Transparência, reflexão e vicissitude
I. Autoconhecimento e Transparência
Um dos assuntos recorrentes no debate recente sobre autoconhecimento e
racionalidade é a ideia de que algumas das nossas atitudes, como crenças e
pensamentos, são transparentesporque podemos saber que temos tais atitudes
simplesmenteconsiderando a verdade da proposição envolvida na atitude. Essa
ideia de transparência encontra-se numa passagem muito citada e discutida de
Gareth Evans:
"... in making a self-ascription of belief, one's eyes are, so to
speak, or occacionally literally, directed outward ' upon the world.
If someone asks me 'Do you think there is going to be a third war?',
I must attend, in answering him, to precisely the same outward
phenomena as I would attend to if I were answering the question 'Will
there be a third world war?' I get myself in a position to answer the
question whether I believe that p by putting into operation whatever
procedure I have for answering the question whether p."2
Parece que algumas atitudes são transparentesno seguinte sentido: para a
posição do ponto de vista de primeira pessoa do presente, entender o sentido de
ter crenças ("Eu acredito que p?") envolve uma referência às mesmas razões que
poderiam ser requeridas para compreender de que trata essa crença (a verdade de
p). Isso porque minha crença sobre pé equivalente, para mim e em condições
comuns, à minha crença na verdade de p. Se alguém me pergunta "Você acredita
que a crise mundial afetará a economia do Brasil?", ao responder, eu não
investigo um fenômeno que ocorre no espaço interno da minha mente, olhando para
dentro, mas, ao contrário, dirijo minha atenção para as condições e fatos
econômicos do Brasil e para as informações a que posso ter acesso nos jornais.
Assim estarei tratando do mesmo fenômeno que trataria se respondesse à pergunta
"A crise mundial afetará a economia do Brasil?" Para Evans, se estou numa
posição para afirmar que p, estou ipso facto numa posição para afirmar que "Eu
acredito que p"3.
Para Evans, ademais, a característica principal do uso do pronome "eu" é
precisamente a autoreferência, o que significaria dizer que pensamentos cujo
sujeito é "eu" ("'I'-thoughts") são pensamentos nos quais o sujeito do
pensamento e da ação ("Eu penso ou acredito que..."; "Eu intento que...") está
pensando sobre si mesmo, ou seja, está pensando acerca do sujeito do pensamento
e da ação: "It is true that I manifest self-conscious thought, like 'here'-
thought, in action; but I manifest it, not in knowing which object to act upon,
but in acting" [grifos meus] 4. Nestes termos, o que caracterizaria a
perspectiva do sujeito não é um conhecimento de si (no modelo epistêmico
análogo ao conhecimento das coisas e de outras mentes), mas uma capacidade de
realizar o ato de manifestar seus atos e intenções.
Richard Moran5 considera que a transparência no sentido de Evans é uma
característica fundamental do autoconhecimento6 no contexto da experiência
comum e entender essa ideia nos ajuda a compreender as noções que estão
normalmente associadas ao autoconhecimento, como imediatez(não precisamos
recorrer à observação ou inferência), autoridade de primeira pessoa(tenho
acesso às minhas atitudes de um modo diferente das outras pessoas) e a relação
entre o autoconhecimento, a racionalidadee a saúde psicológica da pessoa.
As frases "Vai chover" e "Creio que vai chover" são obviamente diferentes
porque aquilo de que trata a segunda é um fato acerca do meu próprio estado
mental e a primeira se refere a um fato acerca do clima (que chove não depende
de mim nem de que eu acredite nisso). Porém, para Moran, do ponto de vista da
vida psicológica, normalmente quando uma pessoa está numa posição em que se
questiona acerca das próprias atitudes e pergunta a si mesmo "Eu acredito que
p?", sua resposta será formulada nos mesmos termos como a resposta à pergunta
"pé verdadeira?"7. Esse modo de responder à pergunta sobre as próprias atitudes
é completamente diferente do modo de responder à pergunta "S (outra pessoa)
acredita que p?".
Considerando isso, Moran propõe aquilo que chama de Condição de Transparência
(TC do inglês Transparency Condition)8 e que poderia ser apresentado do
seguinte modo:
(TC) A pergunta de primeira pessoa no tempo presente acerca da própria crença ("Eu
acredito que p?") é respondida em consideração às mesmas razões que justificam uma
resposta para a pergunta correspondente acerca do mundo (acerca de verdade de p).
Seguindo intuições que estão presentes em Evans, Moran apresenta uma imagem do
autoconhecimento não como um tipo de "conhecimento" no sentido epistêmico do
termo, tal como vem sendo amplamente discutido na tradição analítica,
principalmente na querela compatibilismo e incompatibilismo entre anti-
individualismo ou externismo e autoconhecimento9. Ao contrário, o
autoconhecimento, para Moran, envolveria, em primeiro lugar, a habilidade que
temos de expressarou manifestar(avow) meu estado mental e não apenas a
capacidade que tenho de atribuirestes estados a mim mesmo, tal como faço quando
atribuo estados mentais a outras pessoas. Quando digo "Eu acredito que p",
estou manifestando minha crença em p; de modo distinto, quando digo "S acredita
que p", estou atribuindo a S um certo estado mental sem me comprometer com a
verdade de p. Esse compromisso com a crença ' e que envolve elementos
psicológicos, morais e emocionais ' seria um traço decisivo do conhecimento de
si.
