Coréia: "Tigre" em turbulências, mistérios no norte
Introdução
Como o resto do mundo, também a Coréia do Sul caiu em 2008 em uma crise grave,
com uma queda da sua moeda relativa ao dólar em mais de 30% em 2008 e uma
contração prevista da sua economia de 2 a 7% em 2009. Estas turbulências
refletem aqui certos pontos fracos do seu modelo econômico, embora este tenha
sido muito bem-sucedido em termos gerais, particularmente no que diz respeito
ao desenvolvimento industrial impressionante das últimas décadas. Também são
conseqüência, entre outros fatores, de uma abertura financeira que lhe deu
maior fragilidade nos últimos 20 anos.
Há vários desafios difíceis que o país terá de enfrentar para recuperar seu
dinamismo: algumas correções do seu modelo econômico para lhe dar maior
flexibilidade e menor fragilidade, e, ao mesmo tempo, evitar o aumento das
desigualdades sociais até agora relativamente modestas; as tensões geradas
pelos projetos de livre-comércio com os Estados Unidos; as incertezas da Coréia
do Norte, com riscos de implosão da irmã inimiga e de conseqüências ainda mais
complicadas do que teve a queda da Alemanha oriental para a Alemanha ocidental;
e, de maneira geral, a difícil situação de "um camarão entre duas baléias" - a
de um país pequeno entre o gigante do high-tech, Japão, e a imensa "fábrica do
mundo", que é a China, com salários muito baixos, mas um nível tecnológico
crescente.
Para compreendermos melhor a situação do País e suas perspectivas, temos de, em
primeiro lugar, analisar o contexto histórico-estrutural e identificar o
conjunto de fatores que explicam o "milagre econômico" coreano das últimas
décadas. Os pontos fracos desta história de sucesso também serão elementos
importantes a serem considerados. Daí, então, as mudanças que levaram a certas
alterações do modelo coreano devem ser analizadas em relação à grave crise de
1997-98 e ao crescimento ainda sólido, embora mais reduzido, posterior. Uma
breve olhada para a misteriosa Coréia do Norte completa esta visão panorâmica
que tenta dar alguma idéia sobre o futuro de um País que provavelmente tardará
algum tempo para merecer seu tradicional sobrenome de país da manhã calma.
No final de 2007, foi eleito no País, com ampla maioria relativa, um novo
presidente conservador, um grande manager, após dois presidentes de centro-
esquerda. Em poucos meses, porém, sua popularidade caiu fortemente.
Manifestações multitudinárias levaram à renúncia de vários ministros e às
promessas de mudança na política. No fundo destas turbulências encontramos,
reforçadas pela crise mundial, as controvérsias sobre o livre-comércio com os
EUA e um aumento dos problemas sociais, assim como as dificuldades existenciais
deste pequeno País situado entre o Japão e a China, sem contar as tensões
próprias da democratização, iniciada há 20 anos, de um sistema político
autoritário e alguns pontos fracos do "modelo coreano".
A explosão dos preços do petróleo e dos alimentos, em 2008, significou um duro
golpe para a economia sul-coreana, extremamente dependente do comércio
exterior. A queda destes preços foi uma boa notícia, mas também refletiu
problemas: caíram ainda mais os transportes marítimos, e a Coréia concentra 40%
da construção mundial de barcos.
O país já foi sacudido por fortes crises nas últimas décadas, como à da década
de 1980, no contexto do segundo choque do petróleo. A última destas, em 1997/
98, foi particularmente difícil. Mas, se há dez anos, a Ásia podia "contaminar"
o resto do mundo com os desequilíbrios criados pela sua abertura financeira,
hoje são os velhos países industriais que contaminam os países "emergentes".
Seja como for, estas turbulências não impediram que a Coréia do Sul tivesse um
desenvolvimento extraordinariamente dinâmico e se convertesse em um dos "novos
países industriais" globalmente bem-sucedidos. Os contrastes com a Coréia do
Norte, sofrendo de fome atualmente, não poderiam ser maiores.
Não parece, portanto, excessivo falar de uma das histórias de sucesso mais
impressionantes do mundo posterior a 1945: um dos países mais pobres da Ásia,
ao nível da Índia ou ainda menor, que sofria da fome em 1960 e tinha quase 80%
de analfabetismo em 1950 - apesar de ter uma população excepcionalmente
homogênea e, desde o século XV, uma escrita nacional alfabética - e não o
complicado sistema ideográfico chinês -, tornou-se um dos mais prósperos e
instruídos da Ásia; e, do atraso industrial, passou à indústria pesada e ao
high-tech. Esta ex-colônia japonesa, exausta e devastada pela guerra
apocalíptica de 1950-53, tornou-se o segundo país-membro asiático oriental da
OCDE, após o Japão. Seus salários industriais reais estão hoje entre os de
Portugal e de Espanha. Exporta principalmente produtos industriais com altos
conteúdos tecnológicos como televisores, carros e barcos. Compete entre as
economias do mundo, à pouca distância do Brasil e da Espanha, pela posição no
ranking de PIB mundial de 11º ou 12º, com países como a Índia - cuja população
é 22 vezes maior -, a Rússia e o México. Entre as maiores empresas
transnacionais não financeiras originárias de países periféricos, classificadas
em função dos activos no estrangeiro, as coreanas ocupam os postos 3º, 5º e 10º
lugar, seguidas das brasileiras CVRD e Petrobrás nos 11º e 12º lugares,
respectivamente (CNUCED: 36). A crise atual talvez não signifique o fim do
"milagre coreano", mas mostra - como já tinham sinalizado anteriormente -
certas fragilidades de um modelo que continua merecendo muita atenção e pode
servir de exemplo em vários aspectos.
