La vrai morale se moque de la morale: questões éticas em Pascal
Introdução: a moral como problema
O presente trabalho originou-se da seguinte pergunta: qual o estatuto da
"moral" no pensamento de Pascal, ou seja, há em seu pensamento o reconhecimento
de uma esfera propriamente moral? Poderá ela subsistir como esfera autônoma ou
mesmo relativamente autônoma, cercada que está, por um lado, pela doutrina da
queda, que tira o homem do horizonte do bem - "nós somos incapazes do
verdadeiro e do bem" (La 28/436)
1
- e, por outro, pelas exigências da caridade cristã, que são um além da moral:
"ninguém é feliz como um verdadeiro cristão, nem razoável, nem virtuoso, nem
amável" (La 357/541)?
Sem dúvida, a moral é um problema para o autor dos Pensamentos, e
especificamente a moral da tradição filosófica, que afirma as virtudes como
excelências. Os paradigmas morais que nos chegam da filosofia aristotélica ou
estóica, ao serem atravessados pelo crivo pascaliano, deixam transparecer
contradições onde tudo parecia simples e sólido. Pascal retoma dos Ensaios de
Montaigne a reflexão sobre a diversidade dos costumes e das crenças, que
levanta suspeitas sobre o nosso conhecimento do bem, e a crítica à idéia do
homem como ser racional, que ataca sua suposta superioridade. A "Apologia de
Raymond Sebond" já havia acentuado a forte inserção da natureza nas ditas
"faculdades superiores" do homem, quer dizer, a presença do corpo e suas
exigências, dos interesses, da imaginação e do hábito no cerne mesmo da razão e
da vontade.
2
Também os Pensamentoshumilham a razão, ao mostrar, por exemplo, que a
imaginação é a "rainha" que "dispõe de tudo": faz a beleza, a justiça e a
felicidade que é o todo do mundo" (La 44/82).
3
Com os céticos, Pascal afirma a "miséria do homem", sua incapacidade de
conhecer a verdade e o bem, dada a presença das potências enganadoras, que são
afinal paixões, no núcleo da razão.
Outro ponto da ética tradicional, a distinção hierárquica dos tipos de homens,
em especial a afirmação de uma real diferença entre a vida dedicada aos
prazeres do corpo e a vida dedicada ao espírito (conhecimento ou sabedoria) são
parâmetros confundidos pela "vertiginosa metafísica de Pascal" e suas
"oposições súbitas do pensamento", suas "surpresas constantes por meio das
quais ele passa de uma ordem de coisas à ordem contrária", para usar os termos
de Paul Bénichou em seu clássico estudo sobre as morais do século XVII.4 E,
para continuar com Bénichou, citemos sua conclusão sobre a moral jansenista
como lugar da "demolição do herói": "Todo o pensamento jansenista aparece como
um empreendimento dirigido contra o idealismo moral (...) e só concede
realidade a uma humanidade sem glória e sem virtude". Pois a virtude engana,
bastando para isto voltarmos nossa atenção para os meandros da alma humana,
exercício no qual Pascal é um mestre. Como falar em moral, de uma pretensão ao
domínio de si mesmo, quando, sempre e inapelavelmente, o homem é "escravo do
deleite", seja ele da carne ou do espírito?
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Como falar em moral, quando, nesta vida, não se tira o pé da natureza?
A questão estaria encerrada e não haveria propriamente problema da moral em
Pascal se a redução do homem aos instintos e à natureza fosse o único aspecto
de seu pensamento. No entanto, a moral continua como problema, não é dissolvida
num "para aquém do bem e do mal"; o discurso de Pascal não abdica nunca de
falar deles - incognoscível um, onipresente o outro -, porque o homem vive
sempre no horizonte desta distinção. O fragmento que nos serve de ponto de
partida - "a verdadeira moral zomba da moral" - indica, como veremos, uma outra
moral para além da moral dos filósofos. Se a "zombaria" no Entretiene nos
Pensamentosatinge sobretudo as pretensões dos virtuosos estóicos, há lugar
também, no autor das Provinciais, de se zombar da ausência de moral na
casuística dos jesuítas. Ainda nos Pensamentos, encontramos a expressão de uma
séria reserva em relação à moral dos céticos, que se contenta em seguir os
costumes.
