A política internacional, a conjuntura econômica e a Argentina de Néstor
Kirchner
Introdução
Em 25 de maio de 2003, o ex-governador da província patagônica de Santa Cruz,
Néstor Kirchner - do Partido Justicialista (peronista) - assumiu a Presidência
da República Argentina, após uma profunda convulsão política. Esse
acontecimento deu término ao impasse institucional decorrente da crise
econômica e política que derrubou, por pressão e protesto social, o ex-
presidente da Aliança (União Cívica Radical, Frepaso1 e outros partidos
políticos) Fernando De la Rúa. Kirchner ganhou as eleições após o ex-presidente
Carlos Menem desistir de concorrer ao segundo turno, apesar de este último ter
vencido o primeiro turno2 com 24,36% dos votos válidos contra 22% de Kirchner.
As pesquisas e projeções indicavam um triunfo de Kirchner com mais de quarenta
pontos de diferença no segundo turno.
O fato de ter assumido a presidência argentina com apenas 22% dos votos obrigou
o governo Kirchner a avaliar as eleições legislativas de outubro de 2005 como
um verdadeiro plebiscito de apoio ou não a seu governo. Segundo uma pesquisa do
Centro de Estudios de Opinión Pública (CEOP), e divulgada pelo jornal Clarín3
em maio de 2005, o presidente Kirchner acabou seu segundo ano de governo com um
amplo apoio da população: 77,9% de imagem positiva pessoal e 63,7 % de
aprovação ao conjunto da sua gestão presidencial. Três aspectos foram elogiados
segundo a pesquisa: a renegociação da dívida externa, a política econômica em
geral e a política externa do país. O resultado das eleições para deputados e
senadores de outubro de 2005 fortaleceu o apoio de amplos setores da população
argentina ao governo peronista e à figura do presidente Kirchner tanto no
espectro político nacional - manteve uma amplia maioria no Congresso como
dentro do próprio Partido Justicialista - derrotando os principais rivais:
Eduardo Duhalde, na província de Buenos Aires e Carlos Menem na província de La
Rioja.
Após a crise política e econômica de 2001, a renegociação da dívida externa4,
por meio de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com os
credores internacionais, tornou-se prioridade do governo de transição de
Duhalde (2002-2003) e do governo eleito de Kirchner. A partir de 2002, a
economia argentina começou a dar sinais positivos de recuperação, atingindo um
crescimento de mais de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2003. Em política
externa, a gestão Kirchner, como tinha sido com os governos anteriores, esteve
pautada, em grande medida, pelas dificuldades econômicas e financeiras.
Deste modo, o objetivo principal deste artigo é analisar a política externa da
Argentina, à luz das transformações da política internacional e do contexto
econômico global. O trabalho parte da premissa de que o ano 2001 marcou um
ponto de ruptura no sistema internacional, em dois níveis. O primeiro nível,
com os atentados terroristas de 11 de Setembro, no qual a potencia unipolar, os
Estados Unidos da América (EUA), assumem a liderança da denominada "Luta contra
o Terror". A percepção de um sistema internacional unipolar, a partir desse
momento, se mostra mais evidente do que nunca (WOHLFORTH, 1999). O segundo
nível está relacionado ao desencantamento do modelo de desenvolvimento
neoliberal econômico, alentado e promovido pelas instituições econômicas
internacionais. Nesse sentido, a crise argentina de 2001 apresenta-se como um
caso paradigmático.
Assim, no artigo levanta-se uma hipótese mais geral, à luz da realidade
política dos primeiro anos do século XXI. No sistema unipolar atual, e
especialmente após os atentados terroristas de 11 de Setembro, os países em
desenvolvimento (aqueles que não estiverem implicados com as novas ameaças: a
luta contra o terrorismo e a produção de armas de destruição em massa) adquirem
maior margem de manobra política, levando em consideração, também, uma variável
interveniente, que é a conjuntura econômica favorável, principalmente a partir
de 2002. Ou seja: em primeiro lugar, no comércio internacional, os altos preços
internacionais das commoditiesbeneficiam os países exportadores desses
produtos; em segundo lugar, a política de juros baixos5 dos EUA e de liquidez
internacional favorecem a entrada de capitais nos países emergentes (MOFFETT,
2004).
Essa hipótese mais geral ajudará na compreensão de processos políticos de
mudança que estão acontecendo na América Latina. Com a eleição para presidente
de Evo Morales na Bolívia, há de fato uma tendência ao revisionismo crítico dos
programas liberalizantes pró-mercado aplicados nas décadas de 1980 e 1990. Em
alguns países esse revisionismo foi mais radical do que em outros, ainda
ressurgindo, como no caso da Bolívia, com demandas sociais históricas de
participação democrática e de integração social da maioria da população de
origem indígena.
A Argentina atual não foge dessa tendência. Após uma crise econômica e política
profunda, em 2002, o país começou a se recuperar rapidamente, atingindo altas
taxas de crescimento por três anos consecutivos, e com projeções de
continuidade. Em outros termos, a Argentina, assim como outros países em
desenvolvimento, está aproveitando essa margem de manobra, re-avaliando
criticamente as reformas neoliberais implementadas nos anos 90, seja pelas
respostas pragmáticas de políticas públicas no plano doméstico, como por meio
de uma posição mais crítica face às instituições internacionais de crédito.
Essa mudança de posicionamento está também amparada conjunturalmente, como se
salientou, pelo contexto econômico internacional. Nessa direção, antes de
ingressar na política externa da Argentina do governo Kirchner, é mister
repassar a história argentina recente.