O contexto histórico e internacional: fatores principais do "milagre coreano"
O dinamismo coreano das últimas décadas explica-se por um conjunto de fatores,
sobretudo os seguintes:
- a massiva ajuda estadounidense inicial, até meados dos anos 60,
para consolidar um baluarte anticomunista frente à Coréia do Norte -
que, ainda nos anos 60 e mesmo nos 70, mostrava forte dinamismo
econômico - e evitar, assim, a queda de um dominó estratégico em uma
zona particularmente quente da Guerra Fria;
- as reformas estruturais radicais na agricultura, liquidando a
classe terratenente tradicional e obrigando as classes dominantes a
tornarem-se elites industriais;
- a forte ênfase na educação em todos os níveis, permitindo passar,
progresiva e rapidamente, à produções de maior valor, dos têxteis ao
aço, televisores, carros etc1;
- o papel crucial do Estado em educação, em saúde, e também em
infraestruturas, em pesquisa científica etc, ligado à forte
influência do confucianismo, que insiste na adquisição de
conhecimentos, na ordem e no consenso, na obediência aos superiores e
aos mais velhos;
- o protagonismo dos grandes conglomerados privados chamados de
chaebols, como Samsung e Hyundai, hoje mundialmente conhecidos, que
foram crescendo em estreita relação com uma burocracia estatal
geralmente eficiente, protegidos inicialmente das importações, mas
obrigados a tornarem-se rapidamente competitivos e a exportar;
- a altíssima percentagem de poupança e dos investimentos productivos
sobre o PIB, obtida também graças à dura repressão de uma classe
operária de formação recente, à exploração do campo, aos altos custos
do alojamento e da educação privada;
- mercados mundiais abertos, especialmente os dos EUA e do Japão, que
se especializaram em produtos de maior valor agregado, deixando
disponível, para novos competidores, setores mais tradicionais como
os têxteis;
- a mantenção de desigualdades sociais relativamente limitadas -
índices comparáveis aos dos países europeus, não dos latinoamericanos
ou indianos - apesar das ditaduras repressivas, também para
apresentar um "contra-modelo" à Coréia do Norte; forte crescimento
das classes médias como conseqüência dos progressos extraordinários
do sistema educativo;
- por último, um ponto essencial e decisivo, segundo alguns autores,
entre os quais um dos mais prestigiosos, Krugman, teria sido a
simples acumulação extensiva dos fatores produtivos trabalho e
capital, com altas taxas de incorporação de mão-de-obra femenina -
"mais transpiração do que inspiração" - e de poupança e investimento,
um pouco ao estilo da União Soviética das primeiras décadas2.
Qualquer que seja a importância relativa destes diversos fatores e os pontos
discutíveis de certas interpretações, como desta última implicando uma suposta
não-convergência dos níveis tecnológicos entre "tigres asiáticos" e velhos
países industriais, o modelo da Coréia foi bastante semelhante ao de Taïwan,
embora que neste foram as empresas estatais e as pequenas e médias, assim como
as multinacionais, as que dinamizaram a economia. O modelo coreano foi, em
muitos aspectos, copiado do Japão, incluindo a quase total ausência de
investimentos estrangeiros diretos na fase de rápido crescimento, enquanto em
Taïwan e em Cingapura as multinacionais tiveram ampla presença, embora que em
condições bem particulares fixadas pelos respectivos Estados. No Japão, na
Coréia e em Taïwan, as despesas em pesquisa e desenvovimento subiram
rapidamente. Na Coréia, com uma percentagem importante delas nas empresas
privadas: 1.7% do PIB frente ao 2.1% do total de P&D em 1992, 1.9 e 2.8% no
Japão, 0.9 e 1.8% em Taïwan na mesma época (Lall: 61).
A herança da colonização japonesa (entre 1910 e 1945) é complexa:
desenvolvimento importante das infraestruturas e das capacidades productivas na
agricultura e na indústria, embora que dirigido para o benefício quase
exclusivo do Japão; aumento do ensino primário, mas monopólio dos japoneses nos
postos de direção da economia coreana. A Coréia não foi colônia de povoamento,
mas cerca de um milhão de japoneses dirigiam o país cuja identidade nacional,
bem diferente das da China e do Japão, e resultante de milênios de uma
civilização original, foi severamente reprimida pelos japoneses. Estes, embora
historicamente herdeiros da civilização chinesa, transmitida por meio dos
coreanos, sentiam-se - e continuam sentindo-se - superiores àqueles. Só em 1965
foram restablecidas relações diplomáticas entre Japão e Coréia, mas existem até
hoje tensões bilaterais recorrentes.
Após as guerras, em 1953, a Coréia do Sul tinha uma série de vantagens
estruturais, mas também algumas desvantagens importantes, em relação à sua irmã
inimiga socialista do norte. Por um lado, sobre uma superfície menor tinha mais
terras aptas para a agricultura, com maior produtividade, devido ao clima mais
favorável; mais vias férreas e outras infraestruturas; o principal porto de
Busan e a capital Seoul. Por outro lado, poucos recursos de minérios e de
fontes de energia hidroelétrica; alta densidade demográfica, acrescida pelos
refugiados do Norte e pela volta dos coreanos emigrados à Manchúria e ao própio
Japão durante o período colonial.
A ajuda massiva dos Estados Unidos, motivada por considerações estratégicas,
foi importante, mas a verdadeira "decolagem" produziu-se essencialmente após o
fim desta ajuda.
Como pode ser explicado o caso da Coréia à luz das principais teorias do
desenvolvimento? E o conjunto dos fatores referidos, deixando de lado a herança
colonial, as terríveis destruições da guerra de 1950-53 e a ajuda
norteamericana, poderia ser reproduzido de alguma maneira em circunstâncias
diferentes em outros países?
Este caso contradiz a teoria liberal clássica e também a dependentista
simplificadora. É sobretudo a combinação de uma forte ação do Estado a
mecanismos de mercado estreitamente controlados por esta que explica o
dinamismo econômico do país; também confirma que um protecionismo seletivo,
temporário e flexível, como em seu tempo preconizado por List na Alemanha e
Hamilton nos Estados Unidos, também praticado no Japão, continua sendo uma
estratégia eficaz. Mostra, por outro lado, que a estreita dependência do país
em relação aos Estados Unidos (e também ao Japão) não impidiu este dinamismo,
senão que lhe deu uma trajetória particular. Esta via não deixa de ter
problemas, mas levou a Coréia a etapas de crescimento industrial que ninguém
teria previsto em 1945.
É reproduzível a experiência coreana? Não parece possível, mas algumas lições
podem ser aproveitadas com grande benefício por outros países. Se o balanço
geral é impressionante, convém, contudo, observar não só seus aspectos
positivos mas também os negativos. Houve décadas de ditaduras militares muito
repressivas, com alguns episódios sanguinários.