6
E, finalmente, Pascal não deixa de defender a moral ascética dos jansenistas,
seja como preâmbulo prático à fé, como no fragmento "infini-rien", seja como
característica da vida do cristão, como nas cartas a Mlle. Roannez.
Para melhor evidenciar a persistência da moral como problema, um bom caminho é
distinguir entre o tratamento dado à política e aquele dado à moral, por mais
vizinhos que sejam os dois temas. No que diz respeito à política, Pascal
defende a aceitação do poder instituído que, embora mau e injusto em si mesmo,
deve ser considerado bom como instrumento de regulação da natureza decaída do
homem (ou seja, é justificado pela "razão dos efeitos").
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O sentido do político se esgota na própria esfera de seu exercício e
justifica-se por sua eficácia. No entanto, na esfera moral, e ao contrário do
que fazem os céticos, Pascal não concede a palavra final aos costumes, dada a
ausência de um critério "natural" ou universal de bem. Aqui a lógica das
aparências não esgota o problema e por isto a aparência do bem será sempre
perversa: o "moi" que se cobre e se transforma em "honnête homme" continua
odiável, do ponto de vista da exigência da justiça.
8
Em outras palavras: enquanto há uma "verdadeira moral" que "zomba da moral",
não há uma "verdadeira política" para zombar da política.
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Esta é a razão pela qual, na esfera da política, soluções precárias como o
governo instituído devem ser aceitas; já no que diz respeito à moral, o
divertimento ou a honnêteténão podem representar soluções verdadeiras.
Colocado assim o duplo movimento pascaliano - a crítica dos sistemas morais e a
afirmação de uma "verdadeira moral"-, nosso objetivo será, então, o de pensar o
lugar da moral em Pascal, a partir de quatro contextos:
1 - O contexto epistemológico dos fragmentos La 512/1e La513/4, qual seja, a
diferença entre espírito geométrico e espírito de finesse;
2- O contexto antropológico da "desproporção do homem" e da virtude como meio-
termo (La 199/72, La 800/532);
3- O contexto antropológico - teológico da miséria e grandeza do homem;
4- O contexto metafísico-teológico da teoria das "três ordens de coisas" (La
933/ 460).
I- Moral do espírito e moral do julgamento
Geometria. Finesse.
A verdadeira eloqüência zomba da eloqüência, a verdadeira moral zomba
da moral.
Quer dizer que a moral do julgamento (jugement) zomba da moral do
espírito que é sem regras.
Pois é ao julgamento que pertence o sentimento, como as ciências
pertencem ao espírito. A finesse é a parte do julgamento, a geometria
a do espírito (La 513/4).
Moral do espírito e moral do julgamento se opõem neste fragmento, da mesma
forma como o espírito de geometria se opõe ao espírito de finesse, no fragmento
La 512/1. Podemos então inferir que a moral do espírito, enquanto relativa ao
espírito geométrico, busca construir-se como conhecimento, raciocinando passo a
passo a partir de princípios estabelecidos. Contra tal pretensão, Pascal
denuncia justamente a impossibilidade de estabelecer quaisquer princípios, o
que se constata através da própria diversidade de sistemas filosóficos, cada um
apelando a um princípio diferente:
Por que dividiria minha moral em 4 e não em 6. Por que estabeleceria
eu a virtude em 4, em 2, em 1. Porque em abstine e sustine
10
mais que em seguir a natureza ou em fazer seus negócios particulares
sem injustiça, como Platão, ou em outra coisa..." (La 683/20).
Ora, os sistemas morais são insuficientes e artificiais. Insuficientes não
tanto porque afirmam um princípio, mas porque excluem outros:
Todos os princípios dos pirrônicos, dos estóicos, dos ateus, etc. são
verdadeiros. Mas suas conclusões são falsas porque os princípios
opostos são também verdadeiros" (La 619/660).
Artificiais, na medida em que o espírito geométrico ordena e encadeia os
princípios, fazendo de uns fundamentos propriamente e de outros afirmações
derivadas e conseqüências, quando "a natureza estabeleceu todos, sem encerrar
um no outro" (La 683/20).
Enfim, a moral do espírito é "sem regras" porque suas regras são arbitrárias,
mais fruto do acaso e dos costumes que da razão.11 Mais ainda: a condição mista
e terrena do homem, corpo e alma, instinto e razão, não está apta a
experimentar nada de puro, nada sem ambigüidade. Daí que, mesmo se existem bons
princípios, eles são inaplicáveis na prática.
