Capital Familiar e Carreira Política no Brasil: Gênero, Partido e Região nas
Trajetórias para a Câmara dos Deputados
O ingresso de qualquer indivíduo na carreira política está condicionado por
dois fatores: a vontade de participar da política institucional e o acesso aos
recursos necessários – tanto materiais quanto simbólicos – para que esta
participação se efetive. Há uma circularidade significativa entre esses dois
fatores, uma vez que, dada a tendência de que os indivíduos adequem seus
desejos às suas possibilidades, a impossibilidade de acesso aos recursos tende
a reduzir a vontade de participar. E, inversamente, a perspectiva de uma
trajetória de sucesso, dada a existência dos meios necessários, contribui para
a emergência desta vontade.
O chamado “capital familiar” – a existência de parentes próximos ocupando
posições de liderança política – incide sobre ambos os fatores. Em todas as
atividades profissionais há um grau de recrutamento endógeno, e com a carreira
política não é diferente. A presença de pessoas do círculo íntimo exercendo
aquela profissão gera a familiaridade e o interesse que estimulam uma opção
similar. Por outro lado, trata-se de um “capital” exatamente porque fornece a
seu detentor um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento do campo, uma
marca dotada de certo valor (seu sobrenome), uma visibilidade derivada do
parente mais importante e, em especial, uma rede de contatos com outros
operadores políticos, de cabos eleitorais e dirigentes partidários a
financiadores de campanha e jornalistas, que podem favorecer sua própria
carreira.
Assim, o recrutamento familiar de lideranças políticas é um fenômeno corrente
mesmo em países que aboliram há décadas qualquer regra de hereditariedade para
o preenchimento de cargos públicos. Há ditaduras que formam verdadeiras
dinastias republicanas – como, ainda hoje, Coreia do Norte, Síria ou Cuba. Mas
o fenômeno é perceptível também em regimes políticos competitivos. Para citar
apenas dois exemplos recentes: George W. Bush chegou à Presidência dos Estados
Unidos nas eleições de 2000, oito anos após o final do mandato do pai; Cristina
Kirchner foi eleita em 2007 para suceder ao marido, Néstor, na Presidência da
Argentina. Em cargos como deputado ou senador, o fenômeno é tão corriqueiro que
nem sequer chama a atenção.
No Brasil não é diferente. Há um contingente expressivo de detentores de
mandato, bem como de cargos “de confiança” do Poder Executivo, que provêm de
famílias políticas – seja em câmaras municipais e prefeituras, em assembleias
legislativas e governos estaduais ou no Congresso Nacional e nos ministérios. O
peso do capital familiar difere, de acordo com a trajetória de cada um. Há
tanto aqueles que se apoiaram exclusivamente nas redes geradas pelas relações
de parentesco quanto quem as combinou, em diferentes graus, com a militância em
movimentos sociais ou a visibilidade midiática.
Seja como for, esta origem familiar é um traço presente em boa parte da elite
política brasileira. Com base numa percepção impressionista e em enquadramentos
–framings, no sentido de Goffman_(1986) – de senso comum, o discurso
jornalístico1 (e mesmo o da ciência política) costuma operar com quatro crenças
sobre o fenômeno, tal como verificado no Brasil:
1. O capital familiar é crucial para o ingresso das mulheres na política,
mas menos importante para os homens.
2. O capital familiar é mais presente nas carreiras de políticos e políticas
vinculados aos partidos tradicionais ou de direita do que aos partidos de
esquerda.
3. O capital familiar tem um peso maior nas regiões economicamente menos
desenvolvidas (Norte, Nordeste e Centro-Oeste).
4. A prevalência do capital familiar é um indício de “atraso” político,
tendendo, portanto, a se reduzir com o amadurecimento da democracia no
País.
Nosso objetivo neste artigo é tratar estas quatro crenças como hipóteses,
reunindo evidências que sejam capazes de comprová-las, refutá-las ou – mais
provavelmente – matizá-las. Para isso, foi montado um banco de dados sobre
todos os deputados e deputadas federais eleitos nas três primeiras eleições
ocorridas no século XXI, com informações relativas à trajetória política
(cargos públicos ocupados, ou seja, capital político do próprio campo) e às
possíveis fontes de capital político, aí incluídos o capital econômico, a
visibilidade midiática, a participação em movimentos sociais e associações de
classe, a vinculação com seitas religiosas e também o capital familiar. Os
dados foram colhidos no repertório biográfico que a Câmara dos Deputados
disponibiliza, nos sites oficiais dos parlamentares, no Dicionário Histórico-
Biográfico Brasileiro (Paula_e_Lattman-Weltman,_2010) e em diversas outras
fontes, como jornais ou observatórios de acompanhamento parlamentar. O objetivo
foi não restringir a base às informações oficiais, nas quais, por vezes,
ligações com grupos econômicos, com empresas de mídia ou mesmo com clãs
familiares são minimizadas ou escamoteadas. A coleta dos dados buscava
identificar a situação do deputado no momento de cada eleição; isto é, foram
desprezadas as informações sobre posições ocupadas posteriormente2.
O banco de dados reuniu 1.539 casos, relativos a 983 diferentes deputados – se
a mesma pessoa foi eleita mais de uma vez, ganhou mais de uma entrada3. Foram
considerados apenas os eleitos e eleitas, independentemente de terem assumido
ou não o mandato, de acordo com a listagem final da Justiça Eleitoral (que,
sobretudo nas eleições de 2010, por conta da chamada Lei da Ficha Limpa,
alterou mais de uma vez os resultados, mesmo depois de iniciada a legislatura).
