A China frente à globalização: desafios e oportunidades
Introdução
A adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 consolida a
crescente abertura do país de maior população do mundo. Tal fato foi marcado
por vários anos de difíceis negociações com os principais parceiros
internacionais, Estados Unidos e União Européia, com os quais teve que concluir
prévios acordos sobre as modalidades concretas da mútua abertura das economias.
Foi celebrada, portanto, mesmo que de maneira superficial, como uma forma de
triunfo final da economia de mercado. Após mais de vinte anos de reformas
liberais, acabou oficialmente o tradicional isolamento do maior dos países que,
até tempos recentes, estava ainda bem fechado. A China será agora mais um
parceiro da ordem global, embora de peso e natureza bem particulares. O
acontecimento, com certeza, é histórico, pois amplia ainda mais a controvertida
"globalização da economia" e dará à China um papel de destaque no mundo do
século XXI, maior do que se tivesse ficado à margem da OMC. O comércio mundial
e a divisão internacional do trabalho estão de parabéns com a inclusão de pleno
direito da China. Ademais, sua adesão à OMC ' simultaneamente à de Taiwan '
chegou quase como uma notícia de salvação após uma série de golpes desastrosos
para a globalização liberal como o fiasco de Seattle, o escândalo da Enron, a
queda da new economy e até os ataques de 11 de setembro e a posterior "guerra
antiterrorista". Tudo isso, conjuntamente com as simultâneas crises agudas da
América Latina e do Oriente Médio, agravou sensivelmente o mal-estar econômico
e as tensões políticas mundiais. Então, foi possível dar um novo otimismo, com
certeza relativo, aos projetos de um "multilateralismo" renovado1 .
Os pragmáticos chineses parecem nutrir a idéia básica que permitiu no passado
os êxitos do Japão e dos "tigres asiáticos": integrar-se ao mundo ainda
dominado pelo Ocidente de maneira dinâmica, mas prudente, negociada e não
imposta, sem deixar-se dominar.
Com um quinto da população da terra, uma economia e um comércio exterior já
equiparado aos do Japão, os chineses pensam, com alguma razão, que só podem ser
parceiros em condições de igualdade com as outras grandes potências, e não
subordinados a estas. O "comunismo chinês", no fundo, sempre foi talvez mais
"chinês" do que "comunista". Isto é, nacionalista e herdeiro de uma tradição
milenar que considera a China não apenas como um país qualquer, mas como a
civilização central da humanidade. Como salienta Eric Hobsbawm no seu olhar
sobre o século XX, apesar dos seus atrasos e misérias, a China nunca teve os
complexos de inferioridade cultural tão típicos da URSS e de outros países
socialistas que queriam a qualquer preço "alcançar e ultrapassar" os países
capitalistas avançados2 . Foi essa também, sem dúvida, a razão principal da
ruptura sino-soviética, pois na época esse "modelo" ainda parecia bem-sucedido.
Em todo caso, os chineses preferem hoje um mundo realmente multipolar à
hegemonia de uma superpotência. Daí as tensões recorrentes com os Estados
Unidos e a importância que dão às suas relações com a Europa, o Japão, a
Rússia, o Brasil etc. Assim, a entrada na OMC constitui não tanto a conversão
do Império do Meio ao capitalismo liberal, mas um compromisso pragmático aceito
pelos líderes chineses para reforçar e consolidar as novas correntes de
exportação, o aporte de investimentos externos direto (IED) que dinamizam sua
economia e para deixar de uma vez de ser uma espécies de outlaw comercial3 . Ao
mesmo tempo, as pressões exteriores, agora mais previsíveis visto que são
"regulamentadas" no âmbito da OMC, continuam agilizando as reformas internas
que os líderes chineses querem impor com o objetivo de avançar rumo à "economia
socialista de mercado". Ademais, acrescenta um observador, a China pensa em
"encontrar na OMC uma tribuna à altura de suas ambições geopolíticas4 ",
respaldada economicamente por um PIB quadruplicado em apenas duas décadas,
período pelo qual a China entrou no segundo grupo de "tigres" ou "dragões"5
por meio das "quatro modernizações" muito bem-sucedidas de Deng Xiaoping
(agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa). Contudo, entrou nesse
grupo com duas particularidades: mantém uma ideologia oficial totalmente
diferente, comunista até no nome do partido dirigente, embora pouco compatível
com a atual realidade social, e tem uma população que, sozinha, é bem maior que
o conjunto de todos os demais países do Leste e Sudeste asiático, incluindo
Indonésia, Filipinas, Vietnã e Birmânia.
É difícil prever a ideologia e a política econômica da China de amanhã.
Entretanto, dado seu peso demográfico e agora também econômico e político, não
há dúvida de que a China será um ator essencial no cenário mundial do século
XXI. Para os demais países do mundo, e em primeiro lugar os países vizinhos,
isso representa um desafio considerável de concorrência e também um fator de
dinamização. Antes era o Japão, agora é cada vez mais a China que atua como
locomotiva econômica regional. Para o resto do mundo, ela se apresenta ao mesmo
tempo como um desafio e uma oportunidade ainda maior que o Japão das décadas de
60 a 80. Não é estranho que os empresários ocidentais, frente à conjuntura
pouco satisfatória de seus países, entusiasmem-se ao falar das possibilidades
de expansão no "maior mercado do mundo", nem que muitos deles tenham medo das
futuras avalanchas de têxteis e outros produtos baratos provenientes da China.
Isso será um grande desafio para os países menos desenvolvidos como os da
América Latina. Independente de qual seja o papel da China no mundo de hoje e
de amanhã, este só poderá ser compreendido, evidentemente, com uma rápida
olhada sobre sua história.
Do "Império do Meio" à China moderna
"Quando a China despertar, o mundo se comoverá" profetizou Napoleão há dois
séculos. Décadas depois, Marx imaginou, em uma antecipação genial, um Extremo
Oriente dinâmico frente a um capitalismo ocidental maduro, acossado ao mesmo
tempo pela luta revolucionária dos seus proletários e pela crescente
concorrência com o capitalismo oriental. Na sua época, a China estava ligada ao
mundo ocidental por uma espécie de colonialismo coletivo das potências
dominantes, cujos símbolos eram as importações forçadas de ópio e as guerras a
elas relacionadas. Conseqüências da terrível decadência chinesa foram as
revoluções, os distúrbios e as guerras que, durante o século XX, fizeram
surgir, no Ocidente, o espectro do "perigo amarelo".
Com aproximadamente 1,3 bilhão de habitantes ' duas vezes e meia a população da
América Latina, mas com apenas metade do território total e em grandes
extensões inabitável ' a China possui 21% da população mundial. Esta proporção
é semelhante à que tinha no início da era moderna. Há cinco séculos, a China
contava com aproximadamente cem milhões de habitantes. Naquela época, porém, o
nível de vida e de desenvolvimento geral era mais elevado que o da Europa e, já
no século XIX, seu PIB era seis vezes superior ao da Grã-Bretanha segundo
cálculos de um conhecido especialista de história econômica mundial6 .
"No decurso dos três séculos da Primeira Ordem Econômica Mundial", sintetiza um
analista argentino referindo-se nesses termos ao período entre os séculos XVI e
XVIII, "na China, como nos impérios otomano, persa e mongol, interromperam-se
os processos de transformação que tinham colocado estas grandes civilizações
nos mais altos níveis de desenvolvimento econômico e cultural. Tinha-se assim
criado o cenário propício para a crescente penetração européia no espaço
chinês7 ".
Durante a primeira metade do segundo milênio, a China era mais avançada que a
Europa, que mal começava a sair da Idade Média. Isso é válido até mesmo no
plano tecnológico. Entre as invenções chinesas destacam-se o papel, a imprensa,
a bússola e a pólvora. Todas, após serem logo utilizadas e aperfeiçoadas numa
modernização conquistadora, tornar-se-iam instrumentos essenciais da dominação
européia sobre o mundo. Para o Ocidente, a fechada e enigmática China poderia
tanto ser uma parceira, uma rival ou uma inimiga. De todo modo, era o único
país no Oriente e no mundo que poderia ser considerado como "igual", quando não
"superior", descartada a outra principal civilização asiática, a Índia, por sua
notória heterogeneidade interna, causa principal da sua fácil conquista pelos
ingleses.
Quando chegaram os portugueses por via marítima como primeiros europeus, não
foram recebidos com manifestações de amizade8 . Junto aos recém-chegados,
contudo, predominavam juízos positivos. Os visitantes ficaram muito
impressionados com o império chinês, "merecedor da maior admiração e do mais
profundo interesse, não só por sua enorme extensão e sua incrível riqueza, mas
também pela forma eficiente como tinha conseguido superar os principais
problemas materiais9 ". Logo houve relações comerciais pacíficas entre os
chineses e os portugueses instalados desde 1557 no minúsculo território de
Macau e importantes intercâmbios culturais e científicos, mutuamente benéficos,
protagonizados pelos jesuítas que foram a Pequim passando pelo porto
português10 .
Durante os séculos seguintes, os contatos foram muito limitados, porém
lucrativos, canalizados por Macau e logo depois por Cantão e Hong Kong, todos
situados no delta do Rio das Pérolas. A porcelana de alta qualidade é chamada,
em inglês, até hoje de "China-ware" e o chá se tornou inseparável dos costumes
britânicos. A China, por outro lado, adaptou o milho, que hoje ocupa grandes
extensões de terra no norte do país, e os red chillies, típicos da cozinha
temperada de Sichuan. Em contraste com esse brilho chinês de civilização,a
fundação de Hong Kong não foi um título de glória para a civilização ocidental.
Nesse entreposto de comércio internacional a civilização ocidental revelou suas
piores características: a fundação foi conseqüência da primeira Guerra do Ópio
(1840-42), fundamental para impor o moderno narcotráfico capitalista, negócio
considerado pelos ingleses necessário para pagar as importações de chá, seda e
porcelana da China.
O Império do Meio não tinha interesse nenhum em estreitar relações com o
Ocidente. Em 1793, em plena revolução industrial inglesa, o imperador Qian Long
escreveu ao rei Jorge III: "o nosso Império Celestial possui todas as coisas em
abundância prolífica e não carece de nenhum produto de dentro de suas
fronteiras. Não tem por isso nenhuma necessidade de importar produtos
manufaturados". Tinha bastante razão, comentou Bertrand Russell, visto que a
China era totalmente auto-suficiente, praticamente invencível militarmente e
rodeada de povos comparativamente bárbaros11. E como foi visto, naquela época a
China ainda era um país bastante rico, tendo como problema o fato de que, no
plano tecnológico e conseqüentemente também no industrial, já tinha ficado bem
para trás.
Durante esse período e até o final do século XIX, a China permaneceu
praticamente fechada: "há séculos a China vive muito isolada, reclusa em suas
tradições e na contemplação de sua grandeza passada, orgulhosa da sua
imobilidade e desdenhosa dos bárbaros do Ocidente" descreveram dois
especialistas franceses no ano de 1900. "A civilização moderna, barulhenta,
expansiva e conquistadora por necessidade econômica vinha bater às portas
hermeticamente fechadas do Império Celeste. Invadia a Índia, começava a
conquistar a Indochina, penetrava pelo Norte até a ribeira do Pacífico,
transformava em poucos anos o Japão. As raças européias povoavam o mundo. A
América e a Oceania animavam-se com uma nova vida, a África livrava seus
segredos, mas a China seguia sendo virgem de todo contato estrangeiro. Parecia
que o povo mais antigamente civilizado devia ser, também, o último a adotar os
procedimentos e as modas da nova civilização12 ". Como se veria, tal imobilismo
se tornou perigoso.
