Synanaireĩsthai e Aufheben: alguns aspectos das dialéticas platônica e
hegeliana
Tendo em vista sua compreensão, a concepção hegeliana da dialética pode ser
colocada no contexto de toda a história da própria dialética, dentro da qual
sua interpretação particular da dialética, justamente em virtude do confronto
com interpretações alternativas daquilo que nelas é a dialética, adquire
contornos definidos. Também interessante e fecundo é o acompanhamento da
discussão de Hegel com a dialética clássica. Uma outra variante consiste em
proceder a uma investigação da Lógica hegeliana, a fim de levar a cabo, a
partir de dentro, i.e., partindo do próprio movimento da ideia, um confronto
semelhante ao que acima foi citado, o qual anteriormente, no entanto, foi
produzido a partir de fora do movimento da ideia.2
Pretendo tomar um outro caminho, porque tenho um outro propósito. Em primeiro
lugar, não quero ocupar-me com uma discussão sobre a totalidade da Lógica
hegeliana. Diferentemente, concentro-me na avaliação hegeliana da dialética
platônica. Em segundo lugar, lido, dentro da complexa temática das dialéticas
platônica e hegeliana, com os significados de synanaire)sthai e Aufheben. Em
terceiro lugar, não quero repetir uma simples reprodução da crítica de Hegel à
dialética platônica. Faço uso, portanto, dos resultados disponíveis do novo
paradigma de pesquisa sobre a filosofia de Platão, a fim de também avaliar a
compreensão hegeliana da dialética platônica.
Em razão disso, procuro, primeiramente, lançando mão dos textos de Platão,
Aristóteles e Sexto Empírico, esclarecer o sentido de synanaire)sthai. Depois
passo, então, ao comentário hegeliano da dialética platônica, no qual os
significados de synanaire)sthai e Aufheben são debatidos, mas também algumas
diferenças entre ambos os modos dialéticos de investigação são discutidas.
Platão: Synanaire)sthai
Do ponto de vista da construção dos níveis do ser e sua complexa dialética,
Gaiser soube explicar como ela é levada a cabo mediante a articulação entre
matemática e ontologia.3 Synanaire)sthai é a palavra ressaltada por Gaiser em
sua interpretação de Platão e traduzida como estar-cosuprassumido
(Mitaufgehohensein).4 Interpretação e tradução não são oriundas, no entanto,
dos próprios textos de Platão, mas do relato de Sexto Empírico sobre os
pitagóricos. Segundo o mesmo Gaiser, todavia, o relato recupera, na verdade, as
comunicações orais de Platão, as quais foram erroneamente associadas por Sexto
Empírico à posição dos pitagóricos. Posteriormente, no entanto, a vinculação
com o texto platônico será feita tanto no livro de Gaiser quanto no transcurso
desse trabalho.
O relato de Sexto Empírico aborda os níveis do ser e a dialética de construção
desses níveis. Em uma primeira e simplificada apresentação, são listados três
níveis do ser: corpos sensivelmente perceptíveis, corpos apreendidos apenas
pelo pensamento (noetá) e inacessíveis aos sentidos (ádela), objetos
incorpóreos (tà asómata).5 Os "filósofos genuínos" deveriam adotar um
procedimento semelhante à análise da linguagem (lógos), segundo a qual o que
compõe a linguagem é a palavra. A palavra, por sua vez, tem sílabas como seus
componentes. Essas são formadas pelo que Sexto Empírico denomina "os elementos
da língua escrita".6 Esse procedimento consiste, pois, na redução de um objeto
a seus elementos constituintes. Aplicado ao estudo dos níveis do ser, isto
significa a redução dos corpos sensivelmente perceptíveis aos corpos
apreendidos apenas pelo pensamento e inacessíveis aos sentidos; esses, por sua
vez, se decompõem, finalmente, em objetos incorpóreos, os quais não são mais
regressivamente dissolvidos em um novo pressuposto. Há, evidentemente, uma
relação de unilateralidade entre o plano supraordenado e o subordinado, de tal
forma que esse não pode existir sem aquele.
Posteriormente, a investigação de Sexto Empírico sobre a hierarquia dos níveis
do ser é aprofundada mediante recurso à matemática. Os corpos sensivelmente
perceptíveis (1) não podem ser pensados e existir sem as figuras
tridimensionais, extensas em todos os lados (2). Essas, por sua vez, carecem da
superfície ou do plano (3) como aquilo que antecede às figuras tridimensionais.
A superfície, por seu turno, tem como pressuposto a linha (4), a qual é
precedida pelo número (5). Esse, finalmente, é produto do Uno e da Díade
Indeterminada (6).7 Em virtude dessa decomposição, o ser negado (anaire)sthai)
do gênero (génos) implica necessariamente o ser-conegado (synanaire)sthai) de
todas as ideias ou espécies que estão sob o poder organizatório do gênero, uma
vez que aquelas dependem deste. Assim sendo, também a linha é co-negada, se o
número é negado, o qual, perante a linha, atua como gênero.8 Aqui,
synanaire)sthai apresenta o seu caráter negativo, vinculando necessariamente a
negação do plano superior com a negação dos planos que lhe são hierarquicamente
subordinados.