Se a Coréia imitou em aspectos importantes o modelo de desenvolvimento do seu
antigo opressor japonês, deve-se ter em conta, contudo, as diferenças
estruturais, geográficas e psicoculturais entre eles. A história movimentada da
Coréia, localizada entre três grandes potências e muitas vezes invadida por
estas, explica não só porquê ela gasta uma porcentagem muito maior do seu PIB
na defesa nacional que o Japão, mas também porquê o coreano tende a ser mais
flexível, improvisador e individualista, como salienta um autor deste país. Se
os japoneses são campeões como equipe, os coreanos lhes superam quando se trata
de individualismo e de improvisação. Uma partida de futebol, quando da decição
sobre a participação na copa do mundo, exemplificou a diferença: os japoneses
dominavam o jogo enquanto tudo ia como previa seu plano estratégico, mas quando
se produziu uma situação imprevista, os coreanos os foram superando e acabaram
vencendo (Kang).
E interessante fazer uma breve comparação com os países latinoamericanos. Estes
estão não só localizados nas antípodas geográficas da Ásia oriental, mas também
situados no oposto quanto à sua política econômica - inclusive o Chile, às
vezes considerado exageradamente como "o tigre sul-americano". Existem, sim,
algumas semelhanças evidentes no caso brasileiro, talvez mais com as políticas
brasileiras desde Getúlio Vargas. Mas como salientou ha mais de 20 anos um
economista chileno (Fajnzylber, cap. II), enquanto no Chile havia importações
crescentes de produtos como televisores à cores, na Coréia estes mesmos
aparelhos eram fabricados, inicialmente, só para exportação. Isto tem a ver com
as taxas muito superiores de poupança na Coréia e na distribuição da renda
muito menos desigual3. E como escrevem dois especialistas, foi precisamente a
pobreza de recursos naturais que levou o país ao seu desenvolvimento
impressionante, enquanto a Argentina teve uma trajetória decepcionante ligada
ao uso inadequado de tais riquezas (Mármora e Messner). Podemos também, com uma
autora especialista da Coréia, dizer que ali renasceu de alguma maneira Raúl
Prebisch, o teórico da CEPAL do desenvolvimento industrial dos países
periféricos (Amsden, 2004).
Obviamente, em uma perspectiva comparativa ampla, devem ser consideradas as
importantes diferenças estruturais, históricas, culturais, geográficas e
demográficas: cerca de um terço da população mundial está na Ásia oriental e
sudoriental4 e um doze avos na América Latina, geograficamente bem maior,
portanto nítidamente distintas densidades demográficas; confucianismo e
catolicismo; passado colonial ou semicolonial (China) e imperial (Japão) antes
de 1945 na Ásia, quase 200 anos de independência política na América Latina;
situação no centro ou na margem, respectivamente, dos conflictos mais quentes
da Guerra Fria, exceto o caso de Cuba. Também na área puramente política e
econômica, as diferenças são em geral enormes e, combinados com aqueles outros
fatores, decisivos em última instância para um resultado final bastante
contrastante (Sukup, 1997 e 2000).
Alguns pontos negativos que não devem ser ignorados
Existem também alguns outros elementos essenciais a serem considerados, aqueles
relativos à crise global do sistema. É verdade que a Coréia não é o desastre
ecológico que poderia supor-se, até mostra neste campo alguns bons pontos.
Contudo, ela contribui para a ocorrência de desastres do meio ambiente ao nível
global e a outras realidades pouco brilhantes do mundo de hoje, por sua alta
participação no consumo energético mundial e na produção de gases de efeito de
estufa. Em Madagascar por exemplo, a empresa Daewoo decidiu, em 2008, alugar
grandes extensões que seriam uma boa parte das terras aráveis do país,
principalmente para produzir milho, produto do qual a Coréia é o quarto
importador mundial. O projeto teria benefícios pouco evidentes para aquele
país, entre os mais pobres do mundo, onde a metade das crianças menores de três
anos são sub-alimentadas, segundo o Programa Alimentar Mundial. O caso foi
qualificado de neo-colonial e produto de um comportamento que pouco tem de
antiliberal5. Obviamente, a Coréia usa uma proporção relativamente importante
dos recursos naturais do mundo, como petróleo, madeira e alimentos, e sua frota
pesqueira contribui com a "sobreexploração" dos mares do mundo.
Devido à velha aliança com os Estados Unidos, e apesar de ter então um
presidente de centro-esquerda, a Coréia do Sul enviou um contingente militar ao
Iraque. Nos tempos da Guerra Fria existia uma "aliança anticomunista mundial"
da qual fazia parte, conjuntamente com o Paraguai de Stroessner e a Nicarágua
de Somoza. Tudo isto se explica pela situação geopolítica, mas levou certamente
a uma visão do mundo um pouco estreita.
Não é tudo, portanto, positivo no desenvolvimento recente, pois certamente há
vários pontos fracos. O País continua tendo taxa elevada de acidentes de
trabalho e tanto a liberdade sindical como as condições de trabalho deixam a
desejar, estando longe do que se conhece nos países ocidentais. A concorrência
excessiva tende a multiplicar suicídios, mesmo de adolescentes, e evidenciar o
stress, que é, sem dúvida, ainda maior que no Japão famoso por estes aspectos.
Isto tem a ver com o número elevado de cerca de 2.500 horas anuais de trabalho,
muito superior ao dos Estados Unidos ou da Europa. A concentração demográfica
na região da capital é excessiva: 47% da população em 12% do território, com
"custos de congestão" calculados em até 2% do PIB (OCDE, 2007a: 20). As
diferenças entre salários de homens e de mulheres para o mesmo tipo de trabalho
são ainda muito altas. As desigualdades sociais aumentaram em anos recentes,
justamente nos tempos das novas instituições democráticas. Finalmente, se o
ensino primário e secundário é de qualidade excepcional, o superior é menos
exemplar: só 0.49% do orçamento do governo foi dirigido em 2003 a este setor,
contra 1.06% na média da OCDE, e só 22% dos estudantes estavam nas
universidades públicas, contra a grande maioria nas instituições privadas de
diversas qualidades (OCDE, 2007a: 162). Talvez isto seja parte das causas dos
problemas recentes de desemprego entre jovens (OCDE, 2007b).