II. Os Limites da Transparência
Comentadores e críticos sugerem que existem certos limites e dificuldades na
concepção de transparência exposta na noção de Condição de Transparência
(TC)10. Nesta seção, organizo essas críticas nas seguintes sub-seções: (II.1)a
TC compreenderia uma concepção forte e racionalista de razão, pois estabelece
que um indivíduo é um agente racional se somente se é um indivíduo capaz de
refletir sobre suas próprias razões; (II.2) a TC, ao apoiar-se nas noções de
transparente-em-relação-ao-mundo e transparência-como-compromisso, não
explicaria a segurança especial dos avowals' o que enfraquece sua concepção de
autoconhecimento; (II.3a) a TC exigiria que a pessoa tenha que julgar as
próprias atitudes para conhecê-las e, assim, não consegue explicar a "imediatez
do autoconhecimento" e; (II.3b) existem atitudes (que atribuímos a nós mesmos)
que podem ser comumente conhecidas, mas que não são transparentes e,
consequentemente a imediatez, a autoridade e a racionalidade, como traços do
autoconhecimento, podem não ser justificadas pela TC.
Na minha opinião, estas críticas acertadamente estabelecem um vínculo entre a
noção de TC e a) a racionalidade exigida ao agente, b) a natureza específica
dos enunciados de primeira pessoa no presente e c) o traço de imediatez que
deve ser característico do autoconhecimento. Porém, de acordo com o modo como
entendo essa discussão, sou levado a concluir que estas críticas pode ser
evitadas porque elas não interpretam adequadamente os argumentos centrais de
Moran, sobretudo i) em relação ao tipo de concepção de racionalidade que lhe
interessa, ii) pelo fato de que os críticos aqui citados consideram a TC como
um "método de esclarecimento de crenças" e iii) ao lugar que Moran atribue à
transparência na vida psicológica das pessoas. Na seção III a seguir voltarei a
discutir esses pontos, apresentando uma leitura favorávelàs posições de Moran
para, em seguida, extrair minhas próprias conclusões acerca da noção de
autoconhecimento.
II.1. Transparência e razão
Brie Gertler situa os argumentos de Moran e a noção de Condição de
Transparência num quadro que ele chama de "Rationalist Theory of Self-
knowledge" (RTSK) e que incluiria também as posições de Tyler Burge, Akeel
Bilgrami e Sydney Shoemaker (este último como uma forma moderada de
racionalismo) 11. Uma RTSK, de um lado, parte de uma crítica às concepções
epistêmicas de autoconhecimento que apelam a teorias do conhecimento direto
(acquaintance theory) e do sentido interno(inner sense theory) e, do outro
lado, estabelece que o traço caracteristicamente especial do autoconhecimento é
o pensamento crítico-reflexivo. A suposição fundamental de uma RTSK é que cada
um de nós está numa posição única para avaliar e reconsiderar nossas próprias
atitudes ' em relação às quais somos responsáveis. E essa capacidade crítica
seria a dimensão normativado autoconhecimento.
A perspectiva racionalista que encontraríamos tanto em Moran quanto em Burge,
poderia, segundo Gertler, ser resumida em quatro princípios básicos: a) somos
indivíduos racionais, capazes de formar atitudes através de atos deliberativos;
b) o ato de formar atitudes é uma atividade normativa e somos responsáveis por
conduzir nossas atitudes em conformidade com as normas racionais; c) não
poderíamos assumir esta responsabilidade a menos que sejamos capazes de
conhecer nossas próprias atitudes. Assim, o nosso estatuto de agentes racionais
exige que sejamos capazes de conhecer nossas próprias atitudese; d) a nossa
racionalidade, assim concebida, é o que explica o traço distintivo do
autoconhecimento, a saber, ser um autoconhecimento crítico das atitudes.
Para Gertler, em Moran, o que permite o traço característico do
autoconhecimento é algo que poderia ser chamado de "método da transparência"
("transparency method") 12. Mesmo que Moran nunca tenha usado essa expressão,
tal "método" nos tornaria conscientes de nossas crenças (e de outras atitudes)
através da reflexão sobre nossas razões. Para ele, em Moran, podemos "usar este
método" ("We can use this method") porque há a suposição fundamental de que
nossas atitudes são compromissosapoiados por razões que os justificam. Nesse
ponto, a transparência se limitaria exclusivamente àquelas atitudes às quais
podemos associar justificações racionais, incluindo razões teóricas e práticas.
Se eu sou um agente racional, eu posso conhecer minha atitude acerca de pquais
as justificações que disponho garantir a verdade de p; ao rever e considerar
minhas justificações posso, posteriormente, expressar a minha atitude
intencional acerca p.
Isso, porém, nos levaria a um traço caracteristicamente racionalista da
transparência: refletindo sobre a verdade de ppodemos formar as atitudes
intencionais acerca p, ou seja, refletir criticamente sobre pgeraria atitudes
acerca de p.Isso significaria que assim eu não tenho um autoconhecimento
antesde recorrer ao "método da transparência" ' pois é através dele que,
finalmente, posso formar minhas atitudes.Ao recorrer ao suposto "método da
transparência", a pessoa se torna não somente um agente racional, mas um
racionalista, num sentido bastante forte, pois fica proibido de ter atitudes
não-razoáveis.