Não foram considerados os suplentes, mesmo que tenham assumido o mandato na
íntegra. A identificação do partido se refere à legenda pela qual foi disputada
a eleição, sem atenção para eventuais mudanças posteriores.
A taxa média de reeleição ficou em 56,1%, com 6,5% dos eleitos e eleitas
voltando à Câmara dos Deputados após interrupção e, em média, 37,4% de
deputados e deputadas novos a cada legislatura. As diferenças entre as eleições
de 2002, 2006 e 2010 não são dignas de nota. No que se refere às bancadas
partidárias, são notáveis as reduções do tamanho do PSDB (de 70 eleitos em 2002
para 54 em 2010) e, sobretudo, do PFL/DEM (de 84 eleitos em 2002 para apenas 43
em 2010). Agrupados os partidos de acordo com a classificação tradicionalmente
usada na ciência política brasileira (cf. Krause,_Dantas_e_Miguel,_2010),
percebe-se o crescimento continuado do número de deputados e deputadas dos
partidos considerados de esquerda (que evoluem de 167 para 188, e daí para 196
eleitos), o que reflete em grande medida o impacto do controle do governo
federal nos resultados eleitorais. É claro que, nas condições da competição
político-partidária no Brasil, a filiação a um partido classificado
convencionalmente como de esquerda não implica em nenhum tipo de compromisso de
natureza ideológica.
Ao todo, foram eleitas 130 mulheres nas três disputas em foco, isto é, 8,4% do
total, em (mais uma) demonstração da baixa efetividade das cotas por sexo no
Brasil, amplamente discutida na literatura (Alves,_Cavenaghi_e_Alcântara,_2007;
Miguel,_2008, 2012; Marques,_2008; Marques,_Machado_e_Recch,_2009;Bolognesi,
2012). Foram 41 eleitas em 2002, um número ligeiramente superior, 45, em 2006,
descendo para 44 em 20104. A proporção de mulheres é maior nas bancadas do
Norte (15,9% em média) e do Centro-Oeste (10,6%), embora ocorra alguma
oscilação nas três eleições sob análise (Gráfico_1).
Gráfico 1 Porcentagem de Mulheres Eleitas para a Câmara dos Deputados
Brasileira, por Ano e Região
No que se refere à posição dos partidos no eixo esquerda-direita, as mulheres
têm uma presença ligeiramente maior na esquerda (média de 11,6%, contra 7,1% no
centro e 6,3% na direita), situação que não sofre alteração significativa de
uma eleição para outra. Entre os partidos que elegeram 10 ou mais deputados nas
três eleições reunidas, a maior presença feminina está no PCdoB (35%), seguido
do PSB (15,5%) e do PT (10,8%), todos agrupados entre as legendas de esquerda.
Na primeira seção do texto, detalhamos os conceitos de capital político e
capital familiar, bem como a utilização que fazemos deles. A segunda descreve e
analisa os dados relativos às bancadas eleitas para a Câmara dos Deputados nas
três primeiras eleições do século XXI. A conclusão, por fim, discute o que os
dados permitem afirmar em relação às quatro hipóteses enunciadas anteriormente.
CAPITAL POLÍTICO E CAPITAL FAMILIAR
O conceito de capital político, extraído da obra de Pierre Bourdieu, tem se
mostrado uma ferramenta útil para analisar a construção das carreiras
parlamentares. Em relação a abordagens centradas apenas na ocupação prévia de
cargos públicos, ele tem a vantagem de ser sensível à multiplicidade de
trajetórias possíveis num campo político que é desigualmente poroso aos
diferentes recursos retidos por grupos e indivíduos.
O capital político é uma forma de capital simbólico, isto é, dependente do
reconhecimento fornecido pelos próprios pares, ou seja, os membros do campo
político. Uma vez que no regime democrático concorrencial todos, em momentos-
chave, lutam por votos, a popularidade contribui para tal reconhecimento, mas
não é seu único determinante. Campeões de voto podem ocupar posições
secundárias no Congresso Nacional e ser irrelevantes politicamente – o palhaço
Tiririca, deputado mais votado nas eleições de 2010, é apenas um exemplo
extremo.
Como toda forma de capital, o capital político está desigualmente distribuído
na sociedade. Na base da pirâmide, temos os simples eleitores, que podem apenas
optar por uma entre as alternativas propostas, sem praticamente nenhuma voz
ativa na vida política; no topo, os líderes que são os autores das alternativas
em jogo e que sãoreconhecidos como representantes dos diversos segmentos
sociais. Embora Bourdieu não tenha desenvolvido uma catalogação exaustiva das
formas do capital político, é possível elaborar, a partir de suas categorias,
uma divisão tríplice:
1. capital delegado, isto é, “o do sacerdote, do professor e, mais
geralmente, do funcionário, produto da transferência limitada e
provisória (embora renovável, por vezes vitaliciamente) de um capital
detido e controlado pela instituição e só por ela: é o partido que, por
meio da ação de seus quadros e dos seus militantes, acumulou no decurso
da história um capital simbólico de reconhecimento e defidelidades”
(Bourdieu,_1981:19; tradução livre; ênfases no original). Isto é, o
político é depositário de um capital que pertence, na verdade, à
organização. É possível encaixar aqui os detentores de cargos públicos em
geral;
2. capital convertido, isto é, quando a notoriedade e a popularidade obtidas
em outras áreas são transferidas para a política, como, por exemplo,
quando intelectuais, artistas ou esportistas ingressam na vida
parlamentar. Neste caso, é relevante identificar a “taxa de conversão”,
que varia de espécie para espécie de capital e é função das próprias
lutas políticas. Quando, por exemplo, um esportista ingressa na vida
política, ser-lhe-á imposta uma taxa de conversão desfavorável, tornando
improvável que ele alcance uma posição de primeira grandeza. Já o capital
cultural pode obter uma taxa de conversão melhor. Uma outra espécie de
conversão pode partir do capital econômico, que é, historicamente, um bom
suporte para o sucesso político – ou seja, tem uma boa taxa de conversão;
3. capital heroico, na verdade uma subespécie docapital convertido: mas, se
“este capital pessoal denotável é produto de uma acumulação lenta e
contínua, que leva em geral toda uma vida, o capital pessoal a que se
pode chamar heroico e profético e no qual pensa Max Weber quando fala de
‘carisma’ é produto de uma ação inaugural, realizada em situação de
crise” (Bourdieu,_1981:18; tradução livre; ênfase no original).
