Ilusão desfeita: a "aliança especial" Brasil-Estados Unidos e o poder naval
brasileiro durante e após a Segunda Guerra Mundial
Introdução
Em ocasiões diversas Osvaldo Aranha, Ministro das Relações Exteriores de 1938 a
1944, repetiu que a política externa brasileira se resumia na seguinte
orientação: apoiar os Estados Unidos em seu papel de potência mundial, em troca
do apoio destes a supremacia do Brasil na América do Sul. Conforme a prática na
condução da política externa brasileira, essa orientação era descrita por
Aranha como uma tradição, legada principalmente pela chancelaria do Barão do
Rio Branco.1 Inserida no governo Vargas, tal política devia auxiliar os
projetos do governo que buscavam centralizar e modernizar o Estado e
industrializar o país. Supunha-se, portanto, que uma aliança com os norte-
americanos renderia frutos neste sentido.
Do ponto de vista militar, particularmente durante o Estado Novo (1937-1945),
grande esforço foi despendido para a modernização das Forças Armadas. De 1942 a
1945, quando o Brasil esteve em guerra formal contra Alemanha e Itália e em
aliança com os Estados Unidos, os auxílios técnico e material fornecidos pelos
norte-americanos e a proximidade entre as respectivas forças militares
alimentaram a idéia de que os Estados Unidos continuariam subscrevendo uma
"aliança especial" com o Brasil, fornecendo os meios para que o país tivesse a
supremacia militar no continente. Essa idéia acompanhou os militares
brasileiros durante grande parte do pós-guerra, especialmente nos cinco ou seis
primeiros anos.
Este artigo destaca essa influência no poder naval brasileiro. Ele é exemplo
que confirma não só o comportamento e a política das Forças Armadas nacionais
durante o período, mas toda a política externa brasileira de então. Com esse
objetivo, desenvolvo meu argumento apresentando os antecedentes da política
naval brasileira e as metas de repotencialização deste poder nos anos 30.
Posteriormente são analisadas as conseqüências da guerra e da aliança com os
Estados Unidos para o poder naval nacional, destacando-se as tentativas,
durante e logo após a guerra, de se incrementar esse poder com o auxílio norte-
americano. Finalmente, apresento a confusa e negligente política dos Estados
Unidos para a América Latina logo após a guerra, e sua resolução no início dos
anos 50, derrubando definitivamente qualquer idéia, no âmbito militar e naval,
de que haveria por parte dos norte-americanos diretriz para subscrever a
supremacia brasileira na América do Sul.
Antecedentes
O poder naval foi suporte muito importante da política externa do Império
brasileiro, particularmente da política para a região do Prata. Durante
aproximadamente um quarto de século, o Império teve atuante diplomacia na área,
procurando manter sua predominância sobre os vizinhos, impedindo a constituição
de uma única entidade política soberana abarcando todo o território do antigo
Vice-Reino do Prata.2 Ao fim do século XIX, estabilizou-se, na região, o
desenho político que perdura até os dias de hoje: dois pequenos Estados
tampões, o Uruguai e o Paraguai, separando grande parte do território
brasileiro do seu grande rival austral, a Argentina, cujo centro político e
econômico se situa em Buenos Aires e arredores. A política imperial obteve
pleno êxito.
A supremacia da esquadra brasileira durante a maior parte da segunda metade do
século XIX foi um fator importante para isso. Tanto na guerra contra Oribe e
Rosas (1851-1852), como na longa luta em coalizão contra o Paraguai de Solano
López (1864-1870), o predomínio naval brasileiro teve papel destacado para a
ulterior vitória do Brasil nos âmbitos militar e diplomático. Para termos uma
idéia dessa supremacia regional, basta citar que ao fim da Guerra do Paraguai,
a Marinha brasileira não só era a maior do continente, como também, em número
de embarcações, era a quinta do mundo, superada apenas pelas esquadras da
Inglaterra, Rússia, Estados Unidos e Itália.3 Destaca-se que a construção naval
militar no país era bastante desenvolvida, fato que dava ao Brasil certa
autonomia no setor, algo extremamente positivo para o poder nacional.
O poder naval brasileiro sofreu, a partir de então, visível decréscimo de
importância. Politicamente, a Marinha apoiava o regime monárquico. A
proclamação da República, com destacada participação de importantes oficiais do
Exército, foi um golpe no prestígio interno da instituição. A derrota da
Revolta da Armada em 1893, quando a maior parte da força naval brasileira se
sublevou contra o presidente e marechal Floriano Peixoto, foi um revés ainda
maior, e representa o momento de menor prestígio político da força. O papel da
Marinha na política nacional desde aquela data tem sido bem tímido.4
Paralelamente, a força naval brasileira sofreu também com o impacto da
revolução industrial na tecnologia de construção de navios. Em poucas décadas,
todos os aspectos da guerra no mar foram revolucionados, deixando a esquadra
brasileira inteiramente obsoleta. A partir desse momento, a construção naval
militar passou a ser privilégio de países industrializados, fato que impediu a
produção de navios de guerra no país por quase cinqüenta anos.
Na primeira década do século XX, o avançado estado de obsolescência do poder
naval brasileiro e o destacado apoio ao seu reequipamento pelo ministro das
Relações Exteriores, o barão do Rio Branco, proporcionaram momentâneo retorno
da supremacia naval brasileira na região. A posição de Rio Branco em defesa da
repotencialização do poder naval do Brasil foi capital para a materialização
dos planos navais de 1904-1906. Rio Branco era, indiscutivelmente, a figura
política de maior importância dentro do Estado brasileiro naquele período,
tendo-se mantido à frente do Itamaraty durante dez anos (1902-1912) e ao longo
de quatro governos distintos. A posse de uma esquadra poderosa não só era parte
importante da política de prestígio internacional implementada pelo barão, como
também auxiliava sua política de demarcação final de fronteiras.
