O poder militar como instrumento da política externa brasileira contemporânea
Introdução
Neste artigo pretende-se responder a três perguntas: a) qual é a
instrumentalidade do poder militar para a condução da política externa de
Estados periféricos no pós-Guerra Fria?; b) qual é a instrumentalidade do poder
militar para a condução da política externa brasileira contemporânea?; e c)
como é possível aumentar o grau de articulação entre a política externa e a
política de defesa tendo por base cenários prospectivos que levem em conta a
interação entre os planos doméstico e internacional?
As respostas, ainda que parciais, às perguntas mencionadas são essenciais para
que seja factível discutir a temática da articulação entre as políticas externa
e de defesa a partir de um arcabouço conceitual mínimo. A necessidade de
exploração de conceitos basilares dá-se pela constatação de que os assuntos de
defesa carecem de tratamento mais aprofundado no Brasil. A repetição acrítica
de visões simplistas sobre o problema frequentemente empobrecem o (pífio)
debate público, reforçando esteriótipos e tornando adicionalmente
incompreensível para o cidadão comum questões relevantes que, por suas
implicações, deveriam ser objeto de análises sérias e informadas. Logo, este
texto possui um inevitável caráter didático, visando a contribuir para o
adensamento das discussões sobre o lugar do poder militar na política externa
de um Estado com as características peculiares do Brasil.
Definição de poder, poder militar e Estado periférico
Embora o poder seja uno, ele se manifesta sob as mais diferentes formas, nas
mais diferentes circunstâncias. Como relação social, o poder pode ser
compreendido no contexto de teorias do tipo agente/principal, já que é muitas
vezes possível determinar quem exerce o poder e quem sofre os efeitos daquela
ação. Essa possibilidade, contudo, deve ser encarada com cuidado. Tendo em
conta que uma das características intrínsecas do poder é seu caráter
relacional, em nenhuma circunstância haverá ações exclusivamente unilaterais -
em que o sujeito impõe sem resistência sua vontade a um objeto inerte,
indefeso. Em toda e qualquer relação, o alvo do poder (agente) terá a opção de
resistir àquele que o impõe (mandante). Quase sempre, agente e mandante
negociarão como a relação de poder ocorrerá, pois o primeiro, mesmo em posição
subalterna, geralmente possui alternativas capazes de modular o grau de
impositividade do segundo. Ademais, interessa ao mandante que seu
relacionamento com o agente seja o menos conflitivo possível, uma vez que
quanto maior o grau de consentimento do agente, maior será a efetividade e a
possibilidade de reprodução da relação de poder. Inversamente, quanto maior o
conteúdo de coerção, menor a efetividade e a reprodutibilidade da relação ao
longo do tempo.
Se é correto encarar o poder como capacidade que gera efeitos no plano das
relações sociais, deve-se admitir que ele não precisa ser efetivamente exercido
para produzir resultados. O poder de um mandante será tanto maior quanto maior
for sua capacidade de limitar a margem de escolha do agente. Este, consciente
da limitação, muitas vezes antecipa-se à ação daquele, fazendo sua vontade
antes mesmo que ela se manifeste. Portanto, o poder como potência representa
uma virtualidade que têm conseqüências palpáveis. No limite, não haveria sequer
a necessidade de que o poder existisse concretamente, uma vez que bastaria a
percepção da sua existência para a produção de efeitos - o que demonstra como o
aspecto perceptual é ele próprio uma das facetas mais importantes do poder. Em
vista disso, valeria abordar o que Scott classifica como os dois modos
fundamentais de poder: a influência corretiva e a persuasiva, associados,
respectivamente, ao que chama corrente principal e segunda corrente dos estudos
sobre poder.1 A corrente principal, influenciada por Weber, encara o poder como
um bem distribuído entre instituições, porém finito. A luta pelo poder
constituiria, assim, um jogo de soma zero, envolvendo níveis variados de
conflito. Para a segunda corrente, de outra parte, o poder seria antes de tudo
um meio de facilitação ou produção das relações sociais, estando disperso
através da sociedade. O poder representaria um jogo de soma positiva, em que
todos os atores intervenientes poderiam ser beneficiados.
Tanto a influência corretiva quanto a persuasiva constituem elementos centrais
das estruturas de dominação existentes nas sociedades. A dominação centrada na
influência corretiva realiza-se por intermédio da limitação do espectro de
possibilidades de ação do agente, seja na forma de coerção (empregada pelos
"leões"), seja na de incentivos positivos ou de sedução (empregada pelas
"raposas"). A dominação fundamentada na influência persuasiva, por sua vez,
opera por meio do comprometimento, da lealdade, da confiança, compondo uma
estrutura de formação discursiva. Esta pode ser subdividida em dominação
derivada do conhecimento ou expertise (empregada pelas "corujas") e dominação
derivada do direito de comandar (empregada pelos "ursos")2. A última é de
particular importância por salientar o papel da liderança como elemento fulcral
do exercício e da manutenção do poder.
Se se aceita que a influência corretiva do poder é por vezes mais saliente no
plano internacional do que no doméstico, passa a ser fundamental definir o
poder militar como etapa prévia ao estudo do seu lugar no relacionamento entre
as unidades estatais. Nye, por exemplo, sustenta que o poder militar expressar-
se-ia por meio de ameaças, permitiria a coerção, dissuasão e proteção, além de
dar origem a políticas governamentais como a diplomacia coercitiva, a guerra e
as alianças3. O autor em tela menciona também a capacidade persuasiva do poder
militar, que poderia, em situações específicas, gerar admiração, reconfortar,
proteger, auxiliar os desvalidos etc. Nye apóia, portanto, a tese da unidade
ontológica do conceito de poder. Assim, a força armada é passível de ser
utilizada tanto de forma direta (violência física) quanto indireta (meios não
violentos). Em sua versão indireta, aproxima-se da influência persuasiva tout
court, embora se diferencie dela, sobretudo, por utilizar instrumentos
distintos: o poder militar necessita de uma base material, ao passo que a
persuasão levada a cabo pelas corujas ou pelos ursos é antes de tudo uma
formação discursiva. Logo, a força armada, enquanto pilar da influência
corretiva, constitui elemento indissociável do poder lato sensu.
Com base no acima exposto, um Estado periférico pode ser simplificadamente
caracterizado a partir de seu não pertencimento ao núcleo central do
capitalismo. Como corolário dessa exclusão, um Estado periférico apresentará
disparidades domésticas em escala variável, porém mais acentuada do que a
encontrada nos países centrais. A base institucional dos Estados da periferia
tenderá a ser mais frágil que a do centro, assim como sua vulnerabilidade a
influências externas. Não raro, essas fragilidades refletir-se-ão na existência
de instabilidade doméstica - fato que representa preocupação adicional para os
formuladores das políticas de segurança e defesa dos países periféricos. Assim,
levando em conta a rationale desenvolvida até este ponto, infere-se que o poder
militar é relevante para os países periféricos. Em não raras oportunidades,
dada a tibieza institucional prevalecente na periferia, a força armada,
encarnada nos exércitos nacionais, constitui a principal barreira à
fragmentação pura e simples do Estado.
