Alguns momentos do debate sobre as teorias do 'não-si' e das 'duas verdades' na
história da filosofia buddhista
Introdução
A metafísica da escola buddhista do Madhyamaka1 é centrada na doutrina da
'vacuidade de todos os entes' (sarva-dharma-śūnyatā); tal concepção constitui o
desenvolvimento mais avançado e radical de um longo percurso filosófico, cujas
raízes afundam em um ensinamento original ' a teoria do 'não-si' (anātma-vāda)
' do Buddha2 histórico e que se desenrola ampla e articuladamente em todas as
escolas buddhistas3.
Paralela ao desenvolvimento da metafísica buddhista, e a ela indissoluvelmente
entrelaçada, desdobra-se uma epistemologia, que possui a finalidade principal
de justificar e de defender as conclusões progressivamente alcançadas pela
reflexão ontológica. Uma epistemologia, ela também, centrada sobre uma ideia
fundamental ' a teoria das 'duas verdades' ' dinamicamente capaz de se adaptar
às várias concepções sobre o ser propostas pelas diferentes escolas.
A doutrina mādhyamika4 da 'vacuidade de todos os entes', portanto, é
acompanhada e corroborada, por sua vez, por uma particular declinação da teoria
epistemológica das 'duas verdades'.
O ponto de partida do presente artigo é o fato de que tanto a metafísica,
quanto a epistemologia do Madhyamaka não foram entendidas, pelos antigos
comentadores, pelos adversários de Nāgārjuna e por seus exegetas
contemporâneos, em modo unânime. Pelo contrário, o seu pensamento foi
interpretado de forma vária e, frequentemente, discrepante.
Quantas e quais exatamente sejam tais possibilidades interpretativas não é o
ponto em questão nessas páginas; tampouco, tentaremos aqui apresentar
argumentos definitivos a favor de uma ou de outra entre essas diferentes
hipóteses hermenêuticas.
Ao invés disso, os propósitos deste artigo são: 1) na primeira parte,
apresentar sinteticamente (com a indicação, nas notas de pé de página, de
possíveis direções de aprofundamento) os termos essenciais do debate filosófico
que, ao longo da história do pensamento buddhista, se desenvolveu sobre as
temáticas do 'não-si' e das 'duas verdades'; 2) na segunda parte, analisar o
incipitde um importante texto paracanônico ' o Milinda Pañha("Perguntas de
Milinda", daqui em diante MP) ', cuja estruturação do discurso se assemelha em
muito à maneira com a qual Nāgārjuna, no capítulo 24 (ou seja, na parte da sua
obra provavelmente mais importante para investigar a sua epistemologia) das
Mūlamadhyamakakārikās("Versos fundamentais do Caminho do Meio", daqui em diante
MMK), aborda a questão das 'duas verdades'.
Dessa forma, em primeiro lugar, os discursos de Nāgārjuna serão colocados
dentro das coordenadas histórico-filosóficas que mais propriamente lhe
pertencem. Em segundo, dando ênfase às semelhanças extrínsecas entre MP e
MMK.24, concluir-se-á que, por trás do paralelismo formal, possa existir um
paralelismo 'substancial' e que, portanto, as MP sejam um texto fundamental a
ser levado em consideração por qualquer abordagem interpretativa da filosofia
de Nāgārjuna que pretenda ser escrupulosa.
O formalismo e a fria analiticidade com os quais Nāgārjuna conduz o seu
discurso nas MMK acabaram levando alguns de seus exegetas contemporâneos a
tentativas de interpretá-lo ' na base de critérios hermenêuticos puramente
lógico-analíticos ' fora do contexto filosófico em que ele viveu e operou5.
Parece, porém, metodologicamente imprescindível reconduzir constantemente
Nāgārjuna ao meio filosófico com o qual ele dialoga e, em particular, àqueles
textos cuja autoridade ele devia mais respeitar6.
1. Elementos essenciais da Metafísica e da Epistemologia Buddhistas
1.1. Formulação original da doutrina do não-si
Entre as numerosas doutrinas buddhistas filosoficamente relevantes, aquela
sobre a 'não-existência do si' (anātma-vāda) é, provavelmente, a mais original
e característica. Transmitida pelo Buddha histórico desde o começo da sua
predicação7, essa foi aprofundada em discursos sucessivos8 e, em seguida,
desenvolvida por vários modos, re-elaborada e aprimorada pelas diferentes
escolas buddhistas tardo-antigas e medievais.
Em extrema síntese, o anātma-vādabaseia-se na tese de que o 'si' individual ' a
alma, o ego, a subjetividade singular ' é uma sensação ilusória, que se
engendra em uma dimensão cognitiva baixa e ordinária, e à qual não corresponde
nada de objetivo e de ultimamente real.