Uma frota inteira baseada em dois poderosos encouraçados do tipo dreadnought' o
Minas Gerais e o São Paulo ' e suas respectivas escoltas de cruzadores e
contratorpedeiros foi encomendada aos estaleiros britânicos, sendo entregue em
1910. A supremacia naval regional do país foi, desta vez, momentânea. A atitude
brasileira provocou uma corrida armamentista no Cone Sul. A Argentina também
constituiu sua esquadra de dreadnoughts, feita nos Estados Unidos e entregue em
1914-1915, composta de dois navios ainda mais potentes que os similares
brasileiros ' o Rivadávia e o Moreno. O Chile, por sua vez, ordenou a
construção de dois encouraçados também, tendo ao final adquirido só um deles '
o Almirante Latorre, já em 1920.5
Além da resposta dos vizinhos hispânicos, outro fator impediria qualquer desejo
maior de supremacia pelo Brasil: o atraso industrial. Ele tornou a posse de
navios modernos uma miragem de potência, pois a frota adquirida acabou tendo um
potencial de utilização bem pequeno. O material humano existente na força
marítima brasileira estava aquém do equipamento adquirido, e a dependência
exterior para manutenção e reparos dos navios tornou o poder naval nacional
menor do que se esperava.6 A esquadra de 1910, bem pouco tempo após sua
chegada, já não podia rivalizar com outras dotadas de navios mais modernos, até
mesmo na própria região. Após alguns anos e ela já estava ultrapassada, tendo
de ficar grande parte do tempo parada em estaleiros para reforma de algumas
importantes unidades. No início dos anos 30, era urgente o reequipamento naval
do país, sob risco de o Estado brasileiro ficar privado desse importante
elemento do poder nacional.
A política naval brasileira nos anos 30
Em 1932, um novo plano de dotação naval foi aprovado, já então na presidência
provisória de Getúlio Vargas. Apesar da diretriz americanista da política
externa brasileira, a crise econômica resultante da recessão mundial tornava os
países europeus parceiros comerciais que não podiam ser desprezados. A
diplomacia brasileira no período é normalmente caracterizada como de
"eqüidistância pragmática", haja vista os fortes vínculos comerciais que o
Brasil manteve com o Eixo europeu, sem comprometer, contudo, sua ligação
política mais forte com os Estados Unidos.7 As trocas comerciais com a Itália e
principalmente com a Alemanha cresceram muito na segunda metade da década de
1930, e apresentavam importante vantagem em relação ao comércio realizado com
os Estados Unidos: eram feitas na base do escambo, por meio das caixas de
compensação, o que poupava as parcas divisas estrangeiras dos países
envolvidos. A palavra de ordem da época era "o máximo de relações comerciais e
o mínimo de relações políticas com a Europa", como escreveu o general Góes
Monteiro em 1939.8
O plano de aquisição naval de 1932, revisto em 34, foi bem realista quanto à
capacidade econômica nacional, deixando de lado a idéia de supremacia no Cone
Sul e adotando realisticamente, como meta, o equilíbrio. A frota de combate
estabelecida era composta de dois cruzadores de 8.500 toneladas, nove
contratorpedeiros de 1.500 toneladas e seis submarinos.9 É preciso destacar que
naquele momento, a Armada argentina estava bem a frente da brasileira, já tendo
iniciado seu processo de modernização, encomendando e recebendo de estaleiros
italianos, britânicos e espanhóis dois cruzadores leves, cinco
contratorpedeiros e três submarinos. Em 1938-1939, os argentinos incorporariam
à sua esquadra mais um moderníssimo cruzadore sete contratorpedeiros
construídos na Inglaterra.10 Nesse momento, a envelhecida esquadra brasileira
mantinhase tão-somente como a terceira do continente.11
Créditos foram destinados para o cumprimento do plano, e o país para o qual o
governo brasileiro se voltou como provável fornecedor foram os Estados Unidos.
Motivos de sobra para isso existiam. Não bastasse a política externa
americanista, a Marinha brasileira contava, desde 1922, comum a missão naval
daquele país, contratada para inserir o poder naval do Brasil na modernidade,
instruindo seus marinheiros em técnicas, táticas e organização modernas.
Tentou-se primeiramente a aquisição de cruzadores nos Estados Unidos, mas o
clima de guerra e as objeções argentinas fizeram o negócio gorar. Oswaldo
Aranha, embaixador do Brasil em Washington naqueles tempos, pressionou pelo
arrendamento de seis velhos contratorpedeiros em fins de 1936, algo que, a
princípio, ficou acertado. Entretanto, os Estados Unidos acabaram cedendo aos
protestos da imprensa e da chancelaria argentina, apesar da afirmação de Aranha
de que "o alarme de qualquer país diante da atual potência naval do Brasil
seria o mesmo que um homem armado de metralhadora temer um outro armado de um
simples canivete".12 Em face das carências da Marinha, a questão deixou o
governo brasileiro desgostoso com os norte-americanos e preocupado com as
intenções do vizinho e rival austral. Imediatamente seis navios daquele tipo
foram encomendados a estaleiros britânicos.13 A Europa parecia realmente mais
profícua como parceiro neste quesito. Quase na mesma época, também foram
adquiridos três submarinos da Itália por intermédio do comércio compensado.14
A novidade mais importante do novo plano naval era, no entanto, a ênfase que se
deu ao retorno da construção no Brasil. O antigo arsenal de Marinha não tinha
mais condições técnicas para tal empreendimento, mas nos anos 20 um novo e
moderno arsenal teve sua construção iniciada ao lado do antigo, na Ilha das
Cobras. O novo arsenal foi completado nos anos 30 e, consoante a política de
industrialização do governo Vargas, seu ministro da Marinha, vice-almirante
Aristides Guilhem, esforçou-se para que grande parte do novo programa naval
fosse construído nesse estabelecimento. Em fins de 1935, o arsenal iniciou suas
atividades produzindo embarcações simples, mas em 1937, teve início a
fabricação de modernos contratorpedeiros classe Marcílio Dias, cujos planos de
construção foram cedidos ao Brasil pela Marinha dos Estados Unidos.15 Três
contratorpedeiros dessa classe foram incorporados à esquadra brasileira em
1943, já durante a guerra, depois de receber o armamento definitivo nos Estados
Unidos. Apartir de 1940, mais seis contratorpedeiros foram lançados nesse
estaleiro, os classe Amazonas. Esses navios foram originalmente aqueles
encomendados a construtores britânicos para substituir as unidades que o
governo brasileiro não conseguiu arrendar dos Estados Unidos. O início da
guerra na Europa, em 1939, fez a Real Marinha requisitar tais unidades. Os
brasileiros decidiram, então, com auxílio de técnicos norte-americanos e de
equipamento por eles cedidos, produzir também tais embarcações no Brasil. O
trabalho foi muito demorado, não só por razões técnicas também em virtude da
mudançado cenário internacional no pós-guerra. O primeiro navio classe
Amazonassó foi terminado em 1949, e o último somente em 1960!16
De toda forma, em menos de cinco anos o novo arsenal de Marinha deu início à
produção de nove modernos contratorpedeiros, número inicialmente proposto no
plano naval de 1932-1934 para este tipo de embarcação. A moderna construção
naval brasileira era obra dos novos governantes, e contou com o prestimoso
auxílio técnico norte-americano, principalmente nos anos de guerra. Guilhem,
que além de navios, buscou implantar no país também o fabrico de artilharia,
torpedos e aviões, queria mais do que uma simples frota de guerra poderosa.