A pesquisa que originou este artigo trabalhou com uma tipologia própria,
desdobrada dos tipos básicos que são o capital delegado e o capital convertido.
Foram identificadas as seguintes fontes de capital político para os deputados e
deputadas federais eleitos de 2002 a 20105:
– capital econômico, quando o parlamentar detém propriedade ou possui
vinculação íntima com grupo econômico importante em sua região;
– capital midiático, incluindo tanto a “popularidade” de
personalidades da indústria da comunicação, como atores, jornalistas,
radialistas e cantores, e também de celebridades do esporte, que se
tornam conhecidas do grande público pela presença na televisão,
rádio, revistas e jornais, quanto os proprietários de veículos de
imprensa;
– direção de sindicatos e federações de trabalhadores;
– direção de sindicatos e associações patronais;
– vinculação com religião organizada, na posição de sacerdote ou de
líder de movimento leigo autorizado pela hierarquia;
– capital político do próprio campo, ou seja, capital delegado de
cargos públicos e/ou partidários ocupados anteriormente; e
– capital familiar, quando o parlamentar se beneficiou com o
prestígio e/ou os contatos de parente próximo ou cônjuge com
liderança política.
Ficaram de fora muitas outras fontes em potencial de capital político, em
particular a participação em diferentes tipos de movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e a atuação profissional que permite a formação
de uma rede de contatos (médico, professor, farmacêutico etc.), o que é
significativo sobretudo na política local. No entanto, a coleta destas
informações é mais difícil, o que ampliaria o grau de incerteza quanto às
conclusões extraídas da análise da base de dados. Muitos movimentos sociais têm
atuação informal, muitas organizações civis são meras fachadas sem atividade
efetiva. E é difícil diferenciar, pela simples leitura de currículos, uma
atuação profissional vigorosa, que granjeou notoriedade e prestígio local, da
simples posse de um diploma.
O foco deste artigo é o capital familiar. Ele opera pela convivência cotidiana
com as transações da política, facilitando o acesso aos códigos do métiere às
redes de compromissos e lealdades. E opera também pela formação de clãs
políticos, cujos integrantes são estimulados ou mesmo constrangidos a ocupar os
espaços que os membros mais velhos ou mais importantes deixam para trás. Assim,
é relativamente frequente que um político que passa da política municipal para
a estadual ou dessa para a federal mobilize recursos para colocar um filho,
cônjuge ou irmão disputando o cargo que deixou vago.
Há tempos, os estudos sobre a trajetória política das mulheres no Brasil têm
afirmado que o capital familiar é a principal rota de acesso delas aos cargos
políticos (Araújo,_2001; Miguel_e_Queiroz,_2006). Embora se reconheça que ele
tem peso também entre os homens, considera-se que para eles é apenas um recurso
entre muitos outros. A relevância seria bem maior para as mulheres. Alguns
casos de grande visibilidade contribuem para firmar essa impressão. Por
exemplo, até hoje apenas sete diferentes mulheres elegeram-se governadoras de
estados brasileiros. Cinco delas possuíam vínculos familiares com ex-
governadores, fossem os de filha (Roseana Sarney, quatro vezes eleita para o
governo do Maranhão), cônjuge (Rosinha Matheus, eleita no Rio de Janeiro em
2002, e Suely Campos, eleita em Roraima em 2014 após ter assumido a candidatura
de seu marido, impedido de concorrer pela Lei da Ficha Limpa), ex-cônjuge
(Vilma de Faria, eleita no Rio Grande do Norte em 2002) ou nora (Rosalba
Ciarlini, eleita no Rio Grande do Norte em 2010)6.
Pesquisas sobre o Parlamento também destacam a importância do capital familiar
nas carreiras políticas femininas. No entanto, tais pesquisas costumam focar
apenas nas deputadas (Pinheiro,_2007; Marx,_Borner_e_Caminotti,_2007), o que
impede a análise sobre a maior importância relativa para as mulheres. Neste
artigo, iniciamos esta verificação, buscando compreender qual é a magnitude do
impacto do capital familiar para a construção de carreiras de mulheres e homens
que tiveram sucesso em se eleger para a Câmara dos Deputados.
Para a identificação da presença de uma família política, como regra foram
considerados ascendentes e descendentes diretos, bem como cônjuges, irmãos e
sogros, que tenham ocupado cargos eletivos e/ou cargos de primeiro escalão no
Poder Executivo antes da eleição em análise. Eventualmente, caso houvesse
notoriedade relativa à importância de outra relação familiar, ela foi
considerada. A fronteira da família guarda algo de arbitrário; no entanto,
expandi-la demais, aceitando até ancestrais longínquos da época do Império
(Oliveira,_2012), implica em perder de vista o que se busca. Não é uma herança
genética, mas o fato de que aquela relação contribuiu de maneira significativa
para a carreira política de pelo menos um dos dois implicados. Um pai ou
cônjuge na política tem muito mais chance de preencher esse requisito do que um
primo em segundo grau, um tio-avô ou um trisavô.
