O método cético da oposição e as fantasias de Montaigne
1. Discutiu-se muito sobre o ceticismo de Montaigne. Para alguns, o ceticismo
antigo fornece a chave para entender a forma específica de seu ceticismo1;
outros sustentam que Montaigne é um cético, mas não nos moldes do ceticismo
antigo2; e há quem negue que o pensamento de Montaigne possa ser caracterizado
como cético3. Sem ter a pretensão de resolver essa questão, eu gostaria de
argumentar em favor de uma posição intermediária: a variedade de ceticismo
apresentada por Montaigne, embora incorpore muitos elementos do ceticismo
antigo, não pode ser identificada com o pirronismo ou o ceticismo acadêmico,
não somente por modificar esses elementos, mas também por desenvolver uma forma
de duvidar original4.
2. Num capítulo sobre o suicídio, Montaigne se refere à ideia de que filosofar
é duvidar. Aparentemente, ele se alinha a essa concepção, pois o que faz,
"entreter-se com ninharias e fantasiar", também "deve ser duvidar" (II, 3, 350/
29). Permanecer na dúvida cabe aos aprendizes, enquanto os catedráticos a
resolveriam. Noutro capítulo, em que trata "Dos livros", Montaigne também
contrasta os mestres com os aprendizes, novamente se alinhando com os
aprendizes. "Não tenho dúvida de que frequentemente me ocorre falar de coisas
que são mais bem tratadas pelos mestres do ofício, e mais verdadeiramente."
(II, 10, 407/114) Uma dúvida pode ser respondida de maneira que obtenhamos uma
resposta certa e verdadeira; é isso o que faz um catedrático ou mestre.
Montaigne não pretende falar das coisas com conhecimento de causa ou
verdadeiramente, mas, como um aprendiz5, ele duvida.
O que, no entanto, Montaigne entende por "duvidar"? Nessa passagem, não está
claro o que seja, precisamente, duvidar. Uma coisa parece certa: duvidar, seja
como filosofar, seja como entreter-se com ninharias e fantasiar, é "investigar
e debater" como um aprendiz, e não "resolver" como um catedrático (II, 3, 350/
29). Duvidar, concebido como investigar e debater, é produzir contradições ou
contestar, uma vez que a autoridade divina, que resolve, e não duvida, nos rege
"sem contradição", situando-se acima das "contestações humanas e vãs" (II, 3,
350/29). Pode-se inferir, então, que, no caso das questões humanas, que são
investigadas e debatidas, há contradição e contestação e, portanto, não há
autoridade inquestionável. Assim, duvidar sobre as coisas humanas seria
examinar o que se disse sobre o assunto e debater as opiniões, isto é,
estabelecer oposições entre elas.
Os filósofos que pensam que filosofar é duvidar e que duvidar é,
fundamentalmente, investigar e debater são os céticos. Na "Apologia", Montaigne
apresenta a divisão proposta por Sexto Empírico, segundo a qual a filosofia se
divide em três seitas: a dos dogmáticos, a dos acadêmicos e a dos céticos
pirrônicos. Enquanto os dogmáticos pretendem ter descoberto a verdade e os
acadêmicos, que a verdade não pode jamais ser descoberta, os céticos pirrônicos
continuariam investigando-a, "de modo que a profissão dos pirrônicos é de
abalar, duvidar e investigar, não garantir nada, nada responder." (II, 12, 502/
255) O que caracterizaria especificamente a posição pirrônica seria, nessa
apresentação tomada de empréstimo a Sexto Empírico por Montaigne, a dúvida e a
investigação.
A identificação daqueles que dizem que filosofar é duvidar com os céticos
acomoda-se bem com a ideia de que duvidar é contradizer ou contestar. Afinal,
os céticos pirrônicos "não temem a contestação em sua disputa. Quando dizem que
o pesado vai para baixo, ficariam bastante aborrecidos se se acreditasse neles
e procuram que se os contradiga para gerar a dúvida e a suspensão do juízo, que
é seu fim." (II, 12, 503/255) A dúvida nasce precisamente dessa capacidade de
produzir contradições entre as proposições. A contradição não se limita às
proposições, mas envolve também os argumentos empregados para sustentar as
proposições contrárias ou contraditórias, de modo que argumentar tanto a favor
da afirmação como da negação produz igualmente uma dúvida. A maneira pela qual
os pirrônicos investigam e debatem é aplicando o que se poderia chamar de
método da oposição, isto é, uma técnica por meio da qual os pirrônicos produzem
infindáveis contradições entre as opiniões que se pretendem verdadeiras. "Não
há razão que não tenha uma razão contrária a ela, diz o mais sábio partido dos
filósofos" (II, 15, 612/419), isto é, o dos céticos.
Montaigne pensa que a essência da filosofia, por assim dizer, é duvidar e,
portanto, investigar e debater. A esse respeito, ele corrige Sexto Empírico,
embora pareça apenas retomá-lo6. Segundo Sexto (HP I, 1-4), somente os
pirrônicos investigam e se encontram em aporia. Tanto os acadêmicos como os
dogmáticos interromperiam sua investigação, pois teriam chegado a um resultado
definitivo, seja que é possível conhecer ou não é possível conhecer. Embora
parta desse divisão tripartida da filosofia, Montaigne logo acaba por abolir as
distinções traçadas por Sexto. Primeiro, ao expor a posição cética, ele acaba
por combinar elementos pirrônicos e acadêmicos. Por exemplo, mistura a
probabilidade acadêmica com a aparência pirrônica. De maneira talvez um tanto
irônica, diz que o pirronismo é a opinião mais verossímil (II, 12, 506/260). A
exposição do ceticismo conclui dizendo que "das três seitas da filosofia, duas
fazem profissão expressa de dubitação e ignorância" (II, 12, 506/260). Em
particular, pode-se dizer que o princípio pirrônico de opor a todo discurso um
discurso oposto de igual força é endossado pelos acadêmicos7. A fronteira entre
pirronismo e ceticismo acadêmico é, assim, apagada8.