Em A República os níveis hierárquicos do ser são analisados na perspectiva da
alma ascendendo ao princípio de tudo, e um outro aspecto de synanaire)sthai,
além da negação acima ressaltada, é focalizado, a saber, na preservação e
conservação do que foi negado. A fim de sublinhar esse novo sentido de
synanaire)sthai, é importante vincular o texto sobre a linha do saber (509c -
511e) com a passagem que esclarece o método dialético (533c - 535a). O texto
sobre a linha do saber articula os pathémata (faculdades) da alma com os
objetos com os quais cada uma dessas faculdades lida. Assim, a imaginação
(eikasía), a menos potente dessas faculdades, tem como objeto as imagens ou
sombras das coisas sensíveis, ao passo que a crença (pístis) refere-se aos
próprios objetos sensíveis. Ambas as faculdades dizem respeito à opinião
(dóxa), incapaz de indicar nela mesma um critério seguro para suas afirmações.
Em oposição à opinião está a ciência (epistéme), a qual, por sua vez,
subdivide-se também em dois momentos: conhecimento dianoético ou mediano
(diánoia) e conhecimento noético ou intelecção (nóesis). O primeiro tem diante
de si os objetos matemáticos, enquanto que o segundo tematiza as ideias, suas
relações e sua vinculação com a Ideia do Bem. Ambas(os) tratam do mundo
suprassensível.9
A relação dos seis níveis do ser citados pelo relato de Sexto Empírico com as
quatro faculdades de conhecimento expostas em A República torna-se evidente, se
a relação das dimensões espaciais com as faculdades de conhecimento tratada no
De anima é levada em consideração - relação essa constatada por Gaiser10 e que
reproduz parte do ensinamento oral de Platão. As dimensões espaciais são
unidade ou ponto, linha, plano e corpo, e as quatro faculdades de conhecimento
citadas por Aristóteles recebem, de fato, outros nomes, mas, no fundo,
correspondem aos pathémata da alma descritos em A República - nóesis, diánoia,
pístis e eikasía: nois (conhecimento noético), epistéme (ciência), dóxa
(opinião) e aísthesis (percepção sensível).11 A relação de analogia é por
Gaiser apresentada da seguinte forma: conhecimento noético refere-se à unidade
ou ao ponto, ciência à linha, opinião ao plano e, finalmente, percepção
sensível ao corpo.
Em virtude disso, o texto da A República, mediatizado pelo texto de
Aristóteles, pode, então, ser vinculado ao relato de Sexto Empírico da seguinte
forma: os níveis do ser (1) até (3) formam a contraparte ontológica das
faculdades que se ocupam com o mundo sensível. Enquanto a eikasía ou a
aísthesis aristotélica tem por objeto os níveis do ser (1) e (2), compreende a
pístis (a dóxa aristotélica) o nível do ser (3). Os outros níveis do ser - do
(4) ao (6) - dizem respeito ao mundo suprassensível. A diánoia ou a epistéme
aristotélica é confrontada com objetos matemáticos, nível do ser (4), ao passo
que a nóesis ou o nois lida tanto com o número, nível do ser (5) - o qual nesse
contexto do relato, de acordo com o texto aristotélico, deve ser interpretado
como ideia12 - quanto com os princípios opostos do Uno e da Díade
Indeterminada, nível do ser (6).
As relações acima explicitadas podem ser resumidas no seguinte quadro:
O papel mediador da matemática torna-se bastante evidente, na medida em que ela
atua como uma espécie de dobradiça entre os planos suprassensível e sensível,
entre as ideias e os fenômenos. Em comum com o mundo suprassensível os objetos
matemáticos têm imobilidade e eternidade, ao passo que a sua comunidade com o
mundo sensível reside no fato de que há muitos exemplares semelhantes dos
objetos matemáticos. A ideia, ao contrário, é somente uma.13 Não por acaso, a
matemática ocupa um lugar importante no pensamento de Platão e está
estreitamente relacionada com sua ontologia. Os matemáticos, no entanto, não
consideram necessário dar razão (lógon didónai) dos pressupostos (hypostáseis)
de sua ciência tanto a si mesmos quanto a outros. O conhecimento dianoético,
juntamente com a imaginação e a crença, são, portanto, deficientes e têm de dar
lugar a um outro saber capaz de não mais sucumbir às deficiências dessas três
faculdades. Esse saber é a nóesis, a qual, ao partir das hypostáseis, alcança o
anypótheton: aquilo que não mais carece de pressupostos para ser e ser
explicado. Eis aí a última estação cognitiva alcançada pelo filósofo14 ou pelo
dialético.15 Ela caracteriza o que é especificamente pertinente à filosofia,
que, em razão do poder de desempenho cognitivo da nóesis, se distingue de
outras formas de saber.
Assim sendo, é claramente exposto por Platão que o filósofo não só exerce, de
forma apropriada, eikasía, pístis e diánoia, particularmente porque ele
apresenta as inconsistências de suas pretensões a um saber irrefutável, mas
também e principalmente exercita, em seu grau máximo de excelência, a mais
potente (nóesis) das faculdades da alma. Ao exercitar com maestria as
faculdades da alma, o filósofo se mostra como um profundo conhecedor de sua
própria alma e da alma alheia. Consequentemente, ele se encontra na melhor
posição para educar os seres humanos para o melhor uso das faculdades da alma,
justamente porque ele já percorreu todo o espectro dos pathémata da alma e
conhece, portanto, tanto a especificidade de cada páthema quanto o objeto
associado a cada páthema. Ora, é tarefa do filósofo, tal como Platão a
compreende, o exercício do método dialético. Esse consiste em elevar os
pressupostos (tàs hypothéseis anairoisa) até o princípio (ep' autèn tèn
archèn), que é anipotético e incondicionado, propiciando também ao olho da alma
(tò tês psychês ómma) elevar-se da lama ao alto, ao plano supremo das ideias e
daquilo que é seu princípio. O método dialético exige, portanto, a
transcendência de níveis inferiores e deficientes do saber. Essa transcendência
não significa, todavia, a extirpação daquilo que foi transcendido. Ao filósofo
assim interpretado por Platão cabe a habilidade de transitar pelos pathémata da
alma, sem deixar-se aprisionar pelos limites da eikasía, pístis, diánoia e da
própria nóesis, enquanto o saber noético não atinge o ponto final de sua viagem
onto- e gnoseológica.