A Argentina nos anos 90
Carlos Menem, do Partido Justicialista, foi eleito presidente da Argentina em
1989 em meio a uma crise inflacionária e a uma crise social que se manifestou
em diversos atos de violência, inclusive com saques em lojas e supermercados de
duvidosa espontaneidade. O presidente Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical
(UCR), sem apoio político, teve que entregar o mandato alguns meses antes do
previsto. Menem, ex-governador de La Rioja - província pobre do noroeste da
Argentina -, com estilo de clássico caudilho regional, fez uma campanha
política com o típico discurso populista do Partido Peronista.
As mudanças no contexto internacional pressagiavam profundas transformações na
esfera doméstica dos estados nacionais e principalmente nas nações em
desenvolvimento. Com a desintegração da União Soviética em começos dos anos 90,
os EUA se configuravam como o único líder econômico e político num sistema
unipolar (WOLHFORTH,1999)6. Alguns intelectuais otimistas, como Francis
Fukuyama, prenunciavam um futuro no qual a democracia liberal iria se espalhar
por todo o mundo. Nessa direção, no plano das idéias, o liberalismo econômico
foi apresentado pelos centros de poder mundial - os EUA, as instituições
econômicas internacionais, grandes bancos, corporações transnacionais, e
investidores financeiros - como a solução para todos os males e vícios dos
países ex-socialistas reais e subdesenvolvidos. Esses centros de poder agiram
articuladamente, recomendando e condicionando ajudas financeiras à adoção de
políticas econômicas liberalizantes. Tal articulação ficou conhecida como
"Consenso de Washington", termo cunhado por Williamson (1990).
Face às mudanças estruturais no plano internacional, o governo Menem se apoiou,
fundamentalmente, em dois grandes pilares, que sustentaram uma política
exterior pautada, essencialmente, em termos de política econômica. O primeiro
pilar da política externa foi conhecido como o princípio das relações especiais
ou "relações carnais"7, que não significa outra coisa que uma relação estreita
e preferencial com a potência vencedora da Guerra Fria, os EUA. O sustento
teórico, e ideológico, dessa posição é dado pelo analista de Relações
Internacionais, e ex-funcionário do governo Menem, Carlos Escudé, na polêmica
expressão "realismo periférico" (ESCUDÉ, 1997). A noção realismo periférico
supõe que, reconhecida a hegemonia dos Estados Unidos, a Argentina deveria ter
um alinhamento automático visando a obter benefícios, que, de outra maneira,
não obteria. Em outras palavras, esse realismo estabelece o "alinhamento com os
Estados Unidos, entendido em termos de aceitação realista da liderança norte-
americana no hemisfério Ocidental"8.
Outros analistas críticos a esta postura afirmam que o realismo não implica, a
partir das relações de poder existentes, uma "submissão automática nem
aceitação do papel menor e subordinado para um país periférico sem se
questionar o tipo de relação com os EUA nem os fundamentos do sistema
internacional."9 A partir dessa diretriz ideológica, o governo Menem tomou um
conjunto de decisões que implicaram uma mudança de rumo em relação a seu
passado recente.
Segundo Aranda (2004), o "realismo periférico" significa a "política exterior
de um estado comercial. Um Estado que põe ênfase na especialização econômica a
partir da suas vantagens comparativas, o qual significa, para o Estado
argentino, a consolidação do modelo agro-exportador provedor de matérias primas
e produtos de escasso valor agregado..." (ARANDA, 2004, p.8). Por outro lado,
Tokatlian (2004, p.159) afirma que o modelo de política externa dos anos 90 não
se fundamentou numa posição realista das relações internacionais. "Pelo
contrário, a Argentina optou por um comportamento irrealista". Em primeiro
lugar, o modelo teve como condição um pressuposto não realista: "que um
alinhamento externo brindaria ao país a possibilidade de recuperar e
acrescentar o seu poder". Em segundo lugar, a Argentina se caracterizou por um
"estilo diplomático no qual primou a sobre-atuação e as atitudes de free
riding". Em terceiro lugar, afirma Tokatlian, a Argentina teve uma diplomacia
ingênua. "A elite confiou de maneira excessiva em que as forças de mercado, e
não o poderio do Estado, iam conseguir inserir o país num lugar de privilégio
no mundo" (TOKATLIAN,2004, p.159)10.
A redefinição da política externa da Argentina teve como ponto de partida o
restabelecimento de relações diplomáticas com o Reino Unido11, que foi
considerado como condição essencial para o estabelecimento de uma nova relação
com os EUA (SARAIVA e TEDESCO, 2001). Nessa direção outras decisões foram
tomadas que visavam sobretudo a uma aproximação com os EUA. Como exemplo, pode-
se destacar: 1) a participação Argentina na Guerra do Golfo (1991) contra o
Iraque, por meio do envio de dois navios de guerra sem consultar previamente o
Congresso; 2) a mudança do voto favorável à investigação sobre Direitos Humanos
em Cuba, promovido pelos EUA e por alguns países europeus. Assim, a Argentina
se afastava da tradição de defesa do princípio da não-intervenção nos assuntos
internos de outros Estados, e, neste caso específico, iria se opor às posições
do México e do Brasil; 3) a retirada do movimento de Países Não-Alinhados, em
1991; 4) a desativação do Programa Missilístico Condor II; 5) a mudança do
perfil do voto argentino na Assembléia das Nações Unidas, se aproximando das
posturas estadunidenses (ARANDA, 2004; CORIGLIANO, 2003).