E quanto ao dogmatismo? Talvez se possa dizer o mesmo, ainda que com menos
clareza. Segundo Montaigne, "é fácil descobrir que a maioria assumiu a face da
segurança somente para ter melhor semblante. Eles não pensaram tanto em nos
estabelecer alguma certeza como em mostrar-nos até onde foram nessa caça da
verdade" (II, 12, 506-507/260). A sequência do texto procura sustentar essa
opinião um tanto surpreendente e desconcertante, embora certamente contenha
alguma dose de ironia. O fato é que Montaigne interpreta boa parte dos
dogmáticos como se também eles estivessem sobretudo investigando e duvidando. E
explora expedientes que esconderiam a dúvida sob a roupagem da certeza: dar
razões prováveis, como Sócrates; empregar a forma do diálogo, como Platão; usar
uma linguagem obscura, como Aristóteles. A dúvida se insinua no discurso
dogmático das mais diferentes maneiras. Poucos, entretanto, lançarão mão do
método cético de oposição. Assim, os filósofos desta terceira seita "têm uma
forma de escrever duvidosa na substância e um desígnio investigativo mais do
que instrutivo" (II, 12, 509/264).
A diferença entre ceticismo e dogmatismo seria mais de grau do que de natureza.
O pirronismo seria a seita em que essa característica essencial do filosofar é
mais evidente, "pois estes [os pirrônicos] ganham sempre o ponto alto da
dúvida" (II, 12, 587/382); o ceticismo acadêmico, de maneira talvez um pouco
incoerente, mal se afastaria dessa dúvida; e, embora talvez oculta em parte, a
dúvida estaria presente também nos mais variados dogmatismos. Cada seita, à sua
maneira, poria em prática a dúvida filosófica, mas em graus diversos9.
Uma consequência curiosa dessa ausência de fronteiras precisas é que também as
filosofias céticas (pirrônica e acadêmica) podem ter opiniões. Veremos mais
adiante como Montaigne incluirá os céticos na diaphonía entre os filósofos, já
que também os céticos opinariam. Portanto, se o verso da moeda é que os
dogmáticos duvidam, investigam e debatem como os céticos, o reverso é que os
céticos opinam como os dogmáticos. E assim como há graus de dúvida, também há
graus na formulação de uma opinião. Enquanto os dogmáticos tendem a
simplesmente afirmá-las, os acadêmicos as enunciam como meramente "prováveis" e
os pirrônicos não somente não as afirmam, como fazem os dogmáticos, como sequer
as consideram "prováveis", à maneira dos acadêmicos.
Ora, se Montaigne se inclui entre aqueles que duvidam e, entre os filósofos que
duvidam, estão em primeiro lugar os pirrônicos, então parece haver uma estreita
afinidade entre Montaigne e esses céticos. Não somente pela dúvida, como
investigação e debate, ou por elogiar o ceticismo como o "mais sábio partido
dos filósofos", mas também por confessar sua ignorância, Montaigne se
aproximaria dessa seita filosófica: "quem me surpreender na ignorância não fará
nada contra mim, pois dificilmente responderei a outrem por meus discursos, eu
que não respondo a mim por eles, nem estou satisfeito com eles." (II, 10, 407/
114) A livre e despreocupada confissão da ignorância, o afastamento de qualquer
compromisso com o conteúdo do que se afirma seriam indícios de sua aproximação
com o ceticismo; afinal, os céticos, quando afirmam ou negam, o fazem somente
com espírito polêmico, sem comprometer-se com o que é enunciado. Creio que não
há a menor dúvida a respeito das afinidades entre o pensamento de Montaigne e o
dos pirrônicos e demais céticos.
Frequentemente se diz que Montaigne não suspende o juízo como fazem os céticos
e, por isso, não é um cético. Mas, dada a interpretação acima, o fato de
Montaigne opinar deixa de ser um problema para aproximar seu pensamento da
filosofia cética. Afinal, a principal diferença entre os céticos pirrônicos e
acadêmicos com relação aos dogmáticos não seria propriamente a de que os
últimos opinariam e os primeiros não, já que todas as seitas opinam, mas a
maneira pela qual opinam. Montaigne não opinará à maneira dogmática, de forma
mais assertiva; sua maneira de sustentar uma opinião é mais próxima da dos
céticos: sem vaidade, sem afirmação, ora restringindo-se à mera probabilidade,
muitas vezes nem dessa maneira acadêmica.
3. Examinemos, então, o que Montaigne pensa da maneira pirrônica de investigar
e debater e que uso ele faz desse método cético da oposição10. Montaigne, numa
passagem, reconhece-se como um "filósofo impremeditado e fortuito" (II, 12,
546/320; itálico meu). Ora, dizer-se "filósofo" implica, como vimos, duvidar, o
que, por sua vez, parece implicar o emprego do método cético da oposição.
Encontramos, na "Apologia", passagens que parecem uma aplicação do método
cético, que exploram a "infinita confusão de opiniões" e o "debate perpétuo e
universal sobre o conhecimento das coisas" (II, 12, 562/345). Montaigne, na
esteira dos céticos antigos, entende que "não existe nenhuma proposição que não
seja debatida e controversa entre nós" (II, 12, 562/345). Por exemplo, os
argumentos para mostrar que não podemos conhecer Deus incluem o argumento da
diaphonía, em que Montaigne faz uma enumeração das concepções sobre a divindade
(II, 12, 514-516/272-275). Ao tratar da diversidade de dialetos e línguas,
Montaigne se refere à "infinita e perpétua altercação e discordância de
opiniões e de razões que acompanham e embaraçam a vã construção da ciência
humana" (II, 12, 553/331). São inúmeras as passagens de Montaigne em que a
diversidade e a contradição das opiniões são invocadas contra o dogmatismo e a
pretensão de ter descoberto a verdade. Montaigne relembra, nesse contexto, os
tópicos céticos da falta de critério para resolver o conflito ou os modos de
Agripa, como a circularidade (por exemplo: II, 12, 600-601/402), a hipótese ou
regressão ao infinito (por exemplo: II, 12, 601/402-403), que impediriam a
escolha racional entre as opiniões. Diante da diversidade de opiniões, não há
juiz imparcial. "De resto, quem será adequado para julgar essas diferenças?