No entanto, a capacidade defensiva da periferia quase sempre se encontra
limitada por constrangimentos diversos. Dada a heterogeneidade existente entre
os Estados periféricos, pode-se conceber um contínuo de atribuição de
importância ao poder militar que variará de acordo com a dotação de recursos de
cada unidade, seus diferentes contextos domésticos e as estruturas material e
social prevalecentes no sistema internacional, em geral, e no complexo de
segurança regional (CSR) em que estiverem inseridos, em particular. Em outras
palavras, quanto mais "insumos de poder"4 um determinado país periférico
detiver e quanto mais encarar as relações interestatais a partir de um ponto de
vista de inimizade-rivalidade, maior será sua tendência a priorizar a força
armada. Por outro lado, aos países da periferia desprovidos desses insumos
pouco resta além da manutenção de um quantum mínimo de poder militar passível
de ser utilizado na garantia de sua segurança doméstica.
O Sistema Internacional Contemporâneo
Para que seja possível compreender o papel do poder militar nas Relações
Internacionais (RI) contemporâneas, é imprescindível deixar claro qual moldura
teórica fornecerá os parâmetros a partir dos quais a realidade mundial será
interpretada. O construtivismo wendtiano parece um bom ponto de partida com
vistas à superação do impasse representado pelas profecias auto-realizáveis do
neo-realismo. No entanto, conforme argumenta Barry Buzan, a teoria de Wendt
ganha capacidade preditiva se incorporar alguns elementos do realismo.5 Para o
primeiro, o sistema internacional seria passível de melhor compreensão se os
cálculos de polaridade fossem acrescidos de considerações sobre a identidade
dos principais atores estatais.6
De modo a justificar seu esquema conceitual, Buzan procurará definir os termos
em que a inter-relação polaridade/identidade se processa no mundo atual. Nesse
sentido, uma de suas contribuições mais importantes é a de tentar delimitar o
que chama de "teoria da polaridade complexa". Para tanto, desenvolve uma
tipologia em que são diferenciados três tipos de Estados: superpotências,
grandes potências e potências regionais.7 As superpotências teriam as seguintes
características: possuem interesses globais multifacetados e são capazes de os
defender das mais variadas maneiras, em qualquer parte do mundo, sobretudo por
meios ideológicos, político-militares e/ou econômicos; da mesma forma, são
percebidas pelos demais atores relevantes da cena internacional como
possuidoras do estatuto de superpotência e atribuem a si próprias esse estatuto
- tendo peso decisivo na conformação da ordem mundial em seus diversos
aspectos. As grandes potências, por sua vez, teriam o seguinte perfil: seu
espectro de atuação externa não tem alcance verdadeiramente global, ou o tem
somente em setores específicos; a grande potência é aquela que é percebida
pelos demais Estados como possível futura candidata ao estatuto de
superpotência ou, em outro sentido, como superpotência declinante. Finalmente,
as potências regionais são Estados cujas capacidades representam dados
fundamentais para o equilíbrio de uma região, mas que não exercem papel
sistêmico relevante; a importância regional desse tipo de potência permite que
sejam capazes de atuar como mediadoras entre o plano intenacional e a sua zona
imediata de influência.
Com os elementos acima mencionados em mente, o autor afirma haver uma
distribuição de pólos clara no pós-Guerra Fria: uma superpotência (EUA)
acrescida de quatro grandes potências (UE, Japão, China e Rússia).8 O esquema 1
+ 4 teria a vantagem de melhor especificar a distribuição de poder e a
distinção qualitativa entre super e grandes potências. De acordo com Buzan,
ainda que a redução da análise a apenas cinco atores, que representam o núcleo
duro da estrutura do sistema internacional, seja útil, ela continuaria
permitindo um número muito grande de resultantes. Para diminuir a complexidade
que derivaria de suas várias configurações possíveis e gerar predições mais
robustas, o esquema 1 + 4 deveria ser acompanhado da determinação das
identidades dos atores e de sua inter-relação. A melhor forma de fazê-lo seria
por meio da construção de cenários. De maneira geral, Buzan utiliza os
princípios das três culturas da anarquia propostas por Wendt (inimizade,
rivalidade e amizade) para caracterizar o sistema internacional. O faz,
contudo, sem optar por um princípio unívoco, considerando viável que dois
princípios convivam simultaneamente, desde que não representem extremos do
contínuo. Inimizade e rivalidade poderiam coexistir, da mesma forma que
rivalidade e amizade. O sistema internacional contemporâneo seria, em sua
opinião, marcado pela predominância de uma cultura da anarquia calcada em
relações de rivalidade/amizade. A despeito dessa demarcação genérica, seria
igualmente necessário determinar os traços mais importantes da identidade dos
atores gerados no plano doméstico - forma de especificar de que modo aquela
exerceria influência sobre a cultura da anarquia dominante - bem como sua
estabilidade. 9
Assim, passa a ser crucial para o entendimento do futuro do sistema
internacional determinar se a identidade americana se transformará de modo a
reverter a percepção de ego e alter prevalecente até o 11/9. Note-se que,
apesar das identidades tenderem a se estabilizar em padrões relativamente
estáveis, elas podem mudar mais rapidamente do que o poder. A ocorrência de
eventos imponderáveis de grande impacto, como os atentados terroristas contra
Nova Iorque e Washington, são capazes de contribuir para o início ou o
aprofundamento de mudanças no perfil identitário de uma nação. Embora essas
transformações jamais sejam imediatas, é possível conceber que se processem em
anos, enquanto modificações não-violentas (e.g. por meio de variações de poder
econômico) do ranking das principais potências levam décadas para se
materializarem. Nesse sentido, a guinada agressiva na política externa norte-
americana pós-11/9 não pode ser explicada como simples derivação de um
incremento do poder dos EUA, o que claramente não poderia ocorrer de forma
instantânea, ou como uma reação "necessária" à agressão sofrida.10 A assunção
de um perfil imperial por parte dos policy-makers daquele país valeu-se do
mesmo "estoque" de poder disponível anteriormente, resultando do fortalecimento
de corrente de opinião que concebe a identidade nacional norte-americana como
insegura, moralmente superior e belicosa.
