O argumento do criador do conhecimento em Nietzsche
Trata-se de pensar o argumento do criador do conhecimento em Nietzsche. Para
tanto, inicialmente apresento o citado argumento. Em seguida, identifico-o '
direta ou indiretamente ', em um conjunto de passagens dispersas em sua obra.
Estando ciente de que tais passagens pertencem a contextos específicos e não-
redutíveis uns aos outros, proponho unificá-las metodologicamente,
interpretando-as a partir da relação entre linguagem e representação. Tal
escolha se deve à conjectura de que a relação entre linguagem e representação é
uma via de acesso privilegiada para esclarecer o que Nietzsche tem a nos dizer
sobre o conhecimento, bem como justificar porque o conhecimento é e deve ser
criador.
O argumento do criador do conhecimento consiste na tese de que do real somente
podemos efetivamente conhecer aquilo que nós mesmos criamos. Para Vico, que
supostamente fora o primeiro a formular de maneira explícita o argumento, isso
significava a superioridade das ciências humanas frente às ciências naturais.
Uma vez que a natureza não é nossa criação, às ciências naturais cabe apenas um
saber aproximado e hipotético. O mesmo não ocorreria com as ciências humanas,
cujo objeto, fruto de convenções e acordos institucionais, poderia ser
conhecido em sua plenitude.1
Essa avaliação pressupõe (a) diferença e assimetria entre os objetos tais como
se apresentam a nós e como eles são em si mesmos e (b) diferença e assimetria
interna entre os objetos tais como eles se apresentam a nós. Recobrimos a
realidade com nossas representações e apenas assim a conhecemos, sendo portanto
incognoscível o que não pode ser representável. Daquilo que se torna objeto de
conhecimento, alguns são lançados à realidade a partir de nossas representações
enquanto outros são apreendidos por elas. Os objetos que são apreendidos pelas
representações, por serem delas distintos, não se esgotam no representável;
aqueles que compartilham da mesma natureza das representações ' isto é, são
também criações conceituais 'podem ser plenamente conhecidos. Daí porque o
conhecimento dos fenômenos naturais, apenas apreensível por nossas
representações, é um saber aproximado e hipotético, enquanto o conhecimento dos
fenômenos sociais, que compartilha do mesmo estatuto de nossas representações,
pode ser completo.
Há variantes do argumento que diferem essencialmente da formulação original de
Vico por adotarem outros significados para termos como "conhecimento" e
"realidade", além de divergirem quanto aos critérios para se determinar o
valor-verdade das proposições e sobre quais tipos de representações só podemos
conhecer na medida em que as criamos.2 Para algumas destas variantes também há
certa instabilidade quanto ao termo "criação" conforme nos deparamos com
questões como "quem cria?", "como cria?" e "de qual lugar cria?".
Advirto que não se deve subestimar as profundas mudanças que o argumento, em
suas inúmeras variações, traz para a teoria do conhecimento. Ao tomarmos
"conhecer" e "criar" como coextensivos, todo um conjunto de questões até então
fundamentais se tornam irrelevantes ou mesmo pseudo-problemas.
Atente-se, por exemplo, ao chamado "trilema de Münchhausen". Segundo ele,
qualquer pretensão de fundamentar filosoficamente uma teoria, isto é,
determinar um ponto de partida na cadeia de provas de uma dada proposição,
fracassa por incorrer (a) em uma regressão ao infinito, (b) ou em uma escolha
arbitrária, ou (c) em uma petição de princípio.3 O trilema é uma tentativa de
responder ' ou mostrar a impossibilidade de se responder ' ao projeto de se
instalar um alicerce inabalável e legítimo ao conhecimento. Tudo se passa como
se o conhecimento fosse uma arquitetura que se mantém coesa por sua base;
descoberta a base, descobre-se igualmente o que sustenta o todo, ou seja, o que
lhe confere segurança, estabilidade. Logo, essa base não pode ser instável '
assumindo-se que ela o seja cai-se num ceticismo moderado e, caso se considere
que ela sequer exista, parece-se incorrer num ceticismo radical.
O que dá força às dificuldades descritas pelo trilema é a crença de que a
determinação de um ponto inicial na cadeia de prova de uma dada proposição deve
possuir um caráter epistemológico distinto desta. A distinção epistêmica
refletiria uma diferença ontológica ' o ponto inicial seria a representação de
um "dado" enquanto as demais formulações da cadeia de prova seriam como que
seus efeitos, portanto, diferentes de sua causa. Ou seja, o ponto de partida
não seria uma representação lançada ao real, mas antes uma representação
apreendida instantaneamente da realidade. Tal pressuposição é incompatível com
um modelo subscrito ao argumento do criador, pois, tomando-se o conhecimento
como "criação", um suposto "dado" já seria uma representação, isto é, uma
demarcação do que se pode conhecer em algo que nos escapa à apreensão em
totalidade. Como apenas se sabe aquilo que se cria e se cria tudo aquilo que se
sabe, qualquer instância além da criação não pertence ao que conhecemos.
Assumindo-se que o sujeito é demiurgo de seu próprio saber, admite-se
igualmente que a referida diferença ontológica, mesmo que seja o caso, é
irrelevante para o que se conhece. O problema que nos conduz ao trilema, em
sentido estrito, sequer se coloca para o criador do conhecimento. Levando-se em
conta que tal questão encontra-se difundida em nossa cultura e dominou uma
parte significativa da epistemologia moderna,4 vê-se então a amplitude do
deslocamento filosófico imanente ao argumento do criador.5
Mesmo noções metafísicas parecem adquirir outra dimensão quanto justapostas ao
argumento. Tome-se, por exemplo, a idéia de causa de si. Causa suiera uma
expressão corrente entre os teólogos e filósofos escolásticos.6 Diz-se que algo
é causa de si mesmo se veio e se se conserva na existência apenas por si, ou
seja, se é sua única e fundamental causa de existir. Especialmente a partir do
século XIX, o termo "existência" passou a comportar uma ambigüidade que lhe
conduziu para além dos limites da ontologia tradicional, indicando, sob outra
perspectiva, uma investigação acerca da própria condição humana.7 A pergunta
pela existência de x pôde também ser interpretada como uma questão acerca do
sentido da existência de x. Nesse outro nível, dizer que algo é causa de si
mesmo consistiria em afirmar que se é o único e diretamente responsável por sua
condição existencial, ou seja, pelo sentido de sua vida. Transposto para esse
âmbito, o argumento do criador do conhecimento diria então que o homem dá-se a
conhecer sua existência, isto é, cria o sentido de sua própria existência.