As passagens acima referidas do texto de Sexto Empírico sobre a doutrina não-
escrita de Platão e do diálogo A República expressam os significados envolvidos
em synanaire)sthai. O ser-conegado dos níveis inferiores e posteriores do ser
mediante o ser-negado do nível superior e anterior, tal como ele foi explicado
no relato de Sexto Empírico, é a contraparte dialética descendente da dialética
ascendente da alma, tal como mostrada no diálogo. Na dialética ascendente, o
elevar os pressupostos ao princípio anipotético apresenta uma transcendência
que é, simultaneamente, imanência; uma negação que é, simultaneamente,
preservação e conservação do que foi negado: o ser-copreservado. Ao transitar
pelos níveis do ser, por exemplo, dos fenômenos aos objetos matemáticos, o
nível transcendido ou negado não está eliminado pelo novo nível afirmado, o
qual, então, vem a ser o novo e imanente horizonte de ação da alma, até o
momento em que ele seja mais uma vez transcendido.
O texto de Sexto Empírico, por um lado, acentua o caráter negativo de
synanaire)sthai, porque ele, de acordo com Gaiser, em primeiro lugar, tematiza
a construção dos níveis do ser, desde as figuras tridimensionais até o par "Uno
e Díade Indeterminada", e porque, em segundo lugar - se levarmos em
consideração, em uma perspectiva descendente, os níveis do ser - também a
dependência do nível posterior em relação ao nível anterior é demonstrada. O
texto escrito de Platão, por outro lado, sublinha tanto o caráter negativo
quanto o "conservador" de synanaire)sthai, porque ele investiga o percurso da
alma que simplesmente não se desfaz do páthema negado, mas também o carrega em
sua viagem "para cima".
O caráter negativo de synanaire)sthai até então destacado no relato de Sexto
Empírico é, no entanto, unilateral, porque ele foca a atenção apenas no ser-
conegado do nível subordinado mediante o ser-negado do nível superior. Se, no
entanto, prestarmos atenção ao nível posterior e subordinado, então constatamos
que ele possui também negação e preservação, como este é também o caso no texto
de Platão. Negação, na medida em que a composição dos elementos formadores de
um determinado nível do ser supera esses elementos enquanto tais, como, p. ex.,
a composição da linha, a saber, o plano, nega as linhas enquanto tais, ou como,
p. ex., a composição das sílabas, i. e., a palavra, não mais pode ser igualada
às meras sílabas enquanto tais. Preservação, na medida em que a estrutura do
nível posterior e subordinado contém em si o todo do nível anterior e
supraordenado, enquanto esse todo atua como componente do nível posterior e
subordinado, como p. ex. o plano tem em si as linhas como seus componentes.
Hegel: Aufheben
Em seu comentário16 à filosofia de Platão, Hegel, primeiramente, qualifica o
próprio Platão como "um dos indivíduos histórico-mundiais" e sua filosofia como
"uma das existências histórico-mundiais", em razão da "influência extremamente
significativa" por ela exercida na "formação e desenvolvimento do espírito",
pelo menos do espírito ocidental, acrescentaria. Em segundo lugar, ainda dentro
de um contexto introdutório de caracterização do pensamento platônico como um
todo, Hegel aponta para o elemento específico da filosofia platônica, a saber,
"a elevação da consciência ao reino espiritual", "o direcionamento [da
consciência, LAV] ao mundo intelectual, suprassensível".17 Isto é propriamente
o que no texto platônico é denominado "segunda navegação",18 em oposição à
consciência direcionada exclusivamente ao âmbito empírico, sensível e material.
Em terceiro lugar, Hegel mostra-se convicto de que a filosofia platônica
encontra-se plenamente explicitada nos diálogos, não havendo, portanto, uma
doutrina esotérica, não-escrita e oral, capaz de complementar e esclarecer o
que nos diálogos não é resolvido ou meramente aludido de forma obscura.19
Em virtude disso - e justamente em oposição aos estudos do novo modelo
interpretativo da filosofia platônica que levam em conta os relatos sobre a
doutrina oral e discutem o saber como sistema em Platão20 - Hegel, em quarto
lugar, constata a ausência de "uma exposição sistemática da filosofia" em
Platão, pois "a formação (Bildung) filosófica de Platão ainda não estava madura
para isso [apresentação sistemática do discurso filosófico, LAV]". Somente
Aristóteles chegou à "exposição científica e sistemática" do saber
filosófico.21 A imaturidade da paideia filosófica de Platão não é, todavia,
resultado de fraquezas do indivíduo Platão, mas de uma deficiente determinação
da ideia mesma, i. e., de uma limitação histórica no exercício da própria
filosofia, cuja face mais visível é a mistura (Vermischung) entre representação
(Vorstellung) - o mito - e o conceito (Begriff) ou o puro pensar. Platão lança
mão frequentemente de fábulas e figuras do mundo sensível para explicar aquilo
que, na perspectiva de Hegel, é tarefa do puro conceito. O mito, enfatiza
Hegel, é apenas uma "pedagogia do gênero humano",22 um instrumento didático
para aquela fase da história humana na qual "o pensamento ainda não é livre"23
- livre dos contos fabulosos, fantásticos, das representações sensíveis e, com
isto, movendo-se na sua própria esfera. Essa mistura dificulta, pois, aquela
"exposição sistemática da filosofia" exigida pelo puro conceito, já que "não há
qualquer critério (Ma
β
tab), se o objeto [que se encontra sob investigação, LAV] está esgotado ou
não".24 Restam, pois, no final sempre incompletude e aporia.