Buzan supõe que, em função da profunda implantação dos valores liberais,
dificilmente a sociedade dos EUA aceitaria assumir os custos políticos,
econômicos e morais do imperialismo. No entanto, o espectro de possibilidades
relacionadas à identidade da única superpotência permanece vasto. Se as
suposições de Buzan estiverem corretas, a configuração do sistema internacional
contemporâneo não deve sofrer modificações substanciais a médio prazo. A
perdurar o esquema 1 + 4 em seus lineamentos essenciais, pode-se sustentar que
o futuro nível de conflitividade do sistema internacional deverá permanecer
moderado no que se refere às guerras entre Estados.11 Não há razão para
acreditar, contudo, que as disparidades entre países e entre classes dentro de
países venham a diminuir. A manutenção dessa circunstância, acrescida do
aprofundamento das contradições intrínsecas aos Estados periféricos em um
contexto de crise dos tradicionais paradigmas de governança, indica a
permanência de fortes tensões sociais no mundo em desenvolvimento. Logo, a
eclosão de guerras civis e movimentos insurrecionais deverá continuar a ser um
elemento constante da paisagem internacional - o que permite supor que as
operações de manutenção da paz se manterão importantes. Deve-se considerar,
também, a instabilidade que o chamado terrorismo "catastrófico"12 pode gerar
tanto na periferia quanto no centro do sistema e o fato de que a proliferação
de armas de destruição em massa deverá manter-se como um possível foco de
conflito.
A despeito do quadro anteriormente delineado, é preciso mencionar algumas
tendências que podem vir a modificar o seu sentido geral. Sinteticamente, essas
tendências poderiam ser assim enumeradas: a) aprofundamento do fosso
tecnológico entre os exércitos de países desenvolvidos e em desenvolvimento,
com ênfase nas transformações suscitadas pelo aumento do alcance, letalidade,
precisão e automação dos sensores e plataformas de combate - além da
perspectiva iminente de militarização do espaço; b) intensificação dos efeitos
da degradação ambiental sobre os ecossistemas, além da aparente aceleração da
mudança climática e da redução das fontes de suprimento de água potável; c)
progressivo esgotamento das reservas conhecidas de matérias-primas essenciais
como o petróleo; d) ampliação do número de cidadãos de países pobres em relação
ao número de cidadãos de países ricos, causada pelas baixas taxas de natalidade
encontradas nos primeiros; e) ampliação do diferencial de renda entre países
ricos e pobres.
Em síntese, a configuração das relações interestatais deve manter um perfil
próximo ao atual até 2020. Contudo, as ameaças não-estatais, como o terrorismo,
e os problemas resultantes da escassez de matérias-primas, do desequilíbrio
ambiental e da disparidade de poder podem vir a gerar choques violentos -
particularmente entre centro e periferia. A força armada, nesse contexto,
continuará a ser importante. A fungibilidade do poder militar deverá ser
moderada, mas de forma alguma igual a zero. A competição entre Estados não será
eliminada e, por conseguinte, os usos indiretos da força armada permanecerão
operacionais.
O complexo de segurança da América do Sul
De acordo com Buzan, Waever e de Wilde, um complexo de segurança regional
poderia ser definido da seguinte forma: "(...) um grupo de unidades cujos
principais processos de securitização, dessecuritização, ou ambos, estão tão
interligados que os seus problemas de segurança não podem ser corretamente
analisados ou resolvidos independentemente um do outro."13 Assim, ao abordar a
problemática de segurança da América do Sul, pretende-se contextualizar o
ambiente estratégico primordial em que o Brasil está inserido. Nesse sentido,
parecem não restar muitas dúvidas de que o subcontinente encontra-se entre as
regiões menos violentas do planeta quando se considera a ocorrência de
conflitos interestatais. Ao longo do século XX, especialmente a partir de 1950,
as guerras têm sido esporádicas, curtas e pouco mortíferas.14
O quadro sucintamente esboçado acima poderia sugerir que está em marcha a
consolidação de uma comunidade pluralista de segurança na região ou até mesmo
que a cultura da anarquia prevalecente nesta última ter-se-ia estabilizado em
torno de uma lógica kantiana. Conforme será possível perceber adiante, esse não
parece ser o caso. Além da dificuldade intrínseca em mensurar o grau de
internalização da cultura da anarquia dominante, o simples fato de haver
reduzido número de guerras não exclui a dimensão corretiva do poder das
relações entre os Estados sul-americanos. David R. Mares, por exemplo, aponta a
insuficiência da análise do relacionamento de segurança entre os países da
região unicamente baseada na dicotomia guerra/paz.15Para ele, esta última teria
como consequência o mascaramento de uma ampla gama de possibilidades de
utilização do poder militar que precedem o conflito bélico propriamente dito.
Contrariamente ao senso comum, as estatísticas de que Mares faz uso dão conta
de que, entre 1945 e 1997, a América Latina foi palco de três guerras
interestatais (duas na América do Sul e uma na América Central). Esse número é
maior, por exemplo, do que o registrado na África (duas), Nordeste da Ásia
(uma) e América do Norte (nenhuma).16 No período acima aludido, somente o
Oriente Médio, em que ocorreram nove guerras, pode ser considerado
significativamente mais tendente à guerra que a América Latina.
É com base nessa constatação que Mares procura comprovar sua tese de que
predominaria na América Latina uma "paz violenta". Entre 1884 e 1993, teriam
havido 237 episódios de disputas interestatais militarizadas (DIMs) na região -
110 na América Central e 127 na América do Sul. No período que vai de 1980 a
1997, correspondente ao retorno da democracia à maioria dos Estados latino-
americanos, teriam ocorrido 52 DIMs - sendo que 16 delas, ocorridas depois de
1990, se deram entre díades democracia/democracia.17 Se esses dados estiverem
corretos, poder-se-ia afirmar que o subcontinente sul-americano não é tão
pacífico quanto a resultante de uma análise baseada na dicotomina guerra/paz
quer fazer crer. Na verdade, os dados compilados por Mares indicam que a
América Latina, em geral, e a América do Sul, em particular, possuem nível de
conflitividade interestatal intermediário. O trabalho por ele realizado
confirma, não obstante, a baixa tendência à escalada dos conflitos até seu
limite lógico. Em qualquer circunstância, os elementos mais importantes do
ponto de vista do estudo que aqui se realiza, derivados de "Violent Peace", são
aqueles relacionados ao questionamento de uma visão idílica sobre a segurança
na América do Sul. A despeito dessas considerações, que matizam a idéia de uma
região fundamentalmente pacífica, deve-se admitir que as questões de segurança
do subcontinente não são cruciais para o equilíbrio do sistema internacional.
O papel do Brasil no entorno sul-americano do ponto de vista da segurança
O Brasil desempenha papel primordial na conformação do CSR da América do Sul.