Como dizemos, nos debates sobre religião, que é preciso um juiz não ligado a um
nem ao outro partido, isento de escolha e de paixão, o que não é possível entre
os cristãos, ocorre o mesmo aqui." (II, 12, 600/401-402) Montaigne repete o
argumento de que não há juiz imparcial para emitir um veredicto entre as
opiniões conflitantes.
Os argumentos céticos são retomados por Montaigne, como o modo da relatividade
(cf. II, 12, 562/345 e 598/399). Além disso, muitos dos 10 Modos de Enesidemo
encontram-se presentes nas considerações de Montaigne. Por exemplo, o primeiro
Modo, que mostra a divergência entre as percepções dos homens e a dos animais,
sendo impossível preferir as nossas às deles (cf. II, 12, 596/396). Logo a
seguir, Montaigne invoca a diversidade perceptiva entre os próprios homens, o
que corresponde ao segundo Modo de Enesidemo (cf. II, 12, 598/398-399). Em
terceiro lugar, ainda seguindo a ordem dos Modos de Enesidemo apresentada por
Sexto, Montaigne mostra que, mesmo se os homens estivessem de acordo uns com os
outros, os sentidos não estariam de acordo entre si (cf. II, 12, 599/399). E,
relembrando alguns exemplos conhecidos, contrasta a percepção entre os diversos
sentidos11.
No entender de Montaigne, uma investigação cuidadosa e completa de um
determinado assunto parece levar à suspensão do juízo. "Neles [nos negócios]
nos perdemos ao considerar tantos aspectos contrários e formas diversas... Quem
busca e abarca todas as circunstâncias e consequências, impede sua eleição."
(II, 20, 675/513-514) O resultado de todo esse uso do arsenal cético, pirrônico
e acadêmico não pode ser senão a abstenção de julgar a respeito das coisas.
"Não temos nenhuma comunicação com o ser, porque toda a natureza humana está
sempre no meio entre nascer e morrer, cedendo de si somente uma obscura
aparência e sombra, e uma incerta e débil opinião." (II, 12, 601/403) Ao fechar
as cortinas, no final de sua "Apologia", é a lição do ceticismo antigo que
parece triunfar. Nada nos restaria senão a suspensão do juízo e "nada certo
pode ser estabelecido" (II, 12, 601/403).
Essas considerações todas tornam inegável uma proximidade de Montaigne com os
céticos antigos. Não há nenhuma dúvida de que Montaigne usa, ao menos na
"Apologia", mas também noutros capítulos, as armas empregadas pelos céticos
antigos, sobretudo os pirrônicos, contra o dogmatismo12. A maneira pela qual os
pirrônicos, em particular, combatem os filósofos dogmáticos é muitas vezes
retomada por Montaigne de maneira cuidadosa, ainda que pareça ter somente uma
longínqua inspiração. Não por acaso ou sem razão, portanto, Montaigne se inclui
entre aqueles que duvidam, afastando-se daqueles que decidem. Cabe perguntar,
entretanto, até que ponto, ao retomar esses velhos tópicos céticos, Montaigne é
fiel à letra e ao espírito do ceticismo antigo.
4. Há, entretanto, algumas peculiaridades no uso montaigniano do método cético
da oposição. Uma primeira peculiaridade é que Montaigne nem sempre faz
acompanhar uma opinião de sua argumentação. Não raro, o que encontramos é
somente uma lista de opiniões. Enquanto Sexto faz acompanhar uma tese de sua
argumentação, Montaigne simplesmente enumera uma diversidade enorme de opiniões
conflitantes. Embora, nos dois casos, haja uma abstenção sobre qual seria a
opinião verdadeira, o caminho parece diferente: num caso, os argumentos opostos
se anulam mutuamente, já que são igualmente fortes; no outro caso, parece que a
sucessão infindável de opiniões conduz o leitor a desistir de achar a
verdadeira opinião13.
Não é difícil, entretanto, conciliar essa primeira peculiaridade com o método
cético da oposição. Montaigne poderia estar supondo que cada opinião, em seu
lugar de origem, tem um discurso que a sustenta, e, por isso, dispensa-se de
fornecer a seu leitor esses argumentos. O próprio Sexto Empírico parece
pressupor, em muitas ocasiões, o discurso dogmático positivo e somente
apresenta os argumentos negativos, destinados a contrabalançar o discurso
dogmático e, equilibrando as forças, suspender o juízo. Por que Montaigne não
poderia somente fornecer a lista de opiniões, sem precisar expor todos os
argumentos envolvidos?
A esse respeito, percebe-se uma segunda peculiaridade na posição de Montaigne.
Enquanto para os pirrônicos a posição mais coerente é a que estabelece uma
estrita equivalência entre a força das opiniões conflitantes, Montaigne parece
aceitar que algumas opiniões são mais verossímeis do que outras, aproximando-se
mais dos acadêmicos (cf. II, 12, 506/260 e 513/270). Assim, embora os
pirrônicos levem a dúvida a seu mais alto grau, os acadêmicos parecem estar
numa situação mais confortável, quando se trata de extrair o resultado do
método cético da oposição.
Mas Montaigne também rejeita a verossimilhança em muitas passagens, com base no
argumento pirrônico de que, sem a posse da verdade, não se pode comparar uma
opinião com outra e dizer qual é mais verossímil (cf. II, 12, 561-562/343-344).