Ao mesmo tempo que não constata uma organização sistemática do saber filosófico
em Platão, a qual permite à filosofia ser uma enciclopédia do saber, i. e., uma
formação circular oriunda do próprio conteúdo do saber em sua dinâmica
imanente, afirma Hegel, de modo surpreendente, que "em seus discursos orais"
(in seinen mündlichen Reden) Platão adota um procedimento sistemático.25 Ele
também salienta que "a obra dogmática de Platão sobre as ideias", i. e., a
dialética dos pensamentos puros, a qual é acompanhada pelo páthema da nóesis,
está perdida,26 embora haja uma espécie de compensação para essa perda, a
saber, os escritos Parmênides, Sofista e Filebo, nos quais a dialética dos
pensamentos puros é abordada, fazendo desses escritos os mais difíceis dentre
os textos platônicos. Se Hegel, de fato, estava ciente da tradição indireta dos
ensinamentos orais de Platão, como o texto dessas Preleções sobre a história da
filosofia testemunha,27 Hegel, todavia, não conseguiu obter uma visão da
sistematicidade do pensamento de Platão, como o novo paradigma de pesquisa
sobre a filosofia de Platão, graças ao estudo daquele material, pode agora
apresentá-la. A este ponto voltarei de forma mais detalhada na sequência do
texto.
Em seu comentário, ele adota uma abordagem da filosofia platônica tomando como
base a organização do seu próprio sistema de filosofia. Assim sendo, a
filosofia especulativa ou lógica corresponde à dialética, a filosofia da
natureza encontra-se formulada particularmente no Timeu e, finalmente,
filosofia do espírito tem também uma contraparte platônica assim dividida: a) a
filosofia teórica do espírito: as "espécies de conhecimento" acima discutidas
em A República; b) a filosofia prática do espírito: "exposição de um Estado
perfeito" também em A República.28
Passo, então, ao tema da dialética, objeto de estudo desse trabalho. De uma
maneira geral, Hegel reconhece na dialética platônica a coordenação das ideias
entre si e também sua apreensão pelo páthema da nóesis. Avalia, porém, que
Platão não está plenamente ciente do que é a "natureza da dialética".29 Em que
consiste, pois, essa deficiência de Platão acerca da "natureza da dialética"?
Primeiramente, ele critica a interpretação da dialética promovida pelo
"filosofar formal", segundo a qual o que é próprio da dialética é confundir
conceitos, de tal forma que o resultado seja meramente negativo. Essa é a
dialética raciocinante (råsonierende Dialektik). Hegel está convicto de
encontrar esse tipo de dialética também em alguns diálogos de Platão. Salienta,
no entanto, que a dialética platônica não se resume a conclusões meramente
negativas, mas também conduz à ciência das ideias, à dialética especulativa
(spekulative Dialektik). Essa dialética negativa e raciocinante assemelha-se à
dialética dos sofistas.30
Em segundo lugar, Hegel também constata uma outra dificuldade na compreensão da
dialética platônica. Ela reside no fato de que a ideia no sentido platônico,
filosoficamente traduzida por Hegel como universal (Allgemeines), gênero
(Gattung) e espécie (Art),31 seja frequentemente exposta em associação com a
representação, o sensível, a fim de levar a cabo a "transformação da opinião
sensível no pensar",32 como tal transformação também é apresentada pela linha
do saber acima descrita. O estreito vínculo entre ideia e representação, além
de dificultar a compreensão da filosofia como sistema, como já dito acima, traz
consigo um outro problema: ele dificulta o acompanhamento do pensamento que se
move a si mesmo e em si mesmo, liberto das representações sensíveis, tal como
os textos escritos da linha do saber e do método dialético explicitam, e tal
como Hegel também fará na Ciência da Lógica.
Se, em Hegel, a Fenomenologia do Espírito tem como tarefa expor o movimento da
consciência até aquele ponto "em que ela depõe sua aparência (Schein) de estar
acometida com algo alheio que é apenas para ela e é como um outro"33 e,
portanto, abandona a posição de uma verdade em si, posta erroneamente como
independente do saber, e, enfim, ela atinge o nível cognitivo necessário para
acompanhar o movimento da ideia ou lógico em sua imanência (Ciência da Lógica)
e, posteriormente, seu desdobramento na natureza (Filosofia da Natureza) e no
espírito (Filosofia do Espírito), a alma, em Platão, por sua vez, eleva-se,
através dos níveis do ser e conhecer, até o páthema da nóesis, o qual, então,
lhe coloca em condições de lidar com as ideias em si mesmas e suas relações.