Na condição de potência regional periférica, interessa-se pela manutenção da
estabilidade no subcontinente como forma de evitar o desvio de recursos
diplomáticos escassos para o tratamento de temas não diretamente relacionados à
problemática do desenvolvimento. Nesse sentido, a política externa brasileira
apresenta-se fundamentalmente como defensora do status quo no que se refere às
questões de segurança da região. A satisfação territorial e a não securitização
de ameaças emanadas dos países lindeiros permitem que o País priorize a
dimensão do desenvolvimento em detrimento da dimensão estratégico-militar,
tendo em vista a persistência de grandes disparidades sociais no plano
doméstico.18 Logo, as políticas externa e de defesa têm-se caracterizado, ao
menos no passado recente, por grande cautela quanto à afirmação de aspirações à
liderança ou hegemonia.19
Pode-se argumentar que haveria uma rationale implícita na postura brasileira de
fomento da estabilidade regional e de negação de pretensões hegemônicas. Essa
basear-se-ia na percepção de que as desigualdades sociais representam um
handicap à participação nacional em questões que envolvam o uso ou a
possibilidade de uso do poder militar.20 De outra perspectiva, a adoção de
atitudes mais assertivas, no campo da segurança, poderia ser contraproducente
para o avanço dos interesses econômico-comerciais brasileiros, ao dar ensejo a
ressentimentos e desconfianças nos Estados vizinhos. Logo, a diplomacia
nacional, desde ao menos a gestão do Barão do Rio Branco, buscou evitar a
eclosão de conflitos na América do Sul, valendo-se do tradicional repertório do
jurisdicismo latino-americano.21 Nessa linha, o processo de integração das
economias do subcontinente, impulsionado nos anos 90 pelo Mercosul, parece ter
constituído elemento de reforço da lógica não-confrontacionista brasileira.22
A menção anterior à existência de uma rationale "implícita" ao não-
confrontacionismo foi proposital. Ela deriva da noção de que essa possui um
forte aspecto tático ou contingente. Se, por um lado, é lícito defender a tese
de que a busca da conciliação de interesses antagônicos encontra respaldo na
identidade nacional, por outro, é perfeitamente plausível sugerir que ela
ocorre em razão das debilidades do poder brasileiro ao longo do século XX. O
patrono da diplomacia não poderia ser mais explícito: "Os meios persuasivos
são, a meu ver, os únicos de que se lança mão, para sair-se bem de negociação
complicada como esta (litígio com a França sobre o Amapá), uma nação como o
Brasil, que ainda não dispõe de força suficiente para impor sua vontade a uma
grande potência militar."23 Em outras palavras, não só a estrutura de idéias
seria responsável pela política externa conciliatória do País, mas também a
estrutura material. Ademais, se parece certo que a tradição jurisdicista da
política externa nacional corrobora o não-confrontacionismo, o realismo também
o faz por motivos distintos.24 Pela lógica desse último, esposada por Rio
Branco, é justamente a ausência de recursos de poder, em escala adequada, que
indica o acerto da busca da resolução pacífica dos conflitos.
Logo, a preponderância da diplomacia sobre as Forças Armadas, no Brasil,
resulta da conjunção de uma identidade nacional conciliatória com a
persistência de um arranjo de polaridade específico em que falta à potência
regional capacidade efetiva de projeção multidimensional de poder. Ainda sobre
a moderação da política externa brasileira, caberia tecer algumas considerações
que coloquem em perspectiva a sua influência sobre a baixa prioridade atribuída
ao fortalecimento da capacidade de defesa nacional. Em primeiro lugar, deve-se
discutir o que "moderação" significa. Pode-se dizer que o termo teria dois
significados normativamente distintos. Concebido como prudência, temperança,
precisão, claridade de julgamento, esse construto poderia ser considerado
essencialmente positivo para a condução de qualquer política externa. Encarado
como sinônimo de indecisão, tibieza, ausência de resolução, o termo adquiriria
conotação negativa. Diante disso, a moderação só pode ser tomada como um valor
a ser perseguido se for compreendida em seus aspectos virtuosos. Nenhuma das
características positivas do construto implica o abandono da política de defesa
como um tema de fundamental importância. Em resumo, deve-se ter presente que
não há uma relação necessária entre uma política externa baseada em valores de
conciliação/moderação e a fragilidade militar do País.
O parágrafo anterior serve de caveat em relação a um argumento encontrado nas
discussões menos informadas sobre a relação entre política externa e política
de defesa no Brasil: o de que haveria uma perfeita harmonia entre a tradição
conciliatória mencionada alhures e a fragilidade militar do País. Dito de outra
maneira, essa rationale equivocada supõe a existência de simetria exata entre
as duas políticas públicas. A inconsistência desse argumento é flagrante, uma
vez que pressupõe a existência de uma capacidade de planejamento de políticas
públicas improvável, bem como de um nível sem precedentes de subordinação da
política de defesa à política externa. Ademais, esse raciocínio desconsidera o
fato de que o País, desde a independência em 1822, nunca contou com um aparato
de defesa verdadeiramente relevante.25 Em última análise, a rationale em
questão vê ordem onde impera a ausência de ordem, o que apenas serve para
mascarar os problemas que dizem respeito ao insuficiente grau de articulação
entre as políticas em tela.
Entraves domésticos à condução da política de defesa
Esta seção tem por objetivo utilizar os elementos contextuais anteriores como
moldura a partir da qual seja possível agregar a influência decisiva dos
fatores domésticos sobre a política de defesa brasileira. Parte-se aqui do
axioma básico de que o plano doméstico é mais relevante do que o internacional
para a produção da política de defesa. Isso ocorre em função do fato de que os
inputs emanados do CSR sul-americano e do nível sistêmico não são
suficientemente intensos para suplantar a preponderância da dinâmica
burocrática relacionada à gestão dos assuntos militares no Brasil. Assim, a
ausência de securitização de ameaças advindas do exterior faria com que a
problemática castrense estivesse essencialmente condicionada pela lógica da
política doméstica. Nesse sentido, o próprio subdesenvolvimento institucional
do País contribuiria para que houvesse dificuldades intrínsecas na tradução de
incentivos externos em políticas públicas capazes de lhes dar respostas
eficazes. Partindo desse pressuposto, encontram-se no plano interno as razões
primordiais para a configuração da política de defesa tal qual praticada desde
o fim da Guerra Fria.
Tendo em conta a breve contextualização precedente, pode-se sugerir que alguns
fatores são instrumentais para a baixa prioridade atribuída aos temas de defesa
no Brasil pós-autoritário: a limitada capacidade de proposição e de
fiscalização de políticas públicas complexas por parte do poder Legislativo, a
ênfase conferida à problemática do desenvolvimento, a falta de interesse por
assuntos militares em função do insulamento burocrático e do histórico de
intervenção das Forças Armadas na política, a ausência de securitização de
ameaças externas e a maior intensidade da percepção de ameaças internas. Sobre
este último fator, deve-se admitir que a dimensão adquirida pela questão da
segurança pública26 pode ser considerada um dos mais importantes componentes da
percepção socialmente compartilhada de que as principais ameaças ao Brasil
partem do plano interno,27 incidindo pesadamente sobre as questões de defesa
nacional - uma vez que estas não são vistas como prioritárias.