Parece-me que esse é o primeiro deslocamento interno ao argumento do criador
que a filosofia de Nietzsche nos sugere. Já no prefácio de autocrítica que fez
publicar à segunda edição de O Nascimento da Tragédia, sua primeira obra-prima,
sentencia-se que "este livro temerário ousou pela primeira vez aproximar-se '
[e] ver a ciência com a ótica do artista e a arte com a da vida".8 Conta-se,
nesse momento, a descoberta do que então se designara como "o problema da
ciência mesma", a saber: qual o valor do conhecimento para a Vida? Esse
problema, relata-se, não pode ser reconhecido no terreno da própria ciência,
daí porque submetê-lo a outra instância, no caso, a arte, e esta, por sua vez,
a um plano ainda mais elementar. De modo provisório e esquemático, pode-se
afirmar que a estratégia de Nietzsche consiste em tomar tanto a ciência quanto
a arte como sintomas de um modo de vida. Dito de outra maneira: ciência e arte
são formas que manifestam as relações vitais de uma comunidade; ciência e arte,
isto é, conhecer e criar, são signos que permitem interpretar ' e avaliar ' que
tipo de existência nelas persiste. Mas o que significa afirmar que a ciência e
a arte são sintomas de uma condição vital?
Em uma seção de Humano, Demasiado humano intitulada "A linguagem como suposta
ciência", Nietzsche observa que
A importância da linguagem para a cultura está em que nela o homem
estabeleceu um mundo próprio ao lado de outro, um lugar que ele
considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o
mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito
tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas como aeternae
veritates, o homem adquiriu este orgulho com que se ergueu acima do
animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo. O
criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às
coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com
palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a
primeira etapa do esforço da ciência. (...) Muito depois ' somente
agora ' os homens começam a ver que, em sua crença na linguagem,
propagaram um erro monstruoso. Felizmente, é tarde demais para que
isso faça recuar o desenvolvimento da razão que repousa nesta
crença.9
Diz-se que, através da linguagem, o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado
de outro, criando representações do real que lhe permitiram dar sentido às
coisas. Por serem criações humanas, as representações nos concederam a
estabilidade semântica necessária para que nos julgássemos senhores das coisas.
Tornar-se senhor das coisas significa: dominar-lhes o sentido. Transferindo
seus conceitos e nomes para as coisas, o homem acredita, por um lance de
prestidigitação, que estes também são propriedades das próprias coisas. O
"orgulho" para com suas criações, representações que lhe permitiram submeter às
coisas a seus desígnios e avaliações, levou-o a ver na linguagem um reflexo do
mundo.
Avalia-se que nessa série de transposições arbitrárias reside a primeira etapa
do esforço da ciência. Da maneira como se toma a relação entre as palavras e as
coisas constitui-se um instante inicial de compreensão da realidade. A primazia
desse movimento não é histórica, porém "genealógica". Trata-se de uma ficção
heurística sugerida como um ponto de partida hipotético para o conhecimento,
cujo interesse mediato é corroborar a tese de que nós criamos aquilo que
conhecemos, sendo a ulterior confusão entre o "criado" e o "dado" o que está na
origem do pensamento científico. Mas o que nos levou a criar a ciência?
Aparentemente, um impulso de "tirar dos eixos o mundo (...) e se tornar seu
senhor". Do suposto fato de que as conjecturas lingüístico-epistemológicas que
nos levaram a caminhar rumo à ciência sejam equivocadas, não se segue que a
ciência mesma não nos seja um privilégio. Nietzsche, ironicamente, tenta
mostrar que o "erro" da consubstanciação do mundo com a linguagem foi o que
permitiu o desenvolvimento da razão e a importância que esta mostra para a
vida. "Erro" aqui significa algo que não tem correspondência com a realidade.
Sem dúvida, pode-se questionar a pertinência de uma ficção heurística como
essa. Afinal, tais suposições parecem, a princípio, meras arbitrariedades.
Contudo, caso tenhamos em mente uma peculiaridade que, segundo me parece, a
investigação dita genealógica incorpora da filologia ' disciplina a qual
Nietzsche lecionara e que por vezes repetira a importância para a atividade
filosófica quando adequadamente compreendida ', percebe-se, se não a
necessidade, pelo menos a plausibilidade desse procedimento.10 Um estudo
filológico acerca do desenvolvimento de uma língua exige o trato com documentos
de diferentes épocas que atestem modificações no nível ou níveis que se deseja
apreender. O corpus por vezes se revela insuficiente para uma descrição
precisa, devido ou à carência de dados ou a uma lacuna temporal expressiva
entre um registro e outro. A essa dificuldade, um dos recursos da filologia é,
grosso modo, com base em uma hipótese acerca das mudanças de uma palavra ou
estrutura, reconstituir metodologicamente estágios intermediários que
supostamente seriam o caso para assim assumir a existência de uma certa forma
lingüística, se não de fato, ao menos por direito. Um procedimento análogo
parece estar na matriz da investigação genealógica e apóia subsidiariamente a
citada ficção heurística. Emprega-se ali tal recurso no campo semântico-
pragmático reconstituindo e avaliando uma suposta lógica estrutural ' e moral '
quando da instauração da linguagem a partir da maneira como esta proliferou.