O segundo pilar da política exterior de Menem foi a aceitação, quase que
incondicional, do paradigma neoliberal econômico. Uma vez no poder, Carlos
Menem implementou um dos mais ousados programas de reformas liberalizantes pró-
mercado, baseado, principalmente, em cinco políticas: 1) a privatização das
empresas públicas; 2) a abertura comercial; 3) a liberalização financeira; 4)
as reformas trabalhistas; e 5) o programa de estabilização, a partir de uma
taxa de câmbio fixa: uma aposta do então ministro da Economia Domingo Cavallo
para estabilizar a economia do país e deter o processo inflacionário. Isso
aconteceu com a "lei de convertibilidade" de abril de 1991, que estabeleceu
que, a partir daquele momento, 10.000 australes passariam a valer 1 peso. Essa
nova moeda argentina teria, por lei, uma relação fixa com o dólar de 1 a 1, ou
seja, 1 dólar seria equivalente a um 1 peso. Esse sistema, denominado Currency
Board, obrigava o Banco Central (BCRA) a manter dólares na reserva em relação
ao peso circulante. Mudar a paridade significava ter que mudar uma lei, o que
requereria uma maioria no Congresso.
A lei teve relativo sucesso no começo, principalmente no que concerne a acabar
com a alta inflação, o que provocou expectativas positivas na população em
geral e nos investidores privados, nacionais e estrangeiros, que viam na
Argentina, como país emergente, uma boa oportunidade de investimentos12. Porém,
os primeiros problemas surgiram em 1995. A Argentina sofreu o impacto da crise
econômica de dezembro de 1994 no México, o que provocou a saída de capitais e
mostrou a fragilidade de programa econômico baseado no Currency Board e na
abertura indiscriminada da economia. O governo Menem, com o ministro de
Economia Cavallo, e seu sucessor, Roque Fernández, não modificou as diretrizes
da política econômica. Em finais de 98, a economia argentina começou a entrar
numa espiral de queda (HASLAM, 2003; SCHVARZER, 2004). O círculo vicioso de
déficits crescentes e confiança em declínio mostrou-se impossível de ser
quebrado (HASLAM, 2003; FISHER, 2001).
Além dessas variáveis da economia doméstica, o contexto externo não se mostrou
favorável. "O declínio dos termos do comércio para as exportações argentinas, o
impacto da crise da Rússia em agosto de 1998 e a desvalorização da moeda
brasileira, em janeiro de 1999, as taxas de juros subindo e a sobrevalorização
do peso devido à conversibilidade minaram o crescimento e a capacidade do
governo para equilibrar o orçamento" (HASLAM, 2003, p.4). A sobrevalorização da
moeda, acompanhada de um programa de abertura comercial na Argentina,
favoreceram as importações. Assim, a balança comercial de bens e serviços foi
negativa em praticamente todo o período que durou a conversibilidade.
Em relação à política regional, deve-se destacar o processo de integração
econômica com o Brasil, Uruguai e Paraguai. O governo Menem aprofundou as
relações entre esses países, dando continuidade à iniciativa dos governos de
Alfonsín e Sarney de criação de um bloco econômico regional, e especialmente
depois da assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, e a criação do Mercado
Comum do Sul (Mercosul). Assim, o Mercosul foi criado e conformado no contexto
do auge dos programas econômicos liberalizantes13. Na Argentina o processo de
integração com o Brasil foi um consenso dentro dos partidos políticos.
Entretanto, a visão da integração regional para o governo Menem, e
especialmente para o ex-ministro Cavallo, foi a de um Mercosul como um primeiro
passo em direção a uma liberalização mais ampla, à "globalização". Nesse
sentido, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o programa de integração
hemisférica de livre comércio impulsionado pelo governo George Bush, e depois
pelo governo Clinton, estaria em harmonia com o Mercosul idealizado pelos
formuladores de política do governo Menem14.
A Aliança, seu ocaso e a transição: mudança ou continuidade?
Em 10 de dezembro de 1999, o Governo da Aliança, do pesidente Fernando de la
Rúa e do vice Carlos (Chacho) Alvarez, assumiu o poder após dez anos de governo
peronista. A Aliança estava principalmente comprometida com a "necessidade de
infundir transparência à vida institucional do país, arrasado pela corrupção
que a opinião pública associava com o governo anterior" (ROMERO e TORRES, 2004,
p. 9). Segundo Aranda (2004), três elementos fundamentais podem explicar a
debilidade política desse governo. O primeiro diz respeito às condições de
governabilidade. De la Rúa chegou ao governo sabendo que teria que enfrentar um
Senado com imensa maioria peronista. Além disso, teve que administrar um país
com 17 províncias governadas também pelo peronismo, dentre elas as mais
importantes econômica e politicamente: Buenos Aires, Santa Fé e Córdoba. O
segundo fator é constituído pelas próprias características pessoais do ex-
presidente De la Rúa. A falta de liderança e carisma fazia dele um presidente
dependente de outros líderes partidários e de um círculo familiar e de amigos
fechado que influenciava suas decisões. O terceiro acontecimento que
enfraqueceu ainda mais esse governo foi a renúncia do vice-presidente, por um
acontecimento de corrupção e subornos no Senado, no tratamento da lei de
reforma trabalhista (ARANDA, 2004).