Todas as boas máximas estão no mundo, só falhamos em aplicá-las (La
540/380).Cada coisa aqui é verdadeira em parte, falsa em parte. (...)
Dir-se-á que é verdade que o homicídio é mau: sim, porque nós
conhecemos bem o mau e o falso. Mas o que diremos que seja bom? (...)
Não matar? Não, porque as desordens seriam horríveis e os maus
matariam os bons. Matar? Não, porque isto destruiria a natureza. Nós
não temos nem o verdadeiro nem o bem senão em parte, e misturado com
o mal e o falso (La 905/385).
Pascal aqui antecipa a crítica que será feita a uma moral de tipo kantiano, ao
colocar fora do alcance do homem o "bem sem restrições": se matar é sempre mau,
não matar (um dos dez mandamentos) não é sempre bom. O que a moral do espírito
desconhece é o conflito entre os princípios, no caso, entre a caridade e a
justiça:
Eles têm alguns princípios verdadeiros, mas abusam deles; ora, o
abuso das verdades deve ser punido tanto quanto a introdução da
mentira. Como se houvesse dois infernos, um para os pecados contra a
caridade, outro contra a justiça (La 906/916).
O trágico, porém, está em que sair de um pode significar entrar no outro...
Se a moral da lei e do mandamento não nos livra do mal, também a moral de tipo
maquiavélico (ou, para falar nos termos do século XVII, a moral dos jesuítas),
da prudência, do cálculo e da concessão não nos oferece uma solução melhor:
É necessário que haja desigualdade entre os homens, é verdade; mas
isto concedido, eis a porta aberta não somente à mais alta dominação,
mas à mais alta tirania.
Que se marquem os limites. Não há fronteiras (bornes) nas coisas. As
leis querem colocá-las e o espírito não pode suportá-las (La 540/
380).
A necessidade de levar em conta a natureza humana e conceder algo ao mal se
impõe; não temos, porém, a justa medida dessa concessão.
Diagnosticando a profunda insuficiência das soluções filosóficas, a exigência
de Pascal continua sendo a de um ponto de vista que consiga afirmar todos os
princípios, e que se mova dentro da própria contradição. Esta seria a
característica de uma "moral do julgamento", ao modo da finesse, que consegue
operar com diferentes princípios sujeitos a uma apreensão mais intuitiva que
demonstrativa.
12
No entanto, perguntamos, esta moral se articula positivamente em algum lugar
na obra do autor dos Pensamentos? Adiemos a resposta por enquanto e continuemos
nossa investigação da crítica pascaliana à moral dos filósofos.
II - O contexto antropológico da "desproporção do homem" e a virtude como meio-
termo
13
Uma das definições clássicas da virtude é a de "meio termo" entre dois extremos
viciosos. Esta temática é reinterpretada pelos céticos, e de forma marcante por
Montaigne, como "mediocridade" do homem, condição finita à qual ele deve
adequar-se. Pascal também acentua esta característica do ser humano: somos
incapazes tanto da certeza absoluta quanto de duvidar de tudo; quando se lê
muito depressa ou muito devagar não se entende nada; inteligência em excesso ou
a falta dela aproximam-se da loucura; barulho demasiado ensurdece e muita luz
cega.14 Nossos sentidos e nossa razão não se adequam aos extremos. Pascal
afirma com Montaigne: "sair do meio é sair da humanidade. A grandeza da alma
humana consiste em saber circunscrever-se..." (La 518/378).
No entanto, enquanto no meio termo aristotélico ou na "mediocridade" dos
céticos o que se pretende - e se alcança - é uma posição de estabilidade e de
equilíbrio, o "meio" pascaliano é um lugar problemático e instável.15 No
clássico fragmento sobre a "desproporção do homem", a novidade é que o meio
está entre dois infinitos, e por isso, é um lugar inassinalável. Na descrição
pascaliana, o meio é uma situação incômoda, nela somos empurrados de um lado
para o outro. Falta-lhe a firmeza de que necessitamos:
É o estado que nos é natural e, no entanto, o mais contrário à nossa
inclinação. Ardemos de desejo de encontrar uma posição firme, e uma
base última constante para sobre ela edificar uma torre que se eleve
até o infinito; porém, os alicerces ruem e a terra se abre até os
abismos (La 199/72).