O Buddha, nos seus discursos sobre o 'não-si', reduz a inteira experiência
psícofísica individual ao fluxo de cinco skandha(pāli9 khandha, 'aglomerações'
ou 'agregados'): forma física (rūpa), sensação (vedanā), ideação (samñjā, pāli
sañña), volições (samskārāh, pāli samkhārā) e consciência (vijñāna, pāli
viññāna). Nenhum desses agregados equivale a um si permanente, nem contém algo
de parecido com um ego ou com um substrato espiritual10. Pelo contrário, todos
eles são destituídos de substancialidade, caracterizando-se como fluxos
interconexos de instantes psíquicos e materiais.
A concepção anātmafoi interpretada extensivamente por todas as escolas
buddhistas, incluindo nela a ausência de qualquer 'forma' (em sentido
aristotélico) ou essência individual dentro das coisas. Não somente, portanto,
os sujeitos são desprovidos de um si, mas também os objetos não têm nenhuma
identidade própria (svabhāva), que os individue e os separe dos outros objetos.
As divisões no mundo material são somente conceituais e ilusórias: a elas não
corresponde nada de real. Não há um discurso específico do Buddha que sustente
essa ideia da ausência do 'si'no mundo das coisas, mas essa conclusão pode ser
deduzida por várias passagens da literatura canônica11.
A ideia de que a atividade psicofisíca humana seja produzida, contida e
organizada por um sujeito individual, dotado de características próprias e
irredutíveis, acrescida da ideia de que os objetos sejam algo de substancial e
separado, é considerada pelo Buddha o erro fundamental, a partir do qual se
originam a aflição e o sofrimento que definem em primeiro lugar a existência
humana. As diferentes 'contaminações' que, literalmente, envenenam12 a nossa
vida ' principalmente o apego (tṛṣṇā pāli tanhā) e a aversão (dveṣa,pālidosa) '
surgem e se reproduzem, justamente, a partir da convicção de que exista um
'ego', um 'fruidor', um sujeito contraposto a outros sujeitos e ao mundo dos
objetos. Pelo contrário, a remoção do ofuscamento mental (moha) ou da
nesciência (avidyā pāli avijjā) que nos conduz a acreditar em um centro ou um
substrato da nossa experiência existencial tem o poder de purificar a
existência das contaminações, livrando-a do sofrimento13.
1.2. Aparente contraste entre ontologia e ética buddhistas e sua solução
epistemológica
Sob o ponto de vista daquela que podemos denominar 'ortodoxia filosófica'
buddhista, a doutrina do 'não-si' impõe-se como um ponto firme e indiscutível,
frequentemente utilizado como referência 'normativa'para julgar a legitimidade
de uma ou de outra teoria (ontológica, em primeiro lugar), ou até de uma
inteira escola ou movimento14. No entanto, a circunstância de que a sua plena
adoção por parte de todos os buddhistas seja ' pelo menos programaticamente (os
eventuais desvios dela são sempre 'involuntários') ' inquestionável, não
significa que a mesma adoção seja sempre simples e isenta de dificuldades.
Além do problema fundamental de penetrar no sentido profundo (isto é, o sentido
'empírico', além do meramente conceitual) da doutrina do 'não-si' ' tarefa à
qual o adepto buddhista deve dedicar os seus esforços na prática meditativa,
que possui a finalidade de 'vivenciar' a não existência do si individual ', a
sua principal dificuldade reside no fato de que ela parece (pelo menos de um
ponto de vista lógico) dificilmente conciliável com outras doutrinas ensinadas
pelo Buddha, isto é, com ensinamentos que gozam do mesmo caráter inquestionável
da teoria do anātma.
Poder-se-ia perguntar, por exemplo, não existindo a individualidade dos seres
humanos e das coisas, para o benefício de quemseriam os próprios ensinamentos
do Buddha? Quemé que sofre, quemse deveria livrar do sofrimento? E, sob o ponto
de vista ético, quempoderia cumprir ações boas ou más? Ou, enfim,
quemdescontaria, na existência futura, os resultados 'cármicos' amadurecidos ao
fim da vida presente?
Evidentemente, são numerosos os discursos do Buddha que, apesar de nunca
afirmado explicitamente, pressupõem a existência de um si, de uma
individualidade ou, pelo menos, de uma continuidade pessoal: grande parte da
ética e da soteriologia ensinadas pelo Buddha parece fazer sentido somente num
contexto em que as pessoas existem como indivíduos.
A maneira pela qual os pensadores buddhistas tentaram resolver o dilema da
aparente contradição entre discursos anātma(centrados sobre o 'não-si') e ātma
(centrados sobre o 'si pessoal') do Buddha foi aquela de distinguir, dentro do
seu ensinamento, dois níveis epistemológicos: um nível 'convencional' (à altura
do qual se colocam todos os ensinamentos do Mestre os quais pressupõem
existência de individualidade separada) e um nível 'último' (ao qual pertence a
doutrina do não-si)15.