Em política externa, o governo da Aliança manteve as linhas gerais da gestão
peronista, embora o ministro de Relações Exteriores desse governo, o economista
Rodríguez Giavarini, expressasse, em 1999, que o novo caminho escolhido pelos
cidadãos favorecia a ampliação da democracia, e que os "interesses primordiais"
do país seriam "a integração política e econômica sul-americana como objetivo
central; o afiançamento da paz e da segurança internacionais e a democratização
do sistema internacional15". Segundo Bernal-Meza, dos primeiros discursos do
governo da Aliança podiam se perceber dois elementos norteadores da política
externa: "a integração (Mercosul, América do Sul) e a posição a respeito de uma
visão mais bem ética e normativa do sistema internacional" (BERNAL-MEZA, 2002,
p.80).
Não obstante as intenções do governo da Aliança de se apresentar como diferente
em relação à gestão Menem, a política externa argentina manteve-se pautada, em
grande medida, pela política econômica, apoiada internacionalmente pelos EUA,
de quem Argentina dependeu para obter uma "blindagem" de 40 bilhões de dólares
para enfrentar os novos acordos com o FMI, e para renegociar as dívidas de
curto prazo com a banca privada internacional.
Divergências com o Brasil se superariam nos primeiros anos do mandato De la Rúa
por meio dos acordos de coordenação macroeconômica, referenciados nas
estatísticas harmonizadas, assinados no encontro do Mercosul realizado na
cidade de Florianópolis em dezembro de 200016. Entretanto, em fevereiro de
2001, com o retorno de Cavallo ao Ministério da Economia, as relações entre
Brasil e Argentina deteriorar-se-iam de maneira profunda. O ex-ministro de
Menem era uma pessoa mais próxima dos EUA, com posturas pró-Alca e a favor de
um acordo bilateral com a potência do Norte.
A situação econômica era muito delicada e o país sofria, desde 1998, uma
recessão que parecia não ter fim. De la Rúa se comprometeu, durante a campanha
política e no governo, a manter a conversibilidade do peso em relação ao dólar.
O resultado foi a aplicação de políticas de ajuste econômico, recessivas e
deflacionárias, muito prejudiciais para a maioria dos segmentos das classes
médias e baixas da população argentina. No primeiro ano e meio, o governo De la
Rúa aplicou três grandes ajustes que, em alguns casos, contemplavam a redução
nominal do salário dos funcionários públicos.
Após uma década de reformas econômicas liberalizantes (privatizações de
empresas públicas, abertura comercial e financeira indiscriminada e
flexibilização das leis trabalhistas) aplicadas pelo governo peronista de
Carlos Menem e continuada pelo governo De la Rúa, a Argentina em 2001 atingiu
sua pior crise econômica desde o anos trinta. O sistema financeiro em falência,
fuga de capitais, a restrição aos saques de depósitos bancários - Corralito - e
a economia tecnicamente quebrada foram o telão de fundo das manifestações
sociais que se multiplicavam dia a dia ao ritmo da crise.
O colapso da economia argentina, em dezembro de 2001, provocou a renúncia do
presidente De la Rúa, depois de massivos protestos e a posterior repressão dos
manifestantes, deixando dezenas de vítimas. Esse foi o marco político da crise
institucional, na qual em dez dias sucederam-se quatro presidentes provisórios.
Finalmente, o Congresso chegou a um acordo e o ex-governador da província de
Buenos Aires, o senador Eduardo Duhalde foi empossado como Chefe de Estado.
Nesse curto período de transição, declarou-se a moratória unilateral da dívida
externa com os credores privados - na curta gestão de Rodríguez Saá - e se
acabou com a conversibilidade monetária, já no governo Duhalde.
O impacto social das crises da segunda metade dos anos 90 foi dramático para a
sociedade argentina. Alguns dados mostram o grau de seriedade da situação
social do país. O desemprego aberto superou, em 2002, 20% da população ativa, o
PIB tinha declinado numa taxa anual de 16,3% durante o primeiro trimestre de
2002, o que representou um recorde. Os salários reais abaixaram 18% durante o
decorrer desse ano. As taxas de pobreza e de indigência chegaram a níveis nunca
antes vistos: os dados do governo indicam que 53% dos argentinos viviam abaixo
da linha de pobreza, sendo 25% da população indigente (necessidades básicas não
satisfeitas). Entre 1998 e 2002, elevou-se a pobreza extrema em 223% na
Argentina. Um fato único num espaço de tempo tão reduzido. Em 2001, a
participação dos trabalhadores no PIB caiu ao nível mais baixo da história
argentina.
O governo Kirchner
A política exterior menemista foi mais prolongada que o governo Menem. A
Aliança manteve as diretrizes principais da política econômica, com a
manutenção da conversibilidade e os programas de ajuste e da política externa.
Assim, Domingo Cavallo, o "pai da conversibilidade", regressou ao Ministério da
Economia na última etapa do breve governo de Fernando de la Rúa. Nesse sentido,
Tokatlian (2005a) aponta que as mudanças significativas se dão durante o
governo de Néstor Kirchner, tanto em relação à política exterior como na
maneira de ver a economia. Essas transformações estão baseadas, segundo o
autor, em três realidades:
1) A primeira é a percepção da sociedade e do governo do enorme fracasso que
significou a política externa das "relações especiais" com os centros de poder
político internacional (Washington) e com os centros de poder financeiro,
especificamente o FMI e o Banco Mundial. O Estado argentino, por mais ou menos
uma década, foi mostrado ao mundo pelas instituições financeiras e pelos
investidores privados como o aluno exemplar do FMI. Contudo, quando atravessava
sua pior crise, não obteve ajuda, resgate, apoio ou solidariedade por parte
desses centros de poder econômico.