É possível que, em alguns casos, a relação familiar, mesmo próxima, tenha
impacto reduzido ou nulo nas trajetórias políticas – irmãos que chegam a
posições de liderança por meio de atuações distintas em movimentos sociais ou
cônjuges que se encontraram quando já ocupavam posições de poder, sem que o
relacionamento tenha contribuído para alavancar a carreira posterior de
qualquer um dos dois. Trata-se, no entanto, de situações de absoluta exceção.
Por outro lado, o banco de dados não discrimina origem e receptor das vantagens
advindas do capital familiar, mesmo nos casos em que são polos claramente
distintos. Ao classificar indistintamente a relação familiar tanto ascendente
quanto descendente, considera-se a importância da existência de uma rede de
apoio político decorrente de vinculações familiares para o sucesso eleitoral. O
fundador do clã, por assim dizer, é identificado pelas relações com seus
parentes tanto quanto o inverso. Mais uma vez, são casos de exceção. Mas, a
rigor, os dados aqui descritos dizem respeito à “presença de família na
política”, e não ao “capital familiar” em si.
Vale a pena ressaltar que a temática do capital familiar, embora considerada
relevante, não costuma ser central nas análises sobre carreiras políticas no
Brasil. Os estudos tradicionais da área costumam se dedicar a análises sobre
fidelidade partidária e renovação parlamentar (cf. Santos,_1997), composição
social das Casas legislativas (cf. Rodrigues,_2006), as relações entre os
perfis ocupacionais e associativos, os partidos políticos e suas ideologias
(cf. Santos_e_Serna,_2007), e também à discussão das grandes diferenças entre o
conjunto de candidatos e eleitos – indicando as características da
profissionalização no campo político brasileiro e sua tendência à
oligarquização (Perissinotto_e_Miríade,_2009). O debate sobre a desigualdade de
gênero neste âmbito também é citado, mas não é o foco das análises. Desse modo,
esta pesquisa pretende preencher uma lacuna, explorando não apenas a questão do
capital familiar, mas também sua associação com as impressões que os estudos
sobre desigualdades de gênero na política também apontam.
Famílias na Política Brasileira
Entre todos os indicadores de fontes de capital político estudados, o mais
presente entre os deputados e deputadas federais eleitos é, como esperado, a
ocupação prévia de cargos eletivos7. No período sob análise, 87,3% dos
vitoriosos para a Câmara dos Deputados haviam sido eleitos para algum cargo em
disputas anteriores; acrescentados à lista aqueles que ocuparam apenas cargos
não eletivos nos primeiros escalões, o total chega a 90,6% dos eleitos8, sem
que se registrem diferenças de monta entre as três eleições. Ou seja,
indivíduos que seguem um fast track para a Câmara dos Deputados, a partir da
visibilidade na mídia, da vinculação com corporações e categorias profissionais
ou mesmo do capital econômico, formam um grupo bastante minoritário, mas não
desprezível. Isolados daqueles cujo único cargo anterior tinha sido outro
mandato de deputado federal, verifica-se que 57,2% dos eleitos e eleitas
ocuparam algum outro cargo eletivo e 71,7% algum outro cargo público, fora a
própria Câmara.
À parte a reeleição, os cargos eletivos mais frequentes na trajetória dos
deputados federais são os de deputado estadual (37,9% dos eleitos já ocuparam o
cargo), vereador (30,9%), prefeito (17,9%) e vice-prefeito (5,8%). O volume
relativamente elevado de “saltos” da política municipal para o Congresso
Nacional, violando o modelo ideal da carreira (cf. Miguel,_2003), é explicado
pelo calendário eleitoral brasileiro. Como as eleições para cargos estaduais e
federais ocorrem ao mesmo tempo, diferentemente dos cargos municipais, o custo
para um vereador se candidatar a deputado federal é relativamente pequeno, pois
em caso de derrota ele mantém seu mandato – ao contrário, por exemplo, de um
deputado estadual, que pode estar trocando uma reeleição segura por uma aposta
incerta num cargo mais elevado.
Após a ocupação de outros cargos públicos, eletivos ou não, proporcionadora de
capital do tipo delegado, o indicador de fonte de capital político mais
relevante é o poder econômico, constatado em 56,9% dos eleitos e eleitas, e em
seguida a presença de família política, identificada entre 40,7% dos eleitos e
eleitas. Depois aparecem a visibilidade na mídia (19,4%), a militância em
sindicatos de trabalhadores (19,2%), a liderança de associações patronais
(9,6%) e a vinculação com a religião organizada (5,1%). O baixo percentual de
líderes do patronato em comparação com detentores de poder econômico indica que
a presença da burguesia no Poder Legislativo se dá à margem de sua
representação formal de classe.
Os dados mostram que há um crescimento monótono e significativo da presença de
família política em cada uma das eleições sob análise (Gráfico_2). Trata-se do
maior crescimento entre todas as categorias (10,7 pontos percentuais de 2002 e
2010), seguido, de longe, pelo capital econômico (4,7 pontos percentuais). As
oscilações das outras categorias são bem menos significativas e, em geral,
inconstantes.
[/img/revistas/dados/v58n3//0011-5258-dados-58-3-0721-gf02.jpg]
Gráfico 2 Presença de Tipos de Capital Político entre os Deputados Federais
Eleitos, por Ano da Eleição
A presença de família política é mais frequente entre os mais jovens (65,1% dos
nascidos de 1970 em diante) e entre os mais velhos (45,8% dos nascidos antes de
1940), o que certamente se explica, por um lado, pelo fato de que o capital
familiar é, ao lado do capital econômico, o que está disponível de forma mais
precoce; e, por outro, pelo fato de que os mais velhos possuem descendentes em
condição de ingressar na carreira política. Já a Tabela_1 indica que, como
regra, as relações familiares são um recurso mais presente naqueles que possuem
menos experiência política (nunca ocuparam cargos eletivos anteriormente). Os
números destoantes de 2002, no entanto, exigem investigação mais aprofundada.