Uma ascensão excepcional: quatro décadas de um desenvolvimento rápido, mas
frágil
Em 1965, o PIB por habitante da Coréia era inferior ao das Filipinas, e nestes
anos ainda uma delegação coreana foi ao Paquistão para estudar "desenvolvimento
econômico" em um país supostamente promissório. Em 1995, seu PIB tinha chegado
a ser mais de cinco vezes maior que nas Filipinas, com um aumento de mais de
700%. Como salienta um especialista argentino, entre 1950 e 1995 a Coréia
passou de 25% da média latinoamericana de PIB/habitante ao dobro da mesma
(Ferrer, 1999: 45). O crescimento industrial foi de cerca de 15% anual durante
o período 1960-80, o maior do mundo e um pouco superior ao de Hong Kong,
Cingapura e Taiwan e muito maior que o dos paises do sudeste da Ásia, como a
Tailândia, que começava então sua "decolagem". Hoje, a renda nacional per
cápita da Coréia do Sul só é ultrapassada no sudeste e no leste da Ásia pelo
Japão, Taïwan, Hong Kong, Cingapura e o sultanato petroleiro de Brunei. A
Coréia ocupa o 26º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas,
entre a Eslovênia e Cingapura.
Um elemento inesperado neste balanço global encontra-se no domínio do meio
ambiente, mais precisamente no reflorestamento espectacular. Quando terminou a
guerra da Coréia, escreve Lester Brown no seu balanço ecológico mundial, o país
tinha perdido quase todas suas florestas. Por volta de 1960 começou um plano
nacional de reflorestamento massivo com centenas de milhares de pessoas
colaborando activamente em este plano que foi em muitos aspectos um modelo para
o mundo, fazendo que hoje o país tenha à volta de 65% da sua superficie cuberta
de florestas (Brown: 147-8). Também é evidente para o visitante que Seoul é uma
enorme metrópole bem mais agradável de viver, do ponto de vista do meio
ambiente e do tempo perdido nos trajetos intraurbanos, que cidades como Bangkok
ou Manila ou as grandes cidades chinesas, que tem muito menor poluição do ar, o
que se deve em particular à existência de um sistema eficiente de metrô, com
uma dúzia de linhas de um total de várias centenas de quilômetros. É
impressionante a rede férrea que comunica as cidades principais com muita
freqüência, e pronto se poderá viajar em menos de duas horas de Seoul ao
principal porto Busan na ponta sul do país, a 400 km de distância. Em todos
estos aspectos o papel de um Estado forte e não dominado por certos lobbies foi
essencial: basta com ver, em contraste, como desapareceram sob tais pressões as
estradas de ferro em países como a Argentina ou a Venezuela, e as conseqüências
sobre o consumo energético, a poluição do ar e as perdas de vidas nos acidentes
e de tempo nos engarrafamentos resultantes.
Sobre a base dos fatores antes referidos era necessário continuar com uma
política econômica coerente que foi geralmente hábil e bem-sucedida. Como
salienta a autora clássica do "milagre coreano", o papel ativo e em grande
parte muito eficiente - mais qualitativo do que quantitativo - do Estado foi
essencial na ascensão do país, ao aumentar em forma acelerada a competitividade
internacional em produtos de cada vez maior nível tecnológico. Neste aspecto é
importante, sublinha, compreender que, mais do que de uma concentração
unilateral na promoção de exportações em suposto contraste radical com a
substituição des importações típica da Índia e da América Latina, tinha-se
tratado de uma combinação eficiente de ambas vertentes do desenvolvimento
industrial ao usar a segunda, por meio de metas de exportação impostas às
empresas industriais pela política de subvenções estatais, como uma sorte de
avalanca para desenvolver a primeira (Amsden, 1989 e 1993). Mais do que
oposição entre dois modelos contrários havia, portanto, uma combinação hábil e
dinâmica entre ambos, como se mostrou com a maior clareza nos anos 80, que não
foram, precisamente por tais razões, uma "década perdida" para a Ásia oriental:
"Os asiáticos orientais estiveram bem melhor sucedidos nos anos 80
que os latino-americanos, possivelmente porque tinham salientado
durante períodos mais longos simultaneamente a substituição de
importações e as exportações e não uma ou outra coisa, como os
latinoamericanos tinham tendido a fazer originalmente (SUKUP, 1997).
Talvez ainda mais importante, o princípio de base que regia sua política de
subvencionar sua industrialização era também o de disciplinar os negócios. Isto
tornou as atividades de substituição de importações mais eficientes e mais
facilmente conversíveis em atividades de exportação. Pressões poderosas sobre
as empresas para se tornarem exportadoras chegaram a ser o fator essencial
neste contexto. Quando veio a crise dos balanços de pagamentos, nos anos 80, os
asiáticos orientais eram capazes de capitalizar sua política de longo prazo, de
subsidiar a substituição de importações, ao passar a exportar uma ampla
variedade de produtos que antes não exportavam.
A lição para outros países da política industrial e comercial dos países
asiáticos orientais não é, portanto, que convenha necessariamente abandonar a
substituição de importações por meio de subsídios, pois de outra maneira as
exportações podem não chegar nunca a ser mais diversificadas e intensivas em
conhecimento e capital. Mais certamente, a lição é que convém subordinar cada
indústria de substituição de importações a várias formas de disciplinas,
incluindo possivelmente algumas metas, embora modestas, de exportação. (Amsden,
1993: 4).
O "milagre" deu-se portanto em um contexto bem diferente do recomendado pelas
instituições como o FMI e a OMC, sem abertura radical dos mercados nem aos
investimentos estrangeiros, com resultados bem conhecidos em casos como o
argentino. Ao contrário, como no Japão, a abertura exterior baseou-se
essencialmente em promoção decidida das exportações industriais combinada com
liberalização mais lenta das importações, portanto em forte protecionismo
seletivo e substituição das importações como método principal para obter
economias de escala e aumentar a competitividade nas novas indústrias, e, em
vez de investimentos diretos estrangeiros, os meios de financiamento foram
essencialmente a poupança nacional complementada por empréstimos tomados no
exterior. Até na Tailandia, salienta ainda a autora citada, onde o governo
interveio menos que nos outros países da área, a especialização em produtos
industriais pesados das suas exportações a partir dos anos 80 tinha pouco a ver
com "vantagens comparativas evidentes" e muito com práticas de aprendizagem
industrial ligadas à anterior substituição de importações de tais productos
(Amsden, 1993: 8-9).