Os elementos previamente explorados, aliados à suposição de que o CSR sul-
americano não seria conturbado o suficiente para levar à securitização de
ameaças externas, fazem com que a política de defesa nacional seja fortemente
condicionada pela dinâmica inercial das ações das três forças. Essa dinâmica
foi mantida em seus traços essenciais desde 1989 até os dias de hoje - apesar
da implantação do Ministério da Defesa (MD), que permanece incapaz de exercer
direção efetiva sobre as Forças Armadas.28 Esse fato torna extremamente difícil
considerar que as modificações institucionais ocorridas no setor, desde o fim
da Guerra Fria, tenham resultado em uma política de defesa renovada. Assim,
cada força singular persegue seus próprios objetivos sem preocupação com a
compatibilidade, coerência e racionalidade de suas ações em relação às
políticas setoriais das demais forças. Sem diretrizes unificadoras claras
emanadas do Executivo ou do Legislativo, a política de defesa permanece
implícita, não-coordenada e incoerente ao longo do período estudado.
Entraves à articulação entre as políticas externa e de defesa
Na seção anterior, procurou-se demonstrar a existência de uma série de entraves
que dificultam a condução virtuosa da política de defesa. Nesta seção, por sua
vez, pretende-se identificar os fatores que contribuiriam para que a
articulação daquela com a política externa também esteja muito aquém do
desejável. Antes, contudo, faz-se imprescindível explorar o que se entende por
articulação e como seria possível estabelecer um parâmetro para determinar se
as políticas externa e de defesa estariam ou não convenientemente articuladas.
No presente estudo, compreende-se o conceito aludido como a coordenação entre
as duas políticas públicas antes mencionadas visando a maximização dos ganhos
(ou minimização dos prejuízos) da ação internacional do Brasil. Nesse sentido,
deve-se admitir que a mensuração precisa dos ganhos do País, decorrentes da
maior ou menor articulação entre as políticas externa e de defesa, é
problemática. Ela, contudo, pode ser estimada por meio de estudos de caso.
Feitas essas considerações preliminares, torna-se forçoso admitir que, no
Brasil, se registra um grau de articulação insuficiente entre as políticas de
defesa e externa. Essa suposição aplica-se ao período abrangido por este
trabalho, mas poderia provavelmente ser estendida como representação da
realidade pré-1989.29 Uma complexa gama de fatores contribui para que tal
ocorra. Contudo, com o objetivo de manter o sentido de síntese deste estudo,
serão aludidos apenas quatro fatores que ajudam a explicar o por que da
insuficiência acima mencionada: a baixa prioridade da política de defesa, a
ausência de direção política efetiva sobre a política de defesa, o perfil não-
confrontacionista da política externa e a ausência de mecanismos operacionais
de articulação entre as duas. Os fatores apontados inter-relacionam-se, sendo
difícil definir o peso relativo de cada um para a existência do fenômeno em
análise. Por constituir foco não essencial da presente seção, essa definição
não será levada à frente.
Os quatro fatores sumariamente apontados acima somam-se de forma a criar uma
série de entraves à articulação entre duas políticas de Estado essenciais - ou
que, ao menos, deveriam sê-lo - para a inserção internacional do Brasil.
Levando em conta o período pós-Guerra Fria, é lícito afirmar que a política
externa sofreu modificações importantes a partir da gestão Collor. O mesmo,
contudo, não ocorreu em relação à política de defesa. Logo, as linhas de
continuidade permaneceram muito mais fortes no âmbito militar do que no
diplomático, o que faz supor que se produziu durante o período uma disjunção
cada vez maior entre as políticas em tela. Esta só não se transformou em
problema de relevo em face do baixo perfil estratégico do País e do entorno
relativamente benigno existente na América do Sul, tendo perdurado a ausência
de direção política clara, a ausência de projeto de forças integrado, a
ausência de mecanismo efetivo de coordenação diplomático-militar etc. Assim,
pode-se inferir que, desde 1989, o discreto perfil estratégico brasileiro foi
instrumental para abafar as inconsistências de articulação existentes entre as
políticas externa e de defesa.
O Brasil e o mundo em 2020: cenários
Tendo em vista o exposto e o fato de que se busca conhecer as grandes linhas
tendenciais que permitam a extrapolação das feições prováveis das políticas
externa e de defesa na próxima década e meia, a utilização dos cenários
consubstanciados no exercício 'Brasil 2020', de 1997, não representa obstáculo
intransponível.30 Esses cenários, contudo, serão compatibilizados com a
situação prevalecente nos campos das políticas externa e de defesa, em 2009,
que segue abaixo:
Política Externa em 2009
Mantém inalterada a busca de insumos para o desenvolvimento; Grande ênfase
conferida ao processo de integração regional; Ênfase atribuída à rodada de
negociações comerciais no âmbito da OMC; Busca de ampliação de relações
comerciais com mercados não-tradicionais; Prioridade para a conquista de um
assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU);
Prioridade atribuída às parcerias com grandes Estados da periferia; Ampliação
da participação brasileira em peacekeeping operations (MINUSTAH); Cobrança dos
compromissos das grandes potências em relação aos regimes internacionais de
não-proliferação (e.g. TNP), mas sem ruptura com esses regimes;
Política de Defesa em 2009
Manutenção do baixo perfil militar do País; Incapacidade do MD de exercer
coordenação efetiva sobre as forças singulares e seus orçamentos (o que se
espera venha a mudar, caso a Estratégia Nacional de Defesa - END - seja
efetivamente implementada); Políticas setoriais naval, terrestre e aérea com
baixo grau de articulação sistêmica; Virtual falência financeira das forças
singulares;31 Avançado grau de obsolescência material; Baixa disponibilidade
das plataformas de combate; Nível geral de adestramento abaixo do mínimo
necessário;
A partir do conhecimento hodierno e da síntese apresentada acima, pode-se,
então, extrapolar a plausibilidade de cada um dos cenários do Brasil 2020.
Nesse sentido, o Cenário Abatiapé (positivo) possui baixíssima plausibilidade,
o Baboré (intermediário) média/baixa e o Caaetê (negativo) média/alta.
Política externa e política de defesa brasileiras, visões alternativas
Nesta seção, pretende-se realizar duas tarefas inter-relacionadas. A primeira é
de cunho essencialmente normativo e prende-se à necessidade de definir o que
seria a melhor articulação possível entre as políticas externa e de defesa
brasileiras. Essa definição permitirá que se coteje suas características com
aquelas decorrentes da articulação entre ambas as políticas em cada um dos
cenários exploratórios. A caracterização dessas últimas, em função do contexto
específico dos cenários, constitui a segunda tarefa a ser realizada.
