probabilidade de que suas escolhas
produzam resultados agregados que estejam próximos de suas preferências
individuais. Nesse sentido, todo sistema democrático representativo põe
eleitores, políticos e partidos políticos diante de uma série de problemas de
coordenação que ocorrem em diferentes níveis do sistema. Cox demonstrou que,
mesmo em estados unitários com sistemas eleitorais majoritários e distritos
uninominais, o efeito das regras eleitorais sobre o número de partidos não era
direto. Dependia da maior ou menor capacidade - revelada por políticos e
lideranças partidárias - de coordenar decisões sobre candidaturas, listas
eleitorais, coligações e estratégias para a conquista de votos.
Segundo o autor, a configuração do sistema partidário depende dos incentivos
produzidos pelo sistema eleitoral na medida em que este determina quais
candidatos serão percebidos como competitivos. Um sistema eleitoral com regra
de pluralidade e distritos uninominais cria incentivos para que os eleitores
coordenem suas escolhas em torno de duas alternativas, enquanto a regra
proporcional em distritos com magnitude elevada diminui a necessidade de
coordenação, uma vez que existe um número maior de candidatos e partidos que
são percebidos como eleitoralmente viáveis.
Como Cox, estamos interessados no fenômeno da coordenação eleitoral dado um
arcabouço institucional que, no caso brasileiro, seguramente tende a dificultá-
la.
AS REGRAS DA DISPUTA POLÍTICA NOS MUNICÍPIOS
Três conjuntos de instituição balizam a articulação do sistema partidário
eleitoral local dos sistemas existentes nas demais esferas. O primeiro está
constituído pelas regras que presidem a formação e a organização da esfera
municipal de governo nos marcos da Federação. O segundo define o tipo de
competição eleitoral e as características da representação política. O terceiro
diz respeito à organização dos partidos. Esses três conjuntos podem ser
encarados como sistemas de incentivo para o comportamento de partidos,
políticos e eleitores, facilitando ou dificultando a articulação do sistema
partidário eleitoral que perpassa os três níveis da Federação. Vejamos
características e efeitos prováveis de cada um.
A Federação brasileira é composta por União, estados e municípios e constitui
uma estrutura razoavelmente descentralizada. A descentralização política foi um
dos principais pontos da agenda da redemocratização no Brasil e beneficiou,
sobretudo, os municípios.
Em consonância com o espírito da época, a Constituição de 1988 conferiu novo
estatuto legal ao município, transformado em ente federativo3, caso único nos
sistemas federais contemporâneos. Obteve autonomia plena nos âmbitos político,
administrativo, legislativo e financeiro4 e adquiriu novas competências e
atribuições. Ademais, foi o principal beneficiário da descentralização de
recursos que se avolumaram com a ampliação das transferências constitucionais5.
A autonomia política significou a reafirmação da "capacidade de autogoverno",
ou seja, eleição direta de prefeito, vice-prefeito e vereadores, o que já
ocorria na maioria dos municípios, com exceção das capitais, estâncias
hidrominerais e cidades consideradas especiais do ponto de vista da segurança
nacional. A Carta de 1988, ao reiterar e universalizar normas constitucionais
anteriores, estabeleceu eleições diretas e simultâneas para prefeito, vice-
prefeito e vereadores, todos com mandato de quatro anos. Fixou também número de
vereadores proporcional à população em distritos cuja magnitude varia entre 9 e
556.
Como entes federativos, os municípios são dotados também de capacidade de auto-
organização por meio de lei orgânica municipal própria7. Possuem, além disso,
autonomia legislativa, ou seja, capacidade de legislar sobre assuntos de
interesse local e de complementar as legislações estadual e federal.
A autonomia administrativa implica liberdade para organizar as atividades do
governo local, criar o quadro de servidores municipais e criar ou suprimir
distritos. Já a autonomia financeira se materializa na prerrogativa de criar e
arrecadar os tributos próprios; elaborar, aprovar e executar o orçamento
municipal e aplicar os recursos levadas em conta algumas limitações
constitucionais (Neves, 2000:18-19; Rocha, 2001:31-32).
As normas constitucionais descritas anteriormente permitiriam a existência de
sistemas políticos locais bastante independentes e desconectados dos demais
níveis da Federação do ponto de vista da arregimentação partidária dos
eleitores, da escolha dos governantes, da organização e do funcionamento dos
poderes de governo. O município é uma arena de disputa eleitoral e de decisões
de governo com perfil, instrumentos e recursos específicos. Quando se trata de
formar o governo municipal, as escolhas dos eleitores podem ser feitas
considerando apenas suas conseqüências prováveis no âmbito local. Políticos
podem traçar estratégias de disputa por votos sem se preocupar com o que ocorre
nas outras esferas da Federação; os partidos, na busca de êxito em pleitos
municipais, têm de adaptar objetivos de escopo mais amplo às peculiaridades da
competição em cada município.
Em função disso - considerando o ângulo que nos interessa aqui -, as regras que
organizam a Federação estimulam a desconexão entre a competição política local
e aquela que ocorre, em outro momento, nos estados e no âmbito nacional.
O que dizer dos incentivos provenientes das regras eleitorais? A discussão
sobre o impacto de diferentes sistemas eleitorais sobre o formato dos sistemas
de partidos é antiga (Duverger, 1954; 1986; Sartori, 1982; 1986; Rae, 1971;
Grofman e Lijphart, 1986). Shugart e Carey (1992:207) acrescentaram uma segunda
variável institucional relevante, além das regras eleitorais: os ciclos
eleitorais, entendidos como o momento das eleições para o Executivo e o
Legislativo.