Como na natureza, também na moral estamos entre dois infinitos:
A natureza parece ter feito a mesma coisa através de seus dois
infinitos naturais e morais. Sempre teremos um acima e um abaixo, os
mais hábeis e os menos hábeis, os mais elevados e os mais miseráveis,
para rebaixar nosso orgulho e elevar nossa abjeção (La 800/532).
De modo que não há repouso possível, nem no orgulho, nem na consciência da
miséria - como o julgam erradamente os filósofos - porque entre dois infinitos
o que não há é o meio termo.16
Há ainda uma dificuldade extra para se assinalar o meio termo na moral: de
qualquer forma, é possível indicar os sons audíveis entre o silêncio e o
barulho ensurdecedor, e também o ponto de perspectiva para a admiração dos
quadros; no entanto, "na verdade e na moral, quem o assinalará?" (La 21/381). O
costume, que o faz, é mais afastado da natureza e do instinto que o ouvido ou
os olhos.
Pensamos que o meio-termo ou o ponto de equilíbrio é impossível na moral
porque, ao contrário do que ocorre na política, aqui existe um modelo que é o
oposto da mediania: Jesus Cristo. Desta perspectiva, que é a do infinito, não
pode haver um excesso na bondade, nem na justiça. Como assinala Carraud: "o
excesso de uma virtude é ainda virtude"17 , e o que Pascal exige é que se
exceda em virtudes opostas, como a coragem e a bondade (La 681/353). No
entanto, nossa condição de seres medianos não o permite: "Quando se quer
perseguir as virtudes até os extremos de uma parte e de outra, apresentam-se os
vícios (...) do lado do pequeno infinito (...) e do grande infinito (...)" (La
783/357). Como vimos, na experiência humana a extrema bondade é o mínimo de
justiça, a extrema castidade é o fim da espécie, etc.
Assim, a verdadeira moral, a moral do julgamento, reinterpreta a moral do meio-
termo: se a mediania é nossa condição, ela é inteiramente problemática, pois é
necessário afirmar também o princípio oposto, a virtude como extremo (Cristo
como extrema bondade e extrema justiça). Pascal dissocia virtude e meio-termo,
com isto mostra a impossibilidade da virtude para nós. A moral constitui-se
enfim como necessidade de oscilar continuamente entre o orgulho e a miséria:
"Se ele se vangloria eu o rebaixo. E o contradigo sempre, até que ele
compreenda que é um monstro incompreensível" (La 130/420).
III- O contexto antropológico - teológico da miséria e grandeza do homem
Podemos pensar que a "moral do espírito", alvo das zombarias de Pascal, pode
ser dita do "espírito" não apenas em seu método, mas também em seu conteúdo.
Neste caso, a moral do espírito é aquela que acredita no homem como ser
essencialmente racional. O autor dos Pensamentos mobiliza toda uma fina análise
psicológica para atacar esta antropologia, atingindo em seu âmago, desta vez, a
idéia da razão como o mais próprio do homem, sua virtude ou excelência. A
estratégia pascaliana é mostrar que, por trás dos gestos considerados nobres
(porque guiados pela razão, faculdade autônoma), revelam-se suas verdadeiras
motivações, de forma que as ditas virtudes sempre escondem algo, elas são uma
máscara. Mais ainda: o que se esconde, sempre, sob o manto da virtude é a
tirânica busca do prazer. Especialmente contra a moral estóica, que afirma uma
esfera da vontade reinando acima da dos instintos, Pascal mostra que só se
recusam os prazeres corporais em nome dos prazeres espirituais (afirmação do
poder, vaidade, glória), não raro mais perversos que os primeiros:
Ele (o homem) é agora escravo do deleite; o que mais o deleita o
atrai infalivelmente(...) e que não se pretenda usar de sutilezas,
dizendo que a vontade, para marcar seu poder, escolherá algumas vezes
o que lhe agradar menos; porque então ela tem mais prazer em mostrar
o seu poder que no bem que ela deixa ....