II.2. A segurança especial dos avowals
O conceito de avowals(manifestação, expressão) é central para a noção de
Condição de Transparência13. Porém, para Dorit Bar-On, dois elementos centrais
da TC, a ideia de transparente-em-relação-ao-mundo(a concepção de transparência
em Evans) e a ideia de transparência-como-compromisso(a ideia de transparência
como uma forma de compromisso moral com a verdade de p), não explicariam o
statusprivilegiado do tipo básico de autoconhecimento que estaria associado aos
avowals14. De um lado, porque transparente-em-relaçãoao-mundonão revelaria os
traços semânticos e epistêmicos característicos dos avowalse, do outro lado, a
transparência-como-compromissoestaria limitadaàs autoatribuições de atitudes
(especialmente crenças) que envolvem atos deliberativos.
Para compreender as críticas de Bar-On à TC, é necessário esclarecer o escopo
geral do seu próprio projeto filosófico: o seu neo-expressivismopretende
oferecer uma teoria geral que explique a segurança especial dos avowals15.
Segundo suas palavras:
"My goal will be to identify and explain a kind of security '
special, even if not absolute ' that we seem to enjoy whenever we
issue an avowals, with respect to the state we self-ascribe, as well
as with respect to the intentional object we specify for it, or the
propositional content we assign to it, if any."16
Essa teoria conciliaria dois aspectos ' um semântico e outro epistêmico ' que
em geral estão dissociados nas outras teorias dos avowals(como na concepção
cartesiana, na concepção materialista, em Anscombe, em Shoemaker e Evans).
Segundo a Epistemic Asymmetry, avowalssão genuinamente diferentes de outras
ocorrências semânticas que envolvem recurso a evidências ou acesso epistêmico;
para a Semantic Continuity, avowalsexibem continuidade de estrutura lógico-
semântica e são intercambiáveis salva veritate(em contextos) com frases
ordinárias e não problemáticas17. Bar-On pretende então explicar a segurança
especial de certas formas de enunciados e pensamentos de primeira pessoa sem
negar que esses enunciados e pensamentos preservam certos traços lógicos e
semânticos que podem comparecer em outras formas de enunciados e pensamentos,
como, por exemplo, aquilo que outras pessoas podem dizer sobre mim ou o que
meus relatos de memória podem dizer acerca de mim18.
Bar-On formula uma crítica que se dirige igualmente a Moran e Evans. Ela
reconhece que a ideia de transparente-em-relação-ao-mundo, como aparece em
Gareth Evans e é reelaborado em Richard Moran, oferece um bom argumento contra
a concepção de introspecção e de espaço interno; entrementes, essa ideia não se
aplica a todos os avowalsnem exclusivamente a avowals19. Neste ponto, Evans
permaneceria comprometido com um "Acesso Epistêmico" já que avowalsseriam
baseadosou justificadosem autoavaliações que a pessoa faz acerca de suas
crenças e pensamentos em relação a algo no mundo externo20. Como uma forma de
"Acesso Epistêmico", a ideia de transparente-em-relação-ao-mundopreservaria a
exigência de que devemos possuir algum tipo de conhecimento prévio de nossas
próprias mentes.
Grosso modo, assim como Gertler, Bar-On também encontra na noção de tC alguma
semelhança com um "método da transparência". Para ela, este "método" seria
epistemicamente indireto, pois quando a pessoa fala do que ocorre na sua mente
ele precisa consultaro mundo ao seu redor. esse, por assim dizer, "método" se
aplicaria a uma limitada variedade de avowals, sobretudo àqueles casos onde
somos perguntados explicitamente sobre se realmente acreditamos ou pensamos que
p(onde pé uma proposição acerca de algo no mundo externo). Porém, se
considerarmos outros avowals, como, por exemplo, "Eu realmente quero uma xícara
de chá agora", "Eu estou muito preocupado com meu pai" ou, dito repentinamente,
"Estou querendo saber qual é a hora", encontraremos casos onde não são lançadas
questões que poderiam ser respondidas olhando diretamente para algo no mundo
externo21. Se me pergunto, nesses casos, o que quero ou o que me preocupa, não
preciso olhar o mundo lá fora.
Um outro problema seria que "avowalsfenomênicos" (avowalsque atribuem a
presença de um estado sem conteúdo intencional, como, por exemplo, "Estou com
sede") não parecem ser bons candidatos à aplicação do "método de
transparência"; apenas avowalscom conteúdo intencional, como crenças,
responderiam a tal "método".
Para Bar-On, o "método da transparência" não explicaria corretamente a natureza
dos avowalsporque pode ser aplicado igualmente a não-avowals, como auto-relatos
de percepção ("Eu estou vendo uma árvore") e auto-relatos de memória e,
consequentemente não caracterizam um traço específico dos avowals. Na sua
opinião, a concepção de transparência em Moran não promete mais do que a de
Evans. De maneira genérica, suas críticas se concentram no fato de que algumas
atribuições de estados mentais poderiam ser transparentesem-relação-ao-mundo,
porém não partilhariam da segurança especial dos avowals, como é o caso, por
exemplo, dos relatos de estados perceptivos ("Eu vejo uma árvore" ou "Eu ouço
um som alto") 22. Essas atribuições claramente atendem ao TC (embora Moran não
tenha tratado diretamente desse tópico). Outro caso são as atribuições não-
teóricas (no sentido apresentado por Moran23) de estados mentais a outras
pessoas: frequentemente, quando atribuímos crenças e outras atitudes aos
outros, nosso olhar está dirigido ao mundo e não aos estados mentais internos
da outras pessoa.