2) O segundo elemento que ajudou a interpretar a mudança refere-se ao fato de
que, dada a debilidade do mandato Kirchner, o presidente viu-se obrigado a dar
claros sinais de assertividade e de determinação. Além disso, o presidente tem
um apelo fortemente pessoal, intempestivo e pouco adepto aos protocolos, o que
reforça o caráter personalista do mandato.
3) Um terceiro elemento seria a formação política e as características próprias
da geração do presidente. "É um filho da geração dos anos 1970, que tem uma
visão marcada por um momento histórico de mudança". Segundo Corigliano (2004),
há influência de um passado de peronismo "setentista", de identificação
ideológico-simbólica com regimes reformistas de caráter ideológico anti-
imperialista. Essa visão "procura resgatar em forma simbólica idéias e gestos
reformistas próprios da esquerda peronista na que militaram, em sua juventude,
o presidente Kirchner e seu (primeiro) Chanceler Rafael Bielsa" (CORIGLIANO,
2004).
Deste modo, dois aspectos valem a pena destacar do curto período do governo
Kirchner. Em primeiro lugar, a resolução da saída da moratória por meio de uma
difícil negociação com os credores privados e, em concomitância, com o FMI. A
Argentina saiu da incômoda condição de moratória, conseguindo acordos
aparentemente mais vantajosos que outros países em desenvolvimento e
especialmente que o Brasil na negociação com o FMI. A reestruturação da dívida
externa com os credores privados, em 2005, e a saída da situação de moratória
(default) foram percebidas como um sucesso por grande parte de população. Isso
possibilitou ao presidente Kirchner e ao ex-ministro da Economia Roberto
Lavagna17 reinserir a Argentina na economia internacional. Em janeiro de 2005,
o governo argentino apresentou um programa de troca de uma parte da dívida com
os credores privados argentinos e estrangeiros. Visando a esse objetivo, o
governo emitiu novos bônus para substituir os que não foram pagos. Existiam
mais de 150 tipos de bônus em moratória. Deu-se a oportunidade aos credores de
escolher entre três novas categorias de bônus, sendo o prazo final, dado pelo
governo argentino, em 25 de fevereiro. Depois dessa data, os credores que não
aceitassem poderiam recorrer à Justiça18.
Em 3 de março de 2005, o ministro Lavagna anunciou que 76,07% dos credores
privados, do total de 152 títulos da dívida argentina em moratória, concordaram
com a proposta de quitação apresentada pelo governo Kirchner, apesar da perda
em torno de 63% e 68% do valor original do bônus. A recuperação do crescimento
da economia que tinha começado em 2002, inclusive em situação de moratória com
os credores privados internacionais, fortaleceu o ministro Lavagna nas
negociações face o FMI e os credores.
Em segundo lugar, as relações com o Brasil foram colocadas como uma prioridade
da política externa do governo de transição de Duhalde e do governo de
Kirchner. Na região do Cone Sul, os vínculos com o Brasil foram elevados ao
status de relações estratégicas, como ferramenta destinada a maximizar a margem
de manobra da Argentina em relação aos Estados Unidos e frente à União
Européia, especificamente nas negociações comerciais internacionais e dentro da
Organização Mundial de Comércio (OMC). Isso implica que a estratégia do governo
argentino coloca as políticas de regionalização (fortalecimento do Mercosul)
como elemento prioritário, inclusive como base para uma via de desenvolvimento
alternativa à via pregoada pelo Consenso de Washington.
Assim, segundo a versão oficial do governo Kirchner, o Mercosul:
...es ante todo un proyecto político, un espacio de la ampliación de
la autonomía estatal capaz de gobernar la inserción de nuestros
países en el mundo. Tenemos la convicción de que en el mundo actual
no hay futuro para proyectos de desarrollo de alcance estrictamente
nacional, y es por eso que damos a nuestro bloque de pertenencia un
sentido mucho más abarcador que el de un simple acuerdo comercial
(BIELSA et al. 2005, p. 49).
Neste sentido, essa estratégia política e econômica pretende se afastar, em
grande medida, dos princípios do regionalismo aberto imperante na década de
1990, imbuída dos princípios econômicos liberais. Segundo Lima e Coutinho, o
regionalismo aberto é uma expressão contraditória "já que o primeiro termo
sinaliza uma preferência pela região, e o segundo nega ou qualifica esta mesma
orientação" (LIMA e COUTINHO, 2006, p. 1). Deste modo, a região tem que ser uma
plataforma para a abertura econômica, favorecendo os setores competitivos e
financeiros, e não um empecilho para o processo de globalização.