18
Como veremos adiante, toda a experiência humana pode ser descrita sob o tema
das concupiscências: a da carne, a do espírito e a da vontade. Além disso, o
império do deleite está presente mesmo nas virtudes cristãs, como a piedade:
"Lamentar os desgraçados não é contra a concupiscência. Ao contrário, bem
satisfeitos ficamos ao render este preito de amizade e angariar uma reputação
de ternura sem nada dar em troca" (La 657/452).
Podemos neste ponto aproximar a moral pascaliana da de Hobbes, cujo fundamento
está no desejo ou aversão. Se não temos em Pascal um materialismo metafísico
como em Hobbes, temos, no entanto, em oposição à "moral do espírito", uma
espécie "moral dos instintos", que remete a dinâmica da alma à dinâmica do
corpo. Corpo, vontade e razão são regidos pelo princípio do prazer.19 Esta
"moral dos instintos" oposta à "moral do espírito" é também uma moral
racionalista, pois usa a razão como instrumento crítico das ilusões do homem
sobre si mesmo e compreende a natureza humana a partir de uma espécie de
inapelável mecânica das paixões. Às vezes a virtude pode ser, apenas, o efeito
do equilíbrio de dois vícios contrários, uma simples resultante de forças, sem
nenhum mérito ou substância real.20
Razão e vontade humanas são, integralmente, partes da natureza e seguem a mesma
lógica desta. Nem mesmo a graça transfigura esta realidade: "não se deixam os
prazeres, senão por outros maiores", escreve Pascal aos Roannez, citando
Tertuliano.21
A virtude é, na acepção clássica, o domínio das paixões por um outro que não
elas mesmas (a razão); já na antropologia de Pascal não há este outro, uma
paixão só podendo se anular na presença de outra paixão. Enfim, a virtude não é
o que parece, e aqui não estamos tão longe de Maquiavel. Daí que o "eu" será,
não a vontade ou a razão, como para os filósofos, nem mesmo a alma que pensa,
como em Descartes, mas uma grande figura do instinto: o amor-próprio.
Esta moral pascaliana sem dúvida "se ri" da moral da excelência, e do homem
virtuoso tão iludido sobre si mesmo. Mais realista, ela é também mais
verdadeira: a hermenêutica do desejo mostra a miséria do homem. No entanto,
esta não é a última palavra de Pascal sobre o desejo, nem sobre a moral, porque
a própria realidade do desejo leva-nos a uma outra verdade, à grandeza do
homem, e em dois sentidos: primeiro, como consciência da miséria; segundo, como
marca de uma origem divina.
Quanto ao primeiro sentido, Pascal aqui recupera a tradição do conhecimento de
si como fundamento da moral. Assim como a consciência da ignorância em
Sócrates, também no pensador moderno a consciência de si é o que marca a vida
humana e lhe confere sua dignidade:
O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um
caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para
esmagá-lo; um vapor, uma gota d'água são suficientes para matá-lo.
Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre
do que quem o mata, pois ele sabe que morre e da vantagem que o
universo tem sobre ele. O universo não sabe nada disso.
Toda nossa dignidade consiste então no pensamento (...). Trabalhemos
então para bem pensar: eis o princípio da moral (La 200/348).
Como em Sócrates e nos estóicos, também em Pascal a grandeza do homem consiste
no saber de si mesmo, e nisto ele é superior ao universo. Ao contrário dos
estóicos, porém, a consciência de si é consciência da finitude e da fraqueza e,
para além de Sócrates, é consciência da miséria.22 Saber-se miserável é saber-
se lugar de um desejo infinito e impossível de ser realizado: "Nós somos
incapazes de não desejar a verdade e a felicidade, e somos incapazes da certeza
e da felicidade" (La 401/437). Um impasse se cria, então, no cerne da moral: se
"bem pensar" é o seu princípio, não podemos ter, seguindo este caminho, sua
realização, pois a consciência da miséria (associada por nosso filósofo ao
realismo dos céticos) só é capaz de levar ao desespero. A alegria da moral
zombeteira, que revela as misérias do homem, dura muito pouco, pois é uma
zombaria desesperada. Ao invés de atingir o fim de toda moral, a felicidade, o
conhecimento de si gera o tédio e a infelicidade; é insuportável ficar diante
de si mesmo (La 622/131). Por isto o "divertimento" se justifica, e o autor dos
Pensamentosnão hesita em afirmar que "é melhor se ignorar para ser feliz" (La
687/144). Aqui há uma disjunção entre consciência (grandeza), por um lado, e
felicidade, por outro.