Além disso, Montaigne diz que, na vida prática, devemos seguir o mais
verossímil, que são as leis e costumes. Mas isso, diz Montaigne, tornaria a
vida impossível (cf. II, 12, 578-579/369-371). Assim, não está claro até que
ponto Montaigne acha que o método cético da oposição conduz à suspensão
pirrônica do juízo ou à verossimilhança e probabilidade acadêmicas. Até que
ponto Montaigne aceita opiniões prováveis ou verossímeis, mesmo depois de dizer
que os pirrônicos são mais coerentes do que os acadêmicos, isto é, depois de
recusarem sua noção de probabilidade? Tal como a primeira peculiaridade, esta
segunda não apresenta uma novidade clara em relação ao ceticismo antigo nas
suas duas formas principais.
Talvez a mais notável peculiaridade seja a inclusão das opiniões céticas
(pirrônicas e acadêmicas) no conflito das filosofias. Como entender essa
surpreendente inclusão dos céticos no debate entre os filósofos? Já vimos que
Montaigne coloca os céticos ao lado dos dogmáticos, sem traçar uma distinção
nítida entre as três principais seitas. Ao sugerir que não há fronteiras
nítidas entre elas, Montaigne não somente defendeu que a dúvida era a essência
da filosofia, inclusive da dogmática, como também aceitou que o ceticismo
poderia ter opiniões. Noutras palavras, Montaigne aceitou que há um uso da
razão, que é o de investigar e debater, no qual se podem sustentar opiniões.
Não surpreende, assim, que os céticos acadêmicos, com suas opiniões prováveis,
igualmente aos pirrônicos, com suas "aparências", passem a integrar o conflito
das filosofias. Vale a pena explorar esse ponto mais de perto.
Há uma importante passagem sobre a "infinita confusão de opiniões" (II, 12,
562/345). Se Montaigne estivesse somente aplicando o método cético das
oposições, então natural seria esperar que somente as opiniões dogmáticas
estariam incluídas nesse "debate perpétuo e universal sobre o conhecimento das
coisas" (II, 12, 562-563/345). Surpreendentemente, constata-se que, nesse
debate, os céticos também estão incluídos, pois Montaigne diz que não há
equipolência entre as seitas, mas pirrônicos e acadêmicos triunfam sobre os
demais. "Aqueles que duvidam de tudo [os pirrônicos] duvidam também disso [que
o céu esteja sobre nossa cabeça]; e aqueles que negam que possamos apreender
alguma coisa [os acadêmicos] dizem que não apreendemos que o céu esteja sobre
nossa cabeça; e essas duas opiniõessão, em número, sem comparação as mais
fortes." (II, 12, 563/345; itálicos meus). Qual das duas formas de ceticismo
seria a mais forte? É difícil dizer, pois a passagem de Montaigne é
deliberadamente ambígua. Pode parecer que, assim como o pirronismo é a seita
que leva a duvida a seu ponto mais alto, também aqui vemos sua superioridade
sobre o ceticismo acadêmico, afinal "a opiniãodos pirrônicos é mais ousada e,
ao mesmo tempo, mais verossímil" (II, 12, 561/344; itálico meu). No entanto,
dizer que o pirronismo é mais "verossímil" parece indicar uma adesão ao
ceticismo acadêmico. Em suma, uma vez incluídos no debate filosófico, os
céticos o desequilibram, pois os céticos pirrônicos e acadêmicos parecem ter a
opinião mais forte (cf. II, 15, 612/419). Essa consideração, ao mesmo tempo em
que aproxima Montaigne dos céticos antigos, já que lhes confere primazia sobre
os dogmatismos, também o afasta deles em alguma medida, já que, no conflito
filosófico concebido por Montaigne, em que os céticos estão incluídos, não
haveria equipolência.
Vejamos outro exemplo. Segundo Montaigne, uma das questões mais debatidas entre
os filósofos é a do soberano bem; haveria, segundo Varrão, 288 seitas! (II, 12,
577/367). Eis a diaphonía elevada aos píncaros. Curiosamente, Montaigne
introduz, entre as tantas opiniões filosóficas, as opiniões de Arcesilau e dos
pirrônicos: para o primeiro, o juízo seria um mal e a suspensão do juízo um
bem; os pirrônicos, discordando de Arcesilau, defenderiam que o fim é a
ataraxía (e o não admirar-se com coisa nenhuma) (II, 12, 578/368). Assim, as
opiniões dos acadêmicos e pirrônicos integrariam o conflito das filosofias, não
se situando fora dele, mesmo que os pirrônicos expressem sua opinião de uma
forma não afirmativa14. Montaigne não se colocará ao lado, nem de Arcesilau,
nem dos pirrônicos. É certo que Montaigne diz que "toda glória que pretendo de
minha vida é tê-la vivido tranquilamente" (II, 16, 622/434). No entanto,
acrescenta ele, "tranquila não segundo Metrodoro, ou Arcesilau, ou Aristipo,
mas segundo eu mesmo. Visto que a filosofia não soube encontrar nenhuma via
para a tranquilidade, que cada um a busque de maneira particular!" (II, 16,
622/434) Também Pirro será criticado por Montaigne (II, 29, 705-706/558-559).
Tudo leva a crer, então, que, de acordo com Montaigne, os céticos não estão em
melhores condições do que os demais filósofos em nos dizer o que é o bem
supremo, nem em como poderemos alcançar a tranquilidade15. Uma vez incluídos no
conflito da filosofia, Montaigne poderá eventualmente tomar distância das
opiniões céticas.