Portanto, com isso, sugere-se que as categorias racionais são derivadas de uma
miragem e, dessa maneira, deve-se ter, contra aquilo que a razão habitualmente
prega, tais miragens em alta conta: os "erros" são talvez os principais
responsáveis pelo cultivo do conhecimento. Apesar da ciência se originar a
partir de uma hipótese infundada, ela de fato permitiu ao homem aquilo que
estava em seu impulso: sentir-se como senhor das coisas. Se essa dominação não
corresponde à realidade isto é irrelevante, pois seus objetivos foram
assegurados: criar um "mundo" firme, estável, controlável, compreensivo,
conhecido. Mas como fora possível, sem uma correspondência com a realidade,
criar-se um mundo que pudéssemos controlar?
De início, deve-se ter em mente que a exigência de que apenas podemos
compreender o mundo caso tenhamos representações que lhes correspondam
diretamente é por si uma conseqüência do suposto equívoco apontado por
Nietzsche. Assim, tomar como problemático que se uma representação não é uma
espécie de reprodução fidedigna de estados de coisas no mundo ela nos veda o
conhecimento já seria aqui um paralogismo. Na seqüência de sua argumentação,
Nietzsche indica que disciplinas como a lógica não se baseiam em pressupostos
que tenham correspondência com a realidade. Tendo-se em conta noções como a
igualdade das coisas e a identidade de um mesmo objeto em diferentes pontos do
tempo, percebe-se que estes são meras abstrações, decalques, simulacros do real
' pois uma coisa não pode ser igual a outra nem também igual a si mesma em
diferentes pontos do tempo. O mesmo raciocínio se estende à matemática, que não
encontra na natureza uma linha exatamente reta ou qualquer medida absoluta de
grandeza.11 A escolha da lógica e da matemática como exemplos não é gratuita.
Como nos relata Kant na primeira Crítica, há um consenso de que essas
disciplinas há muito trilham o caminho seguro da ciência.12 Por conseguinte,
mostrar que tanto a lógica quanto a matemática extraem seus princípios de
concepções sem correspondência com a realidade é, sem dúvida, um dos golpes
mais duros que se pode proferir contra a idéia de ciência como uma
representação do real.
Utilizando-se para fins de esclarecimento um antagonismo corrente na filosofia
da linguagem contemporânea, a saber, realismo e anti-realismo, pode-se dizer
que Nietzsche nos sugeriria que ambos são derivados de uma mesma visão acerca
da relação entre linguagem e mundo: para que haja conhecimento, as
representações (ou os nomes) precisam corresponder ao real. Aqueles que julgam
que há tal correspondência são realistas, consideram que há conhecimento
"verdadeiro"; os que advogam tese contrária, são anti-realistas, consideram que
não há conhecimento "verdadeiro".13
A posição de Nietzsche, compatível ao argumento do criador, consiste em afirmar
que não é a representação acurada que determina o sentido de algo e, por
extensão, seu conhecimento. Assim, nega-se o pressuposto que parece permitir a
oposição realismo/anti-realismo lingüístico. Em um ensaio de juventude, Sobre
Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, questiona-se "o que se passa com as
convenções da linguagem? (...) As designações e as coisas se recobrem? É a
linguagem a expressão adequada de todas as realidades?".14 Nesse contexto,
"verdade", em oposição a "erro", significa correspondência à realidade. Diz-se,
na seqüência, que "somente por esquecimento pôde o homem alguma vez supor que
possui uma 'verdade' no grau acima designado". Para justificar tais afirmações,
Nietzsche oferece uma análise acerca do funcionamento da linguagem.
O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas
concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado de
uma aplicação falsa e ilegítima do princípio de razão. Como
poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na gênese da
linguagem, se somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas
designações, como poderíamos no entanto dizer: a pedra é dura: como
se para nós esse "dura" fosse conhecido ainda de outro modo, e não
somente como uma designação inteiramente subjetiva? (...) Que
delimitações arbitrárias, que preferências unilaterais, ora por esta,
ora por aquela propriedade da coisa! As diferentes línguas, colocadas
lado a lado, mostram que nas palavras nunca importa a verdade, nunca
uma expressão adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A
"coisa-em-si" (tal seria justamente a verdade pura sem conseqüências)
é, para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer
algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos
homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas
metáforas.15
Parte-se, dentre outras premissas, de uma suposta distinção entre mundo e
representação. Inicialmente, definindo-se "palavra" como a figuração de um
estímulo nervoso em sons, contesta-se a legitimidade de se atribuir ao estímulo
que origina a palavra uma causa fora do falante. Entenda-se: não se diz que o
estímulo nervoso não tenha uma causa fora do falante, porém que não se pode
fazer tal inferência tendo-se à disposição apenas estímulos nervosos. Por
extensão, aceitando-se a linguagem como a figuração sonora de um estímulo
nervoso, não se segue que esta seja a expressão de algo exterior ao próprio
estímulo, algo fora do falante. Se somente a verdade ' reitera-se: verdade como
correspondência ' e a certeza das designações fossem decisivas na gênese da
linguagem, então todo juízo que proferíssemos seria sem sentido, pois sendo a
palavra derivada de estímulos nervosos, faticamente subjetivos, como estes
poderiam dar conta de algo que é faticamente objetivo? A nuança do argumento
está em mostrar que determinadas condições que se tende a considerar
necessárias para o estabelecimento das designações ' sua verdade, sua certeza '
não o são. Logo, verdade e certeza não estão em jogo quando da gênese da
linguagem e, por conseguinte, das representações.
Se na origem das línguas fosse condição imprescindível a "expressão adequada",
a "verdade", então não poderia haver inúmeras línguas, mas, quando muito,
apenas uma, no caso, aquela que correspondesse ao mundo. Mesmo que haja por
hipótese essa língua que corresponde à realidade, o fato de que há outras
línguas sugere que, quanto à natureza e ao funcionamento de um sistema
lingüístico, a correspondência ao real é, na melhor das possibilidades,
supérflua.