Outro aspecto é que a ideia de transparência-como-compromissose aplicaria
apenas a crenças e outros estados "motivados" ou "sensíveis a julgamentos" e
não a todos os avowals. Isso quer dizer que o domínio da transparência seria
restrito às autoimputações de atitudes cuja existência está sujeita à
deliberação racional. Mesmo que a noção de transparência-comocompromissopossa
caracterizar uma classe de autoimputações que é, ao mesmo tempo,
distintivamente de primeira pessoa e genuinamente diferente de outras
imputações, isto não fornece uma base sólida para que seja respeitada tanto a
Assimetria Epistêmica quanto a Continuidade Semântica.
Além disso, a ideia de sujeito racionalem Moran não ofereceria uma boa saída da
perspectiva epistêmica: seguindo Kant e Sartre, Moran pensa autoridade especial
dos avowalscomo resultado do exercício de uma autoridade racionalde um sujeito
racionalque tem a capacidade reflexiva, autonomia e liberdade.
Dessarte, Moran não explicaria o status privilegiado do autoconhecimento básico
que ordinariamente é associado aos avowals.
"Moran's view accommodates the kind of privileged self-knowledge we
can have of what we shall believe, or desire, or intend, as we
transparently deliberate, qua rational or practical agents, on the
reasons for our beliefs, desires, and intentions. To the extent that
this is the only kind of privileged self-knowledge he would make room
for, his view of ordinary self-knowledge would seem deflationary
(...)."24
Moran não teria explicado a natureza dos avowals(tanto intencionais quando não-
intencionais) e das características do privilégio de primeira pessoa o que,
consequentemente, comprometeria severamente sua compreensão do
autoconhecimento.
II.3a. Acreditar e julgar
Quassim Cassam critica o modo como Moran concebe a ideia de imediatez' ou seja,
que o conhecimento de nossas próprias crenças e outras atitudes é usualmente
imediato, não baseado em observação, evidência ou inferência25. Moran cometera
aquilo que poderíamos chamar de "erro categorial", pois os exemplos de
conhecimento imediato de nossas próprias crençasque ele considera são, na
verdade, exemplos de conhecimento imediato de nossos julgamentos:
"...the point is that while consideration of the reasons in favour P
might lead one to judge that P, judging that P is not the same as
believing that P and does not ensure that one believes that P. This
need not prevent one from knowing that one believes that P on the
basis of one's knowledge or awareness that one judges that P, but the
resulting knowledge of one's belief is not immediate."26
Moran não teria estabelecido uma diferença nítida entre a ideia de que o
conhecimento dos nossos próprios atos mentais(como é o caso de julgar que) é
imediato e a ideia muito mais complexa de que o conhecimento que temos dos
nossos próprios estados mentais(como é o caso de ter uma crença) é imediato.
Para Cassam, julgar, refletir, avaliar, concluir que p(que são atos mentais)
não é o mesmo que acreditar que p. Mesmo que, muitas vezes, julgar ou concluir
que ppossa contribuir para a formação da crença que p, esta não é uma relação
necessária já que o estado de acreditar não é causado necessariamente por
avaliações, julgamentos e conclusões. Se, por acaso, julgar ou concluir que
pfosse equivalente a acreditar que p, do mesmo modo, conhecer que estou
julgando ou concluindo que pseria equivalente a conhecer que estou acreditando
que p. Porém, segundo Cassam, é possível que alguém julgue que p, mas não
acredite que p. É claro que pode ocorrer o caso em que um indivíduo pense que
seu julgamento de que pdetermina suas crenças, mas esse seria um sujeito
excessivamente racionalista que teria a obrigação de examinar todas e cada uma
das suas crenças, mesmo as mais elementares ("estou aqui neste momento"), para
concluir que as tem. Moran esperaria, então, que a pessoa recorresse à reflexão
para estabelecer suas razões e justificar sua crença.
Se entendermos que o conhecimento imediato deveser um conhecimento não
inferencial (e também um conhecimento não-observacional), em dois sentidos a TC
não explicaria a imediatez do autoconhecimento: do ponto de vista epistêmico e
do ponto de vista estritamente psicológico. Meu conhecimento de que pé
epistemicamente imediato se somente se minha justificação para acreditar que pé
não-inferencial; assim, também, meu conhecimento de que pé psicologicamente
imediato se somente se para chegar a esse estado de acreditar que peu não
necessite recorrer a raciocínios e inferências acerca de p ou de outras
proposições.
Para Cassam, essa distinção entre imediatez epistêmicae imediatez
psicológicanos leva a duas questões: a) quando venho a conhecer que eu acredito
que pseguindo o procedimento da transparência, o meu conhecimento é
epistemicamente imediato? b) quando venho a conhecer que eu acredito que
pseguindo o procedimento da transparência, o meu conhecimento é
psicologicamente imediato? Cassam argumenta, porém, que segundo a TCa resposta
para as duas perguntas é não. Se aceitamos a TC quando venho a conhecer que eu
acredito que pseguindo o procedimento da transparência, o meu conhecimento, ao
menos em parte, exige a justificação de julgamentos, avaliações, raciocínios e
inferências. Ora, o conhecimento inferencial não é conhecimento epistemica e
psicologicamente imediato. A transparência, tal como Moran a concebe na sua TC,
não tem como assegurar a imediatez (seja epistêmica ou psicológica) do
autoconhecimento27.