Segundo a famosa frase de Marx e Engels no Manifesto, o capitalismo tinha que
forçar, por necessidade histórica, as muralhas da China com sua produção
industrial moderna. Todavia, a China havia mostrado muito pouco interesse
nesses produtos, como ainda confirmou em 1900 um observador inglês: "os
chineses têm o melhor alimento do mundo, o arroz; a melhor bebida, o chá; e a
melhor roupa, de algodão, seda e peles. Possuindo tudo isso e inúmeros outros
produtos locais não necessitam comprar nada dos outros países nem por um
penny13 ".
Esta auto-suficiência, certamente, não excluía influências exteriores nem
violentas crises e fomes desastrosas. Assim, a rebelião massiva dos Taiping nos
anos 1850 e 1860, dirigida por um líder que se acreditava ser irmão de Cristo,
teve conseqüências devastadoras, com milhões de mortes em grandes regiões do
Sul e do Leste do país, enfraquecendo ainda mais um país já muito debilitado.
A situação geral, e com ela o relativo isolamento, mudaria rapidamente: entre
1895 e 1913, a rede ferroviária foi ampliada de apenas 200 para quase 6.000
milhas e o comércio exterior mais que triplicou nesse mesmo período14 .
Todavia, a China ainda representava apenas 1,5% do comércio mundial em 1896-98,
1,7% em 1911-13 e 1,9% em 1921, ao passo que entre 1896-98 e 1911-13 a
participação da Índia aumentou de 3 para 3,5% e a do Japão de 1 para 1,6%.
Comparando o comércio exterior per capita, o da Índia equivalia ao dobro e o do
Japão a dez vezes o da China15 . Devido à maior integração mundial por meio do
colonialismo, a Índia, em 1950, tinha aproximadamente quatro vezes mais
estradas de ferro per capita que a China semicolonial, 16 e 4 centímetros
respectivamente16 .
Assim, uma maior aberturaterminou por levar ao colapso a civilização chinesa
como afirma um observador norte-americano: "os fuzis europeus que arrasaram as
fortalezas de Cantão e logo abriram o caminho a Pequim fizeram mais do que
aniquilar as barreiras do isolamento da China. Socavaram a sua civilização,
tiraram-na também de sua órbita e puseram-na numa nova e perigosa posição no
mundo, criando, assim, o que hojeé o problema do mundo. ( ) O destino de um
quarto da raça humana tem que afetar toda ela17 ".
Os japoneses tiveram uma história muito diferente no seu encontro com o
Ocidente. Souberam, após mais de dois séculos de isolamento quase total, pôr-se
à altura do Ocidente, sem abandonar sua cultura, que é amplamente herdeira da
chinesa: tecnologia ocidental e mentalidade japonesa, como resume o subtítulo
de uma obra sobre o tema18 . A mesma fórmula teria podido, provavelmente,
salvar os chineses de muitas misérias. Deve ter sido isso o que pressentiu o
almirante japonês em sua carta ao antigo amigo e então adversário almirante
chinês na guerra sino-japonesa de 1894: se vocês não mudarem e não se abrirem
ao Ocidente para aprender com ele, advertia, vão afundar19 . E foi isso o que
aconteceu.
A queda do Império e a Primeira Guerra Mundial constituíram um divisor de águas
de acordo com dois demógrafos franceses: "a China atravessava uma profunda
crise que refletia em sua situação demográfica. Os recursos proporcionados pelo
solo pareciam ter chegado a seu limite máximo, dando lugar a uma situação
malthusiana. A solução podia residir talvez na redução dos nascimentos
combinada com a emigração ou em uma revolução da economia que proporcionasse
novos recursos e possibilidades de aumentar a importação de alimentos paralela
a elevação do número de empregos20 ". Isso, combinado com a traumática entrada
do país no que então ainda não se chamava de "globalização", mas que já exigia
adaptações bem difíceis, foi o estopim estrutural do fim do Império, das
guerras civis dos anos 20 a 40, da queda de Chiang Kai-Shek e da revolução
vitoriosa em 1949.
A China contemporânea, um gigante em marcha: de Mao a Deng
Desde 1979 e sob a liderança do veterano dirigente Deng Xiaoping falecido em
1997, a China começou a se colocar na órbita da "modernização" e da economia
"globalizada". Porém, convém aqui lembrar que a China já tinha bastante
experiência em mudanças radicais: durante o século XX passou por mais
revoluções que qualquer outro país importante do mundo, desde o capitalismo
semicolonial desenfreado das primeiras décadas do século XX até a recente
abertura, passando pelas guerras civis, a guerra de libertação nacional contra
o Japão, o regime de Mao com suas coletivizações e a "Revolução Cultural".
Uma das grandes perguntas sobre a China contemporânea é a da verdadeira herança
dos 27 anos de Mao Zedong no poder. Com seus êxitos, erros e aberrações e com
todas as suas mudanças de rumo, essa época em que a China era mais uma vez um
país quase totalmente fechado preparou o terreno para o país de hoje. Aliás, o
que às vezes se esquece, segundo avaliação oficial posterior, 70% da política
implementada por Mao era correta e só 30% errada. Mao tem lugar de honra, seja
no museu de cera de Pequim, seja com seu enorme retrato na Tienanmen (Porta da
Paz Celestial), seja ainda com um mausoléu na Praça de mesmo nome. A descrição
que fez Alain Peyrefitte há quase 30 anos em seu famoso livro21 pode ser, em
muitas das suas páginas, entusiasta demais, pois ele, como ministro do governo
de De Gaulle, foi um convidado especial a quem os organizadores mostraram
evidentemente os melhores aspectos do país. Todavia, o enviado do general foi
sem dúvida um bom observador e certamente não podia simpatizar com o maoísmo.
Ainda assim, no seu balanço da época, salienta os importantes progressos
realizados nas áreas de desenvolvimento industrial e agrícola, de educação e
cultura, nas infra-estruturas físicas e sociais, na situação da mulher, etc.
Para Gilbert Etienne, especialista em temas indianos e chineses, a comparação
entre ambos os países em 1989 era favorável à China no desenvolvimento
industrial, mas não na agricultura. Acrescentou, contudo, que é difícil
mensurar as perdas humanas, em ambos os casos, por violência e miséria22 . Por
sua vez, o economista paquistanês Mahbub Ul Haq considerava a China como modelo
à rejeição do consumismo ocidental e aspiração a uma maior justiça social23 .
De todo modo, cabe perguntar se o enorme dinamismo chinês desde 1979 não deve
muito à revolução social e econômica das décadas anteriores que, apesar de suas
falhas e até desastres, significaram um "grande salto para frente" nos diversos
aspectos salientados por Peyrefitte. Nessa perspectiva, seria interessante
estabelecer algumas comparações com o Japão da época Meiji ou ainda com os
Estados Unidos do século XIX, quando medidas protecionistas, nation building,
construção de estradas de ferro, progressos em educação e aprendizagem
tecnológica, entre outros fatores, transformaram estes países em grandes
potências industriais e militares.
Para os autores espanhóis de um livro bem documentado, o balanço do maoísmo é
bem complexo: infra-estrutura, casas e bens de consumo relegados ao segundo
plano, razoável crescimento econômico e transformação da China em um grande
produtor de aço. "O gigante asiático desenvolveu-se sem dependências exteriores
e tornou-se uma grande potência industrial. Em uma perspectiva social, logrou
reduzir seu dramático nível de pobreza, introduzir melhorias educativas e
sanitárias, rompendo, ademais, com algumas das ancestrais tradições chinesas.
Por exemplo, cobrou-se importância do papel da mulher e alentou-se sua
participação política e social (...). Mao, apesar do extremismo de suas idéias
e de seu método, fez com que a economia crescesse a um índice anual de 5%,
unificou o país, tirou a China do legado feudal, das míticas dinastias
imperiais e assentou as bases para a modernização do país24 ".
Desde a chegada de Deng dois anos após a morte de Mao, a economia chinesa,
quase totalmente fechada desde 1949, abriu-se rapidamente e mostrou uma das
maiores taxas de crescimento do mundo, ao redor de 10% por ano. Todos os
observadores concordam que o nível de vida do chinês médio melhorou
substancialmente, especialmente entre os agricultores. Não só a comida é hoje
relativamente abundante, mas também as bicicletas, os aparelhos de televisão e
outros itens estão agora muito acessíveis à massa camponesa. A eletrificação,
indicador essencial da eliminação da pobreza, seria hoje comparável à dos
países mais adiantados, chegando a 98-99% da população. A fome, muito presente
nas primeiras décadas da República e ainda existente nos anos de Mao '
sobretudo como conseqüência do caos do "Grande Salto para frente" que fez
milhões de vítimas ' parece ter desaparecido. A dieta dos chineses, tão adeptos
à boa comida, tem sido nitidamente diversificada.
As tensões derivadas desses mesmos progressos, combinadas com uma estrutura
política rígida de partido único, levaram a uma séria crise política.
Estudantes e intelectuais, em particular, reivindicaram uma "quinta
modernização", a da política. Apesar do massacre da Praça da Paz Celestial em
1989 e as sanções ocidentais subseqüentes, os Investimentos Externos Diretos
(IED) ' de fato, como veremos, a maioria destes não é tão "estrangeiro" porque
são provenientes de Hong Kong e Taiwan ' cresceram de apenas 3-4 bilhões de
dólares por ano no início dos anos 90 para dez vezes mais durante o resto da
década. Isso se deve tanto às reformas como ao contexto geográfico. A China
está "na interseção de duas das mais importantes tendências das últimas décadas
do século XX: o colapso do comunismo e o surgimento da Ásia oriental como o
maior centro de produção industrial no mundo25 ". Ilustrando este último ponto,
entre 1970 e 1990, a participação da China no mercado mundial saltou de 0,6
para 2,0%, relativamente mais ' a partir de um nível muito mais baixo, é
verdade ' que o Japão e de maneira semelhante aos "quatro tigres" que passaram,
respectivamente, de 5,9 para 7,7 e de 2,5 para 7,0%26 .
Em 1995, a China já respondia por cerca de 3% das exportações mundiais, mais do
que Taiwan e a Coréia do Sul27 . A participação chinesa nas exportações
mundiais de produtos manufaturados aumentou de 0,8 para 3,6% entre 1985 e 1995,
enquanto a da Coréia do Sul passou de 2,2 para 3,2% e a de Taiwan de 2,4 para
2,9%. Contudo, nessa década, o nível salarial da indústria permaneceu em apenas
1,5% daquele dos Estados Unidos, enquanto o dos "tigres" já oscilava entre 10%
e 40%, segundo estimativas do semanário britânicoThe Economist28 .