Ora, se a moral do julgamento não pode abrir mão do "conhece-te a ti mesmo"
como um princípio, ela também não pode abrir mão do princípio oposto, a
felicidade. De modo que a verdadeira moral exige, para além da filosofia
cética, um segundo sentido de grandeza, uma grandeza que seja mais que a mera
consciência da miséria23 , e portanto capaz de contrabalançar o desespero. No
entanto, tal exigência só poderá ser preenchida no horizonte da revelação
cristã. Sabemos que um dos argumentos centrais da apologética de Pascal é que o
cristianismo fornece a chave para interpretar o desejo como sinal e marca de
uma história que situa o homem para além de si mesmo. Em outras palavras, a
realidade do desejo24 aponta não só para a miséria, mas também para uma origem
divina do homem:
(...) O que nos gritam esta avidez e esta impotência senão que houve
outrora no homem uma verdadeira felicidade, da qual não lhe resta
agora senão a marca e o traço vazio que ele tenta inutilmente
preencher (...) (La 148/425).
A "verdadeira moral" só se realiza uma vez que se saia do domínio da filosofia
para o da revelação: a grandeza do homem só se compreende plenamente no
horizonte da história da criação e da queda, na afirmação de uma primeira
natureza para além da natureza decaída, pela qual "o homem ultrapassa o homem"
(La 131/434). O desejo é marca de uma origem divina e só pode encontrar seu
preenchimento se assistido pela graça. Só assim a moral pode ir além do
desespero em direção à esperança: "Toda a moral consiste na concupiscência e na
graça" (La 226/523).
IV- Moral e caridade no contexto das três ordens
.
25
Retomando uma passagem de São João26 , Pascal refere-se no fragmento La 933/460
a três ordens de coisas: a carne, que diz respeito ao desejo das riquezas e do
poder sobre as coisas; o espírito, relativo ao desejo de conhecimento e à
curiosidade; e a vontade, que é o desejo de sabedoria e de justiça, enfim da
virtude.27
Embora não esteja explícito no texto, evidentemente a moral se situaria na
terceira ordem. A sabedoria, diferente do conhecimento, é propriamente o poder
de julgar sobre o bem e o mal e de viver segundo este julgamento; ela é o
próprio exercício da vontade enquanto domínio sobre si mesma. Pascal tem
presente aqui a concepção estóica da vontade como poder sobre si mesma, como
capacidade de autodeterminação; a vontade que é, enfim, o divino no homem.
Nesta perspectiva, o exercício pleno da vontade é o lugar do maior deleite do
homem, que se compraz em si mesmo. A vontade se fecha em si, ela é seu próprio
fim.
Na leitura pascaliana, esta moral não passa de uma forma de concupiscência: a
da posse de si e do deleite em si.28 Do ponto de vista humano, da moral do
espírito, ela é a ordem mais alta, tanto que Pascal concede-lhe o orgulho
legítimo ("não podemos aceitar que um homem que se tornou sábio esteja errado
ao considerar-se glorioso, porque isto é justo"). No entanto, a moral do
julgamento denuncia que há males travestidos de bens:
O mal é fácil e há uma infinidade de males; o bem é quase único. Mas
um certo gênero de mal é tão difícil de encontrar quanto aquilo a que
se chama bem. E muitas vezes faz-se passar por bem este mal
particular. É mesmo necessária uma grandeza de alma extraordinária
para alcançá-lo tanto quanto o bem (La 526/408).
A grandeza da alma, o maior dos bens na perspectiva dos filósofos, se converte
no maior dos males na perspectiva de Pascal, e da moral do julgamento. A
"verdadeira moral" apresenta-se como o reverso da moral dos filósofos, contra o
orgulho: "aquele que se gloria, glorie-se no Senhor", conclui Pascal citando
São Paulo ao final do fragmento 933.
O tema das três ordens está também no fragmento La 308/793, mas de uma outra
maneira: aqui, a "distância infinita" entre corpo e espírito é uma figura da
distância "infinitamente mais infinita" entre espírito e caridade. A vontade
não aparece na terceira ordem, e ocupando o seu lugar temos a caridade. Além
disso, enquanto no fragmento La 933 as três ordens são concupiscências que se
opõem a Deus, no fragmento La 308 a caridade opõe-se às outras duas ordens
enquanto ordem divina. E, finalmente, em um, o modelo moral é o sábio estóico
que se orgulha de si, em outro o modelo é a humildade de Cristo.