II.3b. Autoconhecimento sem transparência
Um outro problema é que pode haver autoconhecimento sem transparência. Como
salienta Jonanthan Way, "(...) there are rationalattitudes ' which can be
recognized as such by their agents ' which are just as resistant to
transparency, and yet which can uncontroversially be the objects of ordinary
self-knowledge" 28. Ora, nem sempre os indivíduos têm as atitudes que julgamque
são as atitudes que têm. É possível que alguém queira beber mais um copo de
vinho, sabendo muito bem que esta não é a coisa certa a fazer já que terá de
dirigir de volta para sua casa. Esses casos, quando a formação da atitude
contraria o julgamento (a partir da reflexão sobre as atitudes), podem nos
levar a colocar em dúvida a exigência da transparência como requisito
fundamental do autoconhecimento
III. Reflexão e Vicissitude
Esta seção está organizada em torno de três itens: (III.1) é fundamental para a
definição de pessoa tanto supor que nossas vidas psicológicas são governadas ou
explicadas pelas estruturas normativas dos conceitos de racionalidade e
responsabilidade quanto supor que uma pessoa pode ou tem a capacidade de
perguntar pelas razões da sua crença (isto servirá, do mesmo modo, para
confrontar as teses de Gertler do hiper-racionalismo e de que haveria uma
proto-crença anterior à intenção e, do mesmo modo, a crítica de Cassam sobre a
diferença entre julgar e acreditar e, em outra direção, ajuda a esclarecer
porque a TC não está a serviço de fundamentar a segurança especial dos avowals,
como sugere Bar-On); (III.2) a TC não é um método para tornar crenças claras e
distintas e o sentido de deliberação deve estar associado à ideia de "refazer a
própria mente" (ao contrário do que fora sugerido por alguns comentadores e
críticos, isto pode provar que Moran não concebe a TC como um "método", mas
como uma condição modestada nossa vida psicológica; isto ainda ajuda a refutar
as críticas de que a TC envolve um racionalismo forte e estaria baseado numa
confusão entre julgar e acreditar); (III.3)a TC demonstra a imediatez do
autoconhecimento e autoridade especial da pessoa (ao contrário do que afirmam
Bar-On e Cassam).
Nesta seção, por fim, sugiro que, do ponto de vista da experiência comum29
proposta por Moran em Authority and Estrangement, o sentido relevantede
transparência envolve reflexão, posto que temos o direito legítimo de
considerar, ponderar e avaliar as minhas próprias atitudes, e vicissitude, já
que essas considerações que fazemos sobre nossas atitudes implicam
precariedade, mudança e falibilidade.
III.1. O direito legítimo de perguntar pelas razões da própria crença
Para compreendermos corretamente o sentido da TC é importante ressaltar que
Moran procura tratar o tema do autoconhecimento no cenário da vida comum e não
recorre aos cenários dos experimentos mentais e da lógica modal (que, de certo
modo, têm dominado o debate sobre autoconhecimento)30. em que situação é
relevante falar que temos (ou não temos) autoconhecimento? Ou ainda, por que
uma pessoa perguntaria sobre as próprias crenças? Para muitos filósofos, um
indivíduo é um agente racional não apenas porque lhe atribuímos crenças e
pensamentos (e também outras atitudes), mas, sobretudo, porque acreditamosque
ele tem um conhecimento de tais crenças e pensamentos e que ele pode refletir
acerca dessas crenças e pensamentos. ("Refletir" aqui ainda é apenas uma noção
vaga que pode significar avaliar, julgar, criticar, ponderar, comparar com
outras atitudes passadas, antecipar consequências e assim por diante). As
reflexões que um indivíduo faz acerca de suas próprias atitudes (mas também de
suas emoções e sentimentos), frequentemente exercem um papel na condução da sua
vida e nas mudanças dos seus estados mentais. Por isso, Moran estabelece uma
distinção entre as situações onde a pessoa formula uma questão teórica e quando
formula uma pergunta prática ou deliberativa acerca das próprias atitudes. O
que ele chama de "theoretical question" acerca das próprias atitudes e
sentimentos é aquela cuja resposta remete a algum conteúdo que a própria pessoa
é ignorante, algo acerca do qual lhe falta um conhecimento; enquanto uma
"practical or deliberative question" é aquela cuja resposta é uma deliberação,
uma decisãoque a pessoa tomará, afetando a condução da sua vida psicológica.
Essa distinção31, segundo Moran, introduz uma nova dimensão para a questão da
"substancialidade do autoconhecimento" 32; com essa distinção estaríamos numa
posição que nos permite enxergar como a reflexãoque os indivíduos fazem sobre
seus próprios estados tem caráter dinâmico e joga um papel central nos seus
atos intencionais e na transformação dos próprios pensamentos, crenças e
sentimentos.
Neste ponto Gertler e Cassam acertam ao indicar a centralidade da refelxãona
concepção de Moran acerca do autoconhecimento. Porém, essa reflexãodeve ser
interpretada num quadro de uma perspectiva modesta da racionaliade. Moran fala
que procurou seguir uma estratégia que tentava assegurar um fundamento "tão
minimalista quanto possível" acerca de como nossas vidas comuns são governadas
ou explicadas pelas estruturas normativas dos conceitos de racionalidade,
responsabilidade e ação33. Ou seja, ao contrário do que sugerira Gertler, Moran
não reivindica uma concepção fortede razão e sujeito que justifique a
capacidade do indivíduo de "considerar" suas atitudes. Ao contrário, a
suposição de racionalidade é uma suposição básica e mínima para identificar o
fenômeno do pensamento e da ação, assim como, de modo análogo, a suposição de
que há algo como o "significado" é uma suposição básica e mínima para entender
o fenômeno da fala34. Porém, assim como a suposição de significado não é uma
garantiade que todos os atos de fala sejam bem sucedidos (e que as pessoas
possam se comunicar com sucesso em todos os casos) ou que uma teoria filosófica
semântica satisfaça plenamente a explicação global do fenômeno da fala (outras
disciplinas, como linguística, fonoaudiologia, acústica, neurociência também
podem iluminar, talvez até com mais eficiência, o fenômeno da fala), assim
também a suposição filosófica de racionalidade e responsabilidade não
garanteque as pessoas ajam sempre de modo racional e responsável nem significa
que tal teoria esgota o fenômeno da ação.