No caso de uma potência regional periférica como o Brasil, em que prevalecem
sérias disparidades sociais, o aumento das margens de autonomia e de soberania
não poderá estar centrado apenas no incremento do poder militar. Este, porém, é
imprescindível para que o desenvolvimento nacional possa seguir seu curso sem
interferências externas cerceadoras. Da mesma forma, ele é crucial para ampliar
as possibilidades de atuação internacional brasileira. A inexistência de
incompatibilidades fundamentais entre os valores esposados pela população local
e a da superpotência - único Estado com reais capacidades de coagir o Brasil
militarmente - faz com que não haja demanda imediata no sentido da construção
de um aparato dissuasório capaz de impedir uma eventual tentativa de coerção
norte-americana.32 A despeito do que precede, a posse de uma limitada mas
crível força de dissuasão convencional já seria suficiente para dar conta das
principais necessidades de defesa do País na próxima década e meia. Uma
capacidade de dissuasão com esses contornos poderia não só tornar mais custosa
qualquer ação militar contra interesses brasileiros, mas também contribuir com
o esforço de desenvolvimento econômico propriamente dito.
Tendo em consideração a importância desses dois valores para o desenvolvimento,
o autor sustenta que todos os demais devam estar, em princípio, subordinados a
eles.33 Logo, uma das facetas mais relevantes da articulação entre as políticas
externa e de defesa tem a ver com a própria admissão de que a primeira precisa
contar com a segunda! Essa suposição não é tão óbvia assim no caso brasileiro,
em que prevalece um enorme desconhecimento sobre temas militares e uma
perspectiva ingênua sobre a instrumentalidade da força armada. Estabelecido
esse princípio básico, a articulação ideal deveria obedecer a alguns
parâmetros: (I) existência de mecanismos formais e informais de diálogo entre
as burocracias envolvidas na formulação e na implementação das duas políticas
aqui estudadas; (II) os mecanismos existentes devem ser fluidos e consequentes;
(III) o diálogo institucional proporcionado por esses mecanismos deve ser
plenamente congruente com as diretivas emanadas do Presidente da República -
Comandante em Chefe das Forças Armadas e responsável último pela política
externa - e com a Constituição Federal; (IV) a implementação das duas políticas
deve ter por base não somente objetivos de curto, mas também de médio e longo
prazos - derivados de amplo consenso político sobre a "grande estratégia"
nacional34; (V) a implementação das políticas deve ser a mais congruente
possível, de modo que uma não venha a minar a outra;
Logo, a articulação mais provável entre as políticas externa e de defesa seria
a seguinte em cada um dos cenários anteriormente alinhavados:
Cenário Abatiapé - articulação entre PEXT e PDEF
Existência de mecanismos formais e informais de diálogo entre as burocracias
envolvidas na formulação e na implementação das duas políticas; Mecanismos
existentes são relativamente fluidos e consequentes; Diálogo institucional é
bastante congruente com as diretivas emanadas do Presidente da República e da
Constituição Federal; Chega-se a consenso abrangente sobre uma grande
estratégia nacional que parametriza a implementação das PEXT e PDEF no médio e
longo prazo; Implementação das políticas é relativamente congruente entre si;
Constrói-se capacidade dissuasória com credibilidade suficiente para impedir
tentativas de coação militar; PEXT utiliza com frequência os instrumentos
proporcionados pela PDEF; PDEF amplia a capacidade de barganha da PEXT;
Cenário Baboré - articulação entre PEXT e PDEF
Existência de mecanismos formais e informais de diálogo entre as burocracias
envolvidas na formulação e na implementação das duas políticas; Mecanismos
existentes são relativamente fluidos e consequentes; Diálogo institucional é
relativamente congruente com as diretivas emanadas do Presidente da República e
da Constituição Federal; Não se chega a consenso abrangente sobre uma grande
estratégia nacional que parametrize a implementação das PEXT e PDEF no médio e
longo prazo, mas algumas diretrizes são objeto de acordo; Implementação das
políticas é relativamente congruente entre si; Constrói-se capacidade
dissuasória limitada, mas suficiente para dificultar tentativas de coação
militar; PEXT utiliza os instrumentos proporcionados pela PDEF; PDEF amplia
apenas moderadamente a capacidade de barganha da PEXT;
Cenário Caaetê - articulação entre PEXT e PDEF
Existência de mecanismos formais e informais de diálogo entre as burocracias
envolvidas na formulação e na implementação das duas políticas; Mecanismos
existentes são relativamente fluidos, porém pouco consequentes; Diálogo
institucional é relativamente congruente com as diretivas emanadas do
Presidente da República e da Constituição Federal; Não se chega a consenso
sobre uma grande estratégia nacional que parametrize a implementação das PEXT e
PDEF no médio e longo prazo; Implementação das políticas não é necessariamente
congruente entre si; Não se constrói capacidade dissuasória suficiente para
dificultar tentativas de coação militar; PEXT utiliza de maneira limitada e
esporádica os parcos instrumentos proporcionados pela PDEF; PDEF não amplia a
capacidade de barganha da PEXT, antes limita-a;
Afinal, o poder militar importa no caso do Brasil?
A resposta inequívoca à pergunta que dá título à conclusão deste estudo é de
que o poder militar importa no caso do Brasil, uma vez que a força armada pode
auxiliar a política externa em seu esforço de ampliação da capacidade de
barganha e da autonomia do País. Devido à sua relevância intrínseca, ele não
pode, em hipótese alguma, ser negligenciado como ferramenta útil à consecução
dos interesses nacionais. A manutenção de uma estrutura militar precária como a
atual reduz o campo de manobra da política externa, limitando sua latitude e
expondo o País a condicionalidades derivadas do eventual surgimento de disputas
com potências estrangeiras. A ausência de capacidades militares adequadas
contribui também para a diminuição do soft power nacional. Assim, ao Ministério
das Relações Exteriores do presente caberia, como fez o patrono da diplomacia
brasileira há quase um século35, engajar-se no debate público e
intragovernamental relativo à reestruturação e reaparelhamento das Forças
Armadas.