Tabela 1 Porcentagem de Presença de Família Política entre os Deputados
Federais Eleitos, por Experiência Prévia e Ano da Eleição
Ano Total Primeira Eleição para aPrimeiro Cargo Primeiro Cargo Público
Câmara Eletivo
2002 32,7 29,8 23,9 18,4
2006 42,7 46,4 50,0 44,4
2010 46,6 43,9 50,8 52,1
Fonte: Pesquisa Carreira Política e Gênero no Brasil.
Por outro lado, a vinculação a uma família política tende a vir “acompanhada”
do capital econômico e do capital midiático. Entre os eleitos e eleitas com
vinculação a família política, 68,4% apresentam indícios de posse de capital
econômico, contra 49% dos restantes; 23,6% aparecem como relacionados à mídia,
percentual que cai para 16,5% entre os demais. Aqui, há tanto aqueles que
herdam os veículos de comunicação dos pais quanto casos como o de Paulo
Bornhausen, filho de uma tradicional oligarquia catarinense, que estrelou um
programa radiofônico popular em Santa Catarina como estratagema para superar a
falta de votos crônica de seu clã. Já em relação à liderança de sindicatos de
trabalhadores e à vinculação com religião organizada, a presença de família
política mostra ter, como esperado, um impacto negativo.
FAMÍLIA POLÍTICA: DISTRIBUIÇÃO REGIONAL E IDEOLÓGICO-PARTIDÁRIA
No que se refere às regiões do país, os dados mostram que, como previsto, as
regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte apresentam maior proporção de deputados
federais com vínculos políticos familiares. No entanto, o comportamento não é
similar em todos os anos de eleição (Tabela_2). As únicas constantes são a
maior presença das famílias políticas entre os eleitos do Nordeste e a
tendência ao crescimento dessa característica em todas as regiões.
Tabela 2 Porcentagem de Deputados Federais Eleitos com Presença de Família
Política, por Região e Ano da Eleição
Região 2002 2006 2010 Média
Sul 27,3 29,9 36,4 31,2
Sudeste 26,3 39,1 39,7 35,0
Centro-Oeste 34,1 39,0 48,8 40,7
Nordeste 45,7 53,6 60,3 53,2
Norte 26,2 44,6 44,6 38,5
Fonte: Pesquisa Carreira Política e Gênero no Brasil. Obs.: A base para o
cálculo é o total de deputados eleitos de cada região em cada ano de eleição.
Quando os números são trabalhados por unidade da Federação, porém, desfaz-se a
imagem de uma progressão linear em que desenvolvimento econômico e prevalência
do capital familiar estão inversamente relacionados. A menor proporção de
eleitos e eleitas com presença de família política é o Distrito Federal
(12,5%), efeito, sem dúvida, de sua juventude – fundada em 1960, a nova capital
só começou a eleger deputados em 1986, e seus clãs ainda estão em formação.
Seguem o Rio Grande do Sul (20,4%), que os relatos da história brasileira
costumam apresentar como terreno de disputas mais programáticas e ideológicas,
e o Pará (27,5%). Na outra ponta, estão estados nordestinos: Rio Grande do
Norte (75%), Alagoas (59,3%), Maranhão (57,4%) e Pernambuco (57,3%). O estado
mais rico, São Paulo, apresenta 33,3% de seus eleitos com identificação de
família política.
A clivagem por posição “ideológica” também segue o padrão esperado. Somadas as
três eleições, os deputados e deputadas federais que concorreram por partidos
considerados de direita e de centro aparecem com uma proporção maior de casos
com presença de família política do que os de esquerda – são 50,5% dos eleitos
pelos partidos de centro e 43,3% dos partidos de direita, contra 30,3% dos de
esquerda. Mas, embora a tendência geral seja de aumento dos vínculos com
família política nos três agrupamentos, a amplitude da diferença cresceu. A
diferença entre a proporção de eleitos com presença de família política nos
partidos de centro e direita reunidos e nos partidos de esquerda passa de 13
pontos percentuais em 2002 para 14,5 em 2006 e 22,5 em 2010.
Levados em conta os partidos isoladamente, aparecem diferenças importantes,
sobretudo na esquerda. Entre aqueles aqui considerados médios ou grandes, isto
é, que elegeram 10 ou mais deputados nas três eleições sob análise somadas, o
PT se destaca com o menor percentual de eleitos com família política – apenas
18,1%, na média. PV e PCdoB também ficam abaixo dos 30%. Já o PPS, que é
classificado como de esquerda por sua origem no antigo PCB, mas que se firmou
na política nacional do período analisado como parceiro menor da aliança
centro-direitista entre PSDB e PFL/DEM, tem perfil destoante, com 55,1% dos
deputados que elegeu apresentando vínculos familiares. Entre as legendas médias
ou grandes, só fica atrás do PMDB, que tem 56,1% dos eleitos nessa situação,
proporção compatível com sua imagem de federação de caciques locais.
Gênero e Família Política
Passamos agora à distinção por sexo9. A presença de família política é, de
fato, maior entre as mulheres (53,1% das eleitas nos três pleitos), mas está
longe de ser pouco relevante para os homens (39,5% deles). E os dados mostram
que, enquanto a proporção de deputadas eleitas com presença de família política
oscilou pouco e sem direção definida ao longo das três eleições, a proporção de
deputados do sexo masculino na mesma situação teve uma progressão acentuada
(Tabela_3).