No início, as indústrias têxtil e alimentícias eram a base desta economia de
poucos recursos naturais e permitiram aumentar as exportações ao mesmo tempo
que dar satisfação crescente às necessidades internas de um país que saia pouco
a pouco da pobreza. Logo nos anos 70 e 80, os Planos Quinquenais iniciados em
1962 concentraram-se no desenvolvimento das indústrias pesadas e de maior nível
teconógico, como aço, química, semicondutores e construção naval, enquanto
empresas coreanas de construção ganhavam importantes contratos no Meio-Oriente
e se tornavam também fontes apreciáveis de divisas para o país. Em um quarto de
século, os têxteis foram crescentemente substituídos como principais produtos
de exportação pelos produtos siderúrgicos e químicos, semicondutores, logo
barcos, televisores, carros etc. Já entre 1965 e 1987 a proporção das máquinas
no total das exportações subiu de 3 a 37% e a dos metais, de aço e de "outros
produtos de indústrias pesadas" de 10 a 18%, enquanto os têxteis desceram de 31
a 23%, os produtos primários de 34 a 7% e os "outros produtos das indústrias
ligeiras" de 21 a 15% (Lorot e Schwob: 29). Depois, outros produtos de mais
alto nível tecnológico lograram preeminência nas exportações coreanas, entre
eles os carros, agora exportados em grandes quantidades aos mercados do mundo,
enquanto ainda hoje têm quase um monopólio no mercado nacional. Em poucos anos
a Coréia tornou-se, como o Japão antes, um dos principais exportadores de
alguns dos produtos mais emblemáticos do século XX, como os enormes barcos
petroleiros, de contenedores e outros, que reclamava o comércio mundial para
sua rápida expansão. E como conclui um analista chileno, não foi tanto o
crescimento das exportações per se que fez dos países como a Coréia casos de
economia bem-sucedida, senão o crescimento das exportações conjuntamente com a
sua diversifição, dando lugar a maiores capacidades produtivas em geral, um
nível mais elevado de instrução e uma menor vulnerabilidade frente às crises
(Agosín: 217).
A tese de um desenvolvimento essencialmente "extensivo", quase "de tipo
soviético", apresentada por Krugman há uns quinze anos, não parece portanto
muito convincente, pois a productividade do trabalho conheceu também um
crescimento enorme com a rápida incorporação de mão-de-obra altamente
qualificada e de trabalho intensivo em P&D. Segundo cálculos de um autor
coreano, a produtividade cresceu fortemente tanto na substituição de
importações como na produção dirigida para a exportação, embora mais fortemente
na segunda: um bilhão de won de exportações podiam criar ainda 121 postos de
trabalho em 1975 e menos de 14 em 2000, em quanto um bilhão de won de
importações faziam perder quase 56 postos de trabalho em 1975 e só um pouco
mais que 12 em 2000. Estes números mostram que o peso relativo das exportações
na criação de emprego passou de ser importante - mais do dobro de empregos ali
criados que na produção para o mercado interno - a quase neutra, tendo-se
produzido uma ampla convergência de importações e exportações quanto a
combinação de fatores productivos utilizados nelas, ou seja, passou-se a um
comércio esencialmente intra-industrial, típico dos países da OCDE (Nam: 147-
9).
Também houve algumas reorientações após a forte crise do choque do petróleo de
1980 e suas conseqüências sobre o país já muito endividado, em particular para
maior abertura ao capital estrangeiro e liberalização comercial e financeira.
Mas ali justamente apareceram novas dificuldades, que levaram à pior crise do
país na sua história recente.
A crise de 1997-98: da euforia à beira do abismo
Em 1995 alguns novos problemas tinham aparecido. Após a forte subida da moeda
japonesa originada na pressão estadounidense vários anos antes, o iêne começou
a descer e fez cair a competitividade da Coréia frente ao seu vizinho cujas
exportações de produtos de nível tecnológico médio-alto recuperavam-se como
conseqüência da evolução das taxas de câmbio. Ao mesmo tempo, o boom da China
aumentava a pressão competitiva dos produtos industrias de baixo custo da mão-
de-obra. Agravaram-se, conseqüentemente, os desequilíbrios financeiros e o
endividamento já excessivo das empresas coreanas, tornando-se mais visível a
fragilidade do sistema coreano dos chaebols e da sua gestão financeira
aventureira apoiada na sua relação estreita com o sistema bancário controlado
pelo Estado.
Em 1996, a Coréia entrou na OCDE, o "clube dos países industriais ricos". No
ano seguinte, caiu na crise mais forte da sua história recente. Houve algumas
relações entre a sua admissão à OCDE e estes problemas, ligados em particular à
legislação do trabalho e à liberalização financeira.
A legislação laboral estava ainda, apesar da abertura democrática experimentada
a partir de 1987, bastante longe dos padrões dos países da OCDE, especialmente
em termos de atividade sindical permitida, e a alta freqüência de acidentes de
trabalho e de doenças laborais também indicavam condições pouco aceitáveis para
um país que queria ser considerado "desenvolvido". Estas insuficiências,
herança de décadas de regimes repressivos enfrentados ao irmão inimigo
comunista, constituiam um obstáculo sério à adesão da Coréia à OCDE, tanto mais
que em 1995-96, perante as dificuldades econômicas e tensões sociais
crescentes, houve mais retrocesso que avanço neste campo (Trade Union). A
situação geral era, em todo caso, a de um país onde os progressos econômicos
evidentes não tinham ainda sido acompanhados pelos avanços sociais
correspondentes em termos de direitos dos trabalhadores, e isto num contexto de
globalização que favorecia a transferência de certas actividades dos países do
Norte a alguns "novos países industriais" perféricos de mão-de-obra ainda
barata, mas já com uma productividade do trabalho semelhante à dos países
industriais maduros. Por outro lado, no sistema de trabalho industrial houve
importantes mudanças, dado que o taylorismo clássico estava sendo substituído
crescentemente pela produção flexível", e assim precisava-se uma mão-de-obra
também mais flexível do que acostumava ser na Coréia com seu sistema de
trabalho bastante rígido, semelhante ao japonês, onde predominava o emprego
vitalício: havia portanto fortes pressões para "flexibilizar" as relações de
trabalho, para poder dimitir mais facilmente o pessoal, o que também encontrou
bastante resistência.
Desde o começo dos anos 90, descrevem analistas do centro de estudos Focus on
the Global South de Bangkok, vários fatores tinham confluído para originar a
crise. Entre eles, a pressão dos EUA, que não queriam um "segundo Japão"
competindo com eles nos produtos industriais, e das instituições financeiras
internacionais, que levou o país a adotar uma política de liberalização
financeira e comercial causante de uma importante reorientação dos
investimentos para a especulação imobiliária e de um desequilíbrio rapidamente
crescente da sua balança corrente (Bullard et al: 100-09; Bello).