Cabe perguntar, agora, se o método cético de oposição é empregado por Montaigne
com frequência ou como a principal forma argumentativa. Apesar de tudo o que
vimos até aqui, Montaigne não costuma empregar o método cético da oposição e
sua maneira usual de argumentar é diferente da dos céticos antigos. É o que
Montaigne diz numa passagem em que discute quando se deve empregá-lo. Usar a
razão para destruir a razão ou abandonar a própria razão para que o adversário
não tenha razão, eis o que só se deve usar em ocasiões muito específicas. "É um
golpe desesperado, pelo qual é preciso abandonar vossas armas para fazer vosso
adversário perder as suas, e um passe secreto, do qual se deve servir-se
raramente e com reserva." (II, 12, 558/337) De maneira coerente, Montaigne
aconselha sua provável leitora a seguir os caminhos habituais na argumentação e
na opinião. "Todas as vias extravagantes me desagradam." (II, 12, 558/338)
Segundo essa passagem, o método cético seria "extremo", "desesperado", uma
"temeridade", "vicioso" e "extravagante". Acho pouco provável que toda essa
caracterização expresse a real avaliação de Montaigne do método cético, mas, de
outro lado, parece suficiente para atestar que, de fato, ele deve ser usado com
moderação e parcimônia, limitando-o às circunstâncias que o exigem.
Quando examinamos outros capítulos, vemos que Montaigne pouco emprega esse
método cético, embora ocasionalmente possa fazer referência a ele. Ou, se o
emprega, é com uma finalidade diferente: quando considera os dois (ou mais)
lados de uma questão, Montaigne não procura estabelecer sua igualdade de
forças16. Darei alguns exemplos para mostrar que, nos diversos capítulos, e
também na "Apologia", Montaigne não costuma aplicar o método cético da
oposição.
A estrutura argumentativa do capítulo sobre o suicídio é bastante clara. Após a
breve introdução sobre a dúvida, Montaigne argumenta a favor do suicídio (II,
3, 350-352/29-32) e, em seguida, contra o suicídio (II, 3, 352-354/32-35). Se
estivesse praticando a dúvida cética, Montaigne mostraria a equipolênciaentre
elas e suspenderia o juízo. Ele, entretanto, não faz nenhuma referência à
suposta igualdade de força desses dois discursos17. Ao contrário, a continuação
do capítulo atesta que ele defende o direito do suicídio, inclusive com a
sugestão final de que deveria existir uma regulamentação legal pelo Estado. "A
dor insuportável e uma morte pior me parecem as incitações mais desculpáveis."
(II, 3, 362/47) O seu duvidar, portanto, não consiste na oposição dessas duas
posições com seus respectivos argumentos, estabelecendo a igualdade de força
entre elas e gerando, assim, a suspensão do juízo. A sua maneira de duvidar é
compatível com a adesão a um dos lados de uma questão; neste caso específico,
com o juízo de que o suicídio é aceitável em alguns casos.
Esse procedimento de instituir uma oposição e julgar que um lado é mais
aceitável pode ser observado em muitos outros capítulos. Tomemos como um
exemplo o importante capítulo sobre a crueldade (II, 11). Neste, Montaigne
distingue três concepções da virtude. De acordo com a primeira concepção, a
virtude seria uma "alta e divina resolução" por meio da qual se pode "impedir o
nascimento das tentações" e se estaria formado pela virtude de tal maneira "que
as sementes mesmas dos vícios estejam desenraizadas" (II, 11, 426/141) ' a
virtude seria um hábito implantado em nós que impediria o surgimento do vício;
a segunda concepção afirma que a virtude é a superação da força das paixões
desregradas, pois não haveria virtude sem um obstáculo a ser vencido; conforme
a terceira concepção, a virtude seria uma espécie de inclinação natural para a
bondade. Se praticasse a dúvida cética com seu método da oposição, Montaigne
certamente suspenderia o juízo entre essas três concepções, pois os argumentos
a favor e contra cada uma delas se equivaleriam e seria impossível escolher
racionalmente alguma. Mas não é isso o que ocorre. Montaigne claramente endossa
a primeira concepção, rejeitando as duas outras. A terceira, ele mal a
considera uma concepção da virtude, "pois me parece que ela torna um homem
inocente, mas não virtuoso" (II, 11, 426/142; cf. II, 11, 422-423/135-138).
Também a segunda é problemática e tem consequências indesejáveis, pois, se
fosse verdadeira, Sócrates e Catão não seriam homens virtuosos (II, 11, 423-
425/138-141). O exemplo desses dois homens virtuosos, e Sócrates ainda mais que
Catão, faz com que Montaigne adira à primeira concepção da virtude.
Creio que os exemplos poderiam se multiplicar18. Em vários capítulos Montaigne
apresenta mais de uma opinião, na verdade expõe opiniões contrárias ou
contraditórias e, longe de suspender o juízo, invocando a equipolência entre as
partes conflitantes, prefere uma em detrimento das demais. Montaigne parece
rejeitar a ideia mesma de uma equipolência. "Antes se poderia dizer, parece-me,
que nenhuma coisa se apresenta a nós na qual não exista uma diferença, por leve
que seja, e que, para a visão ou tato, existe sempre algo mais que nos atrai,
mesmo que seja imperceptivelmente." (II, 14, 611/417-418) Com base numa
diferença, por menor que seja, pode-se julgar. E Montaigne, com frequência,
julga.
Temos um bom exemplo de seu julgamento na própria "Apologia". Após apresentar a
primeira objeção a Sebond e dizer que os objetores são muito piedosos,
merecendo uma resposta respeitosa e doce, e que caberia aos homens versados em
teologia responder-lhes (pois desse assunto ele diz não saber nada), Montaigne
introduz suas considerações com as seguintes palavras: "Entretanto, eu
julgoassim" (II, 12, 440/164; itálico meu). Não me parece que Montaigne esteja
pensando que a primeira objeção a Sebond e as considerações em defesa de Sebond
tenham a mesma força e, equivalendo-se, destruam-se mutuamente, como preconiza
o método cético da oposição. Muito ao contrário, Montaigne emite um juízo: a
posição mais razoável é a de que se deve empregar a razão humana na defesa da
fé. Para Montaigne, embora a graça divina seja necessária e embora o
entendimento humano seja insuficiente, não se segue que é inútil recorrer a
razões humanas para sustentar os artigos de fé. Trata-se de um caso claro de
non sequitur e, por isso, essa posição deve ser rejeitada.