Tabela 3 Porcentagem da Presença de Família entre os Deputados Eleitos, por
Sexo e Ano de Eleição
Ano Mulheres Homens
2002 51,2 31,1
2006 55,6 41,5
2010 52,3 46,1
Fonte: Pesquisa Carreira Política e Gênero no Brasil. Obs.: A base para o
cálculo é o total de deputados eleitos de cada sexo em cada ano de eleição.
As diferenças entre homens e mulheres são ampliadas, no entanto, quando são
isolados os deputados que chegaram à Câmara sem ter ocupado qualquer cargo
eletivo anterior. Há 25 entradas de mulheres e 168 de homens nesta situação, o
que significa que é um caminho um pouco mais frequente para elas (19,2% de
todas as deputadas eleitas) do que para eles (11,9% do total de deputados
eleitos nas três disputas). O pequeno número de mulheres nessa situação, porém,
faz com que a diferença tenha pequeno poder discriminatório. No caso das
mulheres, 72% das que se encontram nessa situação integram família política.
Para os homens, a proporção baixa para 35,7%10. Ao que tudo indica, embora o
capital familiar tenha se tornado quase tão importante para os homens quanto
para as mulheres (em 2010, a diferença entre eles é de apenas 6,2 pontos
percentuais), eles possuem um leque maior de alternativas quando se trata de
buscar “atalhos” que os levem diretamente a posições de maior prestígio, como a
de deputado federal, ao passo que para elas a rede de relações familiares é a
opção mais evidente.
A literatura sobre recrutamento político costuma apresentar este processo como
uma “corrida com barreiras” – aqueles que têm sucesso em ultrapassá-las são os
felizes vencedores desta competição e conseguem ser eleitos11. Em sua clássica
abordagem sobre o processo de recrutamento legislativo, Norris_(1993, 1997)
desenha um modelo explicativo enquadrado, de modo geral, pelo sistema político
(a cultura política, o sistema eleitoral, o sistema partidário e a competição
legislativa) e pelo contexto partidário (como ideologia partidária e as
estruturas de organização dos partidos). Especificamente o processo de
recrutamento se desenvolveria nas seguintes direções: o contexto social no qual
o indivíduo está inserido condiciona suas motivações (ou seja, a sua ambição
política) e os recursos disponíveis para a construção de sua carreira,
definindo os aspirantes à carreira política. A partir deste momento, definem-se
os selecionados/recrutados pelosgatekeepers partidários (sob influência das
regras partidárias, que podem definir este processo com variação no seu grau de
burocratização e de centralização na figura dos líderes do partido). Desta
seleção define-se o conjunto de candidatos(as) para concorrer às eleições –
único processo em que eleitores exercem influência nas decisões sobre a
ocupação das cadeiras legislativas. Da eleição, dá-se o resultado do processo,
ou seja, a definição dos(as) eleitos(as).
Neste contexto, homens são privilegiados estruturalmente na mobilização de
recursos que viabilizam a construção de uma carreira política de sucesso, então
tendem a apresentar maior “ambição política”, ou seja, interesse em ingressar
no campo político. Nesse primeiro passo do recrutamento político, isto é, de
seleção de aspirantes à ocupação de cargos eletivos, há mais homens do que
mulheres, pois o ambiente de recrutamento normalmente é mais favorável para
eles – ou seja, a desigualdade na participação já se vê presente no primeiro
passo do recrutamento de possíveis políticos. Em praticamente todas as
culturas, homens são socializados para ver a política como uma área de atuação
legítima, ao contrário das mulheres, o que os leva a desenvolver mais interesse
pela área do que elas (e, consequentemente, a ter mais ambição política). Além
disso, eles costumam ter mais acesso a recursos materiais, novamente por sua
posição de partida privilegiada (Matland,_2005).
Dado o conjunto de aspirantes, o segundo passo é a seleção de candidaturas, um
dos papéis mais importantes de um partido político. O processo de seleção de
quem será lançado candidato pode variar muito: pode ser dos mais abertos aos
mais fechados, como candidatura de todos os membros, a realização de primárias,
a indicação pela direção do partido etc. Uma regra geral seguida pelos
partidos, de acordo com Matland_(2005), é que eles sempre buscarão candidatos
que maximizarão os votos, em um cálculo de utilidade simples. Pessoas
consideradas menos atraentes eleitoralmente não serão selecionadas pelos
partidos (ou, mais especificamente, por seusgatekeepers). O sistema eleitoral
contribui para indicar quais características contarão como atraentes. Em geral,
porém, itens como o passado do possível candidato no partido, os mandatos
eletivos já cumpridos, a visibilidade na comunidade, posições de liderança em
organizações sociais e a ocupação de cargos públicos tendem a favorecer mais os
homens do que as mulheres. E a terceira barreira, a eleição propriamente dita,
não apresenta consenso na ciência política. Apesar de haver evidências da
desigualdade social e da deslegitimação histórica das mulheres, não há pesquisa
conclusiva que possa afirmar, empiricamente, o preconceito do eleitorado contra
candidatas mulheres.
Nesse ponto, a presença de capital familiar é um diferencial positivo na
definição da candidatura – em um contexto social de desprivilegiamento do
ingresso feminino no campo político, o capital político transferido de
familiares que pertencem ao campo político é um diferencial importante que pode
alavancar candidaturas de mulheres. Como para os homens outras formas de
entrada são mais acessíveis, o peso do capital familiar não é tão
preponderante.