Assim, mesmo sem corresponder à realidade, uma língua pode se originar e se
desenvolver satisfazendo as demandas de seus falantes, isto é, concedendo-lhes
domínio sobre o sentido das coisas, "conhecimento". A correspondência, mesmo
que seja o caso, é antes o inessencial.16 Mas não é um absurdo imaginar uma
língua que não corresponda ao real, que não simbolize o que deseja simbolizar?
Não seria absurdo dizer "Isto é uma cadeira" se o que está a minha frente é uma
mesa?
Indica-se que as designações são delimitações arbitrárias, preferências
unilaterais que designam apenas as relações dos homens para com as coisas. A
palavra não é uma reprodução do estímulo, mas sua transposição para um outro
âmbito. "Transposição" significa interpretar, redimensionar. Retomando-se a
citada passagem de Humano, Demasiado Humano, a transposição é sintoma de um
impulso para tornar-se senhor das coisas, dominando-lhe o sentido. O sentido do
objeto não é o próprio objeto, mas a forma pela qual lhe podemos representar,
assimilá-lo, torná-lo conhecimento. Se a transposição consiste no deslocamento
de algo de um nível a outro, o que está em questão é a convergência das
imagens, não sua isomorfia. Pode-se dizer que a palavra "simplifica" a
realidade na medida em que ela torna estável, mais ou menos constante,
representações de estados de coisas que, sem esse recurso, não seriam nem
estáticos nem dinâmicos. A palavra antropomorfiza o mundo. Isso significa:
delimita-o arbitrariamente, circunscreve-o a preferências unilaterais movidas
por interesses pragmáticos e funcionais que, em uma acepção mais refinada,
denotam impulsos vitais. Daí porque
Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo
que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o
conceito de folha é formado por arbitrário abandono destas diferenças
individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então
a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo
que fosse "folha", uma espécie de folha primordial, segundo a qual
todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recordadas, coloridas,
frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis de tal modo que nenhum
exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma
primordial.17
Por meio de uma crítica a um modelo de construção de representações por
abstração, Nietzsche ambiciona mostrar que os conceitos, enquanto
generalizações, surgem do abandono arbitrário de diferenças individuais. Tudo
se passa como se a partir de um feixe amorfo de estímulos, estes fossem
delimitados e estabilizados quando agrupadas em palavras. Se retomarmos a
confusão anteriormente citada entre "criado" e "dado", esclarece-se porque
Nietzsche aponta para uma transferência dessa característica da linguagem ao
mundo, o que leva os falantes a considerarem que também na realidade haveria
como que uma entidade abstrata por trás dos objetos singulares ' ironicamente
designada como "folha primordial". Assim, em uma primeira acepção,
"simplificar" significa abstrair. Portanto, dizer que uma palavra ' ou uma
representação ' não corresponde à realidade significa, nesse caso, que ela é a
abstração de determinados aspectos de um continuum num processo que se poderia
descrever como metonímico: a representação é uma delimitação de um todo, uma
parte que, indevidamente, é depois tomada como se fosse o próprio todo.
Uma outra aplicação da idéia de linguagem como simplificação, restrição ou
delimitação de estímulos nos é fornecida pela lingüística descritiva e parece
compatível às considerações de Nietzsche. Tomando-se como exemplo o modo como
diferentes línguas representam as cores, percebe-se que não há uma
correspondência direta entre elas sendo que um termo para a cor x na língua y
pode corresponder a dois ou mais termos na língua z e, por vezes, tal
correspondência é apenas aproximada, pois a extensão semântica do termo para a
cor x em y recobre alguns aspectos de seus correlatos em z, porém não todos,
ficando estes simétricos a outras palavras de modos diversos.18 Ou seja, as
línguas possuem modos distintos de classificar o espectro das cores. Logo, tais
exemplos corroboram a idéia de linguagem como uma delimitação da realidade em
função das relações entre os falantes e as coisas, mostrando que a
correspondência com a realidade não é condição necessária ou satisfatória para
o sentido.
Obviamente é absurdo não considerar problemático ' para diversas situações '
que, ao pronunciar a sentença "isto é uma cadeira", o que se deseje indicar
seja uma mesa. Contudo, não é isso que está em questão quanto ao debate sobre a
(não) correspondência de algo à realidade. Afirmar x se tenho diante de mim y é
um problema gramatical. Indagar se "x" é a representação de x, isto é, se "x"
corresponde de um modo verdadeiro e certo a x, é uma questão "filosófica". O
que está sob inquérito não é se usamos correta ou incorretamente uma sentença,
porém se esta sentença se faz correta ou incorreta por sua correspondência a
estados de coisas. "Correspondência", nessa acepção específica, significa
"representação autêntica, fidedigna". Entretanto, uma representação, para ser
funcional, para comportar interação com o meio, não precisa, e mesmo dispensa,
como visto, "autenticidade". Os termos se ajustam de maneiras diversas a seus
referentes ' que, em um nível fino de análise, também são conceituais ' a
partir das necessidades humanas que preenchem. Ao usar um termo para me referir
ao objeto cadeira, o que está em questão para assegurar o êxito da comunicação
não é a representação acurada e sim a funcionalidade do termo quanto à
designação, isto é, se ele conduz o ouvinte ao que o falante se propõe enunciar
' apesar de que essa condução se faz de várias formas. Logo, enquanto em
português, se quero destacar uma cadeira, refiro-me a ela por "cadeira", em
inglês digo "chair", em alemão, "Tisch". Gramaticalmente, comete-se um equívoco
se não se designa uma cadeira, nessas línguas, por seus respectivos termos.