Assim sendo, guardadas as devidas proporções e diferenças entre as filosofias
de Platão e Hegel, é legítimo dizer que eikasía, pístis e diánoia correspondem
ao que é exposto pela "ciência da experiência da consciência", a Fenomenologia
do Espírito, e cumprem, pois, funções análogas àquelas exercidas pelas figuras
da consciência.
Tanto em um caso - na Fenomenologia, através do "caminho da dúvida" e "o
caminho do desespero"34 - como também no outro - na filosofia de Platão,
mediante a dialética raciocinante, segundo a terminologia de Hegel - cada novo
e superior plano de evolução da alma ou consciência implica uma melhoria no
próprio saber, de tal forma que o ápice do saber não é alcançado imediatamente,
mas exige várias mediações e estações. Em Platão, as insuficiências da eikasía
e pístis são tematizadas na passagem da primeira para a segunda navegação no
Fédon (95a - 99d). Nesse contexto, ele procura evidenciar os problemas
insolúveis advindos de uma interpretação do ser restrita exclusivamente ao
mundo da dóxa. Em A República, a segunda navegação é aprofundada mediante a
identificação das deficiências do discurso matemático, que exigem, por sua vez,
a passagem para o plano das ideias e da Ideia do Bem, acima da qual, portanto,
nada mais pode ser pressuposto. Com isto, a jornada da alma alcança seu termo
final. Em Hegel, as figuras da consciência são marcadas também por
deficiências. Afinal, sem elas não haveria sentido transitar de uma figura para
a outra. Assim, p. ex., a opinião da certeza sensível não se sustenta, porque
defende um saber puramente imediato acerca de um objeto também por ela
interpretado como pura imediatez. Desta opinião insatisfatória resulta, então,
a percepção, capaz de suprassumir a opinião mediante o fato de que são aceitos
tanto o imediato defendido pela certeza sensível quanto o mediatizado
confirmado, de fato, na experiência, mas refutado pela opinião.
A experiência da consciência, bem como Ciência da Lógica, Filosofia do Espírito
e Filosofia da Natureza, testemunham a "negação determinada".35 Cada nível de
desenvolvimento produzido nessas esferas obedece ao ritmo do "suprassumir"
(Aufheben): "negar" (Negieren) und "conservar" (Aufbewahren).36 Ele faculta a
passagem de um nível determinado de desenvolvimento para um outro, evita a
parada do movimento e a pura negação que conduz ao nada, a nenhuma nova forma
de manifestação da consciência, do lógico, da natureza e do espírito. Nessas
linhas bem gerais, corresponde o suprassumir àquilo que synanaire)sthai
expressa. Ambos expressam uma rede de relações que fomentam o avanço, novas
configurações daquilo que aí se movimenta, mas também constroem vínculos com o
já superado e, com isso, deixam surgir um todo bem estruturado.
Vencida, ao final da experiência fenomenológica da consciência, a ilusão de uma
verdade alienada do saber - isto é justamente o saber absoluto - a consciência
está, então, apta a acompanhar o movimento da ideia em si mesma, enquanto
objeto daquilo que Hegel denominava, em sua interpretação de Platão, dialética
especulativa. As figuras da consciência são agora objeto da rememoração
interiorizante (Erinnerung) ou do seu ir-para-dentro-de-si (Insichgehen),37 nos
quais a consciência conserva (aufbewahrt) as figuras já ultrapassadas, enquanto
elas são a existência desaparecida (verschwundenes Dasein) e, portanto, negada
da consciência ou do espírito. Livre de uma vida que não mais corresponde a seu
conceito, a consciência não lida com a ideia refletida nas figuras da
consciência, mas com a própria ideia, o lógico apartado de sua presença no
sensível.
A alma, por seu turno, para lembrar a imagem utilizada por Platão, inicialmente
com os olhos atolados na lama, faz prevalecer a visão que lhe é própria, quando
enfraquece seus laços com o corpo e recorda-se das ideias contempladas antes de
sua união com o corpo. O olho da carne deve dar lugar ao olho da alma, a fim de
que a epistéme substitua a dóxa. A união do corpo com a alma sempre forma, no
entanto, um obstáculo para um verdadeiro conhecimento dos objetos, produzindo,
principalmente, nos pathémata da diánoia e nóesis uma limitação de sua atuação.
A recordação (anámnesis)38 das ideias é, pois, o antídoto contra a cegueira
promovida pela dóxa.39 Daí, portanto, mais uma razão para o "filósofo
verdadeiro" não temer a morte, pois nela o corpo físico deixa de ser empecilho
para o conhecimento obtido pela alma.40
Hegel, porém, interpreta a anámnesis (Wiedererinnerung) no sentido platônico,
com base em sua própria filosofia, como sendo um Insichgehen.41 Ainda segundo a
mistura da representação e do conceito ou do sensível e do inteligível, ele
observa que a Wiedererinnerung tem um sentido empírico, de acordo com o qual
ela é uma reprodução de algo acontecido em outro tempo. Essa recordação
empírica, a qual também já fora rejeitada por Platão, não é, todavia, a
recordação tal como interpretada pelo conceito. Assim como já havia feito na
Fenomenologia, e sublinhando o movimento do conceito já liberto do sensível,
Hegel insiste no significado de Erinnerung, do ponto de vista etimológico ou do
"sentido profundo do pensamento da palavra", como Insichgehen, "fazer-se-
interno" (Sich-innerlich-machen). Em virtude disso, mediante uma análise que
também nos recorda o movimento da consciência na Fenomenologia, Hegel
interpreta o movimento da alma pelos seus pathémata como um ir-para-dentro-de-
si-mesma, de tal forma que ela "[...] suprassume essa aparência (Schein) do
ser-outro (Schein des Andersseins) [...] e, assim, chega à ciência",42 neste
caso, à ciência da ideia, à dialética especulativa.