Gênero e Família Política: Interações Regionais e Ideológicas
O cruzamento entre as variáveis sexo e posição ideológica do partido revela que
ambas têm impacto independente. Seja na esquerda, no centro ou na direita, as
mulheres aparecem mais vinculadas a famílias políticas do que os homens (Tabela
4). Mas a diferença é menor entre os eleitos pelos partidos de esquerda, isto
é, os deputados dos dois sexos eleitos nesse grupo têm perfil mais similar
quanto à posse de capital familiar.
Tabela 4 Porcentagem de Deputados Federais Eleitos com Presença de Família
Política, por Sexo e Posição do Partido no Eixo Esquerda-Direita (2002-2010)
Sexo Esquerda Centro Direita
Mulheres 40,6 64,5 65,7
Homens 29,0 49,4 41,8
Fonte: Pesquisa Carreira Política e Gênero no Brasil. Obs.: A base para o
cálculo é o total de deputados eleitos de cada sexo em cada grupo de partidos.
O cruzamento entre sexo e região mostra um padrão mais complexo (Tabela_5). As
diferenças entre os percentuais de eleitos com presença de família política, de
acordo com a região geográfica, são muito maiores para as mulheres do que para
os homens. Para os últimos, apenas a região Nordeste se singulariza; as outras
quatro regiões permanecem dentro da mesma faixa. Na região Sul, por outro lado,
a diferença entre mulheres e homens é irrisória. No Nordeste também, mas com a
característica particular de que a presença de vinculações política familiares
é ligeiramente superior para os homens. Na região Norte, ao contrário, a
discrepância é brutal. Quase três quartos das mulheres, mas menos de um terço
dos homens, apresentam indícios de capital político do tipo familiar.
Tabela 5 Porcentagem de Deputados Federais Eleitos com Presença de Família
Política, por Sexo e Região (2002-2010)
Região Mulheres Homens
Sul 33,3 31,0
Sudeste 45,5 34,1
Centro-Oeste 53,8 39,1
Nordeste 51,9 53,3
Norte 74,2 31,7
Fonte: Pesquisa Carreira Política e Gênero no Brasil. Obs.: A base para o
cálculo é o total de deputados eleitos de cada sexo em cada região.
É tentador buscar explicações para as discrepâncias, sugerindo que no Norte o
familismo supera o sexismo, ao passo que no Nordeste ocorreria o contrário. Mas
é indicada uma maior prudência, até porque, em algumas células da tabela, a
quantidade de casos é muito pequena. Os 33,3% de mulheres eleitas com família
política na região Sul equivalem a apenas cinco casos (de quatro diferentes
deputadas). Os 53,8% das mulheres do Centro-Oeste correspondem a sete casos (de
cinco diferentes deputadas). Portanto, as porcentagens podem variar grandemente
com a mudança de uma pequena quantidade de números absolutos.
Por fim, o cruzamento entre a posição das legendas no eixo esquerda-direita
corresponde, em linhas gerais, ao padrão esperado (Tabela_6). Conforme vamos do
canto superior esquerdo (esquerda, regiões Sul e Sudeste) para o canto inferior
direito (centro e direita, regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte) da tabela, a
tendência é de ampliação da proporção de deputados eleitos com indicação de
pertencimento a família política.
Tabela 6 Porcentagem de Deputados Federais Eleitos com Presença de Família
Política, por Região e Posição do Partido no Eixo Esquerda-Direita
Região Esquerda Centro Direita
Sul 19,3 39,7 36,3
Sudeste 27,4 47,1 35,0
Centro-Oeste 25,0 51,0 40,5
Nordeste 39,1 63,6 58,0
Norte 36,4 43,1 36,6
Fonte: Pesquisa Carreira Política e Gênero no Brasil. Obs.: A base para o
cálculo é o total de deputados eleitos de cada grupo de partidos em cada
região.
A aplicação simultânea das três variáveis revela seu impacto conjunto. Entre os
homens eleitos por partidos de esquerda nas regiões Sul e Sudeste, a presença
de família política fica em 19,4% (14 casos num universo de 72). Entre as
mulheres eleitas por partidos de centro e de direita nas regiões Norte e
Nordeste, o total alcança 69,7% (23 casos em 33).
CONCLUSÕES
A partir da análise dos dados, é possível discutir as hipóteses apresentadas no
início do artigo. Embora nenhuma delas seja inteiramente invalidada, todas
precisam ser relativizadas e complexificadas à luz dos achados empíricos.
O capital familiar se mostra crucial para o ingresso das mulheres na política,
mas está longe de ser pouco importante para os homens. De fato, a distância
entre elas e eles quanto a esse quesito diminuiu de forma significativa nas
três eleições analisadas – não porque se reduziu o peso da participação em
famílias políticas entre as mulheres, mas, ao contrário, porque ele cresceu
quase 50% entre os homens.
As diferenças entre os partidos, de acordo com o previsto, são importantes, com
as legendas de direita e de centro apresentando uma proporção bem maior de
deputados e deputadas vinculados a famílias políticas. Nem por isso a presença
do capital político é pouco relevante nos partidos de esquerda: está presente
em 30,3% dos deputados e deputadas que elegeram nas três disputas analisadas,
um percentual não muito distante daqueles que ocuparam posições de liderança no
movimento sindical (38,5% dos eleitos por partidos de esquerda).
É possível argumentar que o problema está na categoria “esquerda”, ampla
demais. Uma peneira ideológica fina virtualmente extinguiria a esquerda na
Câmara dos Deputados, mas critérios um pouco mais exigentes de consistência
programática, que resumissem a esquerda a PT, PCdoB e PSOL, ainda assim
levariam a 19,3% dos eleitos com vínculos com famílias políticas.