Não seria completo este panorama do desenvolvimento recente da China sem uma
breve referência aos "tigres". Lembremos que dois deles são chineses, sem
contar Cingapura que, mesmo distante geograficamente, tem três quartos de
população chinesa. O êxito de Hong Kong, historicamente, está ligado mais à sua
situação geográfica que a outros fatores: "Hong Kong é uma das cidades-Estado
mais bem-sucedidas da história mundial. Deve seu êxito, contudo, não à sua
genialidade ou à sua visão de futuro, mas à boa sorte, a seu colonizador e à
revolução comunista na China. Os mais de 6 milhões de chineses de Hong Kong
fizeram um excelente uso das oportunidades oferecidas a partir de 1949. Nunca,
nem na Veneza da Baixa Idade Média ou na Amsterdã do século XVII, tanta riqueza
havia sido acumulada em tão pouco tempo. Hong Kong deve seu êxito à sinergia
entre a oportunidade e a capacidade de adaptação dos chineses com o rule of law
e a estabilidade do 'despotismo esclarecido' do domínio colonial britânico.29 "
O "modelo econômico" propriamente dito foi ' como salientam os que pretendem
ver ali um ilusório modelo a seguir ' muito liberal, ao contrário dos demais
"tigres", mas não deixou, contudo, de incluir elementos dirigistas essenciais:
a administração colonial teve um papel bem ativo nos domínios dos transportes
públicos e na habitação, ambos particularmente importantes no contexto de um
território muito montanhoso, dividido em várias ilhas e uma península e com uma
densidade demográfica que ultrapassa atualmente os 6.000 habitantes por km2 .
Por último, mas sem esgotar a lista das causas do "milagre" local, devem ser
levadas em conta as tradições comerciais e portuárias, a afluência de mão-de-
obra barata assim como de know how empresarial entre os milhões de fugitivos da
República Popular que chegaram a Hong Kong.
Taiwan esteve sob governo continental por mais de dois séculos, antes de 1895,
e apenas por quatro anos depois dessa data (1945-49). Suas "veleidades de
independência" têm, portanto, alguns fundamentos na história, não apenas em
seus êxitos pós-1949. Outros foram os fatores que fizeram da ilha "formosa" '
segundo seu velho nome português ' uma pequena potência industrial: importante
ajuda inicial norte-americana nos planos militar e econômico, reforma agrária
radical, política de industrialização pragmática baseada em uma sinergia entre
mecanismos de mercado e fortes elementos de orientação estatal, inclusive com
um importante setor público, integração hábil aos mercados mundiais em
expansão, altas taxas de poupança e aprendizagem tecnológica acelerada. Outro
elemento explicativo pode ser o meio século de colonização japonesa que deixou,
como na Coréia, algumas infra-estruturas (estradas de ferro, portos, etc.) e
alguns setores produtivos relativamente avançados. A própria precariedade da
política exterior contribuiu para criar uma pressão pela luta por uma maior
competitividade econômica, semelhante a países divididos como, por exemplo, a
Coréia do Sul.
Problemas e preocupações
Que a época de Deng e de seus atuais sucessores foi muito bem sucedida em
termos gerais quase não resta dúvida, todavia, como nos outros países asiáticos
que mostraram um enorme dinamismo nas últimas décadas,nem tudo ocorreu do
melhor modo. Tentemos analisar, de maneira sucinta, os principais problemas que
acompanharam o progresso das últimas décadas e até que ponto eles poderiam
impor algumas mudanças de rumo.
a) Desequilíbrios sociais e regionais
Obviamente, os problemas sociais e regionais estão interligados, além de só
poderem ser analisados relacionados ao modelo de desenvolvimento e às posições
da China frente à globalização. Incidem também nas relações exteriores, por
exemplo, por meio das tensões entre governo central e a minoria muçulmana. Para
apreciar as suas dimensões globais, será útil aqui uma perspectiva histórica e
comparativa. Assim, Paul Kennedy lembra que nos Estados Unidos a diminuição da
população agrícola a seu atual nível de 3% da população total deu-se num
contexto de crescentes empregos alternativos ao longo de mais de um século.
Entretanto, como seria este processo na China ou na Índia, com cerca de 80% de
população agrícola, se houver aumentos acelerados da produtividade? Poderia
haver então, adverte, manifestações de descontentamento bem mais violentas
nesses países que o que se tem visto em outras partes30 . A abertura da China
poderia ter conseqüências imprevisíveis, o que explica sem dúvida sua prudência
no campo das importações agrícolas. Já se fala hoje em um desemprego virtual de
150 milhões na população agrária chinesa. Se os chineses representam uma
proporção importante entre os recentes refugiados econômicos na Europa, como
nas últimas vagas de sans papiers da França, isso tem que ver, obviamente, com
a situação nos seus lugares de origem.
Não está claro, em todo caso, como se absorverá a enorme massa de mão-de-obra,
que continua crescendo em cerca de quinze milhões de pessoas por ano. Não está
claro se o geralmente ineficiente setor estatal que, em 1994, ainda cobria 74%
do emprego e 57% do investimento, mas participava com apenas 34% na produção
industrial, será reformado31 . A ineficiência deve-se, sobretudo, ao fato de
"as empresas estatais operarem em indústrias pesadas e declinantes, estarem
cheias de maquinarias e equipamentos velhos e manterem pessoal inflado,
impedindo-as de competir no mercado livre"32 . É verdade que a porcentagem das
empresas estatais na produção industrial tem decrescido fortemente, de 76% em
1978 para 28% em 199933 , mas não sem crescentes problemas de desemprego
urbano, agravados pela afluência de camponeses pobres que fogem do campo para
buscar melhor sorte nas cidades. Porém, convém lembrar que, como descreve um
conhecido autor estadunidense, a tendência global, que ilustra diariamente as
notícias sobre racionalizaçõese fusões de empresas com milhões de empregos
perdidos, é rumo à agricultura sem camponeses, à indústria sem operários e aos
escritórios sem empregados 34 .
O êxodo rural acelerado faria crescer ainda mais as cidades, muitas das quais
já ultrapassam os cinco milhões de habitantes, aumentaria os problemas sociais
e a poluição atmosférica que já atinge níveis preocupantes: "a delinqüência
está crescendo, o crime organizado floresce, os casos de furto simples se
multiplicam e há algum tempo um verdadeiro banditismo tornam inseguras as
estradas de várias províncias (...), o excesso de força de trabalho sem
qualificação ameaça o equilíbrio social nas cidades", advertia já, há uma
década, um diário suíço liberal, sempre favorável às reformas desta
orientação35 .
Embora haja um aumento geral do nível de vida, essas pressões só vêm a agravar
as desigualdades sociais já bem pouco compatíveis com o ideal "socialista",
ainda que seja "socialista de mercado". Segundo dados oficiais, o coeficiente
Gini teria aumentado de 0,21 em 1978 para cerca de 0,45 atualmente. Isso
provoca propostas, nesses mesmos círculos oficiais, de aumentar fortemente os
impostos para reduzir as desigualdades36 . Por outro lado, ao estimular o
consumo interno, a política econômica muitas vezes facilita o aumento do
consumo supérfluo, como de carros de luxo, considerado necessário para manter o
dinamismo atual.
Entre a cidade de Xangai e a província mais pobre de Guizhou no sul do país, a
diferença de renda per capita é de 10 para 1, e entre províncias "ricas" e
"pobres" a disparidade geral ultrapassa a relação de 3 para 1. A região
costeira, com cerca de 37% da população, aumentou, entre 1987 e 1994, sua
participação de 51 para 60% na renda nacional, de 60 para 67% na produção
industrial e de nada menos que de 60 para 85% nas exportações. Estes aumentos
concentraram-se no período 1990-94, portanto nos anos de rápido aumento dos
IED. Houve, de fato, uma ligeira diminuição entre 1987 e 1990, salvo o caso das
exportações, o que se deduz que se acentuaram fortemente os aspectos
desequilibrantes do crescimento na fase mais recente. As diferenças de renda
entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres da população foram estimadas
recentemente pelas Nações Unidas a uma relação de 6,5 para 1, semelhantes às de
outros países asiáticos, porém maiores que na Coréia do Sul, na Índia e na
Indonésia, ainda que muito inferiores às dos países latino-americanos. Tais
diferenças teriam diminuído no período 1978-85 e logo aumentado
significativamente37 .
Os desequilíbrios entre regiões costeiras e interiores são semelhantes àqueles
existentes entre agricultura e indústria. Alguns observadores pensam que estes
desequilíbrios entre as regiões do Sul costeiro, sede das novas atividades
industriais impulsionadas pelas reformas liberais e o pelo capital estrangeiro,
e as do interior, relativamente estagnadas e mais agrícolas, ameaçam seriamente
a unidade nacional. Por isso, no Ocidente supõe-se que essa unidade seja muito
frágil. O sinólogo alemão Oskar Weggel salienta, por outro lado, as diferenças
históricas entre ambas macro-regiões, caracterizadas por profundas distâncias
(cultura "amarela" e cultura "azul"), sendo a costeira por tradição muito mais
aberta às influências do exterior e aos intercâmbios comerciais com outros
países. Este contexto explica também, conjuntamente com outros fatores, o
dinamismo de Hong Kong e de Taiwan, hoje imitados pelas regiões vizinhas das
"zonas econômicas especiais" da China meridional38 .
Uma das grandes preocupações chinesas, salientadas também no testamento de Deng
Xiaoping, é o futuro dos grupos étnicos minoritários que representam pouco mais
de 5% da população total, mas que ocupam a metade ocidental do país, em
particular o Tibet e Xinjiang. Os tibetanos budistas continuam afetando
negativamente a imagem da República Popular no mundo, que tende a acreditar
mais na dura crítica de Dalai-Lama que na versão oficial de uma coexistência
pacífica e progressista. O problema principal, contudo, parece ser o dos
uighures de Xinjiang, povo de língua aparentada do turco e de religião
muçulmana, frente à imigração, assim como no Tibet, dos chineses han
majoritários que já os reduziram nas últimas décadas de grande maioria regional
para menos da metade da população. Houve, nos últimos anos, crescentes tensões,
com enfrentamentos armados e atentados. Se a China entrou na aliança contra o
terrorismo internacional é devido a essa preocupação. Segundo ativistas
uighures que aspiram a um "Turquestão oriental" independente ou alguma
federação com os povos irmãos ex-soviéticos do outro lado da fronteira, os
uighures da China poderão enfrentar, com êxito, mais de um bilhão de chineses
han, a exemplo dos tchetchenos que, bem menos numerosos, têm desafiado os 150
milhões de russos39 . Houve combatentes originados dessa região chinesa como
com os talibãs capturados no Afeganistão pelos Estados Unidos, cuja extradição
exige o governo chinês, até agora sem êxito. Para os Estados Unidos, estes não
são comprovadamente "terroristas". E também por estas razões, e para diminuir
os crescentes desequilíbrios regionais constatados nos últimos 20 anos, as
autoridades de Pequim têm lançado recentemente vários grandes projetos com
vista a acelerar o desenvolvimento econômico do Oeste e melhor integrá-lo, como
a estrada de ferro ao Tibet e o gasoduto Xinjiang-Xangai, além do
aproveitamento do potencial hidroelétrico do Yang-Tze com a polêmica construção
da represa das Três Gargantas perto de Chongqing. Também se pensa, nesse
contexto, desviar no futuro parte das águas deste rio para as regiões
setentrionais sempre expostas às secas40 .
b) Meio ambiente, agricultura, transporte e energia
O meio ambiente nesse país tão densamente povoado na sua metade oriental
encontra-se, inevitavelmente, sob fortes pressões diversas e isso não pode
deixar indiferente o resto do mundo. Com 21% da população mundial, a China só
dispõe de cerca de 7% das terras cultiváveis. Passou a importar ' apesar do
forte aumento de sua produção agrícola ' grandes volumes de cereais. Agravam-se
a erosão dos solos e a contaminação do ar e das águas, já desastrosa em algumas
grandes cidades e com repercussão sobre a saúde dos habitantes. É como
salientou Lester Brown, diretor do Worldwatch Institute de Washington, há
vários anos: "Em uma economia mundial globalizada, os preços crescentes de
alimentos na China transformar-se-ão em preços crescentes para alimentos ao
nível mundial e a escassez de terras na China chegará a ser a escassez de terra
para todos ...41 ". Talvez esta visão seja pessimista demais. Países como os do
Mercosul terão, possivelmente, boas oportunidades de elevar as exportações. Em
todo caso, isso ilustra um dos aspectos frágeis do "milagre chinês".