Eleitores desejam o êxito eleitoral de seu candidato, políticos aspiram eleger-
se, e partidos querem formar uma bancada expressiva. Para atingir seus
objetivos, escolhem cursos de ação tomando em consideração as oportunidades e
limitações criadas pelos diferentes sistemas eleitorais. Nem sempre as escolhas
dos três tipos de agente vão no mesmo sentido; e essas escolhas, por seu turno,
têm conseqüências sobre o formato do sistema partidário.
No que diz respeito a regras eleitorais, vigem no Brasil três sistemas
diferentes: 1) majoritário de um só turno (pluralidade), com distritos
uninominais na escolha de prefeitos em cidades com menos de 200 mil habitantes
e senadores, e majoritário de um só turno (pluralidade), com distritos ora uni,
ora binominais na escolha de senadores; 2) majoritário de dois turnos, em
distritos de magnitude igual a 1, nas eleições para prefeitos de cidades com
mais de 200 mil habitantes, governadores e presidente da República; 3)
proporcional de lista aberta, com voto único transferível e distritos
plurinominais, com magnitudes diversas, para a escolha de representantes nas
câmaras municipais, assembléias estaduais e câmara federal. Não existe
vinculação de voto para os diferentes tipos de pleito: os eleitores podem
combinar no mesmo voto candidatos de distintos partidos.
Na formação dos legislativos municipais, as circunscrições eleitoral e
político-administrativa se confundem; os limites do município definem o
contorno dos distritos eleitorais plurinominais8.
De outra parte, há variação nos tipos de ciclo eleitoral. As eleições para
presidência da República, governos estaduais, Senado, Câmara dos Deputados e
assembléias legislativas coincidem. Já as eleições para Executivo e Legislativo
nos municípios ocorrem em outro momento.
Sistema proporcional, lista aberta, possibilidade de desvinculação das escolhas
em diferentes pleitos e ciclos eleitorais não-coincidentes aumentam a latitude
de decisão dos eleitores e a autonomia dos políticos individuais com relação
aos partidos. Os eleitores podem fazer suas próprias combinações de candidatos
para distintos postos, cruzando fronteiras entre partidos. Os candidatos a
cargos legislativos, para aumentar suas chances de êxito, são estimulados a
negociar diferentes "dobradinhas" com candidatos a postos no Executivo ou no
Legislativo de outra esfera da Federação. As combinações possíveis são muitas e
podem atravessar fronteiras entre agremiações.
No sistema partidário brasileiro, há, portanto, um claro problema de
coordenação decorrente do incentivo à competição intrapartidária produzido pelo
sistema eleitoral, que combina fórmula proporcional e lista aberta com voto
categórico em distritos de magnitude elevada. Em função disso, os partidos
lidam não apenas com a competição interpartidária (ou intercoligações) mas
também com uma forte competição intrapartidária. A visibilidade do político
diante dos eleitores é decisiva na definição das chances de obter uma boa
posição nas listas partidárias e, conseqüentemente, o mandato.
As lideranças partidárias, interessadas no controle dos Executivos e no aumento
de suas bancadas nos Legislativos, têm de nadar contra a corrente buscando
coordenar esse processo complexo de escolha e reduzir a desarticulação
estimulada tanto pelas regras eleitorais quanto por características dos ciclos
eleitorais. Nesse afã, nem todas as regras lhes são desfavoráveis. O fato de o
distrito ser o mesmo para a disputa pelo Executivo e pelo Legislativo nos
âmbitos estadual e municipal - ainda que as magnitudes difiram - facilita a
coordenação entre os dois pleitos no mesmo nível da Federação. Pela mesma
razão, a coincidência entre eleições nos estados e no plano federal facilita a
coordenação dos pleitos para governadores, senadores, deputados federais e
estaduais. A coordenação com o pleito presidencial é mais problemática9.
Já a existência de ciclos não-coincidentes para as disputas locais, bem como
aquelas que ocorrem para os demais âmbitos da Federação, põe os partidos em
face de desafios de coordenação específicos. Vejamos, por fim, os estímulos
provenientes da legislação partidária.
A estrutura da Federação foi replicada na organização interna dos partidos pelo
menos desde a Lei Orgânica dos Partidos, de 1971 (Lei nº 5.697), que substituiu
a Lei Orgânica, de 1965 (Lei nº 4.740). De acordo com essa lei, os partidos
deveriam estruturar-se em três níveis - municipal10, estadual e nacional. Na
base da organização, as convenções escolhiam os candidatos aos postos do
Executivo e do Legislativo, enquanto os diretórios indicavam a comissão
executiva e o presidente, que se responsabilizavam pela gestão cotidiana do
partido. A mesma estrutura se repetia nos planos estadual e nacional. As
convenções municipais mandavam representantes à convenção estadual, que definia
as candidaturas para todos os pleitos estaduais e nacionais cujo distrito
eleitoral coincidisse com o Estado. Da mesma forma, delegados estaduais
participavam da Convenção Nacional e da escolha do Diretório Nacional.
Essa estrutura que acompanha a arquitetura da Federação continuou vigente mesmo
quando a Lei Orgânica foi substituída, em 1995, por uma nova legislação, que dá
aos partidos liberdade para se organizar internamente como melhor lhes
aprouver.