Na linha do acima exposto, a maior capacitação das forças armadas brasileiras
permitiria que se pudesse explorar iniciativas de produção conjunta de
armamentos com os países lindeiros. O Brasil poderia liderar esse processo,
que, a par de incentivar a indústria bélica nacional, aproximaria ainda mais os
estamentos militares dos Estados sul-americanos (iniciativa potencialmente
auspiciosa prevista nas deliberações do recém-criado Conselho Sul-Americano de
Defesa). Além de demonstrar as intenções não hegemônicas do País, o incremento
de iniciativas dessa natureza faria com que se estreitasse o relacionamento
político na região, assim como determinaria redução dos custos de aquisição de
sistemas de armas. Isso incentivaria a criação de um pequeno cluster de
indústrias bélicas no subcontinente, capitaneada pelo Brasil. Poder-se-ia
cogitar, inclusive, o fornecimento de modo sistemático, por parte das Forças
Armadas, de material de emprego militar de segunda-mão para os países menos
dotados de recursos da América do Sul. Uma maior assistência militar aos
Estados do CSR constituiria gesto político importante que, no longo prazo,
poderia reduzir a influência exercida pela superpotência sobre os exércitos da
região. Os efeitos desse tipo de parceria seriam francamente favoráveis à
intenção brasileira de aumentar a coesão política e econômica sul-americana,
ampliando o poder de barganha do País tanto no relacionamento com seus vizinhos
quanto com potências extra-regionais.
O poder de barganha nacional seria adicionalmente intensificado se a nação
contasse com a capacidade de participar ativamente de esforços de manutenção da
paz em suas diversas modalidades. A participação em missões desse gênero,
ademais de contribuir para o aumento do soft power do País, poderia servir como
justificativa política para a maior aplicação de recursos no setor de defesa. A
despeito do que precede, acredita-se que a contribuição com esse tipo de missão
não deve se tornar o alfa e o ômega da política de defesa brasileira. Ainda que
a imposição da paz possa ter semelhanças com o emprego convencional das forças
armadas em conflitos interestatais, há que se admitir que as funções de
peacekeeping estão muito mais próximas das de caráter parapolicial do que das
relacionadas ao combate entre exércitos regulares. O risco decorrente da
superestimação da importância das atividades de manutenção da paz seria o de
especializar as Forças Armadas brasileiras nesse tipo de missão, negligenciando
a centralidade das tarefas clássicas de defesa da soberania. A despeito desse
caveat, no plano sul-americano, a política externa poderia valer-se da
existência dessa capacidade para induzir, se assim entender conveniente, a
formação de uma força de pronto emprego regional para atuação seletiva em
missões de paz. Uma iniciativa como essa seria congruente com o fortalecimento
da unidade política da América do Sul, servindo também como medida de fomento
da confiança.
Outra capacidade militar que seria extremamente útil, em situações de
contingência, é aquela representada pela projeção limitada de poder além
fronteiras. Tendo em vista os crescentes interesses brasileiros em países
vizinhos, bem como a significativa instabilidade política, econômica e social
em muitas das nações lindeiras, torna-se relevante que as Forças Armadas do
País tenham condições de empreender ações pontuais de garantia desses
interesses. Essas ações envolveriam a proteção de nacionais durante crises em
que houvesse ameaças à sua integridade física, a proteção de ativos
estratégicos, o fornecimento de apoio humanitário em situações de calamidade,
entre outros. Essa capacidade, fundamental em casos de extrema gravidade, pode
ser utilizada pela política externa brasileira para aumentar o poder de
barganha nacional no relacionamento com os demais países sul-americanos. Logo,
a capacidade de projetar, no espaço sul-americano, uma pequena mas robusta
força militar, parece corresponder a uma importante ferramenta política
passível de ser instrumentalizada pelo Itamaraty.
As três iniciativas sucintamente mencionadas acima, derivadas do incremento das
capacidades militares do País, representam exemplos claros de como uma mudança
qualitativa na política de defesa poderia proporcionar maior latitude de
atuação à política externa. Também suscitam a reflexão sobre as formas pelas
quais a última poderia contribuir para a mudança da primeira. Caberia
esclarecer, contudo, que as duas políticas públicas mencionadas, por melhor
articuladas que sejam, não são capazes de modificar sozinhas a realidade
futura. Qualquer cenário prospectivo depende, para sua concretização, de um sem
número de variáveis. Isso quer dizer que a busca de excelência na articulação
entre as políticas externa e de defesa constitui um exercício vazio? A resposta
é negativa. Logo, ainda que o porvir venha a se materializar em sua versão
menos positiva, o País só tem a ganhar se for capaz de articular
satisfatoriamente os assuntos diplomáticos e militares.
1 SCOTT, John. (2001) Power. Cambridge: Polity Press,. p.12-16.
2 Essa taxonomia política derivada da zoologia é citada por Scott como presente
nas obras de Maquiavel e Pareto. Ibid., p.18.
3 NYE JR, Joseph S.. (2004) Soft Power: the Means to Success in World Politics.
New York: Public Affairs, p.31.
4 Não se pretende oferecer uma definição precisa de insumos de poder, uma vez
que o autor acredita que eles não possam ser convenientemente mensurados tendo
em vista sua característica relacional. Alguns deles seriam os seguintes:
população, território, recursos naturais, pujança econômica, desenvolvimento
científico-tecnológico, capacidade de persuasão, pujança cultural etc.
5 BUZAN, Barry. (2004) The United States and the Great Powers: World Politics
in the Twenty-First Century. Cambridge: Polity Press, p.1-11.
6 Ibid., p.28.
7 Os Estados que não se incluem em nenhuma das 3 categorias não são
considerados por exercerem papel marginal no que diz respeito à estruturação do
sistema internacional. Pode-se chamá-los simplesmente de potências.
8 A inclusão de China e Rússia no rol de grandes potências, por parte de Barry
Buzan, ilustra as dificuldades de classificação objetiva dos Estados em
categorias genéricas como a de "Estados periféricos". Isso pois a primeira
parece encontrar-se em um estádio incipiente de transição da periferia para o
centro do sistema capitalista mundial - além de contar com enormes recursos
humanos e materiais. A Rússia, por sua vez, encontra-se em declínio relativo,
tendo perdido a condição de superpotência. Mesmo no auge de seu poder, ela
jamais fez parte do núcleo central do capitalismo. Permanece classificada como
grande potência em função de sua significativa capacidade militar (nuclear,
essencialmente) e de seus vastos recursos humanos e materiais.
9 Buzan menciona os graus de internalização da cultura propostos por Wendt, mas
não os utiliza sistematicamente.
10 Esse comentário tem por fim afirmar que a reação dos EUA aos atentados de
11/9 poderia ter-se dado de variadas formas. Inclusive com a busca de soluções
cooperativas para o enfrentamento do fenômeno do terrorismo.
11 De acordo com o projeto "Correlates of War", atualizado até 1997, apenas uma
guerra interestatal (Golfo) ocorreu depois do fim da Guerra Fria, enquanto 24
"intra-wars" tiveram lugar entre 1990 e 1997. Ver SARKEES, Meredith Reid.
(2000) "The Correlates of War Data on War: An Update to 1997," Conflict
Management and Peace Science, 18/1, p.123-144.