Porém, "filosoficamente", Nietzsche está a nos dizer que a ligação entre essas
figurações sonoras e os objetos não se faz por uma correspondência à realidade,
mas por uma transfiguração da realidade. As palavras ' e a própria linguagem '
são saltos qualitativos de uma esfera a outra, transposições semânticas,
"metáforas".
Pensando-se na composição estrutural do pensamento de Nietzsche, percebe-se que
sua concepção de linguagem é um corolário das investigações que realiza acerca
da sublimação (sublimiere). Como observa Walter Kaufmann,19 o termo remonta ao
alemão medieval e fora usado em sua acepção clássica por Goethe, Novalis e
Schopenhauer. Nietzsche chega a empregá-lo algumas poucas vezes nesse sentido
original para, a partir do segundo volume de Humano Demasiado Humano,20 fazê-lo
em sua conotação contemporânea, antecipando assim o uso psicanalítico. Passa
então a difundi-lo em vários contextos, seja ao referir-se ao super-homem
(Übermensch), às discussões sobre o Eros platônico e ao amor cristão, e mesmo
quanto à atuação da arte sobre os impulsos.21 Assim, um leitmotivimportante de
sua filosofia torna-se a compreensão do que acontece quando os impulsos são
sublimados. O impulso sexual, por exemplo, pode ser transfigurado em uma
atividade espiritual criativa e, de maneira semelhante, o desejo bárbaro de
tortura e violência pode ser sublimado pela disputa nos jogos olímpicos. Para
Kaufmann, embora não se trate aqui de uma doutrina que tem por base a "razão",
igualmente não corresponde a alguma forma de irracionalismo, pois, em sua
composição, a razão ocupa um lugar privilegiado. Todavia, a racionalidade não é
admirada porque nos permite elaborar conceitos, mas por organizar o caos
volitivo, integrando os impulsos em um todo harmonioso. A linguagem, portanto,
pensada como parte desse amplo processo de sublimação dos impulsos, é uma das
formas pelas quais alcançamos controle sobre as coisas e sobre nós mesmos.
É por isso que, n'A Gaia Ciência, Nietzsche sugere a hipótese de que a sutileza
e a força da consciência estão sempre relacionadas à capacidade de comunicação
de uma pessoa ou animal; e que essa capacidade de comunicação remete-se à
necessidade de comunicação.22 Recuperando-se a ficção heurística anterior,
esclarece-se porque o homem, sendo um animal ameaçado e desprotegido,
precisando de seus iguais, viu-se obrigado a adquirir meios cada vez mais
sofisticados de interação e compreensão mútua, através dos quais exprimiria
carências e vontades, assegurando uma cooperação que nos fortificaria frente
aos predadores naturais. Contudo, para nos fazermos entender, precisávamos
saber com precisão sempre maior o que nos faltava, afligia ou estimulava. Ou
seja, precisávamos discernir e ser capazes de expressar linguisticamente com
crescente exatidão acerca de nós mesmos. Por isso Nietzsche argumenta que a
necessidade de comunicação imperou para que desenvolvêssemos uma maior
capacidade de comunicação, cuja peça mais refinada ' e quem sabe excessiva '
talvez seja a consciência. A consciência que atua assim em dupla via, tanto na
representação lingüística dos estados de coisas que nos circundam quanto nos
que constituem nossa própria "interioridade", que, dessa forma, é conseqüência
das relações lingüísticas comunitárias. Ironicamente, Nietzsche diz que o
"conhece-te a ti mesmo" é um "desconhecer-se a si mesmo",23 já que somente
apresenta uma interioridade simulada a partir do modo gregário de constituição
simbólica do mundo. Portanto, sublimação, racionalidade, ciência, linguagem,
representação e consciência são expressões de um processo que é acima de tudo
criador, cuja matéria-prima é a desordem dos impulsos, e seu produto, sua
ordenação, visando principalmente a conservação de si e o domínio do real. Daí
que na origem do nosso conceito de conhecer Nietzsche avalie o desejo de tornar
algo que nos é estranho em algo que nos seja seguro, familiar.24 Este
"familiar" consiste nas estruturas e categorias que se mostraram ' ou que assim
o julgamos ' como adequadas para nossa conservação ou fortalecimento.
Retome-se agora uma questão anterior ainda em aberto: "o que significa afirmar
que a ciência e a arte são sintomas de uma condição vital?". Significa que o
homem atendendo a demandas e tendências como, por exemplo, tornar o mundo
estável, conhecido, mensurável, cria para si uma realidade à parte, a qual lhe
permite se tornar senhor do sentido das coisas. Torna-se senhor do sentido das
coisas porque é ele mesmo quem lhes confere o sentido que as limita e
condiciona as suas necessidades. Por isso,
se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois
de inspecionar um camelo: "Vejam, um animal mamífero", com isso
decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado,
quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto
que seja "verdadeiro-em-si", efetivo e universalmente válido, sem
levar em conta o homem. O pesquisador destas verdades procura, no
fundo, apenas a metamorfose do mundo em homem, luta por um
entendimento do mundo como uma coisa à semelhança do homem e
conquista, no melhor dos casos, o sentimento de uma assimilação.25
O homem é senhor do conhecimento porque é criador do próprio conhecimento. A
arte mantém e amplifica esse impulso criador. Entretanto, o homem do
conhecimento dele se "esquece".26 Esquece-se porque a ciência busca igualdade,
identidade, restrição calculada das possibilidades de interpretação, verdade,
incorrigibilidade. Para tais fins, a "folha primordial" parece mais importante
do que a folha. Em outras palavras, conjectura-se que o próprio movimento de
produção do conhecimento científico dissimula seu próprio aspecto criador. Se
todos os dias oriento-me por um relógio quanto as minhas atividades, não é
surpreendente que tal convenção ' a contagem segura e automática do tempo pelo
relógio ' seja estendida quase que naturalmente ao próprio tempo e, para
muitos, o próprio tempo seja em-si divisível, mensurável, dominável. O que se
perde de vista é que o relógio é apenas uma maneira de antropomorfia do tempo,
um modo de fazê-lo solidário às nossas demandas. Nesse sentido, criamos o
tempo, ou seja, criamos aquilo que podemos conhecer acerca do tempo. E o que
"esquecemos"? Esquecemos que somos criadores.