Mainwaring (1999:156-157) enfatiza - corretamente - que, nesse tipo de
organização, políticos locais e, sobretudo, estaduais têm presença marcante nas
decisões das instâncias nacionais. Chama assim a atenção para seu efeito
potencialmente descentralizador. Os dirigentes estaduais teriam asseguradas uma
significativa capacidade decisória nas instâncias nacionais11 e muita autonomia
para definir sobre candidatos e coligações nos pleitos disputados em seu âmbito
próprio de atuação. O mesmo ocorreria com dirigentes e organizações municipais.
Se isso é verdade, não é menos certo que a representação das organizações
existentes em um nível, nas instâncias que lhes são superiores, estabelece
conexões, por dentro da estrutura do partido, entre a política municipal e
aquela que ocorre nos outros âmbitos. Essas conexões não garantem a coordenação
entre pleitos, mas podem facilitá-la ao criar arenas institucionais de
negociação.
De outra parte, as instituições informais que tendem a reger a vida partidária
para além da legislação com freqüência aumentam a influência de poucos
dirigentes de projeção nacional sobre as decisões. O grau em que isso ocorre
depende da história da agremiação e da maneira como se estruturaram e
cristalizaram os centros de poder internos. Assim é que, regidos pelo mesmo
arcabouço de regras, o PT e o PMDB coordenam de maneira muito diversa os grupos
e interesses existentes no plano local.
Que incentivos os políticos têm para produzir uma "reputação partidária" nesse
contexto? Entendemos por reputação partidária a presença de uma imagem pública
consistente com a imagem que o partido tem em outros níveis do sistema. Dessa
forma, é possível esperar que o sistema apresente certo grau de previsibilidade
quanto mais nítida for a percepção dessa reputação por parte dos eleitores.
Pretendemos oferecer evidências empíricas de que os partidos são capazes de
prover tal reputação, uma vez que os resultados eleitorais de um partido podem
ser previstos com base nos resultados anteriores desse mesmo partido. Não
apenas a criação, mas a manutenção de certa reputação partidária coloca-se como
um problema de coordenação para os políticos: requer que os partidos tenham
meios de controlar iniciativas individuais que possam vir a ser conflitantes
com as posições programáticas da legenda. Quanto mais difícil for a provisão da
reputação partidária, menor será a probabilidade de que o resultado eleitoral
de um partido tenha correlação com seu desempenho em outras eleições no mesmo
distrito.
HIPÓTESES E DADOS
Nossa hipótese principal é que os partidos conseguem coordenar suas campanhas
de forma que a variação no desempenho de um partido em uma determinada eleição
tenha efeito sobre o desempenho desse mesmo partido na eleição seguinte e em
outras eleições que ocorrem no mesmo tempo. Se for possível estimar a votação
de um partido com base em sua votação anterior ou em outros níveis, teremos uma
evidência empírica de que são capazes de superar, em alguma medida, os efeitos
desarticuladores produzidos pelo sistema político - em particular pela
organização federativa e pelo sistema eleitoral - que dificultam a coordenação
política.
Consideramos que a organização partidária é o fator subjacente responsável pela
provisão desse bem público. O incentivo à organização, nos três níveis da
Federação, resulta não só da lei de partidos políticos mas também do fato de
que a existência do partido no município é importante para maximizar sua
influência nos âmbitos estadual e nacional.
Em decorrência do número elevado de municípios na Federação em que os partidos
estão presentes, a organização partidária não é uma dimensão facilmente
observável do sistema partidário. Tratamos de explorá-la com base na análise da
correlação entre as proporções de votos dos partidos nos municípios em
diferentes eleições. Caso o sistema partidário não tivesse um nível mínimo de
organização no nível municipal, os resultados eleitorais tenderiam a apresentar
correlações fracas ou inexistentes. O nível escolhido para testar a hipótese
formulada - o município - é bastante exigente, uma vez que nem todas as
eleições consideradas têm o município como distrito.
Nosso teste empírico considera também uma hipótese secundária: o sistema
partidário brasileiro atual não apresenta subsistemas diferenciados segundo o
tamanho do município.
A literatura sobre o período 1946-1964 indicava a presença de subsistemas
partidários nos estados, definidos "em função do número de partidos relevantes
e da fragmentação eleitoral" (Lima Junior, 1983:67), e uma grande diferença na
distribuição da força relativa dos partidos segundo o tamanho dos municípios.
De acordo com Campello de Souza (1976), havia um subsistema competitivo nas
principais capitais dos estados e outro não-competitivo que prevalecia nos
pequenos municípios do interior. Embora nosso objetivo não seja fazer um
contraponto direto às hipóteses de Lima Junior e de Campello de Souza sobre o
sistema de partidos no regime de 1946, incluímos nos modelos de regressão
discutidos mais adiante variáveis dummies com o propósito de controlar as
estimativas dos coeficientes pelas diferenças no tamanho dos municípios.
Dummies não-significativas indicam ausência de diferenças entre municípios
segundo o tamanho da população, mantendo constantes as demais variáveis dos
modelos.