Paul Kennedy, em suas previsões para o século XXI, advertia, há mais de uma
década, que o rápido aumento da produção de cereais parecia entrar em crise já
no final dos anos 80. Não que a política agrícola chinesa esteja em um beco sem
saída, salientou, "mas é difícil ver como pode a produção seguir aumentando
para acompanhar o crescimento demográfico sem que haja desenvolvimento
tecnológico que permita experimentar uma nova forma de revolução agrícola". E
acrescenta, aludindo às possíveis conseqüências sociais de uma modernização
acelerada: "No estado atual das coisas, os obstáculos estruturais à semelhante
revolução são gigantescos42 ".
Transporte é um tema fundamental num país de extensão e de densidade
demográfica como a China, tanto entre as suas imensas cidades como dentro
delas. Quanto tempo suportará as grandes cidades chinesas, cujo rápido
crescimento contribui, aliás, para reduzir a área agrícola e para a aceleração
do consumismo de tipo ocidental, em particular a multiplicação dos carros
particulares? Estes já fizeram que o tempo de transporte dentro de cidades como
Pequim crescesse muito fortemente nos últimos anos, agravando a poluição do ar.
Ao contrário dos países da América Latina e de outros, a China de Mao e de Deng
tinha desenvolvido e modernizado maciçamente a sua rede de estradas de ferro '
que se estendeu desde 1949 a mais do triplo, chegando a 70.000 km '
conjuntamente com os meios de transporte por água e ar. Mas em tempos recentes,
a construção de estradas tomou a dianteira e o peso relativo das estradas de
ferro, ainda bem alto, diminuiu bastante. Segundo o ministério competente,
entre 1990 e 2000, a participação das estradas de ferro no tráfego de
passageiros desceu de 46 para 39% e de 59 para 54% nos fretes43 . Em que
condições de distribuição da renda nacional poderá ocorrer uma maior expansão
da utilização do carro particular? E com que conseqüências ambientais? Não é o
meio ambiente o único problema, claro, mas contribui para uma problemática
ecológica global preocupante, que é salientada em todos os estudos sérios sobre
a China atual.
Para dois analistas estadunidenses, "a industrialização de um país com uma
população tão enorme como a China originará pressões sem precedentes sobre o
meio ambiente global. Imagine uma China onde a maior parte da população use
carros, ar condicionado e geladeiras. Hoje, a China já é o produtor de gases
causadores do efeito estufa de maior crescimento e seu crescimento econômico
agravará o aquecimento global provocando, provavelmente, o aumento do nível dos
mares e inundando assim outras regiões densamente povoadas como o delta de
Bangladesh. A industrialização da China aumentará os preços de energia em todo
o mundo e criará problemas de contaminação como as chuvas ácidas, que afetarão,
inclusive, países distantes44 ". Existem, assim, previsões de que a China será
em 2020, ou ainda antes, o primeiro emissor mundial de dióxido de carbono, com
aproximadamente 20% do total. Há meio século só contava com algo em torno de 1%
e pouco mais que 10% em 1990.
Assim, embora se consiga travar o crescimento demográfico, o atual modelo
chinês deve causar profundos impactos sobre o resto da economia e
principalmente sobre o meio ambiente mundial. "O meio natural", diz um analista
espanhol, "tem sido uma das primeiras vítimas sacrificadas para assegurar um
vertiginoso desenvolvimento baseado no lucro em curto prazo, mas que em longo
prazo pode chegar a ser altamente desastroso45 ". Dois outros autores espanhóis
indicam como uma das causas do impacto ecológico do crescimento chinês sua
forte dependência, ainda, do carvão como fonte de energia: a China é hoje o
primeiro produtor mundial ' sua produção passou de 30 para 500 milhões de
toneladas entre 1949 e 1976, e para mais de 1.100 em 1990 ' e o carvão, que
representa três quartos do consumo energético do país, tem um alto componente
de enxofre, contaminando fortemente o ar.46
No que diz respeito ao abastecimento energético, a China é hoje também um
grande produtor de petróleo, mas não está entre os supergrandes ' Rússia,
Arábia Saudita e Estados Unidos ' e terá de importar volumes crescentes. Há
vários grandes produtores relativamente vizinhos, mas longe de suas regiões
industriais do Leste. O aproveitamento destes recursos implica, portanto, o
financiamento de custosas infra-estruturas como gasodutos. A China tornou-se
importadora nata de petróleo nos últimos anos e se prevê que o seu consumo
aumentará, entre 2002 e 2010, de 230 para 300 milhões de toneladas, o que
significaria aumentar de 6 para 8-10% do consumo mundial; ao mesmo tempo, o de
gás natural passaria de 20 para 75-100 bilhões de m3 . Por isso, e para
diminuir a sua relativa dependência do Oriente Médio, a China precisa de uma
relação construtiva com os Estados herdeiros da antiga URSS. Assim, melhoraram
notavelmente os laços com a Rússia de Putin e não quer ficar implicada nos
conflitos do Oriente Médio. Vê com reticência compreensível as iniciativas dos
Estados Unidos de reforçar o seu controle sobre as reservas de petróleo e sua
presença na Ásia central e ocidental. Também teme, por razões de política
interior já indicadas, o islamismo radical em terras vizinhas. Em todo caso,
uma interrupção do abastecimento ou um forte aumento dos preços causariam
problemas graves para seu dinamismo industrial, com conseqüências sociais
perigosas47 . Nesse contexto de procura de diversificação das fontes
energéticas, um contrato de 8,5 bilhões de dólares acaba de ser assinado com a
Indonésia para obter desse país enormes volumes de gás natural 48 .
Em 2000, a demanda energética chinesa já chegava a aproximadamente um bilhão de
toneladas de equivalente-petróleo, quase o dobro da demanda do Japão e o triplo
da Alemanha. Enquanto a demanda dos países europeus e do Japão pouco cresce
devido a medidas de poupança energética, a China continua aumentando a sua.
Isso gerará, inevitavelmente, pressões sobre o meio ambiente e sobre os preços
de petróleo no mercado mundial.
Enchentes desastrosas dos últimos anos, como as de 1998 e de 2002, têm entre
suas causas o desmatamento das terras altas do interior. Mas o problema central
do futuro será, ao contrário, a escassez de água combinada com a da terra. Além
disso, o capítulo dedicado à China de uma obra editada por distintas ONGs
asiáticas destaca os seguintes problemas ambientais:
' a gigantesca represa das Três Gargantas sobre o rio Yang-Tsé
provocará, possivelmente, impacto negativo sobre o clima,
conseqüências incalculáveis no caso de terremotos, perdas importantes
de terras de cultura, contaminação de águas subterrâneas e de
superfície, salinização de terras, transformação de lagos em
pântanos, etc.;
' acidentes industriais que, segundo números oficiais, matam mais de
20.000 pessoas por ano e freqüentes incêndios com numerosas vítimas;
' há também incontáveis problemas de meio ambiente nas "modernas"
fábricas de capital vindo de fora, não poucas vezes com vítimas
fatais, onde a saúde dos trabalhadores, em particular das
trabalhadoras, sofre as conseqüências de práticas que privilegiam o
lucro imediato49 .
c) Condições de trabalho, regime político, corrupção e condição feminina
Estes últimos pontos nos levam a outros problemas agudos como as condições de
trabalho muitas vezes deploráveis que, conjuntamente com outros fatores como um
sistema político repressivo e uma corrupção difundida, cria tensões
importantes.
Quanto aos aspectos repressivos, a China bate o recorde mundial em matéria de
pena de morte e seu sistema jurídico-policial está, como a sua estrutura
política, certamente muito longe das normas democráticas. Observadores falam de
um sistema verdadeiramente imperial onde há, no fundo, relativamente pouca
diferença entre as últimas dinastias do império Chiang Kai-Shek, Mao e Deng
quanto à maneira autoritária de dirigir os negócios do país. Não existem mais
aqueles "senhores da guerra" de então, mas sim existem os "pequenos
imperadores" locais que podem ser grandes delinqüentes e gozam de uma
impunidade absoluta por sua habilidade de administrar sem escrúpulos os fios do
poder local. Mais do que de "marxismo-leninismo", sugere um observador, poderia
hoje se falar de um "mercado-leninismo", quer dizer, de um capitalismo
desenfreado combinado com um sistema que continua sendo muito autoritário, como
o foi também, durante décadas, o de Taiwan50 .
As condições de trabalho, em particular nas zonas econômicas especiais, lembram
muitas vezes as descrições da época do capitalismo das origens industriais
européias. Jornadas longuíssimas, inexistência, ou quase inexistência, de
férias e de dias de descanso, salários baixíssimos e falta de segurança são
aspectos típicos do trabalho em muitas dessas fábricas que sustentam o
crescimento chinês. Como resume um autor, os êxitos da China como país
exportador nos anos 90 se devem amplamente à "combinação de investimentos de
Hong Kong e de Taiwan e condições de trabalho neo-dickensianas nos territórios
satélites de Hong Kong no delta do Rio das Pérolas51 ". Essas condições sugerem
repor a velha questão: são apenas excessos de certos patrões inescrupulosos ou
necessidades intrínsecas da acumulação de capital, como na Inglaterra de
Charles Dickens e na França de Emile Zola? As fases iniciais dos países
industriais haverão sempre de fulminar a obra de caridade? Será preferível ser
explorado sem piedade por um patrão a não ser explorado por ninguém? Pode-se
supor que sim, se isso significa uma miséria pior e sem saída, e aquilo uma
melhora relativa que abre novas perspectivas, apesar de parecer herético a uma
esquerda que se opõe ao aggiornamento necessário52 . Mas é certo que tais
condições de trabalho criam tensões e pressões para permitir sindicatos
independentes e liberalizar o regime político.
A corrupção já era uma característica típica da China nos séculos passados e
foi um dos fatores centrais que determinaram a queda da última dinastia e do
regime de Chiang Kai-Shek. Nos anos 70, Alain Peyrefitte achava que entre as
qualidades principais atribuídas aos dirigentes pela população salientava-se a
sua honestidade. Mas, em tempos recentes, a partir da política de abertura, as
coisas devem ter mudado radicalmente, porque o fenômeno tomou, segundo todos os
observadores, uma dimensão extraordinária. Para um dos mais bem informados
deles, o movimento reprimido em junho de 1989 na Praça da Paz Celestial foi sem
dúvida tanto "pró-democracia" como "anticorrupção". "Se o Partido Comunista
Chinês sofrer um colapso", acrescenta, "a corrupção será seguramente a razão
principal. Ademais, ela floresceu com a liberalização econômica e chegou a
estar tão imbricada que em algum momento pode causar-lhe sérios danos. Se for
possível que a China continental consiga manter seu milagre econômico e
transformar-se em uma grande Taiwan, também é possível que a corrupção e o
regionalismo a transformem em uma outra Nigéria". Às vezes, acrescenta, a China
aparece hoje mais como uma verdadeira cleptocracia que como uma autocracia53 .
Não seria o único caso de associação estreita de corrupção com abertura
exterior: na América Latina há casos particularmente eloqüentes.