A crise argentina de 2001 agiu como catalisadora das mudanças da política
doméstica, reconfigurando as alianças entre setores sociais. No plano
estritamente partidário, a ala esquerda do peronismo adquiriu maior peso, e se
consolidou no poder com o presidente patagônico. O ex-ministro da Economia de
Duhalde e de Kirchner, Roberto Lavagna, sempre esteve ligado aos setores
produtivos dos pequenos e médios industriais. Essa virada "nacionalista"
econômica teve efeitos na política regional. Assim, a visão de Duhalde/Kirchner
em relação ao Mercosul se afasta dos postulados do "regionalismo aberto", que
dependia mais dos agentes econômicos do mercado. Lima e Coutinho (2006)
denominam esse novo regionalismo dos anos 2000 de regionalismo físico e
energético. "A região retorna aos seus contornos geográficos tradicionais em
função da confluência de dois processos no sistema internacional e que podem
ser sintetizados na idéia de valorização política e física das regiões" (LIMA e
COUTINHO, 2006. p.3). Esse processo não está isento de contradições já que as
políticas nacionalistas podem colocar obstáculos aos processos de integração
segundo o "novo" paradigma.
A desindustrialização argentina da década de 1990 - aprofundando um processo
que começa no ano 1976 com a ditadura e com Martínez de Hoz na pasta da
economia - e a maior competitividade internacional das indústrias brasileiras
mostraram-se cruciais para entender os desdobramentos políticos no âmbito do
Mercosul. Tanto o presidente Kirchner quanto os ex-ministros Lavagna e Bielsa
tinham consciência dessa assimetria estrutural e, com o novo viés nacionalista/
desenvolvimentista desse governo, o resultado não poderia ser outro que as
ríspidas negociações em torno de interesses conflitantes dos diversos setores
afetados no processo de integração com o Brasil. Analistas têm lido alguns
gestos do presidente Kirchner19 em relação ao Brasil como uma tentativa de
contestação da liderança brasileira na região. Entretanto, a rispidez no trato
entre ambos os países seria mais o produto de diferenças de interesses, que tem
se expressado e manifestado no âmbito do Mercosul através de diferentes
demandas por parte de setores prejudicados no comércio intrabloco, que desde
2003 tem sido deficitário para a Argentina.
O Sistema Internacional, a conjuntura econômica e a Argentina
A Argentina tem perdido um enorme poder relativo na política internacional nos
últimos 50 anos, e, como expressa Tokatlian (2005a), hoje "carece de
instrumentos de influência real no sistema internacional". Esse autor salienta
que: "um excesso de vontade de mudança não acompanhado dos recursos para
realizar essa mudança pode acabar em fortes frustrações", que as restrições
externas se superam com uma grande estratégia internacional, e que o governo
Kirchner carece dessa estratégia, apesar de existirem iniciativas, gestos e
pronunciamentos. Segundo Tokatlian, uma estratégia para um país periférico para
o século XXI: "deveria identificar as ameaças prováveis à segurança do Estado e
da sociedade assim como os desafios ao bem-estar e à autonomia, e planejar as
respostas políticas, econômicas, militares e de outro tipo para afrontar essas
ameaças e desafios". (TOKATLIAN, 2004, p.27).
Dois fatores resultariam, segundo Tokiatlian, dessa falta de estratégia: o
primeiro é que no governo Kirchner existe uma primazia das condições de
política interna para fazer política exterior. Isto está ligado com um segundo
fator, ou seja, as principais negociações da Argentina com os vizinhos, no
âmbito do Mercosul, com o FMI e com os credores privados (por meio da
chancelaria e do Ministério da Economia) acabam se tornando âmbitos de ação
personalizados na política externa. Tokatlian (2004) afirma que, em política
externa, ou se tende à institucionalização ou à personalização. A conformação
de uma estratégia está diretamente vinculada à institucionalização da política
externa da Argentina. Essa personalização da política externa argentina, por
meio de uma diplomacia presidencial, vem de longa data e, ainda hoje, continua
a reger as negociações mais importantes do país.
No que respeita ao papel da Argentina e da região no sistema internacional para
o século XXI, Tokatlian afirma que, em primeiro lugar, para os Estados Unidos,
após o 11 de Setembro, a América Latina passa a ter uma relevância estratégica
bastante reduzida.
E, em segundo lugar que:
El efecto sobre un país periférico del doble proceso constituido por
una reforzada hegemonía hemisférica de Estados Unidos y la ascendente
gravitación de nuevas modalidades de autoridad no estatal es
considerable. Así entonces, los márgenes de maniobra y el poder
negociador de naciones como la Argentina están ya restringidos, más
aún cuando a las enormes limitaciones externas se suma una dramática
crisis interna (TOKATLIAN, 2004, p. 114).
É precisamente nesse ponto que discordamos com Tokatlian. Um país como
Argentina, que em 2001 experimentou a pior crise econômica desde a Segunda
Guerra Mundial, que mantém os traços clássicos de sua diplomacia presidencial
liderados pelo maior partido político (Justicialista), e que realizou as
profundas reformas liberalizantes apoiadas por uma aliança política entre os
setores empresariais financeiros, das grandes corporações transnacionais e de
alguns setores sindicais, conseguiu se recuperar tão rapidamente, tendo em
consideração uma desvalorização traumática e a declaração da moratória
unilateral em conjunção com a desconfiança unânime dos setores econômicos
poderosos nacionais e internacionais. Qual é o sentido dessa menor margem de
manobra política para a o hemisfério, após o 11 de Setembro de 2001, a qual
Tokatlian se refere?
Longe de pretender, neste artigo, dar uma resposta acabada a essa questão,
observa-se que os desdobramentos políticos da pós-crise mostraram uma outra
realidade; maiores margens de manobra e recuperação relativamente rápida. Isso
não implica necessariamente que exista uma relação causal direta entre a
declaração de uma moratória por parte de um país periférico (acompanhada de uma
forte desvalorização) e o crescimento e recuperação econômica de um país.