A amostra utilizada consiste de um painel de municípios com os resultados das
eleições para presidência da República, Câmara Federal, governos estaduais e
assembléias estaduais de 1994 e 1998, e para prefeituras e câmaras municipais
de 1996 e 2000. Os dados das eleições estaduais e nacionais foram desagregados
por município, integrados em uma mesma base com as eleições municipais e
organizados em uma matriz de 38.591 linhas com a votação dos sete partidos
selecionados nos 5.513 municípios para os quais temos informações. As variáveis
utilizadas descrevem a proporção de votos dos sete maiores partidos brasileiros
- PMDB, PFL, PSDB, PPB12, PTB, PT e PDT. Estes receberam em média 90% dos votos
nas eleições nacionais e estaduais de 1994 e 1998, e 82% dos votos nas eleições
locais de 1996 e 2000, percentuais calculados com base na proporção média dos
votos de cada partido nos municípios da amostra (ver Tabela_1 do Anexo). O PMDB
é o partido que tem a maior proporção média de votos nos municípios em quatro
das cinco eleições estaduais e locais consideradas. Na única eleição em que não
ocupa o primeiro lugar - para deputado federal em 1998 -, fica em segundo
lugar, com uma média de 22% dos votos nos 5.511 casos para os quais temos
informações. Partidos coligados em eleições nacionais, estaduais ou municipais,
que não tinham o candidato principal, aparecem com uma proporção de votos igual
a zero.
A Tabela_1, a seguir, apresenta o número de casos em cada ano do painel e o
percentual de casos sem informação. Os municípios foram classificados segundo
faixas de tamanho da população com base no Censo Demográfico 200013. Dessa
forma, não consideramos as variações longitudinais no tamanho da população dos
municípios. Adicionalmente, tivemos de lidar ainda com a variação no número de
municípios no Brasil entre 1994 e 2000. No período considerado, são criados 544
municípios. Essa variação tem efeito direto sobre o número de casos válidos nas
análises em que são consideradas eleições ocorridas em diferentes anos. Nos
modelos de I a IV, por exemplo, o número de casos válidos é de 4.944, o que
significa uma perda de 569 casos com relação ao ano de 2000 (N = 5.513). Desse
total de casos perdidos, 544 (95,6%) decorreram do fato de o município ter sido
criado após 1994 (primeiro ano do painel). No modelo V, apenas com as eleições
de 1998 e 2000, o número de casos válidos sobe para 5.403 (1,9% de casos
perdidos).
MODELOS E SUPOSIÇÕES
Os modelos utilizados neste artigo inspiram-se na análise de Lavareda (1991)
sobre o sistema partidário do período 1946-1964. O autor utilizou "a análise
das correlações entre os graus de fracionamento eleitoral assumidos pelas
diversas categorias de pleitos" como medida proxy da articulação entre níveis
do sistema partidário (ibidem:128). A hipótese formulada por ele sobre a
consolidação do sistema partidário no período foi testada com base apenas em um
indicador sistêmico: o índice de fracionamento. A análise da correlação do grau
de fracionamento - uma medida do formato do sistema partidário -, nas
diferentes eleições do período, fundamentou sua inferência sobre a
"pluralização" dos subsistemas estaduais e, conseqüentemente, sobre a
"nacionalização das forças partidárias", um tema importante na literatura sobre
partidos e eleições do período 1945-1962 (Soares, 1973; Souza, 1976; Lima
Junior, 1983).
Como a hipótese proposta por Lavareda (1991) dizia respeito, sobretudo, à
nacionalização do sistema partidário, seria mais apropriado testá-la
considerando variáveis que descrevessem a força relativa dos partidos nos
estados e municípios da Federação, a exemplo do que realizamos no presente
estudo. O trabalho de Lavareda apresenta ainda outras limitações metodológicas
importantes. Em primeiro lugar, não analisa longitudinalmente os dados
eleitorais, mas somente a variação entre os estados (análise cross-sectional);
nesse sentido, seu modelo não leva em conta diretamente o efeito do tempo sobre
a competição eleitoral. Em segundo lugar, não há nenhuma indicação de que seu
esquema causal tenha considerado os efeitos indiretos. Por fim, para
representar a articulação entre diferentes eleições, foram estimados apenas
coeficientes de correlação bivariados.
A análise realizada neste artigo buscou superar essas limitações. Nossa
hipótese principal é que existe um padrão de articulação entre os diferentes
níveis do sistema partidário brasileiro e que o subsistema partidário local se
encontra articulado aos subsistemas estadual e nacional. Nesse sentido, os
testes empíricos apresentados permitem avaliar se o desempenho do partido em
uma eleição e em um município qualquer tem um efeito diacrônico sobre o
desempenho desse mesmo partido na próxima eleição e sincrônico nos pleitos para
outros cargos que ocorrem na mesma eleição. Antes de apresentarmos as hipóteses
operacionais que testamos, é necessário considerar a estrutura das relações
existentes entre os diferentes subsistemas partidários no Brasil, representadas
no Quadro a seguir.
A representação dos modelos de regressão por Mínimos Quadrados em Dois Estágios
- MQ2E, em diagramas causais, permite visualizar as variáveis endógenas
consideradas nas estimativas. Apresentamos esquemas causais simplificados com o
objetivo de facilitar a visualização das interações atribuídas aos diferentes
níveis do sistema partidário. A disposição das variáveis segue a ordem
temporal. De forma simplificada, consideramos as eleições em três tempos: t, t-
1 e t-2. A indicação de tempo t-2 aparece apenas no modelo IV, em que as
eleições para governador em 1994 (t-2) e 1998 (t-1) são incluídas como
regressores das eleições para prefeito em t e em t-1.
Os modelos foram construídos com base nas seguintes suposições:
Suposição 1. As relações de causalidade14, no âmbito do sistema partidário,
podem ser consideradas não-recursivas. Essa simplificação é obviamente adequada
nos casos em que há assimetria temporal entre as variáveis. No entanto, no caso
de pleitos simultâneos, a direção da causalidade atribuída aos modelos é
arbitrária e exige uma justificativa específica, oferecida na suposição a
seguir.