A necessidade desses dois níveis de verdade surgiu pelas exigências
'pedagógicas' que o Buddha teve que enfrentar: a sua audiência não era composta
por ouvintes do mesmo nível de desenvolvimento intelectual e espiritual; o
percurso cognitivo e existencial de cada um deles começava de diferentes pontos
de partida ' portanto, era necessário adaptar o ensinamento a tais diferentes
níveis de compreensão16.
No entanto, a própria aplicação da distinção entre 'convencional' e 'último'
resultou problemática, entre as várias escolas que surgiram depois do
desaparecimento do Buddha. Controvérsias surgiram sobre a correta maneira de
entender quais conceitos e teorias mereciam a qualificação de 'verdade
definitiva' e quais fossem, ao contrário, as doutrinas só 'provisórias'.
As dificuldades derivavam da circunstância de que a doutrina do 'não-si', na
formulação originária do Buddha, embora fosse suficientemente claro o que
negava ' a existência real de um núcleo substancial dentro de nós e dentro das
coisas ', não deixava, contudo, igualmente claro o que afirmava, posto que
afirmasse algo.
O Buddha, nos seus discursos, tinha, genericamente, reduzido a individualidade
ao conjunto dos cinco 'agregados' (indicados anteriormente), cada um deles
desprovido de um núcleo. Portanto, num primeiro nível de análise, podia-se
concluir que o indivíduo(implicitamente pressuposto pelo próprio Buddha em
alguns dos seus ensinamentos) seja uma realidade 'convencionalmente
verdadeira', enquanto os cinco agregados são 'verdade última'.
Contudo, nos séculos que se seguiram à morte do Buddha, pareceu legítimo
perguntar-se se os agregados fossem o limite extremo que um olhar analítico
pudesse alcançar ou se, por sua vez, eles pudessem ser ulteriormente dissecados
e investigados.
1.3. Interpretaçãoabhidharmika da doutrina das 'duas verdades': a teoria
dosdharma
Chegou-se assim ' na fase 'escolástica' das escolas do Abhidharma ' à conclusão
de que os agregados resultam compostos de entidades atômicas, instantâneas e
discretas: os dharma17. Estes são ligados entre eles por meio de relações
causais. Uma entidade complexa, como pode ser uma pessoa ou um objeto, é um
agregado de inúmeros dharma(físicos e mentais) que, a cada instante, antes de
desaparecer, causam o surgimento de novos dharma, da mesma tipologia (por
exemplo, um determinado dharmamaterial pode causar um outro dharmaidêntico) ou
de tipo diferente (por exemplo, um instante dhármicode 'volição' pode produzir
um dharmade tipo 'sensação')18.
As numerosas escolas19 que surgiram nos séculos entre o
parinirvāna20
do Buddha e o começo da era cristã diferenciavam-se entre elas no que diz
respeito ao exato número e ao gênero de tipos de dharmaexistentes, à duração
efetiva de cada um deles, ao exato funcionamento de seus poderes causais. No
entanto, apesar dessas diferenças, todas as escolas abhidharmikacompartilhavam
a mesma ontologia atômico-pluralista.
As inovações no campo ontológico obrigaram a rever a questão epistemológica: o
conceito de 'verdade última' foi redefinido, precisando-se agora como a
realidade dos dharma, consequentemente relegando os próprios, mais genéricos
'agregados' (a dizer, os cinco skandhas) ensinados pelo Buddha ' junto com as
doutrinas que (por serem destinadas a uma audiência menos dotada) implicavam o
conceito de 'si' ' à 'realidade convencional'.
1.4. Interpretaçãomādhyamika da doutrina do 'não-si': a teoria da 'vacuidade'
Mas tudo isso, também, não foi considerado satisfatório e definitivo. No
decorrer da história do pensamento buddhista, as escolas mahāyānaacharam que o
conceito de dharmafosse discutível e incorreto, pois ele implicava um aspecto
de substancialidade21; isto é, uma forma de individualidade e de
autossuficiência, inconciliável com uma rigorosa aplicação da doutrina do 'não-
si'.
Os próprios dharma, submetidos à rigorosa análise, revelam-se, enfim, vazios e
inexistentes como realidade 'em si'.
O conceito de 'vacuidade' (śūnyatā), como visão última da realidade, foi
adotado tanto pela escola Yogācāra quanto pela Madhyamaka. Sob o olhar
analítico das escolas mahāyāna, qualquer entidade (não somente as entidades
complexas, mas também as simples e atômicas, não importa se de tamanho mínimo e
de duração instantânea) dotada de 'natureza própria' (svabhāva) e separada das
outras é, em última análise, inexistente.