Também Joseph Stiglitz pensa que a liberalização financeira imposta pelas
pressões do FMI e do governo estadounidense tiveram o papel crucial na geração
da crise, ao estimular fortemente a especulação em setores não produtivos como
uma actividade exagerada de construção comercial, em quanto os investimentos
estrangeiros continuavam a ser desnecessários devido às altas taxas de poupança
nacionais, mas provocaram, por sua volatilidade, uma boa parte da crise que se
estava preparando (Stiglitz: 138).
Poucos meses após o começo da crise em julho de 1997 na Tailândia o efeito de
contágio já era fortíssimo na Coréia. Esta chegou então a ser, apesar da sua
situação geográfica e do seu nível de desenvolvimento bem superior, o país mais
exposto à crise originada no sudeste asiático: "El fin de un modelo" anunciou
um dos melhores diários europeus6.
"O Japão e o Ocidente devem decidir se vão jogar ainda mais dinheiro no poço da
Coréia do Sul, ou contemplar a possibilidade de um verdadeiro colapso político
e econômico", advertia The Economist sobre a "queda" do país, após o resgate
financeiro sem precedentes de 57 bilhões de dólares, liderado pelo FMI, com
participação dos Estados Unidos, do Japão e do Banco Mundial, dias antes das
eleições presidenciais que deram a vitória ao velho lutador pela democracia Kim
Dae-jung7. A crise teve um caráter tão extremo que fez dizer então a vários
especialistas que o milagre asiático" tinha chegado ao seu fim. Os títulos de
alguns livros editados nos seguintes meses sobre os tigres" são eloqüentes:
"Colapso da Ásia", "Tigres amestrados" etc (Garran; Gough; Jomo; Bello).
Este último foi talvez o mais acertado. O acordo com o FMI continha as receitas
habituais de maior flexibilização financeira e comercial, restrições
orçamentárias etc. Seu diretor geral Michel Camdessus, entusiasta da política
seguida então na Argentina, teria dito que a crise podia ser uma "benção"
obrigando o país a acentuar a desregulação financiera, a flexibilizar as
dimissões e a liberalizar ainda mais o comércio exterior e a entrada de
capitais estrangeiros8. O pacote financeiro condicionado a um tal acordo
permitiu finalmente uma estabilização da moeda que tinha caído a menos da
metade do seu valor, e da economia coreana em geral. Quase uma quinta parte das
instituições financeiras foram eliminadas e o governo utilizou, até ao ano
2003, 23% do PIB para recapitalizar os bancos e liberá-los dos créditos que
hoje chamariamos "tóxicos"; ao mesmo tempo, a propriedade estrangeira dos
bancos atingiu até um 59% em 2004, com o qual estes deixaram de ser os
instrumentos estratégicos da política do governo que tinham sido antes da crise
(OCDE, 2007a: 23). Muitas destas reformas, orientadas para os princípios de
mercado e da concorrência, e à redução dos elementos protecionistas, podiam,
com certeza, ser funcionais para a eficiência geral do modelo (OCDE, 2007a: 9-
11). Mas pode-se pensar também que aqui estavam colocadas as principais
sementes da próxima crise, que viria uma década mais tarde. Pode-se salientar
aliás que, contrariamente às propostas de hoje para enfrentar a crise mundial,
preconizava-se então não uma diminuição, mais uma subida das taxas de juros,
com efeitos evidentemente não anti-cíclicas mas tendentes a agravar a situação
na Ásia de 1997-98.
Em tudo caso, estes anos foram também de abertura democrática e de política de
distensão com a Coréia do Norte do novo presidente Kim Dae-Jung e de seu
sucessor Roh Moo-hyun, com suas históricas visitas à Coréia do Norte. Um
elemento emblemático dos novos tempos foi que a pena de morte, que existe ainda
hoje em quase toda Ásia, incluindo o Japão e a Índia, deixou até hoje de ser
aplicada, embora que não legalmente abolida.
A crise acual: chegou desta vez o fim do "milagre coreano"?
Nos últimos anos o ritmo do crescimento da economia diminuiu, mas continuava
ainda bastante maior que nos velhos países industriais. A crise de 1997/98 foi,
em todo caso, bastante rapidamente superada, embora que a um custo social
importante.
Após duas presidências orientadas para o centro-esquerda as eleições
presidenciais de 2007 levaram a uma forte reorientação à direita, mas quase
imediatamente foi aumentando a oposição ao novo presidente Lee Myung-Bak. A
atual crise vem de longe e só pode, sem dúvida, ser comprendida em relação à
anterior e às medidas liberalizantes tomadas antes e depois da mesma, e a
algumas fragilidades gerais do modelo coreano.
É verdade que o aumento dos preços do petróleo constituia - e provavelmente
voltará a constituir - um enorme desafio para a Coréia do Sul, que não tem
nenhuma produção local e é o quinto importador mundial. Resulta significativo
que na mesma página de um diário coincidiram, ainda antes do agravamento
recente da crise econômica mundial, dois artigos: o primeiro explicou que este
país estava preparando um grande pacote de estímulos de medidas fiscais e de
subsídios para enfrentar este grave problema, e o segundo anunciou que o
Brasil, agora com prováveis reservas de entre 40 e 50 bilhões de barris,
pensava tornar-se um dos maiores produtores de petróleo e criar um fundo
estatal de 200 ou 300 bilhões de dólares para evitar as conseqüências
inflacionárias típicas de uma economia petroleira9. Em julho, o governo coreano
anunciou medidas "de supervivência" para reduzir o comsumo de energia, um
tarefa essencial em um país onde a eficiência energética e ainda bem menor que
nos países industriais europeus, e no dia da festa nacional o presidente
conhecido como o bulldozer prometeu um "crescimento verde"10. Depois, o refluxo
dos preços deixou o país tranquilo neste aspecto, mas a queda ainda mais brutal
dos transportes marítimos originada na crise mundial teve um poderoso impacto
negativo sobre a Coréia, que representa 40% da construção mundial de barcos,
cuja demanda e preços caíram estrepitosamente11. Por outro lado, o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP) elogiou recentemente a Coréia do Sul
como o único dos países industriais a ter orientado suficientemente seu novo
pacote de estímulos fiscais anti-crise para as novas tecnologias verdes"; os
outros estariam, segundo os grupos ecologistas, perdendo amplamente esta grande
oportunidade12.