Suposição 1.1. Como no período 1945-1965, as eleições para governador são
consideradas o elemento articulador do sistema15. Em conseqüência, a eleição
para governador foi representada como uma variável exógena nos cinco modelos
apresentados.
Suposição 1.2. Eleições do subsistema majoritário foram consideradas variáveis
independentes para estimar a proporção de votos dos partidos nas eleições
proporcionais (estaduais ou locais). Dessa forma, as eleições para governador
têm efeito sobre as eleições para deputado estadual e federal, e as eleições
para prefeito sobre as eleições para vereador.
Suposição 1.3. As eleições para deputado federal têm efeito direto sobre as
eleições para deputado estadual. As "dobradinhas" refletem a preferência dos
candidatos à Câmara Federal, que escolhem os candidatos a deputado estadual com
quem irão trabalhar.
Suposição 2. Os modelos são independentes: cada tipo de eleição é explicado por
um modelo causal específico. O objetivo não é testar uma hipótese geral sobre o
sistema partidário em seu conjunto, mas hipóteses específicas sobre os
determinantes de cada um dos tipos de eleição considerados. Assim, no Quadro_1,
a votação para prefeito aparece no modelo I como um regressor exógeno da
votação para governador. No modelo II, esse efeito não é considerado e
verifica-se que a votação para deputado federal está correlacionada com a
votação para prefeito. Dessa forma, podemos testar se as eleições locais têm
impacto direto em diferentes pontos do sistema partidário estadual. Caso a
estrutura do modelo fosse fixa, e se fosse considerado apenas o efeito da
eleição para prefeito sobre as eleições para governador, não seria possível
estimar seus impactos em outros pontos do sistema.
O teste das hipóteses, como indicam as suposições dos modelos, situa-se no
nível do sistema partidário. No entanto, os resultados empíricos permitem
inferências sobre o papel da organização partidária no funcionamento do
sistema, como sugerimos anteriormente.
Os determinantes da votação para governador, representados no modelo I, foram
estimados com base no método dos Mínimos Quadrados Ordinários - MQO, ao passo
que, nos modelos II, III e IV, utilizamos o método dos MQ2E16. A utilização
desse método permite estimar os coeficientes para uma única equação a partir de
um sistema de equações, não sendo necessário especificar a forma funcional das
demais equações do sistema. As distribuições das variáveis (ver, a seguir, a
discussão sobre resultados dos modelos) indicaram a necessidade de recorrer a
estimativas pela razão de verossimilhança com base no método Tobit para dados
censurados17. Distribuições não-normais com zeros inflacionados, como as que
estamos trabalhando, podem produzir estimativas enviesadas e não-confiáveis dos
coeficientes quando estes são estimados pelo método dos mínimos quadrados. Em
função disso, optamos por estimar nossos modelos segundo esses dois métodos
diferentes.
Nos modelos de regressão, incluímos um conjunto de variáveis dummies para
controlar pelo efeito do tamanho do município. Os municípios foram divididos em
quatro categorias: menos de 10 mil habitantes; de 10 a 50 mil; de 50 a 200 mil;
e mais de 200 mil. As categorias de tamanho foram definidas com o objetivo de
garantir um número suficiente de casos na categoria acima de 200 mil habitantes
(106 municípios) e também para controlar o efeito dos municípios muito
pequenos, onde, supostamente, o sistema partidário pode apresentar maior
fluidez e desorganização. Por questões de economia, não as apresentamos nos
modelos descritos a seguir, mas as incluímos em todas as equações
especificadas, cujos resultados aparecem na Tabela_318.
No modelo I, a votação de um partido nas eleições para governador, em um
município qualquer, tem efeito direto sobre a votação desse mesmo partido nas
eleições seguintes para o mesmo cargo. A votação do partido é determinada
também pela votação recebida nas eleições para prefeito em t-1 e para
presidente em t. Nesse modelo, não consideramos o efeito da eleição para
presidente em t-1 como uma variável exógena. Ele é um modelo de regressão MQO
com estimativa robusta e a seguinte forma:
No modelo II, a votação para deputado federal na eleição no tempo t, em um
município qualquer, tem a votação para governador em t como regressor endógeno,
que é determinado pela votação do partido para governador em t-1 e para
presidente em t. À diferença do modelo I, a eleição para prefeito em t-1 foi
considerada um regressor exógeno com efeito direto sobre a votação para
deputado federal em t, juntamente com a eleição para deputado federal em t-1.
A votação para deputado estadual, modelo III, tem a votação para governador em
t como regressor endógeno determinado pela votação do partido para governador
em t-1 e para presidente em t. As votações nas eleições para deputado estadual
e prefeito em t-1 e deputado federal em t são os regressores exógenos do
modelo. A suposição 1.3 - sobre a composição das "dobradinhas" - permitiu-nos
fixar o sentido do efeito da votação para deputado federal sobre a votação para
deputado estadual.