1.5. Leitura niilista da teoria da 'vacuidade' e sua inconsistência
Uma posição desse tipo é, evidentemente, arriscada: o perigo é de tornarse uma
visão niilista do mundo. Afinal, o Madhyamaka é o desenvolvimento mais teórico
e sistemático de uma série de escrituras ' as que compõem a literatura
prajñāpāramitā22 - nas quais o uso de uma linguagem aparentemente niilista é
frequente e incisiva23. A questão, porém, é que o niilismo é uma doutrina que o
próprio Buddha, junto à doutrina 'eternalista', convida explicitamente a
evitar24. Defender uma posição niilista significa pôr-se direta e
explicitamente em contraste com a palavra do Buddha.
Das duas escolas mahāyāna, a Yogācāra parece escolher uma visão filosófica que
mais claramente consegue escapar do 'perigo' niilista, chegando a uma visão
rigorosamente idealista25. O 'nada existe' vale somente no nível material: o
que é vazio e não existe em si é o mundo dos objetos externos; da realidade
externa pode-se falar apenas no sentido 'convencional'. A 'verdade última' é
que existe somente a consciência indiferenciada: absoluta subjetividade, cujas
internas diferenciações são, também, 'verdades convencionais'26.
O Madhyamaka, pelo contrário, em nome de uma aplicação da doutrina do 'não-si',
a qual pretende ser mais rigorosa, nega também a existência da subjetividade. O
niilismo parece, portanto, inevitável27. O percurso filosófico da teoria do
'não-si' levaria, enfim, à negação de tudo. O epílogo desse percurso parece ser
que a 'verdade convencional' ou 'provisória' corresponda a todos os discursos
que falam de alguma coisa, enquanto a 'verdade última' é que nada existe e que
de nada se pode falar.
Entretanto, a conclusão de que o Madhyamaka seja uma escola niilista não seria,
segundo a maioria dos seus interpretes, satisfatória: em primeiro lugar porque
o niilismo ontológico parece uma posição filosoficamente insustentável28;
segundo, porque, como já dito antes, não se pode sustentar o niilismo sem
incorrer na flagrante contradição da palavra do Buddha; terceiro, porque os
pensadores mādhyamikase recusam de ser rotulados como 'niilistas'29.
É sempre possível, naturalmente, para manter a interpretação niilistica do
Madhyamaka, pensar que filósofos como Nāgārjuna ou Candrakīrti fossem, mesmo,
heréticos; ou talvez pouco acurados e atentos, ao ponto de tornar-se niilistas
'involuntariamente', talvez por não terem profundamente entendido os
ensinamentos do Buddha (porém, contra essa possibilidade, além de muitas outras
considerações, há que o único discurso do Buddha citado por Nāgārjuna nas MMK é
justamente o Kaccayanagotta sutta, ou seja, o sūtra' citado da nota de pé de
página 25 desse artigo ' no qual o Buddha convida explicitamente a evitar o
niilismo).
De qualquer forma, a definição do que devemos considerar 'ultimamente' e do que
'convencionalmente' verdadeiro na filosofia mādhyamikaé problemático e aberto.
Posto que 'a existência do puro nada' não possa ser a verdade última e
definitiva ensinada por Nāgārjuna, o que devemos, entretanto, considerar
'verdade última' na sua filosofia?
Não pretendemos, aqui, como já declarado, entrar em tão delicada questão, nem,
muito menos, tentar solucioná-la; as possíveis soluções do dilema da definição
da verdade na filosofia mādhyamika(uma definição que, possivelmente, evite a
conclusão niilista, mas que, ao mesmo tempo, seja compatível com a ideia de
'vacuidade' de todas as coisas) são muitas e variadas.
O ponto desse artigo é que, qualquer solução interpretativa, para ser crível,
não pode menosprezar o contexto histórico-filosófico no qual o discurso de
Nāgārjuna se desenvolve. Antes de qualquer outra consideração ' lógico-
linguística e, mais geralmente, filosófica ' indispensável para entender a
posição de Nāgārjuna, é fundamental examinar o uso que, dentro da tradição
filosófica que o precede e o acompanha, é feito das palavras e dos conceitos
dos quais a escola Madhyamaka se serve para expressar seus pontos de vista.
Em específico, a primeira parte das MP apresenta um evidente paralelismo formal
(a dizer, uma semelhança na estrutura do discurso) e terminológico com o
capítulo 24 das MMK: qualquer séria reflexão sobre o verdadeiro significado das
ideias de 'vacuidade' e de 'verdade última' na concepção de Nāgārjuna deve ter,
entre os seus pontos de partida, as conclusões que o rei Milinda e o monge
Nāgasena alcançam no decorrer do seu diálogo.