Queria, antes de tudo, retomar certa capacidade autárquica na área, perdida com
a revolução tecnológica. Claro que isso estava muito longe de ser alcançado na
época da construção destes navios, visto que o índice de nacionalização,
inclusive para a série de contratorpedeiros classe A, já na década de
50 (...) ' era baixíssimo, quase inexistente: praticamente todos os
materiais eram importados, chapas e perfis para casco, máquinas e
caldeiras, eixos e hélices, bombas, tubulações e acessórios,
materiais e equipamentos elétricos e eletrônicos, etc., etc., e até
as tintas para a pintura. A nacionalização dos componentes dos navios
só começou com a implantação da grande indústria do governo
Juscelino.17
Mas o mais importante à época era começar, dar início ao empreendimento, uma
vez que, nas palavras de Guilhem,
[...] as usinas que modestamente foram surgindo não se animavam a
despender grandes capitais em aparelhamento, cujos produtos não
encontravam consumidor e, assim, não se construía por não haver
material apropriado, não se produzia material, por não haver
produção. Era indispensável desfazer este equilíbrio, e foi o que fez
a Administração Naval preparando os seus arsenais e estaleiros para
iniciar a construção de navios com material importado, formando,
assim, o operariado para, no futuro, quando as indústrias brasileiras
produzirem o material, utilizá-lo fazendo obra exclusivamente
nacional.18
Como em outros setores da industrialização de base, a iniciativa e o
investimento pesado por parte do Estado eram condição sine qua non,para o
retorno de uma mínima capacidade de construção naval militar brasileira naquele
momento.
Não obstante, os modernos navios nas carreiras de construção do Rio de Janeiro,
em 1940, a guerra européia já começava a espalhar-se pelo Atlântico, e a
Marinha brasileira só podia contar com a envelhecida e desfalcada esquadra de
1910 e mais quatro submarinos. Uma vez formalmente na guerra, a aliança militar
com os Estados Unidos foi a maior garantia para a continuidade do comércio
naval brasileiro, inclusive de cabotagem, em face dos ataques desferidos pelos
submarinos do Eixo aos navios mercantes do Brasil. A incapacidade de meios e
conhecimento da Marinha de Guerra brasileira para lidar com essa ameaça
aparecia a olhos vistos.
A aliança formal Brasil-Estados Unidos e o poder naval brasileiro
Após o curto período de eqüidistância nas relações exteriores, o início da
guerra na Europa obrigou o governo Vargas a alterar a política externa
brasileira em direção a um alinhamento mais estreito com os Estado Unidos. O
ano de 1940 foi decisivo para Vargas e seu grupo no poder. As pressões norte-
americanas para contar com o Brasil no já esperado envolvimento dos Estado
Unidos no conflito europeu aumentaram.
A importância do país para os Estados Unidos devia-se, em ordem decrescente:
(1) à necessidade de controle de bases no Nordeste brasileiro, vitais para a
defesa hemisférica e do Atlântico Sul e, posteriormente, para a própria
projeção de poder norte-americana e auxílio, por via aérea, aos aliados lutando
na África do Norte, Europa e Extremo Oriente; (2) ao desejo de exclusividade na
compra de importantes matérias primas minerais e produtos tropicais
brasileiros; e (3) ao grande peso político regional do país, cujo apoio era
vital para a consagração da política panamericana dos estadunidenses. Tais
atributos faziam do Brasil o mais importante e necessário aliado ibero-
americano dos Estados Unidos. Vargas soube barganhar a adesão brasileira ao
bloco norte-americano de poder, conseguindo ainda em 1940, o compromisso do
governo Roosevelt de auxiliar técnica e financeiramente a construção da
siderúrgica de Volta Redonda ' RJ. Em janeiro de 1942, o rompimento de relações
diplomáticas do Brasil com o Eixo, anunciado pelo chanceler Oswaldo Aranha no
Rio de Janeiro, foi recompensado por créditos suplementares para a exploração e
a indústria de matérias primas brasileiras, e pela concessão de um fundo de US$
200 milhões para as Forças Armadas nacionais adquirirem armas nos Estados
Unidos por meio do Lend-Lease.
A construção de bases aéreas no Nordeste do Brasil pela Pan American já havia
sido autorizada verbalmente, pelo presidente Vargas, em princípio de 1941,
ainda que o decreto presidencial sobre o assunto só tenha sido publicado em
junho daquele ano. Na verdade, em maio, os norte-americanos iniciaram a
travessia de aeronaves pelo Atlântico usando bases brasileiras.19 O alto
comando do Exército do Brasil continuou, durante
todoesseperíodo,irredutívelquantoàpresençadetropasnorte-americanas em
território nacional, mas a Marinha de Guerra dos Estados Unidos já estava
autorizada a usar os portos de Recife e Salvador desde o início de 1941. Em
fins de abril de 1942, Vargas abriu todos os portos e bases aéreas e navais
para as forças do vice-almirante Jonas Ingram, comandante norte-americano do
Atlântico Sul. O presidente pôs Ingram também, informalmente, no comando de
todas as forças aéreas e navais brasileiras, tornando-o responsável de fato
pela defesa marítima nacional.20
Uma aliança militar formal entre o Brasil e os Estados Unidos foi então firmada
em maio de 1942. Como resultado, duas comissões militares binacionais foram
criadas, uma em Washington (Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos,
Joint Brazil-United States Defense Commission' JBUSDC) e outra no Rio de
Janeiro (Comissão Militar Mista Brasil-Estados Unidos, Joint Brazil-United
States Military Commission' JBUSMC). A Comissão de Washington era, de longe, a
mais importante, tendo como função o estudo e preparo de recomendações
referentes à defesa conjunta dos dois países. A situada no Rio de Janeiro
visava auxiliar a implementação das recomendações decididas pela de
Washington.21 As transferências de equipamentos por meio do Lend-Leasedeviam
também ser acertadas pela Comissão Mista de Washington.