Ir-para-dentro-de-si significa, portanto, a passagem da exterioridade à
interioridade, da representação ao conceito, da alma ao espírito.43 Sua
natureza é o "ser-em-si" (Bei-sich-Sein), "permanecer-em-si" (Bei-sich-
Bleiben),44 que é também o objeto da dialética especulativa. Durante o trânsito
de um ponto a outro e antes de sua chegada ao termo final, a saber, ao espírito
ou ao conceito, tem lugar aquilo que Hegel sempre observa em seu comentário à
filosofia de Platão: a mistura do mito com a razão. No caso em questão, o
mitológico consiste na tese da transmigração da alma (Seelenwanderung),45 uma
vez que a amnésia e anamnésia das ideias por parte da alma pressupõem a sua
peregrinação a) em vários corpos e b) em um mundo post-mortem. Em razão disso,
é óbvio que Hegel não precisa lançar mão da transmigração da alma para explicar
a rememorização interiorizante das figuras da consciência. A rememoração,
enquanto interiorização, é, pois, a passagem do mundo fenomênico
(Erscheinungswelt) para a efetividade (Wirklichkeit) da ideia, ideia sempre
presente mesmo que turvada por representação e mito.46 Hegel considera,
portanto, a transmigração da alma como um artifício mítico-pedagógico para a
elevação da dóxa à epistéme e não uma verdade da razão. A mistura de mito e
razão é favorável a Hegel, na medida em que lhe permite, por um lado,
caracterizar como mito aquilo (transmigração da alma) que lhe parece
indefensável, ao passo que, por outro lado, ele podia considerar como racional
outras teses de Platão, p. ex. a imortalidade da alma.
Diferentemente da transmigração da alma, relegada por Hegel ao mundo do mito, a
imortalidade da alma, reconhecida por ele como guardando estreito vínculo com a
metempsicose, é por ele admitida, justamente em virtude do fato de que ela está
associada ao pensamento puro, ao conceito, ao universal, ao gênero e à ideia.47
Mutabilidade e transformação significam que um determinado objeto se perde no
ser-outro e na alteridade. A passagem pela alteridade é sua destruição. O
eterno, ao contrário, é justamente aquilo que no ser-outro, na alteridade
permanece em si e junto a si. A alma é eterna, justamente porque "ela é [...] o
manter-se-a-si-mesma no outro" (das Sich-selbst-Erhalten im Anderen),48
principalmente no exercício do pensamento, substância e essência da alma. A
atividade do pensamento puro, livre das representações e do mito, é, na
verdade, a espiritualização da alma, a alma elevada ao espírito. A
interpretação hegeliana considera o movimento da alma pelos seus pathémata como
progresso da dialética raciocinante para a especulativa, da dóxa para a
epistéme, do mito ao logos, como reconhecimento da alma enquanto espírito
eterno.
Platão, finalmente, dá o passo em direção ao universal em si mesmo, no qual as
oposições são postas, mas também dissolvidas chegando-se a um resultado
positivo: à "dialética especulativa", movendo-se no terreno do puro pensar.
Hegel deixa vir à luz a "coisa principal" ("Hauptsache") frequentemente
negligenciada, "a única coisa interessante" (allein Interessante) também
frequentemente esquecida, do seguinte modo: "o Mesmo (Dasselbe), o Idêntico a
si mesmo (das mit sich Identische) é aquilo que é o Outro (das Andere); também
o Mesmo é o Outro, o Não-Idêntico a si mesmo (das nicht mit sich Identische); o
Igual a si mesmo (das Sichselbstgleiche) é também o Outro, e, na verdade, em
uma e mesma referência".49 Os elementos opostos não são desacoplados um do
outro, não são separados e isolados e referidos um ao outro de um modo
superficial e externo. Eles passam um no outro; um torna-se, a partir de si
mesmo, aquilo que o outro é, e vice-versa. Tomando a Ciência da Lógica como
exemplo, o ser passa ao não-ser e vice-versa, de tal forma que o vir-a-ser
(Devir) resulte desse processo. A "dialética especulativa" constitui o que
Hegel, na filosofia de Platão, considera como "o esotérico" (das Esoterische):
essa dialética é, no entanto, esotérica, não porque ela seja desenvolvida tão
somente na sua comunicação oral e, em virtude disso, permaneça inacessível ao
público extra-acadêmico, já que Hegel identifica-a também nos diálogos
Parmênides, Sofista e Filebo. Daí, então, a conclusão de Hegel, segundo a qual
a diferença entre esotérico e exotérico é uma "má diferença".50
Afinal, a relação do filósofo com as ideias por ele defendidas não é a mesma
que se estabelece entre o ser humano e as coisas do mundo que ele pode ou não
esconder "no bolso". Entre o pensamento ou a ideia, de um lado, e o ser humano,
de outro, tem lugar uma relação de posse: "A ideia filosófica possui [...] o
ser humano".51 Em virtude disso, argumenta Hegel, um filósofo não pode deixar
de expressar em seus escritos o pensamento possuidor do homem. A dialética
especulativa, portanto, não está ausente dos escritos. Ao contrário, ela
encontra-se escrita e inscrita nos diálogos, embora como um elemento recôndito
(ein Verborgenes), não acessível a todos, porque nem todos se esforçam para
transitar da dialética raciocinante para a dialética especulativa.