Os modelos IV e V têm como variáveis dependentes as votações dos partidos nas
eleições locais para prefeito e vereador, e permitem uma discussão mais
abrangente sobre as articulações entre níveis do sistema partidário. À eleição
para governador, como nos modelos anteriores, foi atribuída uma série de
efeitos indiretos que atingem todo o sistema. Por exemplo: no modelo IV, a
votação de um partido na eleição para governador tem um efeito direto na
votação desse mesmo partido nas eleições para prefeito que ocorrem no pleito
subseqüente e um efeito indireto (eleição para governador em t-2) via votação
para prefeito que ocorre no tempo t-1. No modelo V, a votação para prefeito é
endogenamente determinada pelas votações para prefeito, deputado estadual e
governador obtidas em t-1. Já a votação nas eleições para prefeito tem impacto
sobre a votação para vereador do partido, que tem como regressor externo a
votação para vereador em t-1.
RESULTADOS DOS MODELOS E DISCUSSÃO
A Tabela_2, a seguir, apresenta as estatísticas descritivas das onze variáveis
que utilizamos para estimar os parâmetros dos modelos de I a V. O problema do
número de casos válidos já foi analisado no item dedicado a comentar a
estrutura do painel. Há 128 municípios nas eleições para prefeito de 2000 e 141
municípios nas eleições de 1996, em que um único partido obteve 100% dos votos.
Respectivamente, 82% e 83% desses casos ocorreram em municípios com menos de 10
mil habitantes. Nas eleições para vereador, houve apenas dois casos em que um
único partido obteve 100% dos votos. Optamos por apresentar informações sobre a
mediana e o 25º percentil na medida em que as distribuições apresentam
problemas de kurtosis acentuada e cauda na direção dos maiores valores
(skewness).
A matriz de correlação, Tabela_2 do Anexo, indica apenas uma eleição cujos
resultados apresentam correlação negativa, embora bastante fraca, com as
demais: as eleições presidenciais de 1998. Essa eleição envolveu a disputa do
segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e foi polarizada, desde o primeiro
turno, entre o PT e o PSDB. Optamos por imputar uma proporção de votos igual a
zero a todos os partidos que não lançaram candidatos nessas eleições23. Dessa
forma, submetemos nossas hipóteses a um teste empírico bastante rígido, uma vez
que a participação de um partido em uma coligação nacional ou estadual, com o
candidato à vice, por exemplo, não significa que esse partido não tenha tido
uma presença organizada na campanha travada em nível local. Estamos, nesse
sentido, desconsiderando uma parte significativa da coordenação que de fato
pode existir no âmbito do sistema partidário. Optamos por esse procedimento não
apenas porque facilita a aceitação da hipótese nula24 do estudo mas também em
virtude dos problemas de imputação em que incorreríamos ao tentar atribuir uma
proporção qualquer de votos em cada um dos municípios correspondentes aos
partidos em posição secundária na coligação.
Essas informações são importantes para a definição do método a ser utilizado
para estimar os parâmetros das equações dos modelos de I a V. Em função dessa
análise, além das estimativas por MQ2E, optamos por estimar também os
coeficientes por Tobit, o que significa considerar as variáveis dependentes
como latentes25 e limitadas à esquerda e à direita em virtude de problemas de
observação. Substantivamente, ao tratarmos as variáveis dependentes como
latentes, assumimos que os partidos têm algum nível de organização nos
municípios que não pode ser diretamente observado, como no caso das coligações
em que os votos recebidos pelos partidos coligados foram contabilizados como
votos apenas do partido que encabeça a coligação. As três últimas linhas da
Tabela_3 indicam o número de casos não censurados e censurados à esquerda e à
direita em cada um dos modelos26.
A Tabela_3 apresenta ainda o R2 ajustado para os modelos MQ2E e o logaritmo da
razão de verossimilhança (LRχ2) para os modelos Tobit. Há diferenças
importantes entre os modelos no que diz respeito à capacidade explicativa: o
modelo I tem um R2 de 0,18, enquanto o modelo V, apenas com eleições locais,
apresenta um R2 de 0,59. Ele é o modelo com o melhor ajuste entre os cinco
estimados.
Os coeficientes estimados por Tobit indicam efeitos em geral maiores das
variáveis independentes, uma vez que as observações com valor zero nas
variáveis dependentes tiveram seu peso reduzido nas estimativas. Com efeito, os
coeficientes estimados por Tobit são maiores em onze das quinze estimativas
realizadas. Os resultados dos modelos de regressão por MQ2E e Tobit são
convergentes em um aspecto central para nossa hipótese: todos os coeficientes
das variáveis independentes, nos cinco modelos, são positivos e significativos.
Nesse sentido, os métodos utilizados nas estimativas não conduzem a conclusões
discrepantes com relação à hipótese central: os partidos conseguem coordenar
suas campanhas de forma que a variação no desempenho de um partido em uma
determinada eleição tenha efeito sobre o desempenho desse mesmo partido na
eleição seguinte e em outras eleições que ocorrem no mesmo tempo. A hipótese
estabelece, portanto, duas fontes de articulação no âmbito do sistema: entre
níveis e diacrônica.
A existência de articulação entre níveis do sistema partidário, tanto no
subsistema majoritário quanto no proporcional, foi confirmada nos cinco modelos
testados. Há efeitos significativos das votações para prefeito e presidente
sobre as votações para governador (modelo I); das votações para prefeito e
governador sobre as votações para deputado federal (modelo II); das votações
para prefeito, governador e deputado federal sobre as votações para deputado
estadual (modelo III); das votações para governador e deputado estadual sobre
as votações para prefeito (modelo IV); e das votações para prefeito sobre as
votações para vereador (modelo V).