A suposição de racionalidade, portanto, não exige que o filósofo pense que a
vida psicológica de uma pessoa é totalmente compreendida pelo conceito de
racional ou de racionalidade para pensar que este é um requisito mínimo para
qualquer investigação que procure entender todos os aspectos da vida
psicológica das pessoas35. Num sentido holístico (no sentido Quine/ Davidson),
a crença e de outras atitudes compreende estados mentais que são normativamente
controlados e envolvem outros estados mentais que se suportam mutuamente. Os
atos de uma pessoa normalmente são considerados ações (motivados por atitudes)
e a pessoa é normalmente considerada um agente racional nesse quadro normativo.
De fato, como assinalam Lucy O'Brien36 e Pedro Stepanenko37, em Moran, a
natureza especial do autoconhecimento está relacionada ao modo como uma pessoa
tem consciência de si como agente racional38. Porém, a Condição de
Transparência está sustentada naquilo que Moran chama de uma suposição modesta
("modest assumption") ou a mais modesta suposição("the more modest assumption")
39. a suposição modestaé a suposição de que as pessoas podem fazer e responder
questões do tipo "O que eu penso sobre X?", ou seja, as pessoas têm a
capacidade de fazer questões sobre o próprio estado mental. Essa suposição,
porem, é fundamental para o conceito de pessoa como agente racional e marca uma
diferença crucial entre a perspectiva de primeira e terceira pessoa. Ora, isto
é fundamental para o conceito de agente racional porque a resposta a essa
pergunta exerce influência sobre o modo como "refazemos nossas mentes". E é
fundamental para estabelecer a diferença entre a primeira e terceira pessoa
porque questões formuladas desta forma (O que eu penso sobre X?), se expressa
pela primeira pessoa, tem aspectos que não estão presentes quando expressa em
relação a outra pessoa. Por exemplo, a questão "O que ele pensa sobre X?"
envolve a atribuiçãoteórica de um estado mental a outra pessoa; em relação a
mim mesmo, como vimos na seção I deste artigo, quando me pergunto o que penso
sobre X, além do aspecto teórico, há principalmente o aspecto deliberativo40.
A imediatez, transparência e autoridade só serão postas em prática na medida em
que as "razões" da pessoa realmente determinam o que suas crenças e outras
atitudes são. O ponto é que os seres humanos, entre outras habilidades, têm a
capacidade de agir de acordo com razões e de perguntar a si mesmo por essas
razões. O aspecto do conceito de autoconhecimento que é relevante para os seus
argumentos é que, considerada essa capacidade comumente outorgada às pessoas, a
pergunta pelas próprias razões implica, de modo central, uma relação entre o
conhecimento da própria atitude e as circunstâncias nas quais a pessoa realiza
uma ação orientada pelos seus pensamentos e crenças e em relação às quais essa
pessoa tem inalienável responsabilidade.
III.2. Vivendo sem crenças claras e distintas
É um erro considerar a TC como um "método" ou "procedimento" que teria o escopo
de esclarecer ideias, crenças, pensamentos que, por alguma razão, estariam
confusos, opacos, imprecisos na mente da pessoa. Imaginemos uma situação na
qual uma pessoa que tem dúvidas sobre suas próprias crenças aplicasse esse
"método da transparência" para saber qual é realmentea sua crença: ela
examinaria, para isso, o mundo ao redor e depois, e somente depois, habilitar-
se-ia a expressar sua crença; essa pessoa, ademais, teria uma capacidade
crítico-filosófica muito sofisticada, nem sempre compartilhada pelas pessoas
comuns, para proceder esse exame, investigando os conteúdos das suas atitudes '
conteúdos esses que seriam formados, ao menos em parte, por eventos e objetos
externos à mente ' e aplicando complicados cálculos proposicionais. Obviamente
que tal suposto "método" Evans-Moran de tornar crenças claras e distintas
falharia em muitos episódios, pois responder a pergunta sobre a crença que
polhando para o mundo ao redor (aos fenômenos empíricos) não é um candidato
confiável e aplicável a todas as crenças em geral. Exemplos simples, como os
apresentados por Bar-On41 e rapidamente comentados na seção II deste artigo,
ilustram bem essa falha42.
Parece-me que a Condição de Transparência não fora concebida como tal métodode
tornar crenças claras e distintas e produzir autoconhecimento, mas como uma
condição da experiência do dia-a-dia que pode interessar ao filósofo que
pretende entender alguns dos traços da racionalidade humana. A autoatribuição
de atitudes que satisfaz a TC são aquelas em que a resposta à pergunta sobre
uma crença (Eu acredito que p?) tem um papel crucial na vida psíquica da pessoa
exatamente porque essa pessoa pode "make one's mind up", "decidir-se", "refazer
a própria crença".