Em meados de 1942, a guerra atingiu o Brasil do modo mais drástico que o Eixo
podia conseguir. Em agosto, em menos de uma semana, seis embarcações comerciais
brasileiras foram afundadas no litoral da Bahia e Sergipe, matando centenas de
pessoas. A conseqüência direta de tais ataques foi a declaração de guerra do
Brasil à Alemanha e à Itália, ainda em agosto. A guerra, entretanto, já era
realidade para as forças aeronavais brasileiras há alguns meses.
A experiência da guerra anti-submarina marcará profundamente a Marinha
brasileira. Como já comentado, os vasos de guerra disponíveis no início da
década de 1940, eram, em sua maioria, obsoletos e de nenhuma serventia contra
submarinos. A doutrina e as táticas ensinadas também não previam tal tipo de
guerra. Como resultado, existia completa incapacidade da força naval nacional
de lidar com tal ameaça. A solução parecia ser justamente a aliança com os
Estados Unidos, formalização daquilo que alguns decisores do passado viam como
meta maior da política externa nacional.
Durante a guerra, em termos navais, a proteção da navegação na costa brasileira
coube primordialmente às forças norte-americanas, atuando a Marinha do Brasil
subsidiariamente. Mesmo o papel coadjuvante só foi possível graças à
incorporação de algumas embarcações modernas em construção no arsenal de
Marinha e, especialmente, em virtude da transferência de navios norte-
americanos especializados nesse tipo de combate através do Lend-Lease. Um total
de 24 embarcações foram cedidas pelos Estados Unidos ao Brasil, de fins de 1942
até princípios de 1945. Desse total, 16 eram pequenos navios do tipo caça-
submarino, adequados primordialmente para o combate aos U-boatsem águas
costeiras, além de oito contratorpedeiros de escolta classe Bertioga, dotados
de radar e sonar. Estes, para além de sua capacidade anti-submarina,
constituíram acréscimo destacado ao poder da esquadra nacional regionalmente.22
Ao final da guerra, a Marinha brasileira era a única do continente com grande
experiência de combate anti-submarino, e a esquadra nacional, com 11 unidades
modernas, mais seis em construção no arsenal da Ilha das Cobras, parecia, pelo
menos, poder equiparar-se com a do histórico rival austral.
O equilíbrio, entretanto, não era mais o objetivo. A aliança com os Estados
Unidos podia e devia fazer mais. A Comissão Mista de Washington, composta de
duas delegações nacionais, que, por seu turno, eram formadas por um
representante de cada força, tinha em Álvaro Rodrigues Vasconcelos o
representante da Marinha brasileira. Os créditos por meio do Lend-Leasee a
aliança com os Estados Unidos eram pensados como instrumentos perfeitos para,
além das contingências específicas da guerra, incrementar o poder naval
nacional de modo a tornar o Brasil predominante nesse setor no pós-guerra em
termos continentais.
Em correspondência entre Vasconcelos e o presidente Vargas, em junho e julho de
1943, o almirante recomendava ao presidente acréscimo de 100 a 200 milhões de
dólares no limite original de US$ 200 milhões, para aquisição de armas nos
Estados Unidos pelo Lend-Lease. Vasconcelos declarava que a quantia destinada à
Marinha, US$ 50 milhões, não se mostrava suficiente e que somente as
requisições do Exército e da Força Aérea atingiam o limite de US$ 200 milhões.
Vargas acenou positivamente, respondendo que havia recomendado ao Ministro das
Relações Exteriores "as necessárias providências para elevarmos, no mínimo,
para 300 milhões [o crédito]". O presidente aproveitou também para recomendar
ao almirante a aquisição de grandes navios nos Estados Unidos, algo como "meia
dúzia de cruzadores de sete a dez mil toneladas e dez destroyerssemelhantes aos
Marcílios" para que nossa Marinha pudesse operar e "colaborar no esforço de
guerra mesmo longe de nossas costas".23
O clima em Washington não parecia, a princípio, avesso a tais metas. Em
novembro de 1943, Vasconcelos escreveu novamente ao presidente e informou que o
chefe da Divisão pan-americana da Marinha dos Estados Unidos dera ciência de
que era tempo de o governo brasileiro, pelos canais competentes, "manifestar
que material flutuante desejaria receber dos Estados Unidos quando, vitoriosos
os aliados, tivesse o governo norte-americano de desfazer-se de muitos navios
de sua esquadra".
Segundo Vasconcelos, o representante do Navy Departmentpara as Américas
salientara que todos os países da América do Sul "desejariam receber alguns ou
muitos navios", mas que o Brasil,
pela posição que assumira, por sua extensão e população, por seu
desenvolvimento econômico e por sua situação geográfica, deveria ser
a mais bem armada dessas repúblicas e o armamento naval de qualquer
das outras repúblicas deveria ficar sendo função daquele que fosse
permitido ao Brasil possuir.24
Vargas tomou então as providências ao seu alcance, e recomendou ao embaixador
do Brasil nos Estados Unidos, em janeiro de 1944, tratar imediatamente a
questão.25 Em abril, o presidente foi além. Escreveu diretamente a Roosevelt
sobre o assunto em um lance de puro oportunismo político.