As mulheres tiveram na China, sabe-se, uma existência bastante triste em tempos
imperiais. Com a chegada de Mao, houve nesse plano melhoras realmente
revolucionárias. As conseqüências das políticas dos anos 80 e 90 foram várias.
A política não exatamente liberal do filho único, imposta brutalmente para
reduzir o crescimento demográfico, fez aumentar o número de nascimentos de
crianças do sexo masculino em relação às do sexo feminino até em 15 a 20% em
algumas províncias. É fácil prever no futuro um agravamento de situações já
hoje espantosas de tráfico de mulheres, raptos, etc. "Seria demasiado simplista
dizer inequivocamente que as mulheres chinesas tenham perdido terreno nos anos
80 e 90", resume uma observadora estadunidense de origem chinesa. "A economia
de mercado lhes deu novas oportunidades e em alguns casos também independência.
Mas, no total, parece-me que se as mulheres ganharam em uma escala absoluta,
perderam, contudo, terreno relativo frente aos homens. Quando o Partido deixou
de lutar pela igualdade, atitudes tradicionais voltaram a manifestar-se com
maior força". Isso levou, por exemplo, a que no Politburó, onde havia duas
mulheres em 1978, não haja nenhuma desde fins dos anos 80. No Comitê Central,
sua proporção diminuiu de 11,1 para 7,5% 54 . Nos últimos anos, com certeza,
anunciaram-se medidas que tendem a suavizar a política do filho único.
A "Área Econômica Chinesa"
É importante salientar, em relação ao contexto regional e internacional da
China, a cada vez mais estreita imbricação do que alguns autores chamam de
"triângulo de crescimento da China meridional" ou de "Área Econômica Chinesa"
que inclui as novas "regiões administrativas especiais" de Hong Kong e de
Macau, assim como Taiwan. Com a incorporação de Hong Kong, o território da
China aumentou 0,01% e a sua população 0,5%, mas seu PIB cerca de 20% em
dólares correntes (e quase 5% em paridades de poder aquisitivo). Com Taiwan,
seria mais um aumento em torno de 40% (ou de quase 10%). Em dólares correntes,
o PIB conjunto desta "Área Chinesa" era, já em 1995, de 900 bilhões, pouco
menos que o da Itália ou da Grã Bretanha, mas, calculado em paridades de poder
aquisitivo, seria de quase 3,6 bilhões (quase 3,2 para a R. P. da China),
contra 6,8 dos Estados Unidos e 2,7 do Japão55 .
Os vínculos entre a República Popular, Hong Kong e Taiwan cresceram
aceleradamente como conseqüência da abertura chinesa. Das exportações de
Taiwan, a porcentagem destinada a Hong Kong passou de menos de 10% em 1980 para
mais de 20% em 1993, ultrapassando em 1995 as que se dirigiam aos Estados
Unidos. Desde 1995, uma manobra administrativa permite contornar a proibição de
laços comerciais diretos pela criação bastante artificial de um porto off-shore
em Taiwan, teoricamente fora do seu território aduaneiro. Ironicamente, após as
eleições dos Presidentes Lee Teng-hui e Chen Shui-bian em 1996 e 2000 '
consideradas ambas como provocações a Pequim e acompanhadas por fortes tensões
bilaterais, inclusive militares ', as relações continuaram a intensificar-se
ainda muito mais, não sem provocar temores em Taiwan de uma crescente
dependência da ilha frente, a Mainland China, que tem quase 60 vezes mais
habitantes e que nunca renunciou a seu "direito" de reconquistar a ilha, se
necessário pela força. Algo semelhante passou com as exportações de Hong Kong,
onde o mercado chinês superou o norte-americano no início dos anos 90. A China,
que exportava porcentagens similares para Hong Kong e para o Japão em 1980,
enviava mais de 40% do total ao enclave inglês em 1992, contra pouco mais de
10% ao Japão. No total, os três elementos desta "área chinesa" somavam 5,9% das
exportações mundiais em 1994, deslocando a França para o quarto lugar, ainda
descontando, como se deve, as reexportações da China que constituem o grosso
dos envios de Hong Kong ao exterior. Resumindo, a crescente interconexão de
Taiwan, Hong Kong e a República Popular pelo comércio e os investimentos mútuos
fazem surgir, independentemente das tensões políticas recorrentes, um gigante
econômico que supera amplamente as cifras que correspondem apenas à China. A
maior parte dos investimentos "estrangeiros" na China provém de Hong Kong e, em
muito menor escala, de Taiwan. Por outro lado, a China Popular já é o primeiro
investidor exterior em Hong Kong há vários anos56 .
Um analista holandês não hesita em falar de uma forma de "Sociedade Anônima
China, Hong Kong, Taiwan". Como outros autores, refere-se à província de
Guangdong, vizinha de Hong Kong, como um "quinto tigre", e prevê a integração
dos sistemas com a erosão do comunismo e a implantação de um sistema misto,
entre a liberalização capitalista e outras alternativas neoautoritárias,
neonacionalistas e neoconfucianas57 .
Outros observadores também insistem na função do delta do Rio das Pérolas, com
Macau por um lado e Hong Kong pelo outro, assim como Guangzhou (Cantão) a uns
cem kilometros águas acima, como o motor regional da China meridional. Analizam
os crescentes vínculos estreitos entre estes territórios, as "zonas econômicas
especiais" adjacentes de Shenzhen e Zhuhai e o resto da província de Guangdong,
assim como os enormes trabalhos recentes de infra-estrutura ' entre os quais,
além de várias pontes e auto-estradas, os novos aeroportos internacionais de
Hong Kong e de Macau, inaugurados em 1998 e 1995, respectivamente ' na
perspectiva das fórmulas de "regiões de administração especial" acordadas para
Hong Kong a partir de 1997 e Macau a partir de fins de 1999. Estimam que esta
região tem, e continuará tendo, grandes vantagens comparativas para o futuro
previsível58 .
Um pesquisador taiwanês confirma a tendência para a convergência entre as
economias insular e continental no contexto regional do pós-Guerra-Fria: desde
os antigos sistemas orientados, respectivamente, por uma "via chinesa Smith-
Keynes" e uma outra "via chinesa marxista-leninista", resume, o futuro irá para
um "Smith-Marxist-Chinese model59 ". Entretanto, também é certo que, no campo
político, com a queda do velho Guomindang como partido de governo em 2000-01 e
até com revoluções divergentes, as coisas serão mais complicadas, sempre
perigosas para a paz regional.
Uma das questões controvertidas é se o centro mais dinâmico da China futura
será Xangai ou Hong Kong, e também se uma parte das funções desta cidade será
transferida para Cingapura. A resposta talvez seja a seguinte: o ex-enclave
britânico, com as instituições da "região administrativa especial" em princípio
asseguradas até 2047, manterá, provavelmente por bastante tempo, uma
importância primordial como centro comercial, financeiro, portuário e terciário
da dinâmica região Sul e porta principal de entrada da China. Na medida em que
o ambiente se torna pessimista, Cingapura poderia retomar algumas das suas
funções internacionais. Xangai, em uma China que se abre mais ao mundo e onde
mais pessoas começam a falar inglês, poderá, progressivamente, mas seguramente
não em curto prazo, ser uma concorrente feroz. Num prazo previsível, ficará o
enorme e moderno centro industrial e econômico que já é hoje, na parte Leste do
país, muito mais perto de Pequim e outras cidades importantes; mas deveria, se
Hong Kong não mostrar muita capacidade de se adaptar novamente às mudanças, pôr
em risco cada vez mais a situação privilegiada da cidade do Sul. Um comentário
suíço recente salienta que estão saindo dali postos de trabalho terciários para
a vizinha cidade de Shenzhen e que deixam de afluir os IED, tendência que
deveria ser reforçada pela adesão da China à OMC. Hong Kong, resume, "não ficou
parada nos últimos anos, mas a dinâmica da China continental tem reduzido as
vantagens relativas da cidade", embora sua acelerada integração à província de
Guangdong, origem de aproximadamente 40% das exportações chinesas, poderá
melhorar as suas perspectivas no futuro60 .
A China no mundo do século XXI ' novo parceiro ou elemento perturbador?
A longa trajetória de isolamento e de humilhações recebidas do Ocidente nos
séculos XIX e XX e fatores como o seu imenso peso demográfico e sua cultura
original fazem com que a China dificilmente seja um "parceiro normal" na ordem
mundial. Terá suas próprias respostas aos desafios da globalização liberal que
podem ajudar a corrigir certas aberrações da atual realidade mundial. Com
efeito, na medida em que a China tenderá ' por sua dupla condição de país já
bastante industrial mas ainda "em desenvolvimento" ' a compreender melhor que
as outras grandes potências as necessidades dos países pobres, pode-se esperar
que vá tomar posições mais favoráveis a estes no cenário internacional, como na
OMC, ainda dominada pelos países ocidentais61 . Seria imaginável, em médio
prazo, uma forma de aliança anti-hegemonia norte-americana dirigida pela China
e integrada por outros países do "Terceiro Mundo" como o Brasil, frente à qual
a Europa, associada à Rússia, teria talvez uma posição de mediação entre o
Norte e o Sul.
Para o sinólogo francês Lucien Bianco, Deng mudou mais a China em seus 18 anos
no poder que Mao em 27, e em um sentido muito positivo de aproximação ao
Ocidente. Mas o país não deixa de ser inquietante "para o resto do planeta,
porque, se tiver êxito, deverá contar, em muito pouco tempo, não só com um
mercado gigantesco mas também com a emergência de uma superpotência
provavelmente despótica, imperialista e contaminadora62 ".
O armamentismo chinês ' ou o que se vê de fora, pois os chineses salientam
sempre o caráter defensivo das suas despesas militares ' e seus numerosos
conflitos com países da região, combinados com seu perfil de gigante frente a
um grande número de países de dimensões mais modestas, não deixam,
efetivamente, de preocupar muitos asiáticos. Se as tensões internas reclamassem
um inimigo externo para desviar a atenção da população desses problemas, não
seria difícil de encontrá-lo. "Em um mundo cheio de afirmações nacionalistas de
pequenos Estados e grupos étnicos, (Deng) tem legitimizado novamente o
nacionalismo de um país muito grande", adverte um outro especialista francês,
François Godement. "Com seus sucessores, as democracias terão que cooperar para
permitir que a China leve a término sua modernização econômica e assegurar ao
mesmo tempo que a clarificação de seus objetivos nacionais continue sem gerar
ameaças para o resto da Ásia63 ".
Também, dois jornalistas norte-americanos especializados em temas chineses
escrevem que o país, que já tem o maior exército do mundo, "está utilizando seu
boom econômico para financiar um desenvolvimento militar que poderia
desestabilizar toda a Ásia. A China mantém, com efeito, desacordos sobre suas
fronteiras marítimas ou territoriais com nove de seus vizinhos, combateu com
quatro deles no último meio século e parece estar reivindicando como seu todo o
Mar da China meridional, incluindo nesse as rotas marítimas de maior
importância como a do petróleo do Oriente Médio para o Japão. A China está se
transformando em uma superpotência regional dominante de todo o continente
(...) O Ocidente, em poucas palavras, ainda não começou a levar em conta as
conseqüências da transformação da China em uma nação moderna: imaginem um outro
Japão, mais com uma população superior em uma dúzia de vezes mais as armas
nucleares64 ". Houve, também, uma aproximação notável entre a Rússia e a China,
os dois gigantes territoriais da Ásia, o que deixa Pequim com uma margem de
manobra bem maior nas suas relações com seus vizinhos do Sul. Mas em 2002, se
há tensões perigosas na Ásia, elas certamente não provêm da China, e se o
desenvolvimento chinês provoca preocupações para o meio ambiente mundial, o
Ocidente, e particularmente os Estados Unidos, teriam interesse em mostrar o
bom exemplo.