Deve-se considerar que a tendência é que essa proporção aumente, mesmo no campo
desta “esquerda reduzida” e, em particular, no PT. Quando ainda era um partido
com pouca densidade eleitoral e muito ligado ao sindicalismo e a outros
movimentos sociais, o PT elegia bancadas pequenas na Câmara dos Deputados, mas,
nessas bancadas, eram muitos aqueles que chegavam diretamente da sociedade
civil para o Congresso Nacional. Essa proporção de novatos cai acentuadamente à
medida que o partido cresce (Tabela_7).
Tabela 7 Porcentagem e Número Absoluto de Eleitos para a Câmara dos Deputados
sem Experiência Prévia em Cargos Eletivos ou do Primeiro Escalão dos Poderes
Executivos, por Partido e Ano de Eleição
Ano PT Outros
1986 62,5 (10) 17,6 (83)
1990 31,4 (11) 21,4 (73)
1994 18,4 (9) 11,9 (55)
1998 3,4 (2) 10,1 (46)
2002 13,2 (12) 8,8 (37)
2006 3,7 (3) 9,7 (42)
2010 4,7 (4) 10,8 (46)
Fonte: Miguel (2003) e pesquisa Carreira Política e Gênero no Brasil. Obs.: Os
percentuais foram calculados sobre o total de deputados federais eleitos pelo
partido naquele ano.
Seguramente por sua maior organização interna, conforme ganha peso eleitoral o
PT deixa de ser um partido mais permeável a trajetórias diferenciadas para a
Câmara dos Deputados para se tornar menos permeável do que a média de seus
concorrentes (a exceção é o ano de 2002, explicada pelo grande crescimento da
bancada petista). Com isso, a trajetória dos militantes do PT para a Câmara
passa fortemente pela ocupação prévia de cargos eletivos menos importantes ou
de posições nas administrações do partido – em vez da transferência sem escalas
do sindicato para o legislativo federal, como ocorria nos primeiros anos. Em
suma, o partido passou a contar com um conjunto de quadros com experiência
eleitoral e administrativa, que possuem primazia internamente e, externamente,
contam com vantagens na disputa pelo eleitorado. No entanto, o peso da
hereditariedade na obtenção de liderança no sindicato ou em outro movimento
social parece ser menor do que na obtenção das redes de compromisso necessárias
para impulsionar uma carreira política mais tradicional. Isto projeta, para o
PT, um perfil de peso do capital familiar cada vez mais similar ao dos outros
partidos, tendência que os dados da pesquisa corroboram.
Já encaminhamos aqui a discussão sobre outra das hipóteses, a que afirma que a
prevalência do capital familiar é um indício de “atraso” político, devendo se
reduzir com o amadurecimento da democracia. De fato, do ponto de vista de um
ideal democrático, a formação de famílias políticas com a capacidade de
monopolizar um grande número de cargos é indício de oligarquização e reduz a
pluralidade de posições sociais e de interesses que potencialmente se fazem
ouvir nos espaços de tomada de decisão. Uma sociedade civil forte e organizada
provavelmente geraria um fluxo de novas lideranças, que desafiaria os clãs
estabelecidos.
Contudo, é a própria normalização democrática, com a regularidade das eleições
e a previsibilidade das regras do jogo que, ao mesmo tempo, favorece a formação
das redes próprias do capital familiar, inclusive propiciando a formação de
novos clãs. E a ampliação da competitividade eleitoral faz com que qualquer
diferencial controlado por algum candidato tenha relevância (Manin,_1997),
revalorizando o pertencimento à família política. Em suma, a ideia de uma
evolução “natural” na direção da redução da importância eleitoral do capital
familiar deve ser descartada como ingênua.
Por fim, a relação entre o peso do capital familiar e o grau de desenvolvimento
econômico da região foi verificada, mas seu poder explicativo é limitado.
Trata-se de uma relação que não é isenta de ambiguidades, tanto porque o
“desenvolvimento econômico” não é uniforme quanto pelo fato, apontado acima, de
que a ampliação da competição também amplia o valor dos recursos diferenciados
controlados pelos candidatos. Ademais, conforme discutido na análise dos dados,
muitos outros fatores intervêm, como a relativa juventude política da unidade
da Federação (caso do Distrito Federal) ou a tradição da política local (caso
do Rio Grande do Sul).
Do ponto de vista da presença política das mulheres, cabe observar que as
regiões que privilegiam as formas “modernas” de recrutamento e minimizam o peso
do capital familiar também elegem uma menor proporção de deputadas. Ou seja, a
redução do peso das redes de parentesco não abre necessariamente espaço para
outras modalidades de inclusão política feminina.
As conclusões aqui apresentadas servem, em primeiro lugar, como pontos de
partida para novas investigações. A base de dados que alimentou este artigo
permitirá novas incursões, ampliando o intervalo de tempo (com a inclusão das
eleições de 1990, 1994, 1998 e 2014) e também alcançando corpos legislativos
subnacionais (as 26 assembleias legislativas estaduais, a Câmara Legislativa do
Distrito Federal e uma seleção de câmaras municipais). Novos trabalhos,
começando pela comparação sistemática entre os perfis de candidatos e eleitos,
abririam novas vias de análise. Apesar do indiscutível peso que tem na política
brasileira, o capital familiar é um objeto ainda pouco explorado. Mais do que
alcançar um entendimento preciso do fenômeno, trata-se, no momento, de
construir uma agenda de pesquisa.
Lista de Siglas dos Partidos Políticos
DEM – Democratas
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PCdoB – Partido Comunista do Brasil
PFL – Partido da Frente Liberal
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PPS – Partido Popular Socialista
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PSOL – Partido Socialismo e Liberdade
PT – Partido dos Trabalhadores
PV – Partido Verde