O primeiro semestre de 1944 é o momento de maior pressão norte-americana sobre
a Argentina, cujo governo Farrel/Perón era tido em Washington como a "ovelha
negra" da "comunidade pan-americana de nações". Os Estados Unidos não
reconheciam tal governo, que derrubara o do presidente Ramirez depois que este,
pressionado pelos Estados Unidos, rompera as relações diplomáticas com a
Alemanha e o Japão. A política de Roosevelt e de seu secretário de Estado,
Cordell Hull, além de boicotes à Argentina, buscou contrabalançar a suposta
influência do país na região incrementando o poder militar brasileiro. É nesse
quadro que podemos compreender os pedidos de Vargas ao presidente norte-
americano. Getulio recorda na carta o episódio da não transferência dos velhos
contratorpedeiros norte-americanos em 1937, devido às reclamações argentinas,
frisando que a ausência de tais navios na esquadra brasileira em muito
atrapalhara a cooperação Brasil-Estados Unidos nas ações anti-submarinas da
presente guerra.
Com base em documento produzido pelo Estado Maior da Armada, Vargas pedia a
cessão, mediante Lend-Leaseou pela forma mais conveniente, de um substancial
número de embarcações, entre as quais destacavam-se dois cruzadores pesados e
dois cruzadores leves, dois porta-aviões, três contratorpedeiros condutores de
flotilha e 12 unidades menores do tipo de 1.500 toneladas.26 Não devemos
esquecer que a essas unidades temos de adicionar as produzidas ou em produção
no arsenal de Marinha do Rio de Janeiro. No documento preparado pelo Estado
Maior da Armada, tal frota era considerada como suficiente à "defesa de nossa
extensa costa marítima e à manutenção da hegemonia do Brasil no Atlântico Sul,
com o propósito de salvaguardar, em cooperação com as nações aliadas, a paz no
continente sul-americano". Vargas, por seu turno, reiterava ao presidente
norte-americano que os navios cedidos serviriam para aumentar a "segurança do
continente americano, porque a prova da nossa cooperação leal e franca já está
feita", salientando também que em "novas emergências seguiremos nossa tradição
de política exterior ao lado da Nação Americana, e prontos a colaborar na
defesa do continente e a garantir a paz entre as nações latino-americanas".27
A resposta de Roosevelt foi polidamente negativa. A Marinha norte-americana não
podia transferir tais navios naquele momento aos brasileiros, já que
necessitava deles nos decisivos combates que se realizavam contra os japoneses
no Pacífico. Só o que podia ser transferido, então, eram os primeiros quatro
contratorpedeiros classe Bertioga. Rooseveltes clarecia ao final de sua
resposta, no entanto, que conversações entre os respectivos staffsmilitares dos
dois países deveriam ter início, de modo que o poder militar total do país
fosse determinado "tendo como princípio básico à defesa hemisférica".28
As negociações entre os staffsocorreram já no segundo semestre de 1944. Para
Vargas, a aliança em tempo de guerra deveria prolongar-se no futuro, e as
negociações que então se iniciavam visariam a tal desiderato. Nas suas
palavras, o que seria discutido era "(...) uma verdadeira aliança_militar
permanente, pois vamos cuidar dos problemas de armamento no após-guerra, para
assegurar a paz". As ameaças a serem contidas poderiam vir de fora ou de dentro
do continente. Vargas enumerava muitos indícios para comprovar a possível
ameaça que a Argentina representava naquele momento. Para lidar com isso, os
norte-americanos deveriam "preparar militarmente o Brasil para que este, na
América do Sul, possa não só defender-se, como também os interesses da própria
América do Sul e os dos outros países sul-americanos, se agredidos".29 O
resultado das discussões conjuntas, especificamente quanto ao poder naval
brasileiro, foi um aumento projetado ainda maior vis-à-visoproposto no
documento do Estado Maior da Armada, que Vargas apresentara a Roosevelt em
abril.30 A predominância naval do Brasil na América do Sul parecia ser não só
desejada pelas autoridades nacionais, mas também pelo presidente Roosevelt e o
Navy Department. Não admira que a idéia de aliança especial ligando Brasil e
Estados Unidos fosse um consenso entre os atores políticos mais importantes do
governo brasileiro.
O abandono norte-americano no pós-guerra
A negligência da política externa norte-americana para a América Ibérica
durante o pós-guerra é notável, principalmente levando-se em conta que a região
havia sido prioridade para o país nos anos 30, com a política de "boa
vizinhança" e o ideal pan-americanista defendido pelo governo Roosevelt. O
motivo do descaso foi, primordialmente, o início da Guerra Fria logo após o fim
do segundo conflito mundial. Envolvidos na tarefa de conter o comunismo
internacional, ou mais precisamente, a URSS e seus aliados, os Estados Unidos
passaram a privilegiar, nas relações exteriores, os países da Europa e Ásia
situados no entorno do território soviético. O resultado disso foi que
econômica e militarmente a América Latina não teve auxílio de monta na segunda
metade dos anos 40 e, em menor grau, nos anos 50, ao contrário do que ocorreu
com muitos países eurasianos no mesmo período. A América Latina só voltou a
preocupar os norte-americanos mais fortemente nos anos 60, após Cuba ter-se
tornado satélite soviético no Caribe, resultado de uma revolução popular e
autóctone.
Imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mundial, no entanto, o descaso dos
Estados Unidos deu-se mais por confusão do que por desígnio político. Roosevelt
morreu ainda durante a guerra e seu sucessor, Harry Truman, não tinha nem
conhecimento nem força política para imprimir imediatamente marca própria à
política externa norte-americana. Pairou então muita dúvida sobre a validade
dos compromissos norte-americanos dos tempos de guerra. No Brasil, João Neves
da Fontoura, o novo ministro das Relações Exteriores do governo Dutra, afirmou
em janeiro de 1946, quando recebia o prefeito de Nova Iorque no Rio de Janeiro,
que o Brasil continuava apoiando a política norte-americana no mundo, ainda que
ajudasse muito "saber qual [era] essa política".31
Especificamente em relação ao acordo para a transferência de equipamentos
bélicos, firmado por Vargas na segunda metade de 1944, surgiram dúvidas sobre a
seriedade dos norte-americanos em cumprir o negociado. Acordos semelhantes
haviam sido firmados com a maior parte dos países na região, ainda que o Brasil
fosse certamente o mais aquinhoado deles. Na ausência de uma orientação
presidencial sobre o assunto, a questão dependia, para a implementação, da
vontade das organizações estatais norte-americanas, que tinham poder decisório
para isso. A posição delas, entretanto, era divergente.