Perspectivas e conclusões
O aumento do comércio exterior e a afluência dos IED ainda continuaram, após a
crise asiática iniciada em 1997, com apenas uma ligeira desaceleração. Em 1999
e 2000, os IED desceram do patamar de 45 bilhões de dólares para o de 40
bilhões, voltando ao anterior e ainda superando-o, com um recorde de 46,8
bilhões em 2001. O total dos anos 1979-2001 chegou assim a cerca de 400
bilhões. As exportações só aumentaram, de 183 para 195 bilhões entre 1997 e
1999, para logo saltar a 249 e 266 bilhões em 2000 e 200165 . O êxito parece
inquestionável e a locomotiva ainda continua a todo vapor. Mas as duas grandes
perguntas, a primeira formulada há mais de uma década e a segunda a partir de
1997, continuam, contudo, sendo as seguintes: poderá o híbrido da "economia de
mercado socialista" de Deng Xiaoping sobreviver sem maiores alterações de seu
arquiteto66 e seus sucessores imediatos? E como evolucionarão as diversas
crises ao nível asiático e mundial?
Segundo a Unctad, ainda no contexto da atual crise mundial, a China continuou
atraindo quase uma quarta parte dos IED, praticamente o dobro que o México que
tinha substituído o Brasil como primeiro destinatário da América Latina67 . Em
2001, as exportações chinesas atingiram umas quatro vezes mais do que uma
década atrás, um aumento de quase 50% desde os anos 1997-98. Houve um ligeiro
decréscimo no comércio mundial durante esse ano, conseqüência da recessão nos
países industriais, da implosão da new economy bubble e dos vôos do 11 de
setembro. Em 2002, segundo estimativas da OMC, ano em que o comércio mundial
deveria voltar a crescer, mas apenas 2% em valor (1% em volume), as exportações
chinesas já aumentaram no primeiro semestre a uma taxa impressionante de 17,5%,
frente ao aumento de 14,5% das suas importações68 . Um dos principais setores é
o de têxteis e vestuário, onde as possibilidades de expansão são ainda
enormes69 . Alguns se perguntam se a China não se tornará o alfaiate do mundo.
A entrada na OMC deveria reforçar estas tendências. Implica a liberalização não
só das importações, mas também dos IED (acordos sobre serviços ' GATS ' e
propriedade intelectual ' TRIPS ' etc.) na participação em diversos setores até
então fechados a estes, como telecomunicações, seguros, bancos, distribuição
comercial e turismo, onde se pode esperar modificações importantes na
eficiência e na estrutura de propriedade, assim como na legislação concernente
aos serviços e a propriedade intelectual.70 Deve-se salientar, porém, que esta
abertura aos IED se faz de uma maneira muito gradual, prudente e seletiva, ao
contrário do que se fez por exemplo na Argentina dos anos 90. Estes acordos
interessaram, em particular, a União Européia que pretende concluir o seu
acordo prévio à adesão da China, como explica o Comissário competente no
capítulo sobre estas negociações, cujo título otimista é eloqüente: "O futuro
está na China".71
A crise de 1997-98 tinha provocado uma queda catastrófica dos PIBs dos "tigres"
da segunda geração e também da Coréia, mas só, como se viu, uma ligeira
desaceleração na China. Este contraste tem a ver com o tamanho do país e a sua
menor abertura financeira. Mas ainda assim existem perigos exteriores, não só
no abastecimento energético, para a continuidade deste dinamismo. Uma recessão
persistente nos principais mercados, asiáticos e outros, não poderia deixar de
afetar as perspectivas de crescimento, apesar de prosseguir, como nos últimos
anos, a expansão do mercado interno.
Um especialista espanhol fornece índices que ilustram a menor vulnerabilidade
da China frente às crises exteriores recentes: a dívida externa em curto prazo,
favorecida pela abertura financeira e a especulação, chegou a ser bem superior
(entre 1,5 e 2 vezes, aproximadamente) às reservas de divisas na Tailândia, na
Indonésia e na Coréia às vésperas da crise de 1997, mas só a uma oitava parte
das reservas no caso da China; a eficiência dos novos investimentos era bem
maior na China que na Malásia e na Tailândia e a sua moeda tinha se depreciado
menos72 ; quanto ao peso das exportações ao Japão e aos Estados Unidos, elas
constituíam apenas 7,5% do PIB chinês em 2000, contra 10 a 20% na Coréia, na
Indonésia, na Tailândia e nas Filipinas, e mais de 40% na Malásia; todos estes
países, ao contrário da China, dependem, particularmente, das exportações de
semicondutores e de outros produtos das tecnologias de informação, o que lhes
deu, nos últimos anos, uma vulnerabilidade exterior muito grande. Assim, o
gigante da Ásia oriental conseguiu manter as altas taxas de crescimento das
suas exportações e continuou atraindo capitais do exterior, mesmo se
reorientando com êxito para um maior investimento e para o consumo interno.73 .
Tamanho do país, tradições culturais, localização geográfica em uma região
dinâmica, política econômica, passado feudo-imperial e capitalista-
semicolonial, herança das filosofias do confucionismo e do taoísmo, assim como
do revolucionário Mao, do reformador Deng e do manager Jiang Zemin ' tudo isso
contribui para explicar o resultado atual. A "economia de mercado socialista"
levou, por exemplo, a uma presença de capitais estrangeiros cuja utilidade às
vezes pode parecer enigmática, como nos casos da produção de chá frio ' por uma
subsidiária da cervejaria japonesa Santory ' ou de água purificada ' pela Coca
Cola ' que são consumidos em quantias astronômicas em garrafas de plástico no
calor do verão, sem falar da presença dos incontáveis McDonalds e Kentucky
Fried Chicken em concorrência com a deliciosa comida local. Se nas cidades do
país, o visitante pode crer que já não existe chinês sem telefone celular e se
multiplicam os números de turistas estrangeiros como os cybercafes, isso também
é sinal de abertura. A entrada de capitais estrangeiros nas grandes empresas
estatais, que parece ter lugar segundo uma lei de outubro de 2002 que permite o
controle majoritário destes, deverá significar um passo importante para
aumentar a eficiência e, portanto, uma iniciativa essencial para utilizar a
adesão à OMC em vista a reforçar a modernização74 .
O problema principal talvez esteja justamente no plano interno, em relação ao
modelo de desenvolvimento que cria tensões crescentes, muitas vezes perigosas.
De acordo com Paul Kennedy, "como a China e a Índia possuem uma vantagem
tecnológica sobre muitas sociedades em desenvolvimento, caberia ser otimista
sobre suas perspectivas, mas com duas dúvidas importantes.A primeira, o núcleo
do problema, é se o potencial para o incremento do nível de vida per capita não
será aniquilado por milhões de crianças que nascem a cada ano. A segunda
questão supõe um cruel dilema: o que é mais sensato para países que possuem
entre 500 milhões e um bilhão de camponeses, tentar hoje seguir 'as etapas do
crescimento industrial' estabelecidas pela primeira vez nos países de tamanho
médio da Europa ocidental há cento e cinqüenta anos ou imitar a revolução de
alta tecnologia que surge das muito diferentes estruturas socioeconômicas da
Califórnia e do Japão?75 "?
Como manter o precário equilíbrio entre cidade e campo, regiões dinâmicas e
estagnadas, além da combinação perversa do regime de Partido Comunista, baseado
ainda num amplo setor de empresas públicas na indústria, com um capitalismo do
tipo selvagem? A inquietude cresce no próprio partido sobre o abismo cada vez
mais profundo entre regiões costeiras e interiores. A necessidade crescente,
segundo as previsões, de importar cereais, assim como os problemas ambientais
cada vez mais agudos, são fontes de outras preocupações sérias na China:
segundo Lester Brown, diretor do Worldwatch Institute, há realmente razões para
isso: "Se a China seguir fundamentalmente na via da industrialização copiada do
Japão, da Coréia do Sul e de Taiwan, e se esta diminuição das terras
cultiváveis continuar, terá perdido cerca da metade destas terras em 2030. Se a
população continuar crescendo como previsto em 490 milhões de almas entre 1990
e 2030, a superfície produtora de cereais por pessoa terá passado de 0,08
hectares em 1990 para 0,04 em 203076 .
Para outros autores, esta previsão é malthusiana demais. De todo modo, "o
intenso desenvolvimento que estão experimentando as frutíferas zonas costeiras
traduz-se em uma perda de auto-suficiência, enquanto que o incremento no
consumo de carne se reflete em maiores necessidades de pastos e cereais para
alimentação do gado. Analistas ocidentais afirmam que a superfície dedicada à
produção de grãos perde anualmente entre 100.000 e 300.000 hectares, sendo a
China, atualmente, importadora de trigo, arroz, milho e soja77 ". Lembremos que
só 10 ou 15% das terras chinesas são aptas para a agricultura.
Se a China teve, sem dúvida, grandes êxitos em termos de crescimento econômico,
em flagrante contraste com a Rússia e os outros países da Europa Oriental pós-
perestroika, isso foi, com certeza, não só por "ter tido sorte" ou por ter
rejeitado a terapia de choque proposta pelo establishment ocidental. Foi
precisamente por ter empreendido suas reformas liberalizantes de forma gradual
e não tão brusca como aqueles países. Assim opinam dois especialistas espanhóis
que salientam o entorno geral diferente: "Enquanto a China não sofria graves
desequilíbrios macroeconômicos, tinha uma alta proporção de agricultores e
efetuava já a maior parte do seu comércio exterior com países de economia de
mercado, os países da Europa Oriental e a antiga União Soviética tiveram que
fazer frente a um grave descontrole das macro-magnitudes, a uma considerável
superindustrialização e à perturbação externa que supôs o colapso do COMECON.
Ademais, a China pôde contar com sua pertinência à Ásia oriental, a região mais
dinâmica do planeta, com dois pólos de desenvolvimento, Hong Kong e Taiwan,
assim como com as contribuições dos chineses de ultramar. Pelo contrário, as
economias da Europa central e oriental iniciaram sua transição em uma época de
vacas magras no Ocidente e não conseguiram atrair tanto investimento
estrangeiro78 ".
Os êxitos do último quarto de século dão à China melhores perspectivas para
enfrentar os desafios que não são poucos. Mas o êxito principal terá sido, sem
dúvida, o de ter definido seu próprio ritmo e sua própria maneira de realizar
reformas, rejeitando receitas vindas de fora que tantos desastres têm provocado
em outras partes. A China soube entrar na globalização aproveitando as
possibilidades de uma economia mundial mais aberta sem cair nas ilusões de um
ultraliberalismo ingênuo ou hipócrita, nem acreditar nas ilusões de mercados
mundiais "livres" movidos pela "mão invisível" de Adam Smith e uma suposta
racionalidade universal. Entendeu que as "vantagens comparativas" de David
Ricardo podem servir de orientação de base, mas devem ser interpretadas de
forma realista ' tendo em conta que o mercado real é mais regido por grandes
empresas multinacionais que pela concorrência perfeita ou pela "mão invisível"
' e em uma perspectiva dinâmica. Se um país atrasado quer progredir, como
fizeram outros países asiáticos, requer uma combinação de mecanismos de mercado
com sólidas medidas de orientação estatal, sendo esta uma receita muito melhor
que aquela confiante nas "funções auto-reguladoras do mercado", ainda constitui
o credo básico de instituições como o FMI79 .