O debate pelo livre-comércio com os Estados Unidos tem vários aspectos. Entre
as dificuldades para chegar a um tal acordo está a força dos lobbies
particulares como aquele dos exportadores de carne: para que a Coréia possa
exportar seus carros aos EUA, por um valor estimado em vários bilhões de
dólares, teria de deixar entrar carne estadounidense por, de fato, bem menos de
um bilhão de dólares, mas isto encontrou objeções não só por razões de
interesses internos contrários senão também por medo de importar carne de "vaca
louca" com graves conseqüências para a saúde dos consumidores13. E as
turbulências iniciais tiveram alguma relação com decisões das autoridades
norteamericanas que se recusaram a aplicar exames regulares para determinar a
existência ou não do problema nos seus produtos de exportação14. Em todo caso,
ante a gravidade do assunto, se o presidente Bush adiou a sua visita em Seoul
em 2008. O tratado de livre-comércio esta assinado, mas não ratificado, e o
novo governo de Washington parece não concordar muito con seu conteúdo. Com a
União Européia há também negociações por um tratado de livre-comércio, mas
neste caso é a indústria automotriz européia que mostra fortes reticências
diante da alta competitividade atingida hoje pelos carros coreanos que tem
levado já a trocas comerciais fortemente desequilibradas neste setor15.
Os mistérios do Norte: qué virá após o "querido líder" Kim Jong-il?
Em 2008, a Répública da Coréia (do Sul) e logo a Répública Democrática e
Popular da Coréia (do Norte) festejaram seus respectivos 60 anos de existência.
Após a fratricida Guerra da Coréia dos anos 1950-53, com fortes implicâncias
internacionais, ficaram irmãs inimigas ferreamente opostas, embora que os
presidentes de centro-esquerda Kim Dae-jung e Roh Muh-jun descongelaram, com
sua Sunshine Policy, as relações glaciais com o Norte. Ambos fizeram visitas
oficiais ao Norte. Kim Dae-jung obteve o Prêmio Nóbel da Paz, e Roh lançou no
fim do seu governo um plano de ajudas massivas para revitalizar as decaídas
estradas, ferrovias etc. do Norte.
Com o governo conservador de Lee Myung-bak, que seguiu Roh, em 2008, esta
política de aproximação não foi totalmente abandonada, porque se teme uma queda
apocalíptica do regime do Norte, com conseqüências imprevisíveis incluindo uma
possível intervenção chinesa e uma provável fuga de milhões de pessoas para o
Sul. Agora a China também parece mais temer uma avalanche de refugiados norte-
coreanos16. Em meados dos anos 90, já havia uma fome catastrófica com centenas
de milhares de mortos, e nos próximos anos poderia, segundo algumas fontes,
produzir-se uma situação semelhante. Mas a política mais confrontativa de Lee
poderia deixar a própria Coréia do Sul em uma situação de relativo isolamento.
O Norte voltou à uma retórica agressiva contra o "regime de fantoches" do Sul,
e o perigo de uma confrontação militar parece hoje maior que nos últimos anos,
em uma das fronteiras mais militarizadas do mundo. Em ambos lados da zona
desmilitarizada de quatro quilómetros de cumprimento, tornada com o tempo
reserva ecólogica sui generis, há mais de um milhão de soldados nos arredores
imediatos.
Dado o carácter hermético e surrealista do regime do Norte pouco se sabe sobre
a sua realidade. A ausência de Kim Jong-il, de 67 anos, nas festas do 60°
aniversário da República, intensificou as dúvidas sobre seu estado de saúde.
Ele aparentemente teve um ataque cerebral, mas qué virá após o "querido líder",
filho do "grande líder" Kim Il-sung, quem governou o país com mão de ferro
desde 1945 até sua morte em 1994? Não há um sucessor evidente, e ninguém sabe,
pelo menos fora do país, quem vai ter a voz decisiva: militares, tecnocratas,
altos burocratas do Partido Comunista? Em todo caso, tensões muito vivas
mantém-se entre as duas Coréias, embora o novo governo de Washington seja menos
agressivo frente a Pyongyang do que foi o anterior, que tinha colocado este
país no seu famoso "eixo do mal" devido às suas ameaças de adquirir armas
nucleares e mísseis capazes de atacar o Japão ou ainda os Estados Unidos. O
governo de Bush teve ali uma grande responsabilidade, não somente porque a
aventura militar no Iraque tinha que dar maior vontade a Kim de obter tais
armas para evitar de sofrer a mesma sorte que Saddam Hussein, senão também por
violar um acordo prévio de vários países para ajudar a Coréia do Norte, em
troca para o abandono dos planos de adquirir armas nucleares, a resolver seus
problemas de abastecimento energético.
Elementos de um balanço e perspectivas
Seria difícil não concordar com um juízo global elogioso sobre o
desenvolvimento da Coréia do Sul no último meio século. Uma industrialização
tardia extraordinariamente bem-sucedida levou, em poucas décadas, o país da
pobreza comparável à da Índia para a prosperidade de um país industrial hoje
semelhante, em termos de desenvolvimento industrial e de renda per capita, aos
países da Europa do Sul, aos quais já supera em desenvolvimento tecnológico e
níveis de instrução. Só na Europa do Norte há proporções comparáveis da
população conectada à Internet. A pobreza visível - homeless, mendigos - existe
bem menos que em países muito mais ricos da Europa ou nos Estados Unidos,
favelas não se vêm, a delinqüência comum parece inexistente e o meio ambiente
bem menos deteriorado que em outros países da Ásia. Também não parecem existir
tensões religiosas entre budistas e a forte minoria cristã, apesar das críticas
opositoras ao presidente Lee por sua escolha de numerosos colaboradores
pertencentes a esta minoria. Detrás de tudo isto, há avanços espectaculares em
saúde e educação e uma distribuição da renda que, apesar das ditaduras do
passado, é geralmente mais equitativa que na Europa e sobretudo na América
Latina, nos Estados Unidos, na Índia ou na China de hoje. Existem mais
problemas de país rico que de país pobre, e de fato pareceria haver menos
destes que em países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha etc.
Há pontos fracos, mas as realizações são impressionantes. O sistema nacional de
educação produz um altíssimo número de profissionais e cientistas de alto
nível, e também se enviam numerosos estudantes aos Estados Unidos, quase tantos
como da China ou da Índia. Segundo os dados da Organização Mundial da
Propriedade Intelectual, a Coréia chegou em 2007 ao quarto lugar mundial no
registro de novas patentes, ainda longe, com certeza, detrás dos Estados
Unidos, do Japão e da Alemanha, mas superando já ligeiramente a França e a Grã-
Bretanha. São talvez em sua maioria patentes de adaptações de productos mais do
que verdadeiras inovações tecnológicas, mas ainda assim isto merece ser
destacado. Daí, a competitividade elevada do país com numerosos productos
industriais emblemáticos como carros - em janeiro de 2009 um modelo de Hyundai
foi eleito "carro do ano" em Detroit -, televisores, barcos e telefones móveis.