12 Que nada mais é do que o terrorismo que se vale dos meios tecnológicos
proporcionados pelo atual estádio de desenvolvimento científico. Pode-se
agregar ao conceito, contudo, o eventual caráter suicida das ações terroristas
e a eventual ausência dos requisitos políticos que caracterizaram esse tipo de
atividade no passado recente.
13 BUZAN, Barry, WAEVER, Ole, De WILDE, Jaap. (1998) Security: a new framework
for analysis. Boulder: Lynne Rienner Publishers, p.201.
14 A definição de guerra utilizada na literatura é a seguinte: conflito armado
em que há mais de 1000 mortos no campo de batalha. Ver MARES, David R.. (2001)
Violent Peace: Militarized Interstate Bargaining in Latin America. New York:
Columbia University Press, p.32.
15 Ibid., p.28-51.
16 Ibid., p.37.
17 Idem.
18 A idéia de "déficit social" como handicap ao incremento do poder militar
brasileiro parece ter sido reforçada na Nova República. Pode-se inferir,
contudo, que, ao longo da maior parte do século XX, essa concepção não possuiu
o estatuto que alcançaria no período pós-autoritário recente. Nesse sentido, as
disparidades sociais prevalecentes durante a República Velha não impediram o
programa de reaparelhamento naval iniciado em 1904. Não impediram algumas
iniciativas de reaparelhamento militar durante o período Vargas. Também não
impediram a modernização da Marinha e da Aeronáutica durante o regime militar
iniciado em 1964. Sobre o reaparelhamento naval, ver BUENO, Clodoaldo. (2003)
Política Externa da Primeira República: os Anos de Apogeu (de 1902 a 1918). São
Paulo: Paz e Terra, p.182-197.
19 Para uma discussão mais aprofundada sobre a idéia de liderança brasileira,
ver DANESE, Sérgio. ¿ Liderazgo brasileño? (2001) Foreign Affairs en Español.
Vol. 1, número 3, Otoño-Inverno, p.157-180. Para um painel
sobre a incidência das questões de segurança (e defesa) sobre a política
externa brasileira desde o século XIX, ver Amado Cervo. A dimensão da segurança
na política exterior do Brasil. op. cit.
20 "(...) reconhecendo as deficiências e as insuficiências brasileiras
decorrentes de problemas internos, bem como a situação de dependência do País
no sistema econômico internacional, a diplomacia procurou promover e garantir
os interesses nacionais sem criar complicadores que pudessem implicar
confrontos desnecessários. Assim, conduziu o jogo político-estratégico na
América do Sul indiferente à presença da força militar." CAVAGNARI, Geraldo
Lesbat. Estratégia e Defesa (1960-1990). In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon
(org.). (2000) Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990):
Prioridades, atores e políticas. São Paulo: Annablume/NUPRI/USP, p. 119.
21 Ver CERVO, Amado. Relações Internacionais do Brasil. In: CERVO, Amado
(org.). (1994) O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 a
nossos dias. Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 9-58.
22 A idéia de que a intensificação do comércio com os países vizinhos
dependeria de estabilidade política regional tem sido uma constante do plano
declaratório da política externa brasileira no passado recente. Subjacente a
ela encontram-se dois conceitos: maior fluxo de comércio com os países vizinhos
significa maiores oportunidades de desenvolvimento econômico e maior fluxo de
comércio com os países vizinhos significa vínculos políticos mais estreitos.
Não há espaço neste trabalho para uma discussão aprofundada sobre as
implicações do aprofundamento dos laços comerciais do Brasil com os países da
América do Sul.
23 Barão do Rio Branco apud Clodoaldo Bueno, op.cit., p.220.
24 Realismo entendido como matriz de teoria política cujo foco recai sobre as
relações de poder entre os Estados, não como pragmatismo - aliás, outra
característica secular da política externa brasileira.
25 A Marinha do Brasil usufruiu, durante muitas décadas do século XIX, de
supremacia naval na América do Sul. No entanto, isso não significava que a
Esquadra nacional fosse relevante em termos mundiais. O Exército, em contraste,
jamais foi relevante seja em termos regionais seja em termos mundiais. A Guerra
do Paraguai representou episódio de fortalecimento temporário da força
terrestre, logo seguido de acentuada desmobilização e sucateamento.
26 Sobre a violência urbana no Brasil, ver PERALVA, Angelina. (2000) Violência
e democracia: o paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra.
27 Não cabe discutir aqui se essa percepção seria boa ou ruim. Conforme a
estrutura de análise conceitual adotada neste livro, supõe-se, com base nas
freqüentes manifestações de formadores de opinião locais, que estaria em curso
no Brasil um processo de securitização de ameaças internas como o narcotráfico
e o crime organizado. Em relação a ameaças externas, não se observa processo
análogo.
28 Sobre a implantação do MD, ver OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. (2005) Democracia
e Defesa Nacional. Barueri: Manole.
29 A limitada articulação entre as políticas externa e de defesa, no período
pré-1989, pode ser inferida a partir da inexistência de uma entidade que
exercesse efetivamente a coordenação entre os próprios ramos das Forças
Armadas. Se o nível de articulação entre as próprias políticas setoriais era
mínimo, pode-se supor que a articulação entre a política de defesa resultante e
a política externa fosse inadequado. Essa é, contudo, uma discussão complexa e
que carece de estudos que possam determinar até que ponto as suposições acima
mencionadas seriam verdadeiras.
30 Ver Cenários Exploratórios Brasil 2020. (1997) Brasília: SAE/SAA/PR.
31 Gastos de custeio crescentes (em especial salários, aposentadorias e
pensões) representam cerca de 80% do orçamento, sem levar em consideração
eventuais contingenciamentos que incidem essencialmente sobre a parcela de 20%
restante.
32 Para garantir ampla capacidade dissuasória contra os EUA, seria preciso
contar com grandes e eficientes forças nucleares e convencionais. No caso de um
choque de volições sério com a superpotência, para garantir dissuasão eficaz
não basta a um terceiro Estado ter somente forças nucleares ou somente forças
convencionais. É preciso ter as duas. Sobre a teoria da dissuasão, ver MORGAN,
Patrick M.. (2003) Deterrence Now. Cambridge: Cambridge University Press.
33 Como frequentemente ocorre em RI, as circunstâncias não permitem
generalizações heróicas. Em determinados contextos, outros valores, como o
respeito ao direito internacional, podem ter precedência sobre a autonomia e a
soberania.
34 O termo grande estratégia é, geralmente, utilizado como sinônimo de projeto
nacional de longo prazo. Contudo, muitas vezes há ênfase especial em seus
aspectos mais propriamente relacionados à segurança do Estado no sistema
internacional.
35 Não se deve esquecer que o Barão do Rio Branco teve participação destacada
nas discussões que deram origem ao programa de reaparelhamento naval
empreendido na década de 1910.