Muitas outras variáveis têm que ser levadas em conta, e cada caso tem suas
peculiaridades. De tal modo, dentre as variáveis relevantes que nosso artigo
pretende destacar estão os fatores exógenos (estruturais e conjunturais) da
política internacional, que ajudarão a compreender alguns desdobramentos
políticos dos Estados da região e, especificamente, da Argentina do século XXI.
Assim, a estrutura internacional unipolar age como um ambiente no qual as
margens de manobra política são mais amplas para os países em desenvolvimento -
que não estiverem diretamente envolvidos com o terrorismo ou a produção de
armas de destruição em massa - do que no sistema bipolar. E, quiçá, mais ampla
também que na década inercial de 1990, em que os países em desenvolvimento e os
antigos aliados soviéticos, na sua maioria, apostaram nas soluções de livre
mercado.
Por outro lado, Carlos Escudé (2004), entende esses constrangimentos sistêmicos
como uma "desordem global", ou como um problema de "crescente
ingovernabilidade" da atual ordem mundial unipolar. Escudé também se refere a
um "caos sistêmico", caracterizado pelo fato de ter contribuído para a redução
dos custos na confrontação com a potência hegemônica. A maior margem de manobra
é explicada pelos desajustes da ordem, por uma "crise de governança" (ESCUDÉ,
2004).
A nossa hipótese, porém, é que a redução dos custos na confrontação com os
Estados Unidos se dá devido às mudanças na estrutura política internacional nos
anos 90, e não a um hipotético "caos sistêmico". Além disso, o esgotamento do
modelo de desenvolvimento neoliberal junto com os atentados terroristas de 11
de Setembro de 2001 reforçaram essa tendência e a percepção de que a ordem
unipolar pode ter longa duração. Nesse sentido, a Argentina do presidente
Néstor Kirchner deparou-se com um quadro complexo, porém extremamente
favorável.
1. Em primeiro lugar, como foi destacado, as condições estruturais são
favoráveis. No sistema unipolar, os Estados não diretamente envolvidos nas
"novas" ameaças podem desfrutar de uma maior margem de manobra ou autonomia
relativa. Geopoliticamente, essa afirmação também é válida para a região da
América Latina, que não está entre as prioridades em matéria de segurança por
parte dos EUA na "Guerra contra o Terror".
2. Em segundo lugar, também a conjuntura econômica internacional é extremamente
positiva. Dados do FMI mostram que a conjuntura econômica internacional
mostrou-se excepcionalmente favorável, na medida em que "há um crescimento
sincronizado da economia mundial" de 5,1% em 2004, taxa recorde desde 197620. E
"no âmbito dos países em desenvolvimento, o crescimento estimado é ainda maior
- cerca de 7,2%, taxa mais elevada em trinta anos" (SINGH, 2005). A conjuntura
dos mercados financeiros também é muito favorável, segundo o relatório de
outubro de 2005 do FMI para América Latina e, junto com isso, as taxas de juros
de longo prazo se encontram em seus mínimos históricos (SINGH, 2005). Por essas
razões,
a liquidez tem sido abundante, os mercados de valores são dinâmicos e
a busca de rendimentos continua contribuindo para que os ativos de
mais alto risco continuem se valorizando. Portanto, as condições de
financiamento nos mercados emergentes têm sido muito boas, e a
maioria dos países desses mercados têm começado a financiar
antecipadamente as necessidades de 2006 (SINGH, 2005).
Em relação ao comércio mundial, houve uma expansão. Nessa conjuntura, os preços
dos produtos primários (commodities) experimentaram uma considerável elevação:
produtos como a soja, carne, trigo, milho e o petróleo constituem itens
importantes na pauta de - exportação argentina e de grande parte dos países de
América Latina21. O PIB da Argentina, que tinha caído 20% entre 1999 e 2002,
cresceu 8,7% em 2003 e 9% em 2004, e 8,6% em 2005; o desemprego, ainda elevado,
caiu de 17,8% para 10% aproximadamente; as taxas recordes de pobreza, que
atingiram 57,6% em 2002, caíram para 40,2% no último ano. Como mostra o quadro,
os dados positivos em relação ao crescimento são para toda a região.
A Comissão Econômica para América Latina (Cepal) aponta as mesmas tendências
que os relatórios do FMI. Para 2006, prevê-se a continuidade da fase expansiva
do ciclo econômico. Se se confirmar a projeção de uma taxa de crescimento de
4,1% para América Latina e o Caribe, a média de crescimento anual do período
2003-2006 será um pouco superior ao 4% anual, e o PIB per cápita será de 11%
aproximadamente. No entanto, esse crescimento seria, conforme afirma a Cepal,
inferior ao conjunto dos países em desenvolvimento, cuja média seria de 5,7%
entre 2003-2006.
3. Em relação às instituições financeiras internacionais, vale destacar que,
assim como a Argentina, na década de 1990, era o exemplo a seguir, o show case
dos defensores das reformas orientadas para o mercado e das organizações
internacionais, como o FMI23 e o Banco Mundial, no ano da crise econômica,
2001, o país tornou-se o exemplo paradigmático de colapso das soluções
econômicas pró-mercado para uma nação em desenvolvimento. Contudo, e ainda em
moratória, o governo argentino nunca deixou de pagar seus compromissos com o
FMI. O resultado foi que, em 2005, já tinham sido pagos 22% da dívida que a
Argentina tinha com o FMI, que passou de 14,346 bilhões de dólares em dezembro
de 2001 para 11,121 bilhões em junho de 200524. Nessa direção, o governo
Kirchner seguiu os passos da Rússia e do Brasil e conseguiu a aprovação do
Congresso argentino para realizar a quitação da dívida com o FMI, inclusive com
a utilização de reservas do Banco Central25.