Essa condição descreve figurativamente um processo lento e gradual que, como
dito, parece ter sido desencadeado por necessidades vitais subterrâneas. Há uma
passagem d'A Gaia Ciência exemplar quanto a esse ponto. Nela questiona-se
acerca da origem do raciocínio lógico.27 Trata-se de pensar não pela verdade ou
falsidade da lógica, mas por quais condições ela se desenvolveu e proliferou.
Supõe-se que, originalmente, deveria haver seres que não soubessem distinguir
com bastante freqüência o "igual" no tocante a suas demandas essenciais, como a
alimentação ou a segurança. Que provavelmente a percepção desses seres
"ilógicos" pudesse mesmo ser mais "verdadeira". Para que haja uma percepção,
necessariamente precisa-se de distinção, segmentação: o indivíduo deve
diferenciar entre ele e o meio para saber que é ele quem percebe algo, que
partes de seu corpo estão na base de dadas percepções específicas, quais
estados de coisas se está a perceber etc. Logo, uma "percepção pura", isto é,
que reúna a totalidade de informações que se possa captar em um dado instante,
seria algo próximo a uma supressão completa da individualidade em um todo ' em
outras palavras, em uma percepção pura tudo e, paradoxalmente, nada, é
percebido! Aceitando-se a plausibilidade de tal análise em conjunção com a
idéia anterior de que as categorias lógicas não possuem correspondência com a
realidade, conclui-se que aqueles seres que pensavam logicamente são aqueles
que adquiriram mecanismos sofisticados de segmentação e abstração do real ' de
"falsificação" e "simplificação" dos estados de coisas, como, por exemplo, a
linguagem ' enquanto os indivíduos "ilógicos", por perceberem as coisas como um
"fluxo", talvez com maior riqueza de detalhes e por isso com uma interpretação
que melhor "correspondesse" à realidade, incapazes de deliberar sobre suas
percepções com maior agilidade e funcionalidade, foram extintos. Sugere-se,
portanto, que a lógica ' e por extensão, a razão e o conhecimento ' são
"falsos" e, justamente por isso, essenciais para a sobrevivência.28 Para
empregar uma imagem recorrente nos primeiros escritos de Nietzsche, é como se a
verdade precisasse ser recoberta pela ilusão para não se tornar mortal àquele
que a conhece.29
Mostrou-se uma ficção heurística segundo a qual se afirma que o conhecimento se
desenvolve, em suas mais diversas tendências, para dar resposta a demandas de
conservação e fortalecimento. A sobrevivência não é uma dificuldade restrita
apenas à alimentação, segurança e outras vias estritamente fisiológicas, mas
fundamentalmente diz respeito ao sentido, ao valor da existência. A ciência,
assim como a arte, a moral e a religião, são formas através das quais criamos
sentido para nossas vidas. Daí porque Nietzsche denomina o cientista, o
artista, o moralista e o asceta de "mestres do sentido da existência".30 Todos
estes tipos especializaram-se em dar sentido, em criar sentido, para nossas
representações da realidade.
Assim pensado, o processo de criação do conhecimento deixa de ser tomado como
mero falseamento das coisas para ser visto como uma intensificação da
realidade. O novo prometeu, o demiurgo contemporâneo,
por sua vigorosa ilusão, corre, indetenível [sic], até os seus
limites, nos quais naufraga seu otimismo oculto na essência da
lógica. Pois a periferia do círculo da ciência possui infinitos
pontos e, enquanto não for possível prever de maneira nenhuma como se
poderá alguma vez medir completamente o círculo, o homem nobre e
dotado, ainda antes de chegar ao meio de sua existência, tropeça, e
de modo inevitável, em tais pontos fronteiriços de periferia, onde
fixa o olhar no incompreensível. Quando divisa aí, para seu susto,
como, nestes limites, a lógica passa a girar em redor de si mesma e
acaba por morder a própria cauda ' então irrompe a nova forma de
conhecimento, o conhecimento trágico, que, mesmo para ser apenas
suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio.31
O conhecimento precisa da arte para não sucumbir ao seu próprio absurdo.
Precisar da arte é reconhecer-se e intensificar-se enquanto criação, como obra.
O olhar criador da arte, posto sob a face do homem do conhecimento,32 mostra-
lhe sua verdadeira função: domar o contra-senso, o sem-sentido,
circunscrevendo-lhe ao humano, transfigurando-o em meio de conservação e
fortalecimento da vida. Não é a verdade que está no impulso ao conhecimento,
mas a Vida.33 Por isso, para resgatar-lhe tal preceito, esquecido juntamente
com seu poder criador, é que se subscreve a ciência à arte e esta então à Vida.
O tipo criador do conhecimento é, desse modo, na estrutura do pensamento de
Nietzsche, um dos aspectos constituintes da criação de si mesmo, ou seja, do
processo de "se tornar aquilo que se é".34 A dita nova forma de conhecimento, o
"conhecimento trágico", consiste então no paradoxal e vital processo de dar
sentido ao incognoscível, encontrando no caráter criador e auto-referencial da
arte um "meio de proteção e remédio" contra os limites do sentido. Tal maneira
de conhecer se diz "trágica" por estar ciente da profunda incompreensão que
subsiste as suas refinadas estratégias de compreensão. Se tal condição pode ser
niilista e enfraquecedora para um apóstolo da Verdade, certamente é um
estimulante para aquele que cria aquilo que sabe.