Nesse sentido, a estrutura sistemática do saber, atribuída também por Hegel aos
ensinamentos orais de Platão, não pode ser retirada dos diálogos de Platão, já
que Platão, como filósofo, e um filósofo de estatura histórico-mundial, não
poderia, por assim dizer, guardar seus pensamentos "no bolso" e comunicá-los
tão somente a um público intra-acadêmico e esotérico. Eles seriam dissimulados
pela dialética raciocinante e retirados do contexto público e exotérico através
de pretextos tais como os limites do texto escrito. Portanto, mesmo que Hegel
reconheça o esotérico e o sistemático nos ensinamentos orais de Platão, e mesmo
que levemos em conta as restrições expressas pelo próprio Platão ao escrito,52
o pensamento de Platão tem necessariamente de vir a lume, ser exotérico e
público, uma vez que, se "a ideia filosófica possui o ser humano", isso é ainda
mais efetivo para um filósofo, particularmente para um filósofo como Platão.
Hegel, no entanto, não consegue reconstruir a sistematicidade do pensamento de
Platão, porque o acesso ao material intra-acadêmico lhe estava acessível apenas
parcialmente, já que o material organizado por Brandis sobre o ensinamento oral
de Platão veio à luz somente em 1823, cerca de oito anos antes da morte de
Hegel.53 Pois, embora Platão não pudesse evitar as referências mais ou menos
expressas ao não-escrito em seus escritos, como o próprio Hegel admite, a não-
autonomia dos escritos diante do ensinamento oral impediu uma compreensão
global do saber filosófico platônico, compreensão essa baseada apenas nos
textos escritos. As alusões ao não-escrito eram, contudo, tão áridas, que em
muito se distanciavam de propiciar uma visão geral do sistema do saber e do ser
em Platão. Isto torna-se bastante evidente no fato de que Hegel não consegue
reconstruir a composição dos níveis do ser correspondentes aos modos de
conhecimento da alma. Diante da relação de analogia identificada por Gaiser
entre as dimensões espaciais, os níveis objetivos do ser e a estrutura
subjetiva da alma, as afirmações minimalistas de Hegel são bastante
insatisfatórias, simplificadoras e estão aquém da complexidade do objeto
investigado. Além disso, como veremos a seguir, ele projeta na dialética
platônica teses estranhas a essa dialética.
Finalmente, depois de reconhecer a dialética especulativa e aproximá-la da
dialética da ideia, tal como exposta em sua Ciência da Lógica, Hegel, por seu
turno, aponta as limitações da dialética especulativa. Elas residem no fato de
que o movimento de reflexão do Uno e múltiplo, do mesmo e outro, do ser e não-
ser frequentemente tem lugar de acordo com "considerações externas",54 segundo
o modo da representação, ao invés de apresentá-lo como um movimento imanente,
no qual o próprio uno vem a ser o múltiplo, e o múltiplo, por sua vez e
reciprocamente, torna-se o uno. Em virtude dessa oscilação entre imanência e
exterioridade, da mistura entre mito e conceito e da falsa identificação da
dialética raciocinante com a dialética especulativa - identificação cuja
responsabilidade, em parte, deve ser creditada ao próprio Platão - Hegel não a
reconhece como completa, consumada e perfeita (vollendet).55
O comentário de Hegel sobre a filosofia de Platão não poderia ocorrer
independentemente do sistema de filosofia hegeliano, como o demonstra a própria
divisão do comentário. Por isso, não é de se estranhar que a dialética
especulativa platônica seja interpretada segundo a perspectiva da filosofia
especulativa ou lógica hegeliana. Ora, Hegel considera a ideia, enquanto ela se
encontra em uma de suas manifestações determinadas, como "um momento fluente"
(ein flieβ
endes Moment)56 que não se detém em uma das suas finitas e provisórias etapas
de desenvolvimento e aí, por assim dizer, se petrifica. O "momento dialético"
da ideia, enquanto essa possa ser interpretada como um fluir, é o "passar"
(Übergehen) de uma determinação finita para uma outra determinação finita
oposta.57 O fluir da ideia, de tal forma que uma determinação da ideia passa à
determinação oposta, e vice-versa, não parece, todavia, traduzir
convincentemente a dialética especulativa platônica. Pois, ao comentar o relato
de Sexto Empírico supra referido, Gaiser chama a atenção para uma diferença, já
identificada pelo próprio Sexto Empírico, entre os antigos e novos pitagóricos
acerca dos dois modos de compreensão da construção dos níveis do ser.58
Essa diferença é reinterpretada por Gaiser de tal modo que ele atribui à
posição de Platão o tipo de abordagem dos primeiros pitagóricos, ao passo que
ele tem boas razões para corresponder à posição de Espeusipo ao ponto de vista
dos novos pitagóricos. Este considera os corpos como resultado de um fluir
(rhyén, rhye)san) que tem no ponto seu início. Este, por sua vez, mediante seu
fluir gera a linha, a qual, por seu turno, também através do seu fluir faz
surgir a superfície ou plano, e este, finalmente, movido até a profundidade,
produz os corpos tridimensionais.