5. Ao reconhecer-se como alguém que duvida, Montaigne coloca-se ao lado do
filósofo, sem com ele identificar-se. Embora, numa passagem, se tenha assumido
como um filósofo impremeditado e fortuito, noutras passagens, Montaigne afirma
explicitamente que não é filósofo19. Essa recusa em identificar-se como um
filósofo tem, certamente, vários sentidos, mas um deles pode ser o de que ele
não entra nessas disputas como os filósofos (inclusive os céticos) entram
nelas. O que Montaigne faz não é "filosofar", mas "entreter-se com ninharias e
fantasiar" (II, 3, 350/29; "niaiser et fantastiquer"). O que significa isso?
Note-se que, de acordo com Montaigne, esta segunda atividade que se distingue
do filosofar é "com mais forte razão" duvidar. Creio que essa passagem sugere
que duvidar é a atividade do aprendiz e, assim como o filósofo, na condição de
aprendiz, busca a sabedoria, aquele que se entretém com ninharias e fantasia
está num estágio ainda mais inicial do aprendizado e, por isso, ainda com mais
razão, duvida. É como se Montaigne admitisse sua condição de completa
ignorância, uma ignorância ainda maior do que a do filósofo que anseia pelo
conhecimento. Mas há um outro lado nessa passagem, pois ela talvez diga
respeito não somente à condição de um aprendiz principiante, mas também sobre o
que se busca saber. Enquanto o filósofo, mesmo que aprendiz, busca a sabedoria,
Montaigne ainda se entreteria, como uma criança, com coisas pequenas, sem
importância, infantis e pueris, bem como com suas fantasias, imaginações,
devaneios.
Montaigne diz que seu duvidar consiste em "entreter-se com ninharias (niaiser)
e fantasiar (fantastiquer)". Um estudo sistemático dos usos de niaiser et
fantastiquer podem nos ajudar a compreender a maneira específica pela qual
Montaigne pratica a dúvida. Ao que eu saiba, Montaigne pouco usa o termo
niaiser e seus correlatos. Há uma passagem (II, 3, 353/35), em que Montaigne se
refere a uma "vaidade" no sentido de uma "puerilidade"; ora, niaiser tem o
sentido de ser uma tolice, uma infantilidade. Essa passagem, embora não seja
especialmente significativa e não nos ensine nada sobre a maneira montaigniana
de duvidar, ao menos aproxima a niaisairie da futilidade produzida pela
vaidade. O termo "fantasiar" e seus correlatos, no entanto, são usados com
enorme frequência20. Naturalmente, nem todos esses usos servirão para
esclarecer nosso ponto. Por exemplo, Montaigne fala, no capítulo sobre o
suicídio, de "humores fantasiosos" (II, 3, 354/36), mas creio que esse uso não
tem relação direta com o fantasiar que consiste num duvidar.
No aviso "Ao leitor", Montaigne parece associar novamente algo como a niasairie
e a fantasia, pois, ao dizer que "é a mim que pinto", reconhece que se trata de
um "assunto tão frívolo e tão vão." (p. 3/3) Há, portanto, uma constelação de
termos aparentados a niaiser, que apontam para a pintura de si, como aquilo que
Montaigne faz e que "deve ser duvidar". A associação entre termos dessa
constelação e a dúvida se faz presente na "Apologia". Por exemplo, numa
passagem em que a referência ao ceticismo é evidente, pois afirma que a razão
produz inumeráveis discursos contrários sobre um mesmo assunto e atribui a
decisão e a escolha de um deles ao instinto fortuito, Montaigne sugere que,
para emitir um bom juízo, é preciso escutar-se de perto, coisa que a maioria
não faz. "Eu que me espio de mais perto, que tenho os olhos incessantemente
atentos a mim, como quem não tem muito o que fazer alhures... eu mal ousaria
dizer a vaidade e a fraqueza que encontro em mim." (II, 12, 565/349)
Embora próximo do ceticismo, Montaigne não deixa de indicar suas diferenças com
essa vertente da filosofia. Segundo Sexto, a filosofia como um todo se
caracteriza por buscar a verdade; mas Montaigne diz, aos filósofos, que não se
deve esperar encontrar a verdade em seus escritos, pois "quem está em busca da
ciência, deve pescá-la onde ela se encontra; não há nada de que eu faça menos
profissão." (II, 10, 407/114) Creio que essa passagem não quer dizer somente
que Montaigne, como os pirrônicos, não alcançou a ciência e, portanto, não tem
nenhum conhecimento verdadeiro a oferecer. Parece-me que ela diz algo mais do
que isso, embora, obviamente, Montaigne confesse sua ignorância da verdade. O
que ela diz a mais é que Montaigne não está "em busca da ciência" tal como os
filósofos estão, os céticos inclusive. A continuação dessa passagem, crucial
para nossos propósitos, parece atestar que Montaigne não está buscando a
verdade: "Estão aqui minhas fantasias, pelas quais não tento dar a conhecer as
coisas, mas a mim" (II, 10, 407/114; itálico meu). Ora, a ocorrência da palavra
"fantasia" num contexto de aproximação e distanciamento do ceticismo sugere que
essas passagens todas estão articuladas e expressando uma mesma concepção do
que Montaigne está fazendo. Ao apresentar suas fantasias, ele se esforça por
dar-se a conhecer ao leitor.