As experiências asiáticas posteriores a 1997 ' após a crise que em boa parte
foi resultado da política do FMI, sobretudo por sua insistência dogmática na
abertura dos mercados financeiros que causou uma especulação nefasta ' mostram
também que as receitas posteriores de austeridade e de ainda maior abertura
foram erradas80 . Os países em questão recuperaram-se posteriormente e, tanto
radicalmente como rapidamente, rejeitaram estas receitas, como ilustram os
casos da Malásia e também da Coréia do Sul. O Banco Mundial tinha reconhecido
no seu famoso estudo de 1993, realizado por iniciativa japonesa, que os êxitos
asiáticos se explicavam, sobretudo, pelo intervencionismo estatal combinado com
mecanismos de mercado, apesar de sua explicação ser baseada em uma distinção
pouco convincente entre intervenções favoráveis ao mercado, portanto
recomendáveis, e outras que não o seriam81 . Um especialista filipino descreveu
como essa verdadeira "associação ao capital" (estrangeiro) devido à afluência
de capitais especulativos causou problemas graves que tenderam a levar estes
países de volta ao "Terceiro Mundo82 ".
O ensaio recente do antigo economista-chefe do Banco Mundial, Joseph Stiglitz,
mostra que o Consenso de Washington é crescentemente questionado mesmo dentro
do establishment mundial. Juntou-se a ele até o especulador-filósofo George
Soros, que denuncia a incoerência, a hipocrisia e a irracionalidade do sistema
mundial. As práticas muitas vezes protecionistas dos países ricos são,
efetivamente, muito bem ilustradas, em 2002, pelos próprios Estados Unidos,
campeões do liberalismo, na agricultura e no setor siderúrgico.Pode-se concluir
com o autor que, independentemente das suas enormes vantagens potenciais, a
globalização, na forma em que hoje avança, simplesmente "não funciona", nem
para os pobres do mundo, nem para o meio ambiente, nem ainda para a
estabilidade da economia internacional83 .
Em uma linha paralela, o especialista espanhol citado no início destas páginas
conclui seu artigo recente sobre o acordo de Doha: "Com todas essas limitações,
a existência da OMC e da Declaração de Doha servem novamente para evitar que o
exercício da hipocrisia multilateral que às vezes supõe o debate livre
comércio-protecionismo se converta em uma guerra comercial aberta e que jogue
no lixo um dos pilares da 'globalização humana' a que hoje devemos aspirar
tendo em vista os problemas causados pelo fundamentalismo de mercado84 ".
Uma guerra econômica aberta certamente faria vítimas, em particular, e,
sobretudo, nos países periféricos. Mas uma abertura radical e reformas liberais
podem levar ao desenvolvimento, como também a graves crises ou ao desastre pela
fragilidade externa resultante. A globalização oferece grandes possibilidades
aproveitáveis para aumentar a produtividade e prosperidade de um país, mas
também implica enormes perigos e problemas. Quem, como os "tigres", se aventura
muito longe nessa via pode alcançar taxas de crescimento impressionantes e
êxitos também fora dos indicadores puramente econômicos, mas corre riscos. Pode
aumentar a sua autonomia, mas também chegar a ser "re-subordinado", adverte um
economista filipino, ou ainda, nos tempos de pós-Guerra Fria, até ser vítima de
"re-colonização", como acrescenta um veterano observador indiano de temas
internacionais85 .
A questão que fica em todo caso aberta é a de quais serão os custos e
benefícios da integração acelerada na globalização. A especialização
internacional traz, teoricamente, benefícios evidentes para todos, mas na
prática para alguns, talvez muitos, mas certamente não para todos. Os
benefícios são, em todo caso, desigualmente distribuídos entre nações
desiguais, levando em consideração uma série de circunstâncias complexas86 ,
apesar de existirem "clubes de convergência87 " como a União Européia ou,
segundo espera o establishment mexicano, o NAFTA. A China, por sua própria
força, poderá talvez reduzir os custos e maximizar os lucros, mas isso depende
de sua política e de suas respostas concretas aos problemas antes resumidos.
Não deveria esquecer que as realidades da globalização são muito distantes dos
discursos oficiais predominantes, tendo mais a ver com relações de força,
capacidade de inovação, oligopólios, orientação estatal, etc., do que com uma
idílica concorrência perfeita onde todos ganham e ninguém perde88 .
A crescente presença chinesa constitui, por outro lado, uma concorrência que
deveria aumentar a vulnerabilidade exterior dos outros países asiáticos, apesar
de também poder oferecer-lhes novas oportunidades de especialização. "A maneira
que respondem seus vizinhos à chegada da China", resumem dois especialistas,
"determinará se vão prosperar ou não na nova ordem na qual a Ásia estará
crescentemente organizada em torno da China89 ".
Também para outras regiões relativamente subdesenvolvidas como América Latina
ou Europa oriental, a maior presença da China no comércio mundial ' e a
conseqüente redistribuição dos fatores produtivos em nível mundial ' pode ser
perigosa, diminuindo as suas possibilidades de exportar têxteis e outros
produtos industriais, mas podendo lhes oferecer aumento das exportações de
produtos agropecuários, entre outros, à China. Para a Europa e os Estados
Unidos, a conseqüência deveria ser, sobretudo, uma maior possibilidade de
lucros comerciais e de voltar a equilibrar sua balança comercial atualmente
muito deficitária90 . Isso não exclui, evidentemente, que certos setores nesses
países possam sofrer duramente o impacto, acelerando a queda de atividades
tradicionais e agravando as tensões sociais. A União Européia, por exemplo,
opõe-se há muito tempo ao que considera "concorrência desleal" da Coréia quanto
à construção de barcos.
Relativamente à China, resta ainda a pergunta de como continuará sua
característica de oscilação permanente entre a admiração, o ódio ou desprezo,
frente ao "outro" ocidental como afirma um especialista francês: "Por um lado,
Pequim tira proveito de forma massiva dos investimentos dos chineses de
ultramar e também se beneficia da boa vontade dos diplomatas asiáticos. Mas a
China não perde nunca a ocasião de salientar sua desconfiança frente ao Japão e
seu desprezo frente aos pequenos países do Sudeste da Ásia. De fato, os
dirigentes chineses professam sentimentos muito complexos frente aos seus
vizinhos, estabelecem relações com eles quando necessitam, mas, na realidade,
não lhes perdoam por terem tido razão".
"No fundo, os sucessores de Deng Xiaoping vão enfrentar uma situação paradoxal,
mas compreensível: a crescente abertura de sua sociedade reforça a integração
com a Ásia e o mundo; por outro lado, conserva a hostilidade de numerosos
chineses frente aos países estrangeiros. Se a economia progredir, as dores da
transição serão atribuídas ao estrangeiro. Se deteriorar, também será por culpa
da abertura. Nessas condições, saberão os sucessores de Deng Xiaoping realmente
como atuar para estabilizar a relação intelectual e política do estrangeiro na
China, e, em especial, a do Ocidente? Ou, ao contrário, encorajarão o
desenvolvimento do nacionalismo para compensar seu déficit ideológico91 "?
É certo que estes sentimentos xenófobos têm profundas causas históricas e que
as reticências frente a uma globalização ultraliberal, ou somente liberal, têm
também outros motivos: "O governo chinês considera a alimentação da população
uma questão de segurança nacional e existe, por isso, um certo temor quanto à
dependência externa, especialmente com respeito aos Estados Unidos. Este receio
fica plasmado na negativa da China de incluir o setor agrícola no projeto que
liberaliza a área comercial Ásia-Pacífico, discutido na terceira cimeira da
APEC celebrada em Osaka em novembro de 1995. A partir desta perspectiva, a
China se encontra em uma difícil encruzilhada. Tem de optar pela liberalização
e a importação ou impor medidas protecionistas semelhantes às estabelecidas
pelo Japão e pela Coréia do Sul para proteger seus agricultores. Se a opinião
majoritária se inclinar pela proteção, esta decisão entraria em claro conflito
com a atual dinâmica liberalizante do bloco asiático, assim como com o
cumprimento das condições de acesso à Organização Mundial do Comércio ...92 ".
Isso foi escrito há poucos anos, e a atitude da China frente à OMC aceitando
uma abertura parcial e gradual do seu setor agrícola parece refletir sua
acostumada tendência ao pragmatismo, apesar de que só o futuro dirá se as
precauções terão sido suficientes.
Por último, fica ainda aberta a questão fundamental das vantagens e
desvantagens de um sistema político mais aberto. Os êxitos do Japão se deram
primeiro sob o regime autoritário, mas constitucional, de Meiji que logo se
transformou num sistema militarizado aliado à Alemanha de Hitler, e, após 1945,
sob uma democracia liberal-conservadora de estilo ocidental imposta pelos
vencedores. Os "tigres" imitaram o Japão em muitos aspectos, mas com regimes
que não tinham nada de democráticos, apesar de terem feito reformas que levaram
a uma distribuição da renda não muito desigual. Outros regimes autoritários
como os das Filipinas ou do Paquistão não chegaram a produzir o take-off
econômico, criando ou agravando os abismos sociais e tensões regionais que põem
em risco a própria coesão nacional. Mas o que se passou na Índia, praticamente
o único país da região com instituições democráticas, que se mostrou bem mais
estável do que todo o mundo pensava há algumas décadas? Muitos indianos dizem
que o seu sistema político não só lhes preservou de graves violações de
direitos humanos, de guerras civis ou interétnicas, mas também de aberrações
gigantescas ' como na China de Mao durante a Revolução Cultural ' e de
autoritarismos estéreis como os de alguns países vizinhos, e talvez lhes
ofereça, em definitivo, melhores perspectivas de longo prazo que os regimes
autoritários de outros países asiáticos, inclusive aqueles que têm ostentado
altas taxas de crescimento econômico. Os maiores "tigres" Coréia e Taiwan, e em
menor medida outros países da região, já se orientaram há vários anos, como
corolário do seu desenvolvimento econômico, para um regime político de tipo
ocidental.
Na China, este caminho parece ainda longo e difícil, sobretudo na medida em que
o regime mantém certa legitimidade por seu próprio êxito econômico e também
devido ao atraso ainda muito grande em termos de "consciência democrática"
(ocidental) nas regiões majoritárias, fora dos enclaves modernizantes e
arredores, onde foi aparecendo uma crescente, mas ainda muito heterogênea,
classe média, isto é, em regiões que contam com uns 400 milhões de habitantes93
. A ignorância ainda quase total da língua inglesa na China de hoje ' que muito
lentamente vai diminuindo ' reflete essa relativa desconexão do mundo,
incomparável internacionalmente, exceto talvez com a Coréia do Norte. Segundo o
politólogo estadunidense Robert Dahl, contudo, o êxito econômico da China tem
criado ali também as precondições de tal sistema político: classe média,
educação e uma maior demanda de informação. "E quando um governo cria estas
condições não pode seguir se impondo sem destruir seus próprios objetivos; quer
dizer, se frente a uma sociedade que gera demandas de democratização o regime
governante se obstina a se impor de modo autoritário, não lhe resta outro
caminho que o de destruir esta sociedade94 ". Pode ser demasiado contundente
esta afirmação, mas reflete, sem dúvida, a grande interrogação política que é a
da "quinta modernização", a do sistema político da China no começo do século
XXI.