2. Milinda Pañha, 25-28 e Mūlamadhyamikakārikās, 24: Semelhanças Formais
2.1. Ontologia e ética em contraste nas MP e em MMK.24
As 'Perguntas do rei Milinda' são uma escritura de enorme relevância na
história do pensamento buddhista30. Trata-se de um texto ' cuja redação
(provavelmente compósita) deve se situar na época entre o primeiro século a.C.
e o segundo século d.C31 ' que relata acerca de um diálogo entre o rei
indogrego Milinda32 e o monge buddhista Nāgasena. Não é um texto 'canônico', no
sentido de que não pertence a nenhum dos tradicionais 5 nikāyasdos quais se
compõe o 'cânone' buddhista33. No entanto, é uma escritura cuja autoridade
parece transversal a todas as escolas buddhistas, não sendo reconhecida como
texto particular de nenhuma tradição em específico.
O diálogo se abre com o rei Milinda que pergunta ao monge pelo seu nome; a
resposta, sem muitos preâmbulos, leva-nos imediatamente à questão da ausência
de individualidade:
" ' Sua majestade, sou conhecido como Nāgasena. Meus confrades se
dirigem a mim chamando-me de Nāgasena. Qualquer nome que os pais
derem aos seus filhos ' Nāgasena, Sūrasena, Vīrasena, Sīhasena ', se
trata somente de um apelido, de uma noção comum, de uma designação,
de um uso corrente. 'Nāgasena' é somente um nome, porque nenhum
indivíduo (puggala) é aqui presente."34
Essas linhas sintéticas correspondem ao que, ao longo dos 27 capítulos das MMK,
é apresentado analiticamente: o sujeito individual que temos a sensação de ser,
e as entidades objetivas separadas com as quais pensamos nos relacionar, são
somente nomes, designações convencionais, às quais não corresponde nada de
ultimamente real.
Porém, evidentemente, essa tese presta-se a uma fundamental objeção. O rei
Milinda a expressa da seguinte forma:
" ' Se, venerável Nāgasena, aqui não há pessoa alguma, quem será,
então que lhes oferece roupa, comida, alojamento, remédios contra as
doenças e ferramentas? Quem utiliza essas coisas? Quem exerce as
virtudes morais? Quem se dedica à meditação? Quem realiza o caminho,
o fruto e o nibbāna? Quem mata? Quem pega o que não lhe foi dado?
Quem tem uma errada conduta sexual? Quem fala mentiras? Quem toma
bebidas tóxicas? Quem cumpre as cinco ações de imediata retribuição
[cármica]? Enfim, não há nem o que é saudável (kusala) nem o que é
não saudável (akusala), não há quem cumpre ações saudáveis ou
danosas, não há quem as faz cumprir, nem há resultado, maturação de
ações virtuosas e não virtuosas: se, por exemplo, venerável Nāgasena,
não existisse quem mate, também a ação de matar não existiria. Além
disso, venerável Nāgasena, você não tem mestre, preceptor,
ordenação."
O capítulo 24 das MMK, embora de forma mais esquemática, apresenta uma objeção
muito semelhante à das MP:
1. Se tudo neste [mundo] é vazio, não há [portanto] nem aparição nem
desaparição de nada: [isso] implica a sua [asserção da] inexistência,
das Quatro Nobres Verdades;
2. Reto conhecimento, eliminação [dos falsos pontos de vista],
meditação e realização, não existindo as Quatro Nobres Verdades, não
seriam possíveis;
3. Não existindo esses [quatro momentos], os quatro nobres frutos35
seriam também inexistentes; os frutos não existindo, não existiria
nenhum gozador dos frutos, nem os candidatos a gozá-los;
4. Se não existem os oito tipos de pessoas36, também não existe o
Saṃgha37
; e não existindo as Quatro Nobres Verdades, também o verdadeiro
Dharma38 não seria visível.
5.6. E se não há Dharmae , como poderia haver ? dessa forma,
afirmando a vacuidade, você rejeita também as três jóias39, e também
rejeita a realidade dos frutos, o correto (
dharma40
) e o errado (adharma) e toda a ordem convencional (saṃvyavahāra) das
coisas mundanas41.
Conforme sua atitude tipicamente sistemática, Nāgārjuna apresenta,
ordenadamente, (partindo dos alicerces da visão buddhista do mundo ' ou seja,
das Quatro Nobres Verdades ' e chegando, só no final, à problemática ética) a
objeção a qual, na pergunta de Milinda, é apresentada em um estilo mais
discursivo e desordenado, e com um enfoque maior nas consequências éticas
finais da negação da individualidade: sem um 'si' individual, quem seria o
sujeito das ações virtuosas e não virtuosas?