O capítulo sobre o suicídio permite descobrir uma característica da dúvida de
Montaigne. Após apresentar as duas posições contraditórias sobre o suicídio,
Montaigne diz que "entre os da primeira opinião houve grande dúvida sobre isso:
quais ocasiões são suficientemente justas para fazer um homem entrar no partido
de se matar?" (II, 3, 354/35) A partir daí, Montaigne se dedica a discutir essa
"dúvida". Eis, portanto, um exemplo de como Montaigne entende a dúvida: não
como oposição entre opiniões conflitantes, mas como dificuldade inerente a uma
opinião. É justo matar-se em certas ocasiões, mas quais? Eis a dúvida. E
Montaigne dedica-se a investigar quais seriam essas ocasiões. O estudo da
história apresenta uma enorme gama de situações que permitiriam tentar resolver
essa dúvida ou, ao menos, dar-se conta da dificuldade em se respondê-la. Uma
dúvida, portanto, não é uma hesitação entre duas posições, mas uma questão
sobre a possível adesão a um dos lados.
No capítulo sobre a crueldade, vemos outro exemplo de "fantasiar", diretamente
ligado à questão da dúvida. Montaigne começa por expor e criticar a concepção
da virtude como inclinação natural para a bondade. Há algo na virtude que não
se pode limitar a tão pouco: sem vencer uma resistência forte, não haveria,
propriamente falando, virtude. A seu ver, essa argumentação contra a primeira
concepção de virtude é trivial. "Cheguei até aqui bem comodamente. Mas, no
final desse discurso, cai-me na fantasiaque a alma de Sócrates, que é a mais
perfeita que chegou ao meu conhecimento, seria, a meu ver, uma alma de pouca
recomendação, pois não posso conceber nesse personagem nenhum esforço de
concupiscência viciosa." (II, 11, 423/138; itálico meu) Trata-se,
evidentemente, de levantar dúvidas sobre umaconcepção da virtude sugerida pelo
discurso que rejeitou "facilmente" uma concepção equivocada da virtude como
inclinação natural para a bondade. Não se trata, como já vimos, de opor
duasposições igualmente fortes que se anulariam mutuamente. Ao ser levado, por
um discurso, a conceber uma segunda teoria sobre a virtude, sua fantasia como
que lhe impõe, talvez independentemente de sua vontade, uma objeção, um
problema, uma dificuldade específica dessasegunda teoria. Tudo se passa como
se, ao investigar uma teoria proposta e buscar conhecer suas próprias
"fantasias", certas fantasias lhe ocorram ou venham à sua mente para duvidar da
correção precisamente dessa concepção. Na fantasia de Montaigne, Sócrates e
Catão são homens virtuosos e nada que negue isso pode ser concebido, imaginado
ou pensado por Montaigne no sentido de ser aceito por ele. Esse uso de
"fantasia" corrobora o uso de dúvida como uma interrogação, que conduz a uma
investigação, de uma concepção em particular.
Poder-se-ia dizer que Montaigne somente retoma elementos já presentes no
ceticismo antigo, em particular no pirronismo21. Afinal, Sexto Empírico já
havia dito que, ao expor a doutrina pirrônica, ele não fazia senão relatar o
que lhe aparecia no momento, como um cronista ou historiador (HP I, 4). A meu
ver, no melhor dos casos, se trata de uma semelhança superficial, pois existe
somente uma remota semelhança na ideia de "descrever o que aparece no momento
como um cronista ou historiador". Não é preciso muita reflexão para perceber
que relatar o que lhe aparece no momento, em Sexto, é algo muito diferente de
pintar a si mesmo. Enquanto Sexto relata as opiniões dos outros filósofos,
Montaigne fala de sua própria vida. Não temos nenhuma ideia de onde Sexto viveu
ou quais eram suas crenças; Montaigne não se cansa de falar de sua vida e de
suas opiniões sobre tudo. Quando relata o que lhe aparece, Sexto relata somente
oposição de teses e argumentos; quando relata o que lhe aparece, Montaigne fala
de sua vida. Sexto nunca pretendeu que relatar a própria vida tivesse
relevância filosófica.
Há um sentido, a meu ver correto, no qual Montaigne poderia estar elaborando,
de maneira muito original, uma nova fontepara a diaphonía pirrônica. Uma
maneira pela qual a investigação de Montaigne (a pintura de si mesmo) produz a
dúvida é descobrir em si mesmo todas as fraquezas. Não é preciso ficar
examinando as opiniões alheias, fazendo a opinião dos estóicos contradizer a de
Platão, nem contrastar a dos epicuristas com a de Aristóteles, como fazem os
pirrônicos, mas bastaria examinar-se atentamente. Montaigne é matéria
suficiente para engendrar dúvidas "com mais forte razão" (II, 3, 350/29).
Descrevendo suas alterações de opinião de acordo com as mais variadas situações
e circunstâncias, seja do corpo ou da alma, ele encontra em si uma diversidade
tão grande ou ainda mais que a encontrada entre os filósofos. "Acontecem em mim
mil agitações inconsideradas e casuais" (II, 12, 566/350). Não apenas em si
mesmo, mas também em seus escritos, Montaigne muda frequentemente de opinião e,
ao voltar sobre uma passagem anterior, nem sempre reencontra o sentido dela,
dando-lhe um novo, na falta do velho. Assim, "somente vou e venho: meu
julgamento nem sempre vai adiante; ele flutua, vagueia" (II, 12, 566/350). E
Montaigne dedica-se a investigar, após expor as variações pelas circunstâncias,
também variações que se devem às paixões da alma (II, 12, 567-576/351-365).
Nesse proceder tortuoso, nota-se claramente a proximidade do ceticismo, pois
Montaigne também defende "uma opinião contrária à minha" (II, 12, 566/350-351).
O resultado é sempre o mesmo: "Quantas diferenças de sentido e de razão, quanta
contrariedade de imaginações nos apresenta a diversidade de nossas paixões!"