Notas
1 GRANELL, Francesc. Doha, China y la OMC. Del pesimismo al diálogo
multilateral. Política Exterior 85. Madrid, p.25-31, jan.-fev. 2002.
2 HOBSBAWM, Eric. Historia del siglo XX, 1914-1991 Barcelona: Crítica, 1995, p.
460.
3 Ilustração eloqüente da nova atitude, a televisão chinesa mostrava com
freqüência durante a estada do autor na China em agosto de 2002 destruições de
CDs e outros produtos pirateados diante de representantes das autoridades
empenhadas em acabar com as práticas tão criticadas como violação de direitos
de propriedade intelectual. Todavia, isso não impedia que se pudesse comprar em
toda parte excelentes CDs das músicas de Mozart, dos Beatles, etc., pelo módico
preço de um ou dois dólares.
4 CHIENG, André.La Chine à l'OMC: promesses, risques et arrière-pensées.
Sociétal. Paris, n. 36, 2º trimestre, p.20, 2002.
5 Após o Japão, apareceram, nos anos 60, os dinâmicos "quatro pequenos tigres"
' no início chamados de "dragões" (Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong
Kong), e a partir dos anos 70 outros países como Malásia e Tailândia (v. SUKUP,
V. Ásia Oriental e Sudeste Asiático ' modelos para América Latina? Revista
Brasileira de Política Internacional, No. 40 (2), p. 27-48, 1997 e Asia frente
al siglo XXI ' ¿de los "milagros" a las "debacles"? Buenos
Aires: Corregidor, 2000.
6 MADDISON, Angus. La economía mundial, 1820-1992. Análisis y estadísticas.
Perspectivas OCDE. Paris: 1997.
7 FERRER, Aldo. Historia de la Globalización.Orígenes del orden económico
mundial Buenos Aires: FCE de Argentina, 1996, p. 270.
8 FOK, Kai Cheong. Estudos sobre a instalação dos portugueses em Macau. Lisboa:
Ed. Museu Marítimo de Macau e Ed. Gradiva, sem data, p. 12.
9 INTRODUÇÃO. Visões da China na literatura ibérica dos séculos XVI e XVII.
Antologia documental. Revista de Cultura. Macau, n. 31, dedicado ao tema,
abril-junho 1997.
10 Parece que os jesuítas propuseram a Roma a adaptação da simbologia do
cristianismo, substituindo o pão pelo arroz e o vinho pelo chá, para atrair os
chineses para a religião cristã, mas o Vaticano se opôs a essa idéia, impedindo
o possível êxito dos esforços dos missionários que sempre foram vistos mais
como vanguarda do colonialismo europeu que como mensageiros da palavra de Deus.
Uma maior flexibilidade da hierarquia católica teria talvez mudado o rumo da
história.
11 RUSSELL, Bertrand. The Problem of China, Londres: George Allen & Unwin,
1922, p. 51.
12 PINON, René; DE MARCILLAC, Jean. La Chine qui s'ouvre. París: Librairie
académique Perrin & Cie, 5a éd, 1900, p. 1.
13 Citado por REMER, C. F. The foreign trade of China. Shanghai: The Council
Press, 1928, p. 17.
14 Ibid., p. 245.
15 Ibid., p. 233.
16 CHESNAIS, Jean-Claude. La revancha del Tercer Mundo. Buenos Aires:
Sudamericana, 1987, p. 63.
17 PEFFER, Nathaniel. China: the collapse of a civilization. Londres: George
Routledge & Sons, 1931, p. 5.
18 MORISHIMA, Michio.Por que ha "triunfado" el Japón. Tecnología occidental y
mentalidad japonesa. Caracas: Grijalbo, 1988.
19 PEYREFITTE, Alain. Milagros económicos. Barcelona, México, Buenos Aires,
Santiago: Ed. Andrés Bello, 1997, p. 202-3.
20 REINHARD, Marcel; ARMENGAUD, André. Historia de la población mundial.
Barcelona: Ariel, 1966, p. 375.
21 PEYREFITTE, Alain. Quand la Chine s'éveillera, le monde tremblera. París:
J'ai lu, 2a ed., 1977.
22 Voie chinoise, voie indienne. Le Monde. 3-10-89.
23 UL HAQ, Mahbub. La cortina de la pobreza. México: FCE, 1978, p. 70.
24 BUSTELO, Pablo; FERNANDEZ LOMMEN, Yolanda. La economía china ante el siglo
XXI. Veinte años de reforma. Madrid: ed. Síntesis, 1996, p. 49-50.
25 KRISTOF, Nicholas D.; WUDUNN, Sheryl. China wakes.The struggle for the soul
of a rising power. Nueva York: Random House, 1995, p. 16.
26 YOUNG, Soogil. East Asia as a regional force for globalism. In: ANDERSON,
Kym; BLACKHURST, Richard (Orgs.). Regional Integration and the Global Trading
System. Nueva York, Londres, Toronto, Sidney, Tokio y Singapur: Harvester
Wheatsheaf, 1994, p. 128.
27 LEMOINE, Françoise. Los riesgos del recalentamiento. Archivos del Presente.
Buenos Aires: No. 1 (1), otoño de 1995, p. 65.
28 FOUQUIN, Michel. Asia oriental: las trampas de la liberalización, en SELA,
Secretaría permanente ' CEPII (Centre d'Etudes Prospectives et d'Information
Internationale). 1998: América Latina y Caribe en la Economía Mundial. Buenos
Aires: Corregidor, 1998, p. 65 et 68.
29 VAN KEMENADE, Willem. China, Hong Kong, Taiwan, Inc. Londres: Abacus, 1997,
p. 68.
30 KENNEDY, Paul. Hacia el siglo XXI. Barcelona: Plaza y Janés, 1995, p. 279-
80.
31 HOCHRAICH, Diana. Los desequilibrios del crecimiento en China. Realidad
Económica 140. Buenos Aires: maio-junho de 1996, p. 64.
32 Süddeutsche Zeitung, art. republicado em La Nación, Buenos Aires, 7-7-1997.
33 BUSTELO, P. Op. cit., p. 52-3.
34 RIFKIN, Jeremy. The End of Work.The Decline of the Global Labor Force and
the Dawn of the Post-Market Era. Nueva York: Tarcher-Putman, 1995.
35 Neue Zürcher Zeitung, 26-3-93.
36 China Daily, 30-8-02.
37 BUSTELO & FERNANDEZ L., op. cit. , p. 166, 171, 27.
38 WEGGEL, Oskar. Taiwan ' Hongkong. Munich: Beck, 1992.
39 YACOUP, Joseph. Les minorités dans le monde.Faits et analyses. París:
Desclée de Brouwer, 1998, p. 639-654.
40 ROVETTA DUBINSKY, Pablo. El desarrollo del Oeste: la estrategia para el
futuro de China. In: China en el siglo XXI, Información Comercial Española.
Madrid: n. 797, p. 93-100, fev. 2002
41 International Herald Tribune, 10/11-2-96.
42 KENNEDY, P. op. cit., p. 261.
43 Neue Zürcher Zeitung, 23-9-02.
44 KRISTOF & WUDUNN, op.cit., p. 15. O fato bem conhecido que os Estados
Unidos, com menos de um quarto da população da China, contribuem muito mais que
ela aos problemas ambientais do mundo não impede que as conseqüências do
desenvolvimento chinês também sejam objeto de preocupações legítimas.
45 RÍOS, Xulio. China, ¿superpotencia del siglo XXI?. Madrid: Icaria-Más
Madera, 1997, p. 68.
46 BUSTELO & FERNANDEZ L., op. cit., pp. 185-6.
47 Neue Zürcher Zeitung, 13 e 24-9-02.
48 Financial Times, 27-9-02.
49 PO KEUNG, Hui et al. China. In: RAINA, Vinod et al. The Dispossessed.
Victims of Development in Asia. Hong Kong: Arena Press, 2a reimpressão, 1999,
p. 23-66.
50 KRISTOF & WUDUNN, op. cit., p. 431.
51 VAN KEMENADE, W. op. cit., p. 220.
52 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Velhos e novos manifestos.O socialismo na era da
globalização. São Paulo: ed. Juarez de Oliveira, 1999, p. 41-7.
53 KRISTOF & WUDUNN, op. cit., p. 187.
54 Ibid., p. 222.
55 Ibid., p. 193.
56 Ibid., p. 192 ss.
57 VAN KEMENADE, W. op. cit.
58 ANTÓNIO, Nelson; ROSA, Álvaro A. da. Macau and the Pearl River Delta: The
steps to the global economy. In: RAMOS, Rufino; ROCHA, José DINIS; WILSON, Rex;
YUAN, D. Y. (orgs.).Macau and Its Neighbours in Transition. Macau: University
of Macau and Macau Foundation, 1997, p. 201-210.
59 WEI, Wou. The interaction of economic liberalization between Taiwan and
Mainland China. In: RAMOS, R. et al. Macau and , p. 183-92.
60 Neue Zürcher Zeitung, 11-10-02.
61 O novo diretor geral da OMC Supachai também apoiou a adesão da China com o
argumento de que ela seria uma ponte entre ambos grupos de países, v. OCCIS,
Nicolas. Les enjeux de l'adhésion de la Chine à l'OMC. Politique étrangère.
París: n. 4, 2001, p. 983.
62 Le Monde, 22-2-97.
63 GODEMENT, François. Cinq enseignements de la crise asiatique. Géopolitique.
París: n. 62, p. 23-9.
64 KRISTOF & WUDUNN, op. cit., p. 15.
65 CHIENG, A., op. cit., p. 22.
66 V. por exemplo GOODMAN, David S. G.; SEGAL Gerald. China without Deng. New
York, Amsterdam, Sydney: ed. Tom Thompson, 1995.
67 CNUCED. Rapport 2002 sur l'investissement. Genebra: 2002.
68 OMC. International Trade Statistics. Genebra: 2002.
69 YANG, Yongsheng; ZHONG, Chuanshui. China's Textile and Clothing Exports in a
Changing World Economy. The Developing Economies. Tóquio: XXXVI (1), março,
1998.
70 COLLADO ARMENGOL, Albert. La inversión directa en China: implicaciones
derivadas de su entrada en la OMC. Información Comercial Española. Fev. 2002,
p. 77-91.
71 LAMY, Pascal. L'Europe en première ligne. Paris: Seuil-L'épreuve des faits,
cap. 1, 2002, p. 13-30.
72 BUSTELO GOMEZ, Pablo. Evolución reciente y perspectivas de la economía
china. Información Comercial Española. 797, fev, 2002, p. 45.
73 Ibid,p. 47-50.
74 Financial Times, 10-10-02.
75 KENNEDY, P. op. cit. p. 273.
76 DECORNOY, Jacques. La Chine, le riz et le pare-chocs. Le Monde diplomatique.
Nov. 1995.
77 BUSTELO & FERNANDEZ L., op. cit., p. 67.
78 BUSTELO & FERNANDEZ L., op. cit., p. 233.
79 V., por exemplo, algumas reflexões úteis que vêm do Norte e do Sul: WADE,
Robert. Governing the Market: Economic Theory and the Role of Government in
East Asian Industrialization. Princeton: Princeton University Press, USA, 1990; WHITE, Gordon (org.). Developmental States in East Asia.
Londres, Basingstoke: Institute of Development Studies, Univ. of Sussex,
Macmillan Press, 1988; MALHOTRA, Kamal. East and Southeast
Asia Revisited: Miracles, Myths and Mirages. In: Focus on the Global South.
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Novembro de 2002