2.2. As duas verdades em MMK.24
A resposta de Nāgārjuna à objeção apresentada nos primeiros seis versos do
capítulo 24 é uma passagem crucial das MMK. Ele fala:
7. A esse ponto, nós declaramos que você não entende o sentido da
vacuidade, a vacuidade [em si] e seu objetivo. Por isso, você é
perturbado [por ela];
8. O ensinamento do Dharmapor parte dos buddhasé baseado sobre duas
verdades: a verdade da convenção mundana (loka-sajvrti-satyam) e a
verdade última (paramārthatah);
9. Os que não entendem a diferença entre tais duas verdades, não
entendem a realidade profunda inerente ao ensinamento do Buddha42.
Dado o grande número de soluções (entre elas frequentemente contraditórias ou
contrárias) fornecidas à questão do que seria 'verdade convencional' e que
'verdade última' no buddhismo mādhyamika, podese concluir que, pelo menos algum
dos intérpretes de Nāgārjuna, de fato, não entendeu essa diferença (a menos que
alguém não tente argumentar, contrariamente a qualquer lógica e evidência
textual, que cada uma das duas verdades tenha um leque semântico que suporte
qualquer tipo de interpretação), nem, portanto, "a profunda realidade ínsita no
ensinamento do Buddha".
De qualquer forma, o fato de que a 'vacuidade' está de alguma maneira
relacionada à 'realidade última', parece inquestionável. Os pontos a serem
esclarecidos são: 1) qual é o exato sentido dessa relação de śūnyatācom
paramārtha-satya? 2) Se o conceito de 'vacuidade' é uma qualificação da
'verdade última', esse seria a única qualificação possível de paramārthasatya,
ou essa última seria qualificável também por meio de outros conceitos (que,
evidentemente, deveriam ser equivalentes conceituais da vacuidade)43? 3) O que
exatamente significa 'vacuidade'? Pura ausência de ser ou ausência de um tipo
de ser (logo, existência de um modo de ser diferente do aparente)?
Unicamente está certo que a correta compreensão da vacuidade é, segundo
Nāgārjuna, uma tarefa fundamental, cujo desatendimento constitui um obstáculo
certo no caminho rumo à evolução espiritual:
11. A vacuidade mal-entendida perverte o homem pouco inteligente, como uma
cobra mal apanhada ou uma fórmula mágica mal pronunciada44.
2.3. Receios niilistas nas MP
Dando continuidade à nossa hipótese ' de que a análise das MP possa fornecer
indicações para esclarecer pontos obscuros das MMK ' vemos como prossegue o
diálogo entre Milinda e Nāgasena, que interrompemos com a objeção do rei à
paradoxal declaração do monge de que a individualidade é algo de somente
convencional e nominal.
O rei Milinda, um pouco inesperadamente (com efeito, o mais lógico seria que
fosse Nāgasena ' que sustenta a tese da própria inexistência ' a fazer as
perguntas e alcançar a conclusão que se seguem) começa a perguntar se a
individualidade de Nāgasena possa ser identificada com partes e órgãos do
corpo:
"'Venerável Nāgasena, são, por acaso, os cabelos 'Nāgasena'?
' Não, majestade!
' 'Nāgasena' são, por acaso, os pelos?
' Não, majestade!
' São, por acaso, as unhas, os dentes, a pele, a carne, os músculos,
os ossos, a medula, os rins, o coração, o fígado, as membranas, o
baço, os pulmões, os intestinos, o mesentério, o estômago, os
excrementos, a bile, o flegma, o pus, o sangue, o suor, a gordura, as
lágrimas, o soro, a saliva, o muco, o liquido sinovial, a urina, o
cérebro na cabeça, são por acaso ' digo ' essas coisas 'Nāgasena'?
' Não, majestade!"
O rei, portanto, passa a perguntar se a corporeidade no seu conjunto, ou
qualquer dos outros quatro skhanda, permite individuar o 'si' do seu
interlocutor:
"'Venerável, 'Nāgasena', por acaso, é a forma material (rūpa)?
' Não, majestade!
' 'Nāgasena' são, por acaso, a sensação (vedanā), a ideação (saññā),
as atividades volitivas (sankhāra), a consciência (viññāna)?
' Não, majestade!
' Mas, então, venerável, talvez 'Nāgasena' seja o conjunto de forma
material, sensação, ideação, atividades volitivas, consciência?
' Não, majestade!
' Mas, então, venerável, 'Nāgasena' é outra coisa afora de forma
material, sensação, ideação, atividades volitivas, consciência?
' Não, majestade!"
A conclusão, enfim, é inevitável: essa perfeitamente coincide com a tese
inicial apresentada por Nāgasena ' a individualidade, não podendo ser
identificada, não existe:
" ' Embora eu, venerável, esteja repetidamente perguntando quem é
Nāgasena, não vejo nenhum Nāgasena! Nāgasena, venerável, é somente
uma palavra (sadda). Por isso, quem está aqui? Você, venerável, está
utilizando uma palavra falsa e mentirosa! Nāgasena não existe".