Percebe-se, enfim, como várias considerações de Nietzsche acerca da relação
entre linguagem e representação permitem que as interpretemos como uma variação
do argumento do criador do conhecimento. Que o tipo criador daquilo que sabe
pode ser uma resposta para a crise auto-referencial que perpassa a
fundamentação racional daquilo que conhecemos, ao assumir, em analogia ao
artista, o caráter de artífice do que pode ser conhecido. Que tal disposição é
parte do tornar-se senhor de si mesmo, entendido como o estágio superior de
criação de si. Que a criação de si é se tornar diretamente responsável por sua
condição existencial, ou seja, pelo sentido de sua vida. E que, apesar da
filosofia de Nietzsche ' mesmo em suas investigações sobre linguagem e
representação ' não ser redutível ao argumento do criador do conhecimento e
vice-versa, a conjunção entre eles parece avivar aspectos que lhes são
igualmente relevantes.
Uma vez que o chamado "problema da ciência" ' a pergunta por qual impulso
desencadeia a vontade de saber ' foi aqui a questão inicialmente indicada como
acesso às relações entre conhecer e criar, entende-se como Nietzsche pode ser
um aliado para que, enquanto criadores, possamos sobreviver ' e superar ' ao
belo e assustador conhecimento de nós mesmos.
A Ivan Domingues, amigo e criador do conhecimento
1 A formulação do argumento do criador do conhecimento aqui apresentada segue
Ivan Domingues em seu Epistemologia das Ciências Humanas (Tomo I) (São Paulo:
Loyola, 2004. Parte I, cap. 1).
2 Uma dessas variantes é apresentada por Bernardo Jefferson que, reportando-se
à sugestão de Vico como primeira apresentação explícita do argumento do
criador, discute sua pertinência, especialmente em Francis Bacon, concentrando-
se nas mudanças que sua adoção implicam para a tradicional oposição entre
epistéme e téchne (Cf. OLIVEIRA, B. Francis Bacon e a Fundamentação da Ciência
como Tecnologia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. cap. 9).
3 A autoria do trilema de Münchhausen bem como um estudo de algumas de suas
principais conseqüências foi proposto por Hans Albert (Cf. Tratado da razão
prática. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976). Porém,
sabe-se que o referido trilema simplesmente retoma três argumentos dos que
compõem o pentalema desenvolvido originalmente por Agripa, citados
explicitamente por Diógenes Laércio (Vida e Obra dos Filósofos Ilustres, IX,
88-89) e por Sexto Empírico (Hipotoposes Pirrônicas, I, 164-
170) como partes das estratégias céticas para obter a
suspensão do juízo.
4 Para uma leitura de alguns projetos da tradição a partir do trilema de
Münchhausen, consulte-se: LUFT, Eduardo. Fundamentação última é viável? In:
LIMA, C.; ALMEIDA, C. (Org.). Nós e o Absoluto. São Paulo/Fortaleza: Loyola/
UFC, 2001, p. 79-97.
5 Ivan Domingues (2004, p. 35), observa que, segundo Pérez-Ramos, "[o argumento
do criador do conhecimento] constitui uma das correntes subterrâneas mais
poderosas do pensamento ocidental, recebendo, antes e depois de Vico, um
conjunto de formulações paralelas mais ou menos elípticas da parte de autores
ilustres, como Bacon, Kant, Hobbes e Boyle".
6 Inicialmente empregado em discussões sobre a idéia de liberdade como auto-
determinação (sentido que remonta a Aristóteles, Plotino e ao neoplatonismo
árabe), parece ser quando das discussões ontoteológicas na modernidade que a
idéia de causa sui assume explicitamente o aspecto de criação ou autocriação
que lhe é imanente. Embora apressado, não seria de todo equívoco sugerir que
esta capacidade de auto-criação Divina fora, no contexto pós-renascentista,
atribuída por analogia ao homem. Daí Bacon ter dito que "O homem é o Deus para
o homem" e Vico afirmar que "Deus é o artífice da natureza, o homem, o Deus dos
artefatos" (apud OLIVEIRA, B, 2002, p. 141). Para mais informações sobre a
noção de causa sui, consulte-se a nota complementar I de Joaquim de Carvalho a
sua tradução da Ética de Espinosa para a coleção "Os Pensadores" (1979, p.
123), bem como o verbete correspondente em: ABBAGNANO, N.
Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1970.
7 Para Nietzsche, Schoppenhauer seria o principal responsável pela introdução
do problema do valor da existência na filosofia moderna. Este consistiria na
pergunta por se a existência tem algum sentido; questão que, julga-se, "(...)
precisará de alguns séculos para simplesmente ser ouvida em toda a sua
profundidade" (Cf. A Gaia Ciência (GC), § 357). Todas as traduções das obras de
Nietzsche serão mencionadas ' salvo indicação contrária ' com referência às
realizadas para a coleção coordenada por Paulo César de Sousa (Companhia das
Letras). Já as citações se fazem por abreviatura indicada, seguida de capítulo
e/ou seção correspondente.
8 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia (NT), pr. 2 (grifos meus).
9 NIETZSCHE. Humano, Demasiado Humano (HH), § 13.
10 Uma discussão proveitosa acerca da influência da filologia na filosofia de
Nietzsche está em: WISMANN, H. Nietzsche et la Philologie. In: BOURGOIS, C.
Nietzsche Ajourd'hui. Paris: Union Générale D'Éditions, 1973. p. 325-335. Quanto à genealogia e seu recurso a uma filosofia da
gramática enquanto instrumento de crítica epistêmica, veja OWEN, D. Maturity
and Modernity: Nietzsche, Weber, Foucault and the ambivalence of reason.
London/New York: Routledge, 1994. Uma excelente introdução
aos princípios operacionais da filologia ' aplicados ao estudo da língua
portuguesa ' encontra-se em S. Elia (Preparação a Lingüística Românica. Rio de
Janeiro: Acadêmica, 1974).
11 HH, § 13.
12 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, B VIII-XII.