Segundo o modo de abordagem de Espeusipo, cujo sistema também já foi comparado
ao de Hegel,59 o fluir de um único princípio, a saber do ponto, origina os
vários níveis do ser. Diferentemente, os "primeiros pitagóricos", relata Sexto
Empírico - na verdade, Platão, corrige Gaiser - fazem surgir números, pontos,
linhas, etc. a partir do Uno e da Díade Indeterminada, portanto, a partir de
dois princípios opostos. De acordo com essa concepção, o Uno não vem a ser o
seu oposto, a Díade Indeterminada, e essa, por sua vez, não torna-se o Uno. Não
há, portanto, o fluir do Uno, o qual, por sua vez, engendra a Díade
Indeterminada, ou o fluir da Díade Indeterminada que gera o Uno. Os vários
planos do ser são oriundos da ação determinante do Uno sobre a indeterminação
da Díade, de tal forma que cada um dos vários planos do ser, moldados através
dessa relação, constitui um modo específico e original de articulação desses
princípios opostos.
Não se trata, nesse contexto, de "um simples processo de crescimento", de um
processo orgânico tão caro à filosofia de Hegel, mas de "um processo de
formação (Formierung)",60 no qual o Uno, o princípio determinante, desempenha o
papel de um elemento formador e configurador diante do princípio indeterminado.
Mesmo que ambas as posições sejam, de algum modo, combinadas e consideradas
também como teses de Platão, de tal forma que a Díade Indeterminada engendre a
próxima dimensão mediante o fato de que ela "efetive em si, a cada vez, uma
extensão que flui para a próxima dimensão", ao passo que o Uno limita a nova
dimensão assim surgida, como o próprio Gaiser admite,61 a interpretação de
Hegel é indefensável. Pois, a "extensão que flui para a próxima dimensão",
extensão levada a cabo pela Díade Indeterminada, não exclui o processo de
formação, o qual pressupõe dois princípios opostos que não se transformam um no
outro.62
Interessante observar que Hegel vê no Filebo, um dos diálogos que apresenta a
dialética especulativa, a relação entre péras e apeíron.63 O breve comentário
de Hegel a esse diálogo mostra, contudo, a ambivalência da leitura hegeliana.
De um lado, bem ao estilo daquilo que relata Sexto Empírico, Hegel constata que
saúde, calor, frio, etc. são resultado da unidade dos opostos péras e ápeiron.
Está também consciente da determinação de péras sobre o ápeiron. De outro lado,
no entanto, ele deixa transparecer sua tese do fluxo do lógico ou da ideia na
própria tradução de péras.
Além de traduzi-lo como "finito", "limite", "limitante", "proporção" e
"medida", em oposição a ápeiron, "infinito", "indeterminado" e "ilimitado", ele
ainda o traduz como "aquilo-que-se-determina-a-si-mesmo" (das
Sichselbstbestimmende).64 Péras não é, pois, o que determina o seu oposto: o
indeterminado, "o que é capaz de ser mais ou menos, o que pode ser ou não mais
intensivo: mais quente, mais seco, mais húmido, etc". O finito é, ao contrário,
na interpretação hegeliana, "a determinação livre imanente",65 não a
determinação de um oposto, mas de si mesmo. Ora, ele pode ser a determinação de
si, se e somente se o Absoluto é interpretado como "aquilo que é finito e
infinito em uma unidade":66 o Absoluto ou Infinito dá a si mesmo,
exclusivamente a partir de si mesmo, uma forma finita, a qual, no entanto, em
razão de sua própria inconsistência e contradição, exige e fomenta a passagem
para uma outra forma finita. Hegel, portanto, identifica sua interpretação do
Absoluto como unidade do infinito e finito e a relação de imanência entre ambos
com a relação entre péras e apeíron, em que eles são irredutíveis um ao outro,
não são mais momentos opostos que se transformam e passam um no outro.
O processo de formação a partir de princípios opostos e o processo do passar e
fluir de determinações opostas uma na outra expressam duas posições diferentes,
se o texto de Sexto Empírico acima citado e sua interpretação por Gaiser são
levados em consideração. A interpretação hegeliana da dialética especulativa
platônica já pode ser questionada mediante o fato de que a passagem do diálogo
Filebo comentada pelo próprio Hegel mostra uma outra maneira de acompanhar o
movimento dialético. De fato, a posição de Hegel é correta, na medida em que o
texto escrito de Platão tem de trazer à luz seu pensamento - também aqueles que
foram comunicados em seu ensinamento oral. No entanto, o pensamento de Platão
cunhado nos escritos não mostra o todo de seu pensamento, o qual Hegel, em
virtude de sua limitação ao texto escrito, não pode mais reconstruir. A alusão
ao ensinamento oral de Platão não só aprofunda e evidencia a diferença entre as
dialéticas platônica e hegeliana em parte já identificável em alguns escritos
(p. ex. no Filebo), mas também esclarece (1) a complexa construção dos níveis
do ser, sua articulação com as faculdades de conhecimento da alma e (2) uma
reação intra-acadêmica, provavelmente levada a cabo por Espeusipo à posição de
Platão. Essa reação, que guarda, por seu turno, uma certa semelhança com a
filosofia de Hegel, testemunha um posterior desenvolvimento das teses de
Platão. Nesse sentido, a dialética de Hegel mostra-se como continuação de uma
das variantes de avaliação da filosofia platônica iniciadas já dentro da
própria academia.
Além de outros aspectos da dialética platônica e hegeliana que aqui foram
intencionalmente negligenciados, permanece ainda uma interessante tarefa a ser
empreendida: a avaliação das consequências dessas diferenças nas esferas do
espírito e da natureza.