A evidência lógica do 'não-si', contraposta à convicção instintiva na nossa
individualidade, tem um efeito perturbador: o rei Milinda parece confuso, a
ponto de esquecer que era o próprio Nāgasena, no começo do diálogo, a afirmar
que o próprio nome carecia de denotação.
2.4. Verdade última e convencional nas MP
A vacuidade mal-entendida, como lembrado por Nāgārjuna, é algo de extremamente
perigoso; Nāgasena, portanto, está devendo uma explicação para o rei Milinda,
para que ele não 'pegue a cobra'de forma errada. E essa explicação, baseada na
dicotomia entre significado 'último' e 'convencional', segundo a hipótese aqui
apresentada, deve ter peso e influência na maneira com a qual o próprio
Nāgārjuna entende essas mesmas duas categorias epistemológicas.
Nāgasena, conforme um estilo plenamente 'maiêutico', quer que seja o mesmo rei,
por meio do seu próprio raciocínio, a chegar à visão correta. O monge,
portanto, começa perguntando a Milinda se ele chegou naquele lugar a pé ou por
um meio de transporte;
" ' Eu, venerável, não vim a pé, mas de carruagem.
' Se você veio de carruagem, me mostre a carruagem. É, por acaso, o
timão a carruagem, majestade?
' Não venerável!
' A carruagem, talvez, seja o eixo?
' Não venerável!
' A carruagem, talvez, sejam as rodas?
' É, por acaso, o chassi [...], a vara da bandeira [...], o jugo
[...], as rédeas [...], o aguilhão para empurrar o gado?
' Não venerável!
' Mas então, majestade, a carruagem talvez seja algo de diferente
além de chassi, vara da bandeira, jugo, rédeas, aguilhão para
empurrar o gado?
' Não venerável!
' Embora eu esteja repetidamente perguntando o que é a carruagem, não
vejo nenhuma carruagem. A carruagem é somente uma palavra, majestade.
Que carruagem há aqui? Você, majestade, está utilizando uma palavra
falsa e mentirosa. A carruagem não existe! Você, majestade, é o rei
principal do inteiro Jambudipa
45
: está com medo de quem, por falar uma mentira?"
A desestruturação da visão ordinária do mundo, a essa altura, é completa: não
somente a dimensão subjetiva é vazia de um núcleo individual e, portanto, não
existe em si, mas também no mundo dos objetos não conseguimos achar nada de
substancial, cada coisa podendo ser reduzida às partes que a compõem.
Significa, tudo isso, niilismo? A conclusão de que não existe nenhuma
individualidade subjetiva nem objetiva equivale a dizer que não existe
definitivamente nada?
É o próprio Milinda que, depois da apertada troca de perguntas e respostas,
chega a vislumbrar a realidade:
" ' Eu, venerável Nāgasena, não digo nenhuma mentira, desde que é em
virtude do timão, do eixo, das rodas, do chassi, da vara da bandeira,
do jugo, das rédeas, do aguilhão para empurrar o gado que a carruagem
existe como apelido, noção comum, designação, uso corrente, nome."
Essa conclusão do rei é uma repetição só aparente das primeiras palavras de
Nāgasena, quando o monge negava a sua própria existência como individuo. Nas
palavras de Milinda, há algo de diferente: 'carruagem' é algo somente nominal
e, podemos dizer, convencional46, mas é algo, que tem sua razão de ser nas
partes que o compõem. Até agora, o ponto de partida e a conclusão do diálogo
eram que nem Nāgasena, nem a carruagem existiam. Aqui, a perspectiva é outra: a
carruagem existecomo noção comum, ou seja, é uma 'verdade convencional'.
Nāgasena pode, agora, aplicar o raciocínio do rei à própria pessoa, da qual
antes tinha sido declarada a não existência:
" ' Muito bem, majestade, você sabe o que é uma carruagem! As mesmas
considerações valem para mim também. Com efeito, é em virtude dos
cabelos, pelos, unhas...e em virtude de forma material, sensação,
ideação, atividades volitivas e consciência que Nāgasena existe como
apelido, noção comum, designação, uso corrente, nome. Segundo o ponto
de vista absoluto (paramattha), aqui não há pessoa. Isso, majestade,
foi também falado pela monja Vajirā à presença do Beato:
' Como quando, juntando as partes,
Usa-se a palavra 'carruagem',
Assim quando há os agregados (khandha)
É convenção (sammuti) dizer 'ser'47".