A substituição da vontade pela caridade nos leva a pensar que, entre a moral
dos filósofos e a caridade, o que ocorre não é apenas uma mudança do objetoda
vontade
29
- do amor ao mundo ou às ciências ao amor a Deus -, mas que a conversão da
vontade significa afinal uma transformação de sua própria natureza. A vontade
deve deixar de ser, deixar de querer-se a si mesma. A caridade é neste sentido
a negação da vontade; ela não é a vontade como força se exercendo em uma outra
direção, mas toma o próprio lugar da vontade. O objetivo não é deleitar-se no
sacrifício como afirmação da força da vontade, mas que este sacrifício seja o
de si mesmo e o da vontade. Enquanto desejo de seu próprio exercício, a vontade
é a forma mais acabada do amor de si: "A natureza do amor próprio e do ' eu'
humano é a de não amar senão a si e de não considerar senão a si" (La 978/
100).30 Assim, ela se opõe radicalmente à caridade, na mesma ordem.31 Na moral
do julgamento, a vontade renuncia-se a si mesma32 e "consente na do ser
universal" (La 360/482). A virtude deixa de ser excelência para tornar-se
humildade.
Esta é a exigência da " verdadeira moral": que a vontade dê lugar à caridade.
Prova disso é que a oposição caridade/corpo e caridade/espírito é diferente da
oposição caridade/vontade. A vida do cristão, na caridade, não abstrai do corpo
ou do espírito, pelo contrário, é preciso conviver com o corpo e com o espírito
como com vizinhos, às vezes em conflito, mas ocupando cada um o seu lugar.
Trata-se sobretudo de estabelecer os limites de direito de cada ordem, evitando
assim a tirania, definida como "querer ter por uma via o que só se pode ter por
outra", e de dar a cada uma a sua parte: "dever de amor ao agrado, dever de
temor à força, dever de crença às ciências" (La 58/332). Do lado do corpo,
sabemos o quanto sua disciplina predispõe à caridade (La 418/233), que quem
quer ser anjo torna-se besta (La 678/358), e que o costume é também um modo de
crer (La 808/245). Do lado do espírito, a razão e a argumentação têm seu lugar
no caminho para a fé, e todo o projeto de uma Apologia é prova disso.
Portanto, o que a caridade pede é o "esvaziamento do eu", do "eu" que se faz
centro de tudo. Chegando a este ponto porém, a caridade não seria a negação de
toda moral enquanto negação da vontade e do sujeito? E ainda: não é o próprio
Pascal que afirma que é impossível negar o amor de si, a busca do deleite?
33
Para esclarecer esta questão, recorremos ao conjunto de fragmentos sobre a
relação entre corpo e membros, que sem dúvida referem-se à "verdadeira
moral".34 Aqui exige-se "regrar o amor que se deve a si mesmo" (La 368/474),
amando-se como membro do corpo, não como centro de tudo, e "submeter a vontade
particular à vontade primeira que governa o corpo inteiro" (La 374/475). A
"verdadeira moral" se apresenta como a moral dos "membros pensantes", do corpo,
figura da Igreja, e não como moral do "eu".35
Ora, "amando o corpo ele [o membro] se ama a si mesmo porque não tem ser senão
nele e por ele" (La 372/483). Ao modo do espírito de finesse, esta moral afirma
dois princípios opostos, o amor de si (como parte) e o amor do corpo (o todo).
Por um lado, o amor de si continua operante, pois a moral da caridade ainda diz
respeito ao eu e à sua felicidade; não saímos do registro do deleite. Por outro
lado, esta felicidade se realiza através da inclusão do Outro e dos outros em
sua dinâmica. A negação de si é afirmação de si no corpo; o amor de si é amor
do outro.A moral do sentimento tem que articular princípios contraditórios, tem
que dar conta do amor de si (pois este é inalienável) e do amor do outro (como
exigência moral), amando-se enquanto parte de um todo. Tornar-se parte, porém,
deixando de ser o "eu" vazio que se faz centro de tudo, já é, em si, uma
experiência que exige o horizonte da graça.