Os militares, em geral, queriam cumprir o acordado. Suas razões eram
basicamente duas: agradar seus pares latino-americanos, atores políticos de
importância em seus respectivos países; e padronizar o equipamento militar em
toda a região, de modo a garantir mercado e influência para os Estados Unidos,
dificultando qualquer infiltração européia no continente. Em 1946, o perigo,
para os militares estadunidenses, era menos o comunismo do que o retorno da
influência militar britânica na área.32 O Departamento de Estado, entretanto,
não via as coisas da mesma maneira. Os diplomatas norte-americanos enfatizavam
os possíveis custos que a transferência de armas poderia ter no continente. Em
termos econômicos, a simples manutenção de grandes forças militares podia
comprometer seriamente as finanças dos países receptores, o que certamente
afetaria as relações dos Estados Unidos na região. Além disso, havia também a
preocupação sobre o uso que os militares latino-americanos podiam fazer do
equipamento. Agressões contra países vizinhos e golpes militares eram
possibilidades que desencorajavam o cumprimento do acordo. Em face a essa
divisão, não se cumpriu as tratativas dos tempos de guerra. Em última
instância, o Departamento de Estado acabou exercendo um poder de veto sobre a
questão naquele momento.
Adolf Berle Jr., embaixador dos Estados Unidos no Brasil, levantava dúvidas
sobre a propriedade de se entregar ao Brasil substancial volume de equipamento
bélico já em julho de 1945. Especificamente quanto ao aspecto naval, Berle
duvidava da capacidade de os brasileiros operarem com eficiência algumas
belonaves, tão modernas e complexas eram. Para ele, o objetivo dos militares
brasileiros era tão-somente aumentar seu poder e prestígio político, interna e
externamente. Berle não era favorável à cessão de equipamento, ainda que se
mostrasse inclinado a apoiar o auxílio especificamente ligado a projetos para
melhoria da infra-estrutura militar brasileira, como construção de novas bases
navais, aparelhamento de aeroportos, incremento da malha de transportes
nacional, tanto rodoviária como ferroviária, etc. Com relação às bases navais,
a opinião do embaixador era que,
Essas bases seriam de ótimo uso no caso de operações de qualquer tipo, seja
para manter a paz dentro do hemisfério, seja para defender o hemisfério de
ataques de fora; mas_seu_uso_principal_seria_provavelmente_apoiar_as_operações
da_Marinha_dos_Estados_Unidos.33
A partir de meados de 1947, com a adoção da Doutrina Truman, a política externa
dos Estados Unidos passa a ter um objetivo claro, que marcaria os próximos
quarenta anos das suas relações exteriores. Truman comprometeu-se a auxiliar
econômica e militarmente Grécia e Turquia, atestando que os Estados Unidos,
como líder do "mundo livre", conteria o comunismo, onde quer que ele buscasse
expandir-se. Nesse mesmo ano foi assinado, no âmbito das Américas, o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) durante a Conferência do Rio de
Janeiro, que tacitamente considerava a União Soviética como adversário de todo
o hemisfério. Em 1948, foi constituída a Organização dos Estados Americanos
(OEA), que institucionalizou o pan-americanismo. Ambas organizações visavam
formalizar a liderança norte-americana de factosobre as Américas.
Ao mesmo tempo, a questão da assistência militar para a região voltou à tona.
Ela era apresentada agora como medida de contenção ao comunismo soviético. Os
entraves postos pela diplomacia estadunidense foram retirados. Era preciso,
acima de tudo, armar a região e padronizar o equipamento. A implementação do
acordo negociado por brasileiros e norte-americanos, inclusive a cessão/venda
facilitada de uma enorme esquadra de guerra, voltava a ser possível.
Nesse momento, entretanto, ainda que existisse consenso entre militares e
diplomatas norte-americanos sobre a necessidade de armar os latino-americanos,
demandas mais prementes alhures deixavam a região em posição muito baixa na
lista de prioridades dos Estados Unidos. As áreas ao alcance do poder militar
soviético, Europa, Oriente Médio e Extremo Oriente estavam no topo da lista.
Ademais, em face do grande número de clientes, o enorme surplusde guerra norte-
americano já não parecia suficiente. Em 1948, as reservas de determinados tipos
de armamento já se aproximavam do fim, enquanto outros, a despeito do grande
estoque, não eram mais úteis por estarem tecnologicamente ultrapassados. Ainda
que especificamente em relação aos navios não se aplicasse nem uma coisa nem
outra, a alocação de recursos militares para os latino-americanos precisava ser
decidida como um todo, pois necessitava ser aprovada pelo Congresso dos Estados
Unidos.