As estimativas obtidas indicam que, nas eleições majoritárias (governador e
prefeito), o fator de articulação mais importante é diacrônico: a votação
recebida pelos partidos em eleições anteriores para os cargos majoritários é o
que tem o maior efeito sobre a votação do partido nas eleições seguintes para
esses mesmos cargos. Essa hipótese é confirmada nos modelos I e IV pelas
estimativas por MQ2E. No modelo I, um aumento de 10 pontos percentuais na
votação de um partido qualquer nas eleições para governador produz uma mudança
esperada na votação seguinte de 5,7 pontos, estimada por Tobit, ou de 3,2
pontos, estimada por MQ2E, mantendo-se constantes as demais votações do
partido. Nas eleições para prefeito, modelo IV, um aumento de 10 pontos
percentuais produz um aumento esperado de 4,7 pontos na votação seguinte,
estimado por MQ2E, ou de 3,37 pontos, estimado por Tobit, mantendo-se as demais
votações constantes.
As evidências não são conclusivas com relação ao papel desempenhado pelas
eleições majoritárias no sistema. Com base nas estimativas por MQ2E, podemos
concluir que a votação para governador é a variável que tem o maior efeito
sobre as votações para deputado federal e estadual; e a votação para prefeito é
a que tem o maior efeito sobre a votação para vereador. Em resumo, essas são
evidências de que o subsistema majoritário organiza o subsistema proporcional.
No entanto, esses resultados não foram confirmados nas estimativas por Tobit,
que apontam a articulação diacrônica como o principal fator do sistema, mesmo
no subsistema proporcional. As votações para deputados federal e estadual
sofrem o impacto sobretudo das votações anteriores para esses mesmos cargos.
As variáveis dummies foram incluídas nos modelos com o objetivo de permitir um
teste da hipótese de que o sistema partidário brasileiro atual não apresenta
subsistemas diferenciados de acordo com o tamanho do município. As dummies
indicam, precisamente, a presença de efeitos específicos associados ao tamanho
do município27. De maneira geral, não constatamos efeitos sistemáticos
associados ao tamanho do município. Encontramos efeitos significativos em
apenas três modelos estimados por MQ2E para os municípios com menos de 10 mil
habitantes (modelos II, III e IV) e de 10 a 50 mil (modelos II e V). Nos
modelos estimados por Tobit, encontramos apenas uma dummy para os municípios
com menos de 10 mil habitantes, significativa para o nível de teste de 0,05 no
modelo IV. Esses resultados sugerem que podemos igualmente aceitar a hipótese
de que o sistema partidário brasileiro não apresenta subsistemas diferenciados
segundo o tamanho do município. A continuidade de subsistemas diferenciados na
esfera local, um argumento persistente na imaginação política brasileira, não
encontra confirmação empírica nesses resultados.
Esses resultados confirmam a existência de um padrão consistente de
estruturação das disputas eleitorais no sistema partidário brasileiro, mas
deixam uma pergunta importante a ser respondida: em que medida a organização
partidária, tal como a definimos, é o fator subjacente responsável pela
provisão desse bem público? A resposta pode ser derivada das suposições
teóricas adotadas. Como afirmamos, a organização de um sistema partidário
nacional envolve sempre diferentes problemas de coordenação que podem ser
"resolvidos" se os eleitores votam de forma instrumental, ou seja, se calculam
a probabilidade de que suas escolhas produzam resultados agregados que estejam
próximos de suas preferências individuais. O papel dos partidos, nessa
perspectiva, é de elemento articulador entre as escolhas locais e as políticas
regional e nacional. Os resultados encontrados assinalam, portanto, o efeito da
organização partidária na definição do que chamamos "articulação entre níveis
do sistema partidário brasileiro".
Nosso objetivo neste artigo foi lançar luz sobre a política local, dimensão
ainda pouco conhecida do sistema democrático brasileiro. Baseados apenas na
análise de resultados eleitorais, buscamos testar hipóteses aceitas sobre a
natureza da competição político-eleitoral no âmbito municipal e sobre sua
relação com o que ocorre nos estados. A dinâmica político-eleitoral nos
municípios não pode ser entendida como expressão apenas das forças que se movem
em seu território. Nos marcos da Federação, uma trama complexa de relações
entrelaça os municípios às esferas estadual e nacional.
A análise mostrou que há coordenação política. É provável que ela exista em
níveis mais elevados do que aqueles que pudemos medir. Nossos modelos não tomam
em consideração as coligações eleitorais, que constituem mecanismos importantes
de coordenação. Na medida em que quebramos os resultados eleitorais de todos os
pleitos por município, também deixamos de lado o efeito sobre as eleições
locais dos resultados agregados dos pleitos nos quais os distritos eleitorais
são os estados.
A despeito dos incentivos institucionais e na contramão da sabedoria
convencional, o sistema partidário brasileiro apresenta indícios de vertebração
na medida em que articula a competição por votos nas três esferas da Federação.
O município e a política local não podem ser adequadamente descritos como
pertencentes a uma arena fechada à influência das disputas travadas em outros
âmbitos do sistema partidário brasileiro.
NOTAS
1. Antes dele, Lima Junior (1983) tratou do impacto da Federação sobre o
sistema vigente entre 1946 e 1965.
2. "A natureza ideológica de um determinado partido varia consideravelmente de
um estado para outro. Além disso, às vezes o mesmo partido abriga indivíduos de
perspectivas políticas bem diferentes", observa Mainwaring (1999:160-161,
tradução dos autores).
3. "Entidade estatal, político-administrativa, com personalidade jurídica,
governo próprio e competência normativa" (Meirelles, 1993:116 apud Neves, 2000:
18).