Cumpre notar ainda que, enquanto forma de amor, a caridade abre-se para o Outro
não como seu objeto, mas como seu princípio. Se assim não fosse não haveria
possibilidade de afirmar ao mesmo tempo o amor de si e o amor de Deus, e o
homem ficaria dilacerado entre ambos. No entanto, a caridade pode afirmar os
dois princípios (amor de si e amor de Deus) porque ela não começa com o homem,
mas com Deus, porque "amar a Deus é antes ser amado por ele".36 Não se trata de
amar isto ou aquilo, mas de reconhecer-se amado. O eu se esvazia como fonte
absoluta do amor, o amor a Deus é o amor de Deus. Esta afirmação, condição da
moral, só pode ser feita no horizonte da revelação, e não mais no horizonte da
filosofia. Assim, como a antropologia do Entretien, a "verdadeira moral" deixa
o campo da filosofia para adentrar-se na teologia.
Conclusão: "Toda a moral [consiste] na concupiscência e na graça" (La 226).
Retomando o que foi dito até aqui, concluiremos traçando um perfil da "moral do
julgamento" ou "do sentimento".
Esta moral articula dois discursos: o da concupiscência e o da graça. Do lado
do discurso sobre a concupiscência, encontramos em Pascal uma perspectiva
naturalista, que ressoa Montaigne, mas que encontra seu melhor paralelo em
Hobbes. Este discurso dissolvente constitui, em alguma medida, uma moral
verdadeira, pois é mais realista, mais atento aos movimentos da alma que a
filosofia ao modo dos estóicos. Pascal pratica aqui uma espécie de "filosofia
da suspeita", que desmascara as virtudes e revela a natureza precária do homem,
primeiro ensinamento moral de importância.
Se este discurso que desvela a miséria do homem fosse a última palavra de
Pascal, o homem seria definitivamente retirado da esfera moral para tornar-se
escravo dos instintos, da imaginação, para ancorar-se de vez na natureza. Ou,
para colocar a questão em outros termos, teríamos em Pascal uma moral como mera
expressão da natureza, cujos termos grandiosos encobrem apenas uma má
compreensão antropológica.
No entanto, a última palavra do autor dos Pensamentos sobre o homem não é
miséria, mas desejo. Tomado em si mesmo, e não pelo viés de seus fracassos, o
desejo é sinal de uma natureza perdida, de uma grandeza do homem. O ponto
essencial é que o amor-de-si, desejo primeiro e origem de todo mal, pode ser
transfigurado e interpretado como amor de Deus que se desviou. Esta compreensão
do desejo, no entanto, só é possível a partir da perspectiva da graça ou da
revelação, e é ela que faz com que a moral que zomba da moral ainda seja uma
moral, quer dizer, recupere e dê nova significação às exigências morais da
filosofia.
Em síntese, os dois registros da moral de Pascal permitem afirmar, ao mesmo
tempo, que:
1-a virtude não é mais que a máscara do vício (redução à natureza, à
concupiscência),
2- os vícios, e mesmo o maior deles, o amor de si, são uma forma desviada do
amor (interpretação no horizonte da graça).
A decifração de Pascal tem dois sentidos, sempre: vai das pretensas virtudes ao
amor de si, à concupiscência radical que elas encobrem, mas vai também do amor
de si ao amor de Deus que se perdeu. Em seu primeiro movimento, a moral
pascaliana é simplesmente naturalista e, digamos assim, científica. Em seu
segundo movimento ela é teológica, pois só a afirmação de Deus e do amor de
Deus é capaz de decifrar o desejo como amor, no sentido de caridade.
Estes dois discursos constituem a "verdadeira moral", a moral do espírito de
finesse, capaz de abarcar em si concupiscência e graça. Não há como se instalar
em apenas um deles: o primeiro exige o segundo, pois a maior prova da
razoabilidade da razão é reconhecer seus limites, e o segundo não é capaz de
"superar" o primeiro, pelo menos na vida terrena, onde Deus é um Deus
escondido. Se na política as máscaras não cobrem nada, e justificam-se por sua
eficácia no mundo decaído, a moral é em si mesma uma máscara que, dependendo da
perspectiva, ou esconde a concupiscência, ou esconde Deus. Por isto é
necessário "bem pensar", operando ambos os princípios, pois não há repouso
possível.