A legislação específica para auxílio militar à região, o Inter-American
Military Cooperation Act, não foi adiante em virtude das novas
responsabilidades assumidas pelos norte-americanos alhures. Os programas
interinos que possibilitavam a transferência de algum equipamento militar para
a região terminaram definitivamente em 1948. Quando o Congresso dos Estados
Unidos finalmente passou o primeiro grande programa de ajuda militar em 1949,
lastreando a política de contenção adotada pelo Executivo, nem um único centavo
foi destinado para a América Latina. Embora fosse prevista a doação de quase 1
bilhão e meio de dólares em armas para os mais diversos países, os latino-
americanos só podiam comprar armas norte-americanas a preços comerciais.34
Políticos e militares brasileiros envolvidos com a questão naval estavam, é
claro, decepcionados. De 1945 a 1950, as transferências de equipamento para a
Armada brasileira resumiram-se a peças de reposição e navios de apoio, o que
não alterou o statusda força vis-à-visas demais esquadras regionais. Se existia
amargura pela falta de reconhecimento dos serviços prestados pelo país durante
a última guerra mundial, existia também esperança de que, quando os Estados
Unidos cedessem navios aos países da região, o Brasil teria tratamento
preferencial. No início de 1947, o ministro Silvio de Noronha, esperançoso,
escrevia em seu relatório para o Presidente que a constituição de uma "força-
tarefa equilibrada", dotada de cruzadores, porta-aviões, contratorpedeiros e
submarinos, dependia do auxílio norte-americano. Em seu relatório seguinte,
entretanto, entregue no início de 1951, ao término do governo Dutra, as
esperanças de concretização de tal auxílio eram muito menores e o ministério
pedia celeridade na aprovação pelo Congresso brasileiro de um fundo naval
permanente para renovação da Esquadra nacional sem ajuda estrangeira.35
A despeito disso, a Marinha brasileira aceitava sua subordinação à estratégia
naval norte-americana, o que explica a pouca importância dada pela força, após
a Segunda Guerra Mundial, a outros usos do poder naval que não o anti-
submarino. Isso era reflexo da visão norte-americana sobre o papel da esquadra
brasileira como força auxiliar contra submarinos russos no Atlântico Sul, na
hipótese de a Guerra Fria esquentar. Era compreensível, ainda que pouco
aceitável, na visão dos decisores brasileiros, a primazia de países de outras
regiões na distribuição de equipamento bélico pelos Estados Unidos, tendo em
vista o perigo muito maior que eles corriam em face de uma agressão comunista.
Inadmissível para eles, entretanto, era que o Brasil pudesse vir a ser tratado
pelos norte-americanos de maneira semelhante aos demais países hispano-
americanos, especialmente a Argentina.
A venda dos Cruzadores
Em 1950, o estado dos navios-capitais da esquadra brasileira era grave. Os
encouraçados dreadnoughtMinas Gerais e São Paulo, os mais poderosos do mundo
quando lançados ao mar em 1910, não passavam de sucatas flutuantes. A despeito
da tônica anti-submarina que os Estados Unidos impunham não só a Marinha
brasileira, mas a todas as marinhas da região, a posse de algumas belonaves de
maior peso era frisada pela força brasileira até por razões de prestígio.
Convém lembrar também que a Argentina, apesar da igual obsolescência de seus
encouraçados do início do século, exibia em seu inventário naval três
cruzadores leves, construídos nos anos 30, tipo de embarcação em falta na
esquadra brasileira. A belonave construída na Inglaterra tinha até radar, fruto
de modernização realizada em Londres em 1946.36
Após insistentes pedidos, o governo norte-americano, por meio de emenda ao
programa de auxílio militar aprovado pelo Congresso, conseguiu tornar
disponível ao Brasil, a preços irrisórios, dois cruzadores leves classe
Brooklyn, navios com 10.000 toneladas de deslocamento, canhões principais de 6
polegadas, radar e forte bateria anti aérea. O ministro Silvio de Noronha
caracterizou tal compra como o acontecimento mais notável, no tocante à
aquisição de navios, desde a incorporação das naus do programa de 1904-1906.37
Esses vasos de guerra, se não tornava o poder naval brasileiro preponderante
regionalmente, pelo menos daria a ele leve vantagem sobre o de seu vizinho
austral, o que, pelo menos, mantinha a aparência da "aliança especial" para
políticos e militares brasileiros.
A transferência dos cruzadores, entretanto, em vez de salvar a idéia da aliança
foi, na verdade, seu epitáfio. Os Estados Unidos, simultaneamente às
negociações como governo brasileiro, achou por bem oferecer navios, do
mesmíssimo tipo e em iguais condições de compra, também para o Chile e a
Argentina.38 Em 1951, não só a esquadra brasileira foi acrescida de dois
potentes e modernos cruzadores ' o Barroso e o Tamandaré'como o mesmo ocorreu
com as esquadras chilena e argentina ' com o O'Higginse o Capitán Prat, e o
General Belgranoe o 9 de Julio, respectivamente. À semelhança do equilíbrio
atingido nos anos 10, entre as esquadras de encouraçados dos países do Cone
Sul, nos anos 50 o mesmo ocorria, só que dessa vez por decisão única do país
mais poderoso do mundo.
A política norte-americana para a América Latina, quanto ao poder naval, além
da total subordinação, adotava também o princípio do equilíbrio, especialmente
entre os países do Cone Sul. Diferente do esperado pelos decisores brasileiros,
o histórico diferenciado de participação na Segunda Guerra Mundial nada influiu
nas decisões norte-americanas naquele momento.39 Tampouco afetou,
especificamente sobre o auxílio à Argentina, o fato de Perón ser o único líder
no hemisfério que desenvolvia política externa relativamente não-alinhada,
defensora de uma "terceira posição" no sistema internacional. O equilíbrio
naval entre Argentina, Brasil e Chile (ABC), orientação expressa pelos Estados
Unidos na venda dos cruzadores, manter-se-ia nas décadas seguintes nas demais
transferências de embarcação efetuadas.
Tentativas de mudar essa orientação foram feitas por autoridades políticas
nacionais ainda no início dos anos 50. João Neves da Fontoura, então ministro
das Relações Exteriores no segundo governo Vargas, aproveitou a IV Conferência
de Chanceleres americanos, em abril de 1951, convocada pelos norte-americanos
em conseqüência da crise internacional causada pela intervenção chinesa na
Guerra da Coréia, para tentar barganhar com os Estados Unidos. Entre as
demandas brasileiras, constava um auxílio militar diferenciado ao Brasil com
relação aos demais países latino-americanos. Segundo João Neves, o Brasil
esperava receber armamento para suas três forças,
[...] em base semelhante às aplicadas às Nações signatárias do Pacto
do Atlântico Norte. [...) Mas o Brasil não pode ]admitir que, no
tocante à distribuição de armamentos, seja ele feito com o mesmo
critério de igualdade em relação a outras nações, como aconteceu no
caso dos cruzadores. Reclamamos o princípio de fornecimentos em
proporção às tarefas de defesa comum aceitas por cada país. Nessas
condições, não poderemos receber quantidades de armamentos e
suprimentos militares iguais aos dos que, por ventura, sejam dados às
Repúblicas americanas, dado a linha de conduta semi-neutralista pelas
mesmas adotada, em face da atual emergência.40
Em 1952, o governo brasileiro assinou acordo militar com os Estados Unidos e,
no ano seguinte, ele foi aprovado pelo Congresso e entrou em vigor. O Brasil
passou a fazer jus ao auxílio que os Estados Unidos distribuíam por meio de seu
programa de ajuda militar anual, que a partir de 1951 passou a contar com
pequena verba destinada especificamente à América Latina, algo inicialmente
inexistente. No que se refere ao poder naval, no entanto, nada mudou. A
política de equilíbrio entre ABC prosseguiu no restante dos anos 50 e também
nos anos 60.