4. Artigos I, 29-31, 156, 158 e 159 da Constituição Federal de 1988.
5. Transferências da União por meio do Fundo de Participação dos Municípios -
FPM e transferências do Estado na forma de cota-parte municipal do Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços - ICMS.
6. Depois da Lei de Responsabilidade Fiscal, passaram a vigorar limites
constitucionais para despesas totais do Legislativo municipal e para a
remuneração dos vereadores. Para os gastos totais: 8% das receitas tributárias
e de transferências constitucionais para os municípios até 100 mil habitantes e
7% para municípios entre 100.001 e 300 mil habitantes. Já a remuneração dos
vereadores corresponderá a 40% do que é pago aos deputados estaduais nos
municípios entre 50.001 e 100 mil habitantes; e a 50% naqueles entre 100.001 e
300 mil habitantes.
7. A Lei Orgânica Municipal, votada pelo Legislativo Municipal, não fica
sujeita a veto ou à sanção do prefeito.
8. O mesmo vale para os pleitos para governador, deputado estadual e deputado
federal.
9. A regra que impõe a verticalização constitui uma tentativa de reduzir os
problemas de coordenação.
10. Nas cidades com mais de 1 milhão de habitantes, a estrutura municipal se
subdividia em distritos.
11. "No período 1946-1964, algumas organizações partidárias com abrangência
nacional eram, mais precisamente, uma federação de organizações de base
estadual" (Mainwaring, 1999:157, tradução dos autores).
12. As votações do PP e do PPR foram agregadas nas eleições de 1994 e
comparadas com as votações do PPB nos demais anos do painel.
13. Existem discrepâncias importantes entre o Tribunal Superior Eleitoral - TSE
e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE quanto ao número de
municípios do país. O TSE só reconhece os municípios em que o prefeito já foi
efetivamente nomeado ou eleito e empossado; o IBGE, o município a partir do
decreto de sua criação.
14. A causalidade é entendida aqui no sentido de Granger. Gujarati (2000:627)
apresenta a seguinte definição para a causalidade de Granger: "Como o futuro
não pode prever o passado, se a variável X causa (no sentido de Granger) a
variável Y, então mudanças em X devem preceder mudanças em Y. Portanto, em uma
regressão de Y sobre outras variáveis (incluindo seus próprios valores
passados), se incluirmos os valores passados ou defasados de X e isso melhorar
significativamente a previsão de Y, podemos então dizer que X causa (no sentido
de Granger) Y".
15. Seguimos Lavareda, que atribuiu às eleições para governador o papel de
elemento articulador do sistema: "Esse pleito que de certa forma estruturava em
cada estado o desenho das demais competições, inclusive proporcionais" (1991:
129).
16. Todas as nossas estimativas foram obtidas com a utilização do procedimento
de regressão com variáveis instrumentais do software Stata 8.0. Os resultados
dos testes de avaliação para violação da hipótese de homoscedasticidade (Cook-
Weisberg) não foram satisfatórios; por isso, optamos por utilizar estimadores
robustos da variância (Huber-White). Uma vez que os casos do painel são
município/partido, especificamos que as observações são independentes entre
municípios, mas que não necessariamente para o mesmo município que aparece mais
de uma vez com as proporções de votos de diferentes partidos. Portanto,
utilizamos o controle de cluster por município.
17. Modelos de regressão Tobit permitem lidar com amostras em que as
informações da variável dependente são limitadas por algum problema de
mensuração. Long (1997:188) apresenta uma lista de exemplos de regressão Tobit
para variáveis limitadas em estudos de economia e sociologia.
18. A categoria de referência na análise são os municípios com mais de 200 mil
habitantes; portanto, essa dummy não foi incluída nas equações especificadas.
19. Nas estimativas por Tobit, a primeira equação foi estimada substituindo-se
β2 gov(t) porβ2 gôv(t), estimado pela equação dois do modelo.
20. Nas estimativas por Tobit, a primeira equação foi estimada substituindo-se
β2 gov(t) porβ2 gôv(t), estimado pela equação dois do modelo.
21. Nas estimativas por Tobit, a primeira equação foi estimada substituindo-se
β2 pref(t-1) porβ2 prêf(t-1), estimado pela equação dois do modelo.
22. Nas estimativas por Tobit, a primeira equação foi estimada substituindo-se
β1 pref(t) porβ1 prêf(t), estimado pela equação dois do modelo.
23. Esse procedimento - considerar apenas a votação do partido que encabeçava a
coligação e imputar zero à votação dos demais partidos da coligação - foi
seguido em todas as eleições com as quais trabalhamos.
24. A hipótese nula estabelece que não existe articulação entre os subsistemas
partidários local, estadual e nacional.
25. Uma variável dependente y* é latente quando q < y* < k, sendo q e k os
limites do intervalo no qual a variável pode ser observada.
26. O limite superior de 0,8 (ou 80%) corresponde a um limite escolhido
arbitrariamente, a partir do qual consideramos que podem existir problemas com
as informações.
27. A dummy para cidades com mais de 200 mil habitantes não foi incluída nas
equações e serve, portanto, de base para a comparação com as demais. Não
interessa na presente análise oferecer uma interpretação substantiva para o
coeficiente estimado para as dummies, o qual indica a diferença entre as médias
da variável dependente em uma determinada classe de tamanho de município com
relação aos municípios com mais de 200 mil habitantes (Kennedy, 1992:220).