Considerações finais
O governo de Kirchner recebeu, nas eleições legislativas de outubro de 200526,
um grande apoio dos eleitores, fortalecendo sua figura no plano doméstico. Essa
adesão política e os altos índices de crescimento do PIB nos últimos três anos
sinalizam que haverá poucas mudanças na política externa em curto prazo, já que
esta foi apresentada pelo governo como uma das chaves do presente sucesso. Por
enquanto, e se a conjuntura econômica internacional favorável acompanhar o
denominado "realismo pragmático" (CORIGLIANO, 2004) de Kirchner continuará a
prevalecer nas negociações internacionais.
Todavia, o fato de que existam, como se destacou, condições estruturais para
uma maior margem de manobra por parte dos países em desenvolvimento não
implicados nas novas ameaças, não quer dizer que países como a Argentina
consigam ganhar maiores margens de autonomia. Tudo parece indicar que, para o
século XXI, a construção de maiores margens de autonomia estaria ligada à
consolidação de um bloco sub-regional27.
Com outras palavras, no caso da Argentina, o que aparece como o ressurgir do
Estado-nacional, após as mostras de fragilidade do modelo econômico neoliberal,
se apresenta como um conjunto de respostas pragmáticas face à globalização
financeira e às frustrações desse modelo de desenvolvimento liberalizante. Essa
resposta se produz num duplo plano: no plano nacional (doméstico) e no plano
sub-regional. Ambas requerem arranjos políticos e alianças de classe diferentes
daquelas que aplicaram e sustentaram as reformas liberalizantes nos anos 90.
No nível regional, Buzan e Waever (2003) afirmam que os complexos de segurança
regionais são os espaços de atuação primordial dos Estados, adquirindo um grau
de importância inédita no período do pós-Guerra Fria28. Porém, as
características desse regionalismo são diferentes na década de 90 e nos anos
2000. Nos anos 90, o processo de integração adquiriu uma modalidade denominada
de "regionalismo aberto" (LIMA e COUTINHO, 2006), cujo desenvolvimento não se
deveria contrapor aos princípios do livre comércio e da liberdade financeira.
Nesse período, a dinâmica regional se manifestou por meio de acordos de livre
comércio, em consonância com os princípios do liberalismo econômico, e de
reformas de mercado adotadas pelos países periféricos da região. Esse
regionalismo aberto seria uma maneira de adaptação face às vulnerabilidade
externas dos Estados que tiveram sua capacidade de autonomia diminuída com a
abertura econômica. Não obstante, nos anos 2000, dois desdobramentos
modificaram os princípios do regionalismo aberto para uma idéia de "valorização
política e física das regiões" (LIMA e COUTINHO, 2000).
a) O primeiro processo pode ser enunciado como a crise do modelo de
desenvolvimento econômico liberal, cujos primeiros indícios no plano global
foram as crises do México, da Ásia, da Turquia e da Rússia na segunda metade
dos anos 90.
b) O segundo processo foi o impacto dos atentados de 11 de Setembro nos EUA, e
a reformulação e reavaliação da política de segurança global a partir desse
acontecimento.
Na Argentina de pós-crise, a política regional foi colocada, pelo governo
Kirchner, num plano prioritário, elevando os vínculos com o Brasil ao status de
"relações estratégicas". Essa posição objetiva inserir a Argentina como "sócio
estratégico" do Brasil nas seguintes iniciativas: 1) concepção de uma estrutura
mais ampla do que o Mercosul, a Comunidade Sul-americana de Nações (CSN)
integrada pelos países do Mercosul, o Chile e os países da Comunidade Andina de
Nações: Bolívia, Colômbia, Peru, Equador e Venezuela; 2) pressão para a redução
dos subsídios agrícolas que os países da União Européia (UE) outorgam a seus
produtores e, no caso dos EUA, como requisito prévio para a entrada dos países
do Mercosul à Área de Livre Comércio das Américas (Alca); e 3) a incorporação
do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CORIGLIANO, 2004).
Desses três pontos só o segundo mostrou-se em quase total consonância com os
interesses brasileiros. Em relação ao último ponto, isto é, a respeito da
eventual reforma no Conselho de Segurança da ONU, existem diferenças que não
são disputas conjunturais, mas posturas historicamente diferentes a respeito
dessa matéria29. Em relação à gestação de uma estrutura mais ampla do que o
Mercosul, a CSN, Argentina não mostrou o mesmo entusiasmo do que o Brasil,
principalmente pelo papel de um e outro país no continente sul-americano. O
Brasil tem pretensões de liderança regional (América do Sul) e tem utilizado o
Mercosul como uma plataforma para esse objetivo de liderança, que de fato se
apresenta como coordenação regional30. Por outro lado, a Argentina tem como
prioridade a consolidação do Mercosul, manifestando explícita indiferença em
relação à CSN31. Entretanto, essas diferenças não parecem afetar de maneira
expressiva o processo de integração porque seja como um objetivo ou como um
meio fundamental para atingir objetivos de liderança, a nova realidade política
regional do século XXI depende muito mais do esforço das políticas estatais de
seus membros do que da mão invisível dos mercados.