Um índice mais anedótico de progressos, neste caso médico-tecnológicos, é que a
Coréia recebe hoje numerosas japonesas que procuram operações de cirugia
estética. É evidente que convém seguir fazendo esforços para ficar competitivo
na "economia de conhecimento", enfrentar os desafios de uma sociedade em rápido
processo de envelhecimento e manter a coesão social que pode correr perigo,
ademais de tomar medidas de descentralização e de educação permanente (lifelong
learning), mas em todos estes campos o país parece, em termos gerais, estar
avançando bastante bem (Lee).
Um aspecto complicado é a evolução demógrafica: passou-se em uma geração de um
extremo para o outro, com um crescimento que tinha multiplicado a população por
seis em menos de um século e meio, passando a uma situação actual de
envelhecimento acelerado. Se há poucas décadas havia um aumento da população
rápido demais, agora existe uma situação bem diferente17. Houve portanto uma
política que deu certo mas provocou um problema novo. Segundo algumas
estimações, o custo típico de educação de uma criança -nas caríssimas escolas
privadas necessárias para torná-la competitiva"- teria aumentado em apenas uma
década de 8 para 14% de um orçamento familiar médio18, o que faz compreender
que muitos casais jovens hoje acham que não podem dar-se o luxo de ter filhos.
Também houve, durante muitos anos, mais nascimentos de bebês de sexo masculino
de que femenino, com o qual existe hoje um desequilíbrio tão grande em algumas
províncias que se estão "importando" números crescentes de mulheres de países
como a Tailândia ou o Vietnã. A pergunta existencial é se os progressos não
tiveram aqui um preço excessivo, como na Europa ou no Japão com suas populações
autóctonas já em descenso.
Um ponto essencial é como evoluirá o conjunto dos países da Ásia oriental. Até
há poucos anos, a Coréia era um dos muito poucos países sem acordo de livre-
comércio regional ou outro. Agora tem alguns com países como o Chile e
sobretudo os Estados Unidos, mas também, na área regional, houve um forte
crescimento do comércio no marco informal da "ASEAN+3" - Ásia sudoriental mais
China, Coréia e Japão -, que passou de 28.6% do comércio exterior total em 1990
a 39.4% em 2005 (Gochoco-Bautista: 738). A China é agora o principal sócio da
Coréia e também do Japão. Isto será um elemento importante para sair da crise
que, segundo um analista estadounidense, se parece mais àquela asiática de há
uma década que à de 1929: é devida, salienta, em particular à falta de
transparência e aos excessos do setor financeiro e ao crony capitalism -
"capitalismo dos amigos" (Eichengreen) -, que foram em grande parte corregidos
na Ásia após 1998, sob conselhos e pressões do Ocidente dando então lições de
capitalismo "responsável" aos asiáticos.
A maioria dos analistas acham hoje que a Ásia oriental - que recebeu a primeira
visita oficial da nova Secretária de Estado norteamericana, uma novidade da
história diplomática, igual que a primeira visita oficial ao novo presidente
por parte de um Primeiro Ministro japonês - poderá sobreviver melhor à crise
global (p. ex. Chaponnière; Mahbubani, 2008, 2009), porque aprendeu à sua
maneira as lições de Ocidente. Como sintetizou o presidente da Comissão da
União Africana, Jean Ping, nas Jornadas Européias do Desenvolvimento de fins de
2008 em Estrasburgo, a África seguiu as propostas ocidentais e afundou-se, mas
os países asiáticos as rejeitaram e desenvolveram-se. A Europa e Ocidente em
geral, sumidos na pior crise desde os anos 30, e certamente não por culpa de
outros, fariam bem, diz um analista de Cingapura, de aprenderem algumas coisas
da Ásia, em particular a forma de difundir o dinamismo de países como a China
atravês de toda uma enorme região (ASEAN etc.) - o que não se pode dizer da
Europa e dos seus vizinhos ao Sul do Mediterráneo - e compreenderem que "o gold
standard que Ocidente pensava deter no campo das regulações financeiras acabou-
se. Os asiáticos deram-se conta de que devem estabelecer seu próprio standard.
Os asiáticos também sabem que estão tornando-se os maiores beneficiários da
globalização e devem assumir uma maior responsabilidade na estabilização do
sistema econômico mundial (Mahbubani, 2008, 2009).
Dentro deste contexto global uma grande pergunta estrutural é como continuará a
Coréia do Sul na sua situação incómoda de frágil "camarão entre duas baléias".
Isso é, como manterá nichos suficientemente dinâmicos e viáveis nos mercados
mundiais entre o Japão high-tech e a China com seus salários baixos e seu nível
tecnológico rapidamente crescente. Sem contar que terá algum dia que absorber,
sem dúvida com bem maiores dificuldades que a Alemanha, a outra parte do seu
país. Com a crise actual terá que aumentar ainda mais os esforços para defender
seu lugar ou associar-se mais estreitamente com um ou vários de seus vizinhos e
sócios, e prever algum roteiro para uma mudança de régime na Coréia do Norte.
Houve uma cimeira aparentemente bem-sucedida dos presidentes coreano, chinês e
japonês em dezembro de 2008, com projetos concretos de cooperação e coordinação
mais estreitas entre os três países. Talvez eco desta aproximação, pouco depois
Toyota decidiu por primeira vez comprar aço coreano para a fabricação de seus
carros no próprio Japão, apesar das pressões protecionistas crescentes
resultantes da crise19. Os países da Ásia oriental e sudoriental tendem a
cooperar mais, embora que problemas políticos e outros compliquem esta
tendência. Isto é um elemento importante para enfrentar os desafios do futuro,
como é na América do Sul a cooperação regional por meio do Mercosul e de outras
iniciativas. Mas a Coréia, como outros países agora em recessão, também terá
que encontrar novos equilíbrios sociais e políticos internos e uma nova
combinação adequada entre mecanismos de mercado e ação do Estado para superar
os importantes problemas actuais. Ainda assim, não será tão cedo que a Coréia
chegue a justificar o seu velho nome de "país da manhã calma", que na realidade
não reflete, há mais de um século, muito bem a sua situação real.