Em Moran, o conceito de "avowal" é definido apenascomo uma forma de
caracterizar a posição enunciativa da primeira pessoa. Moran recorre a
Wittgenstein para afirmar que há certas condições em que a pessoa concebea si
mesma como um sujeito psicológico de um modo radicalmente diferente das
situações em que queremos entender outras pessoas. A função normal do uso do
verbo "acreditar" no tempo presente pela primeira pessoa do singular é
expressarou manifestaruma perspectiva da pessoa sobre como as coisas estão no
mundo ' posto que frequentemente acreditar em algumas proposições é
simplesmente acreditar que ela é verdadeira43. Mas não se pode criticar
seriamente a TC por não oferecer uma teoria global da segurança especial das
expressões de primeira pessoa no presente, pois este não é o seu objetivo. Seu
objetivo, parece-me, é mais simples e desconcertante ' a preocupação de Moran é
moral e não epistêmica44. Ele não procura oferecer um bom argumento ou uma
explicação que esclareça como uma pessoa que se autoatribui uma atitude estaria
numa posição particularmente segura, mas antes tenta entender, de um lado, como
a autoatribuição é fundamental para a vida psíquica da pessoa porque essa
atitude lhe importa("are up to her/ him"). Por outro lado, ele considera o fato
de que a pessoa tem uma autoridade não só porque suas crenças importam a ela,
mas também no sentido de que essa pessoa, em certas circunstâncias, reflete
sobre as razões dessa atitude no contexto de um ato deliberativo45.
III.3. Transparência, imediatez e autoridade
É fundamental, para o argumento de Moran, a discussão sobre o Paradoxo de Moore
e a resposta de Wittgenstein na segunda parte das suas Investigações
Filosóficas46. Uma resposta no espírito wittgensteineano considera que
expressões como "Eu acredito que p" não relatam ou descrevem um estado mental
cognitivo, mas serve para apresentarou expressara aceitação da verdade da
proposição em questão. Acerca disso, Wittgenstein escreveu: "Podemos desconfiar
dos próprios sentidos, mas não da própria crença. Se houvesse um verbo
significando 'crer falsamente', não teria uma primeira pessoa do presente do
indicativo com significado. Em relação às minhas próprias crenças", continua,
"não mantenho uma relação de conhecimento ou desconhecimento: Posso saber o que
o outro pensa, e não o que eu penso. É correto dizer: 'Sei o que você pensa', e
incorreto dizer: 'Sei o que eu penso'"47.
Em relação ao que as outras pessoas dizem ou dizem acreditar, posso confiarou
não confiar(que essa pessoa realmenteacredita no que diz acreditar ou se o que
diz acreditar é ou não verdadeiro). Com respeito às minhas próprias crenças,
não há uma distância entre elas e o modo como os fatos fora de mim se
apresentam para mim. O que Wittgenstein dissera acerca de não poder duvidar das
próprias crenças não significa que eu confio mais nas minhas crenças do que
confio nos meus sentidos, mas simplesmente que nessas situações não está em
jogo confiança ou justificação epistêmica48. É claro que minhas crenças podem
ser verdadeiras ou falsas (e é comum nos enganarmos), mas faria algum sentido
eu confiar ou não confiar na minha crença ou duvidar queacredito? É claro que
podemos, também, desconfiar das nossas próprias crenças ou estar insegura
quanto a elas: essa situação não é incomum, pois alguém pode não confiar nas
próprias crenças, mas isso significa que essa pessoa encontra-se numa situação
normativamenteirracional. (É claro que podemos imaginar uma situação na qual a
pessoa tem uma baixa adesão a uma crença e que não se sinta segura em a admitir
com firmeza ou até mesmo não se comprometacom tal crença. Isso, é claro, não
pode ser classificado de irracional49.)
Um ponto que marca a radical diferença entre a primeira pessoa e a perspectiva
de outra pessoa é que a relação entre a crença e o próprio fato de acreditar ou
não acreditar não exige qualquer tipo de provas ou dados empíricos, já que
expressar minha crença é expressar minha convicção sobre o que é o caso:
"... as I conceive of myself as a rational agent, my awareness of my
belief is awareness of my commitment to its truth, a commitment to
something that transcends any description of my psychological state.
And the expression of this commitment lies in the fact that my
reports on my belief are obliged to conform to the condition of
transparency [grifo meu]: that I can report on my belief about X by
considering (nothing but) X itself."50
Autoconhecimento, nesse sentido, não é uma questão de ter acesso a uma
informação sobre mim (informação que, por algum motivo, eu poderia não ter).
"When I avow a belief, I am not treating it as just an empirical
psychological fact about me [grifo meu]; and to speak of a
transcendental stance toward it is meant to register the fact that it
is explicit in the avowal that it commits me to the facts beyond my
psychological state; and as a commitment it is not something I am
assailed by, but rather is mine to maintain or revoke.51
A pessoa, ao expressar sua crença, está se comprometendo com a sua verdade. Na
vida comum, quando um indivíduo reflete deliberativamente acerca das suas
crenças e pensamentos, não está fazendo uma investigação ou arrolando
evidências e provas. Entrementes, mesmo sem as garantias epistêmicas, quando um
indivíduo consideraas suas próprias crenças ele pode (e frequentemente o faz)
mudar sua mente (seus pensamentos, crenças e, claro, ações). Aqui há um tipo de
autoridade de primeira pessoaindispensável à pessoa racional comum52; um tipo
de autoridadeque não se confunde com a autoridade epistêmicade um conhecimento
claro e distinto acerca dos conteúdos completos da própria mente.