13 Uma apresentação e comentário dos termos "realismo" e "anti-realismo" na
filosofia da linguagem contemporânea, em oposição crítica a sua formulação
original por Michael Dummet, é realizada por Richard Rorty (Objetivismo,
Relativismo e Verdade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 13-33).
14 NIETZSCHE. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral(VM), § 1. Utiliza-se aqui a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho publicada
na Coleção "Os Pensadores" (1978, p. 41-52).
15 VM, § 1.
16 Em "Wittgenstein e o problema do significado" (In: AMORA, K.; CHAGAS, E.
(Org.). Temas da Filosofia Contemporânea. Fortaleza: Edições UFC, 2004. p. 109-
122), defendo que, por vias distintas, Wittgenstein chega,
nas Investigações Filosóficas, tratando especificamente do problema da
referência (bedeutung), a uma posição análoga a que aqui se atribui a
Nietzsche. Se isto estiver correto, soma-se aos argumentos apresentados por
Arthur Danto, para justificar que "Nietzsche, comumente interpretado como um
predecessor da tendência irracionalista na filosofia contemporânea, em suas
próprias obras assume posturas que vão em direção aos principais problemas que
perpassam o espírito do Positivismo Lógico" (Cf. DANTO, Arthur. Nietzsche as
Philosopher. Columbia: Columbia University Press, 1965, p. 82-83). Acrescentaria, para alimentar a polêmica, que Nietzsche não apenas
antecede o Positivismo Lógico e a Filosofia Analítica como também e sobretudo
os ultrapassa. Especificamente quanto à questão da referência, enfatizo que
esta vem recebendo um tratamento similar por novas tendências da lingüística
contemporânea. Como nos conta L. Mondada e D. Dubois, quanto à referência: "o
problema não é mais, então, de se perguntar como a informação é transmitida ou
como os estados do mundo são representados de modo adequado, mas de se buscar
como as atividades humanas, cognitivas e lingüísticas, estruturam e dão um
sentido ao mundo. Em outros termos, falaremos de referenciação, tratando-a,
assim como à categorização, como advinda de práticas simbólicas mais que de uma
ontologia dada. (...) a referenciação não diz respeito a 'uma relação de
representação das coisas ou dos estados de coisas, mas a uma relação entre o
texto e a parte não-lingüística da prática em que ele é produzido e
interpretado" (MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos do discurso e
categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE,
M.; RODRIGUES, B.; CIULLA, A. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003,
p. 20).
17 VM, § 1.
18 Uma exemplificação deste fenômeno pode ser encontrada em H. Gleason Jr.
(Introdução à lingüística descritiva. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1985, p. 4-5). Através de um diagrama, o
lingüista demonstra que falantes de diferentes línguas classificam o espectro
das cores de maneiras muito distintas a partir do contraste entre o inglês, o
shona (uma língua da Rodésia) e o bassa (da Libéria).
19 Cf. KAUFMANN, W. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist. 4. ed.
Princeton: Princeton University Press, 1974. cap. 7-8.
20 HH II, § 95.
21 Cf, por exemplo, Além do Bem e do Mal (BM), § 189; Genealogia da Moral(GM)
II, § 7; Vontade de Poder (VP) § 677.
22 GC § 354.
23 GC, § 354.
24 GC, § 355.
25 VM, § 1.
26 A categoria de "esquecimento" em Nietzsche é complexa e seu maior
detalhamento excederia os limites deste trabalho. Para sua melhor
caracterização, consultar GM, I, § 2, § 3; II, § 1, § 3.
27 GC, § 111.
28 Passagens como esta corroboram a tese de Richard Schacht de que Nietzsche
desenvolve o que se poderia denominar de uma "epistemologia naturalizada". Em
um capítulo intitulado "Em direção a uma epistemologia naturalizada", Schacht
observa que "um dos pontos que distingue a abordagem nietzscheana acerca das
questões epistemológicas é sua concepção do homem como uma particular'espécie
animal' com certas capacidades que se originaram e se desenvolveram, a
semelhança aos demais seres vivos, como estratégias de sobrevivência. (...) O
tipo de abordagem por ele assumida pode assim ser caracterizada como
'naturalista'" (Cf. SCHACHT, Richard. Nietzsche. London/Boston: Routledge,
1983, p. 54-55). Apesar de concordar que, tomando-se a
expressão em sentido amplo, pode-se designar o tratamento de Nietzsche à
epistemologia como "naturalista" na acepção de Schacht, parece-me que essa
caracterização, caso estendida ao todo das considerações de Nietzsche nesse
campo, não dão conta das diferentes estratégias por ele utilizadas ao pensar o
conhecimento, como o próprio Schacht também reconhece no prosseguimento de sua
argumentação. Todavia, identificar em Nietzsche uma "epistemologia
naturalizada", mesmo que restrita, é uma forma interessante e eficiente de
atualizar-lhe o discurso ao projetá-lo nos debates epistêmicos contemporâneos.
29 Quanto ao "problema da ciência", Roberto Machado avalia que "[Nietzsche]
negando à ciência a possibilidade de ela mesma elucidar sua questão, negando a
uma crítica interna do conhecimento a possibilidade de se constituir como uma
verdadeira crítica, o essencial da démarche consiste em articular a ciência com
uma exterioridade capaz de revelar as reais dimensões e os objetivos do projeto
científico; consiste em explicar os fundamentos morais da ciência, apontando,
ao mesmo tempo, a arte como um modelo alternativo para a racionalidade. Daí o
privilégio da arte e da moral como instâncias que possibilitam o discurso
nietzscheano sobre a ciência, indicando-lhe suas duas direções principais" (Cf.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002, p.
8).
30 GC, § 1.
31 NT, § 15 (grifo meu).
32 HH, § 222.
33 GC, § 111.
34 Um debate mais específico sobre a criação de si mesmo em Nietzsche está em
A. Nehamas (Life as literature. Cambridge/Londres: Harvard University Press,
2002).