A conclusão da primeira parte do diálogo (a essa se seguirão dezenas de outras
páginas, em que serão abordados alguns detalhes da doutrina do nãosi, além de
outros assuntos) é, portanto, muito clara: 'verdade convencional' é o que
aparece ao olhar ordinário: uma realidade de entes, objetivos e subjetivos,
individuais e separados; 'verdade última' é que nenhum de tais entes existe
como aparece. Não há, nas MP, uma caracterização positiva de um verdadeiro modo
de ser das coisas, a dizer, a tentativa de descrição de um nível de realidade
que verdadeiramente exista, além das aparências. As partes constitutivas, sobre
as quais conceitos e nomes convencionais são fundados, não são definidas
'verdade última'. 'Verdade última', na conclusão das MP, é somente que 'aqui
não há pessoa'.
3. Conclusão
Os resultados da análise efetuada até agora podem ser sintetizados como se
segue.
A aparente contradição de alguns dos discursos iniciais do Buddha ' que propõem
uma metafísica antissubstancialista e uma ética aparentemente centrada no
conceito de substância individual ' deu lugar, na reflexão buddhista sucessiva
ao desaparecimento do Buddha, a uma epistemologia baseada na teoria das duas
verdades.
Quanto ao conteúdo da primeira dessas duas verdades, a convencional (saṃvṛti),
na tradição filosófica que precede e acompanha o desenvolvimento mahāyānado
pensamento buddhista, não encontramos divergências: 'verdade convencional'é o
mundo fenomênico: um mundo plural, de pessoas e de coisas, cada uma delas
aparentemente dotada de substancialidade e individualidade.
Com relação à definição da 'verdade última', pelo contrário, as filosofias pré-
mahāyānaapresentam duas tendências bem distintas: a primeira é a das escolas
abhidharmika, de considerar ultimamente reais os dharma' instantes indivisíveis
de realidade, discretos, cada um dotado de uma natureza própria (física ou
psíquica) específica, componentes últimos de todos os entes complexos de que se
compõe a realidade convencional. A segunda tendência, evidente nas MP, é aquela
de tratar apofaticamente o plano da 'verdade última': objetivo do monge
Nāgasena, ao longo do diálogo com o rei Milinda, é o de demonstrar o que
paramārtha satyanão é, sem oferecer alguma caracterização positiva dela.
Essas duas maneiras ' uma catafática, a outra apofática ' de tratar a temática
da 'verdade última' são aquelas que definem os termos e o nível do debate
epistemológico da época de Nāgārjuna e que, portanto, devem ser consideradas
uma fundamental referência da reflexão dele.
Vários estudiosos contemporâneos, mesmo reconhecendo que o mestre
mādhyamikarejeita a caracterização substancialista de 'verdade última'
oferecida pelas escolas abhidharmika, no entanto, acreditam que ele compartilhe
com aquelas escolas uma abordagem catafática ao conceito de paramārtha satya.
Essa seria, portanto, de alguma maneira, definível: como 'absoluto', como
'relatividade universal', como 'Um'48 ou até ' enfatizando os significados de
'zero' e de 'ausência' presentes na palavra śūnyatā' como 'nada', pura
'ausência de ser'49.
Contra tal tendência interpretativa, outros estudiosos de Nāgārjuna50 acreditam
que a sua maneira de tratar paramārthaseja somente apofática ' só pode ser dito
o que não é ultimamente verdadeiro: isto é, qualquer visão da realidade que se
baseie na percepção ou na concepção de algo de substancial e individual. Os
poderosos instrumentos conceituais da 'vacuidade' (śūnyatā) e da 'originação
dependente' (pratītyasamutpāda), longe de serem uma descrição da verdade
última, só teriam a função de desestruturar e destruir as visões do mundo ' a
ordinária, mas também aquela, mais elaborada, das escolas filosóficas
abhidharmika ' baseadas em qualquer ideia de 'si'.
Entre outros possíveis pontos a favor dessa segunda hipótese interpretativa,
este artigo enfatizou o paralelismo entre MMK.24 e a primeira parte das MP ' um
texto evidentemente apofático em relação a paramārtha. a semelhante construção
e desenvolvimento do discurso entre os dois textos sugere que as MMK tenham uma
maneira parecida de entenderem a dimensão da 'verdade última'.
Essa última, apesar de não poder ser aprendida ou descrita pelo raciocínio
filosófico, fundado na convenção linguística e conceitual, pode, porém, de
alguma maneira, ser alcançada a partir daquele raciocínio, uma vez que, "sem
fundar-se na convenção (vyavahāra), a realização última (paramārtha) não pode
ser mostrada"51.
Os discursos rigorosamente lógico-conceptuais feitos por Nāgārjuna, sem a
possibilidade de dizer algoa respeito da 'verdade última', visariam levar o
adepto da escola Madhyamaka à superação da lógica e da conceptualização e, com
isso, à fruição, não discursiva e não conceptual, da própria 'verdade última'.