À primeira vista, em termos práticos, o fim da ilusão sobre a "aliança
especial" com os Estados Unidos não alterou a política naval brasileira. A
Marinha continuou recebendo os meios flutuantes que os norte-americanos se
dispunham a transferir, ainda que esses equilibrassem tais ações com
transferências quase simultâneas para as demais armadas do Cone Sul. Os custos
inviabilizavam qualquer distanciamento dos Estados Unidos. Em 1952, todo o
fundo naval aprovado pelo Congresso, se fosse gasto na compra de navios a
preços de mercado, seria suficiente para a aquisição de um único
contratorpedeiro de esquadra moderno.41 A influência doutrinária e tática
continuou existindo, espelho da subordinação que o poder naval brasileiro tinha
à estratégia marítima norte-americana durante a Guerra Fria. Em termos
retóricos, os comandantes podiam lamentar o abandono do aliado dos tempos de
guerra, mas pouco podia ser feito para alterar a posição do Brasil nesse
aspecto.
O pouco, entretanto, foi feito. Já na primeira metade dos anos 50, o Brasil
voltou a adquirir navios de outros fornecedores do "mundo livre". Renato
Guillobel, ministro da Marinha no segundo governo Vargas, optou por gastar os
parcos recursos da força em navios auxiliares ' rebocadores de alto-mar,
navios-hidrográficos e transportes ' de modo a fortalecer a logística da
armada. As compras foram feitas na Holanda e no Japão, "que aceitavam o
pagamento em cruzeiros, a longo prazo e sujeito, se assim coubesse, à troca por
matérias-primas de nossa conveniência".42 Mais adiante, quando havia mais
recursos, durante o governo de Juscelino Kubitschek, o Brasil voltou a adquirir
na Europa naus de combate. Foi comprado um porta-aviões leve inglês que, a
despeito de ter como função quase exclusiva a guerra anti-submarina,
simbolizava um tênue afastamento da dependência norte-americana, regra nas
últimas duas décadas.43
Conclusão
A preponderância naval brasileira na América do Sul foi um sonho acalentado por
militares e políticos brasileiros nos anos finais da Segunda Guerra Mundial,
que contou momentaneamente com o incentivo de importantes atores do governo e
das forças armadas norte-americanas. Esse projeto era parte da confiança mais
geral de que a guerra tinha finalmente forjado a tantas vezes propalada
"aliança especial" Brasil-Estados Unidos, e que o corolário dessa aliança seria
o aporte, pelos norte-americanos, de todo auxílio possível, financeiro,
tecnológico e militar, para garantir a hegemonia do Brasil na América do Sul. O
Brasil agiria então como uma espécie de procurador dos norte-americanos na
região, mantendo e defendendo o status quo.
Na segunda metade dos anos 40, os projetos de predomínio naval do Brasil não se
concretizaram por exclusiva falta dos norte-americanos. As razões práticas que
sedimentaram a aliança desapareceram com a derrota do Eixo e o surgimento da
Guerra Fria. A decepção dos decisores nacionais foi contrabalançada, em parte,
pela crença contínua de que o Brasil era diferente das demais repúblicas
latino-americanas e assim seria tratado, pelos Estados Unidos, em momento
oportuno. A venda dos cruzadores para os países do Cone Sul, em 1951, pautada
pela idéia do equilíbrio de poder na região, acabou com qualquer ilusão de que
a relação Brasil-Estados Unidos fosse de alguma maneira especial.
Em 1953, a esquadra brasileira era composta de dois cruzadores leves, 15
contratorpedeiros ' quatro navios classe Amazonashaviam sido incorporados ' e
três submarinos.44 Tal frota era muito semelhante à prevista no plano de
aquisição naval de 1932-1934, em que se buscava, consoante a capacidade
econômica nacional, certa paridade com os vizinhos do Cone Sul. Comparada às
previsões de meados dos anos 40, entretanto, a esquadra nacional era apenas uma
sombra.
A subordinação material, tática e doutrinária da Marinha brasileira nos anos 50
e 60 em nada alterou a decisão norte-americana de manter o equilíbrio naval
entre ABC. O fim da demanda de guerra, o elevado preço de navios modernos e a
oferta gratuita ou quase gratuita deles pelos Estados Unidos a partir dos anos
50, interrompeu o programa de construção naval militar brasileiro do fim dos
anos 30, que havia contado até com auxílio norte-americano. Quase trinta anos
se passaram até que um grande navio de guerra fosse novamente lançado no
arsenal de marinha, em meados dos anos 70.
A dependência teve também conseqüência prejudicial para o pensamento
estratégico da força naval brasileira, que se acostumou a pensar em termos de
ações em conjunto com a marinha dos Estados Unidos, algo corporificado na
ênfase anti-submarina como principal papel da Marinha brasileira, à custa de
outras modalidades de guerra naval.
A conscientização do fracasso da "aliança especial", entretanto, fez também os
decisores brasileiros voltarem a pensar, a curto prazo, em outros fornecedores
de navios no bloco ocidental, de modo que se pudesse fugir um pouco da
subordinação aos Estados Unidos e de sua política de estrito e quilíbrio no
Cone Sul. Alongo prazo, sonhava-se com tempos em que, fruto do desenvolvimento
econômico e industrial do país, a Marinha pudesse constituir poder naval por
meio de produção própria novamente. Dessa vez, para apoiar política externa
autônoma e independente. Isso não era possível nos anos 50, mas a crença na
"aliança especial", forte na década anterior, havia em grande medida
desaparecido.