Quando a TC é violada, a ideia comum que temos da racionalidade das pessoas é
profundamente abalada, pois parece que concebemos que um indivíduo é um agente
racional não apenas porque lhe atribuímos crenças e pensamentos (e também
outras atitudes), mas, sobretudo, porque supomosque ele pode refletir acerca
dessas crenças e pensamentos e ser um sujeito dos seus atos mentais53. Sob
muitos aspectos, ser um agente racional é ser capaz não só de ter atitudes, mas
ser capaz de rever suas atitudes (mas também emoções e desejos) e formar novas
atitudes:
"... part of it is to be a rational agent is to be able to subject
one's attitudes to review in a way that makes a difference to what
one's attitude is. One is an agent with respect to one's attitudes
insofar as one orients oneself toward the question of one's beliefs
by reflecting on what's true, or orients oneself toward the question
of one's desires by reflecting on what's true worthwhile or diverting
or satisfying."54
Como escrevera Stuart Hampshire, um sujeito racional é um "autor responsável
por suas crenças" 55. Quando alguém diz "Eu acredito queX", "Eu penso queX",
"Eu desejo queX", essa crença, pensamento, desejo pertence a essa pessoa; essa
pessoa é agente(autor) da atitude proposicional e ela tem uma "responsabilidade
especial" que nenhuma outra pessoa tem. Essa crença, pensamento, desejo são
expressãodas suas relações com o mundo e com as outras pessoas e não uma "mera
sucessão de representações (das quais, por alguma razão, ela é a única
testemunha)"56.
O que caracteriza nossa capacidade de autoconhecimento não é que os relatos de
primeira pessoa são especial e cognitivamente garantidos e confiáveis, mas o
fato de que esses relatos envolvem um modo específico de consciência e que tal
consciência tem consequênciaspara o conjunto dos nossos pensamentos, desejos,
crenças, para o que fazemos com nossas vidas e para a relação que mantemos com
o mundo entorno. Se alguém é perguntado "O que você está fazendo?" e essa
pessoa responde "Estou indo caminhar", esse enunciado não está baseado em
alguma espécie de "indício interior"; ele expressa uma intençãopara a qual essa
pessoa (e ninguém mais) é responsável.
IV. Conclusão
Algumas das críticas à noção de Condição de Transparência se concentram na
acusação de que ela exige que a pessoa primeiro avalie e julguesuas atitudes e
somente depois expresse suas intenções, como um sujeito hiper-racionalista que
julga, reflete e pensa antes de acreditar. De fato, há uma expectativa de
racionalidade atribuída às pessoas e a suposição de que somos capazes de
refletir sobre nossas próprias atitudes. Mas, na verdade, o que a noção de TC
estabelece é que, no contexto da vida prática comum, mesmo que muitas vezes
nossas crenças nunca sejam objeto de reflexão ou que nunca sejamos instados a
discriminar suas razões, o fato é que é possívelpara uma pessoa "chegar a uma
conclusão", determinar suas crenças sobre algo se baseando simplesmente no seu
acesso às razões para sustentar isso. A TC nãoafirma que todas as crenças são
formadas através de deliberação ou raciocínio nem que nós precisamos aplicarou
recorrer a um "método" para tornar nossas crenças claras. A TC simplesmente
supõeque esta é uma capacidade que as pessoas têm quando suas ações são regidas
por razões.
As crenças e outras atitudes são transparentes neste sentido: a pessoa não
precisapraticar a TC (fazer o ato de julgar) para que suas autoatribuições de
atitudes sejam transparentes ' refletir sobre as próprias razões é uma
capacidade da pessoa; isso não é requisito ou exigência.
A autoridade da primeira pessoa e a imediatez do autoconhecimento são aspectos
daquilo que é ser um sujeito de crenças, mas apenas na medida em que a pessoa
tem o direito legitimode supor que aquilo no que ela acredita sobre alguma
coisa é determinada por aquilo que ela tem razões para acreditar. Entretanto,
por mais que essa suposição seja indispensável para entender os indivíduos
enquanto sujeitos que podem acreditar, conhecer, agir de acordo com razões,
numa palavra, como pessoas, essa suposição se refere a uma capacidade humana
que é parcial, frágil e imperfeita57. Esse talvez seja um dos motivos porque no
decorrer das páginas de Authority and EstrangementMoran dedica uma atenção
especial às vicissitudes e fraquezas da autoridade de primeira pessoa e como
essas vicissitudes e fraquezas têm consequências para a racionalidade da
pessoa.
Reflexão e vicissitude estão presentes no momento em que o indivíduo enquanto
pessoase encontra em situações em que a pergunta a si mesmo sobre sua crença
torna-se inevitável para a condução da sua vida. Refletir não é mais do que
expor as próprias atitudes sob um certo ângulo, considerando as próprias
contingências, mudanças, precariedades e incertezas, enfim, considerar as
próprias vicissitudes. Neste sentido, a ideia de racionalidade que interessa a
Moran diz respeito ao exercício de uma particular autoridade sobre suas
próprias crenças, pensamentos e intenções atuais. Mas essa é uma capacidade
parcial já que a transparência não significa um entendimento completo dos
conteúdos do pensamento; essa é uma transparência frágil, pois a psicopatologia
da vida cotidiana está repleta de exemplos corriqueiros nos quais a
transparência falha e não sabemos das nossas próprias razões; essa
transparência é, ainda, imperfeita, já que não há garantias epistêmicas e
metafísicas. Isso tudo serve para nos apresentar, ao mesmo tempo, a
centralidade e fragilidade do autoconhecimento.