(II, 12, 568/353). Pintar-se a si mesmo equivaleria a descobrir em si a mesma
diversidade que os céticos antigos descobriam no debate entre os dogmáticos,
patente em seus livros.
Mas é preciso ver que, embora a diferença entre Montaigne e os pirrônicos
pudesse dizer respeito somente à fonte da diaphonía (nos textos alheios ou em
si mesmo), há também muitas outras diferenças que deveriam ser notadas. Uma
diferença, pelo menos, é crucial, já que diz respeito à finalidade do método e
à capacidade para empregá-lo. Enquanto Sexto pretende superar a precipitação
dogmática por meio da oposição de argumentos, Montaigne, na descrição de si
mesmo, isto é, na busca do conhecimento de si, precisa superar as distorções
que a vaidade causa. Com efeito, a vaidade inerente a todo ser humano, portanto
também presente em Montaigne, tem dois efeitos: estimar-se além da conta e não
estimar suficientemente os outros (II, 17, 633/452). Assim, dada nossa
inevitável vaidade, temos um "julgamento perturbado e alterado"; no entanto,
para Montaigne, "o julgamento deve manter por toda parte seu direito" (II, 17,
632/449). Num certo sentido, pode-se dizer que a investigação do autor dos
Ensaiosexige uma técnica que lhe permita anular esse efeito nocivo da vaidade,
ao passo que a técnica exigida pelo pirronismo combate a precipitação
dogmática. O pirrônico caracteriza-se por dominar uma técnica particular, isto
é, a capacidade de empregar adequadamente o método de oposição que conduz à
suspensão do juízo; a pintura de si mesmo caracteriza-se por tentar evitar os
efeitos nocivos da vaidade humana e chegar a juízos mais equilibrados sobre si
mesmo.
Mesmo quando, nessa descrição de si, encontra infindáveis variações, no
entanto, diferentemente do pirrônico, Montaigne o faz "por exercício e
brincadeira" e, sobretudo, "aplicando-se e voltando para aquele lado, liga-me
tão bem que não encontro mais a razão de minha primeira opinião e me separo
dela." (II, 12, 566/351) Não há, propriamente falando, uma equipolência de
opiniões e razões, mas uma parece substituir a outra, numa sucessão inevitável.
É certo que o exame detalhado de todas as circunstâncias e consequências de um
assunto e seu esclarecimento sutil e profundo impediriam uma decisão (II, 20,
675/513-514). Estaria Montaigne concedendo que a suspensão do juízo é o
resultado inevitável de uma investigação imparcial e sem precipitação? Ora, o
contexto parece indicar precisamente o contrário: em vez de suspender o juízo,
Montaigne condena uma investigação desse tipo: "as opiniões da filosofia
elevada e refinadas mostram-se ineptas na prática. Essa aguda vivacidade da
alma e essa volubilidade flexível e inquieta perturba nossas negociações. É
preciso manejar os empreendimentos humanos mais grosseira e superficialmente e
deixar boa e grande parte deles para os direitos da fortuna. Não é necessário
esclarecer os negócios tão profunda e sutilmente." (II, 20, 675/513) Não sendo
a suspensão do juízo desejável do ponto de vista prático, devem-se investigar
as coisas de maneira diferente daquela levada a cabo pelos céticos. A suspensão
do juízo também é impossível, pois uma "virtude assim simples, que [...] Pirro
[...] tornava o objetivo de sua vida, não pode sê-lo sem composição" (II, 20,
673/511). A constância da suspensão do juízo é um ideal inatingível na prática,
embora Pirro tenha se esforçado como um verdadeiro filósofo nessa direção (II,
29, 705-706/558-559). A investigação não deve ser sobre as coisas, desvendando-
lhes todas as suas sutilezas e aspectos, em busca da suspensão do juízo, mas
sobre si mesmo, descrevendo suas constantes mudanças, almejando um
esclarecimento que permita a orientação prática na vida.
Montaigne não dizia coisa muito diferente quando, ao apresentar suas fantasias
ao leitor, afirmava que não procurava conhecer as coisas, mas a si mesmo: "elas
talvez venham por acaso a ser conhecidas por mim, ou o foram outrora, conforme
a fortuna me levou a lugares nos quais elas foram esclarecidas. Mas eu não me
lembro mais." (II, 10, 408/114) Também aqui Montaigne, longe de ter os olhos
voltados às coisas, olha-se a si mesmo e, se porventura as conheceu, delas já
se esqueceu. O que lhe interessa não é enunciar uma suposta verdade sobre as
coisas, mas expressar o seu conhecimento dos livros. Ora, mais uma vez,
percebe-se uma nítida aproximação e um distanciamento do ceticismo. Como os
céticos antigos, a investigação de Montaigne, ao menos em parte, é ler livros e
ver o que os filósofos disseram sobre as matérias filosóficas. No entanto,
Montaigne não o faz por buscar a verdade das coisas; seu saber, se é que tem
algum, diz respeito a si mesmo. Assim, ao avaliar seu uso dos autores, devemos
ver, não se é verdade o que toma de empréstimo, mas "se eu soube escolher com
que realçar meu tema." (II, 10, 408/115) Assim, a relação de Montaigne com os
livros que lê é muito diferente da relação que os pirrônicos têm: estes tentam
pescar uma verdade ou fazer as opiniões conflitarem para suspender o juízo,
aquele se esforça por uma maneira melhor de expressão. São as fraquezas de
Montaigne que o fazem tomar de empréstimo passagens de diversos autores. É
preciso, nesse relato que faz de si mesmo, enfeitá-lo "para fazê-los sair em
público um pouco mais decentemente" (II, 12, 546/320).
Não se deve identificar, entretanto, a posição de Montaigne com essa sucessão
de opiniões ao sabor dos ventos22. Em muitas passagens, Montaigne diz que a
constância e a regularidade são preferíveis e que, de fato, a ciência mais
difícil é justamente adquirir essa firmeza23. "Na verdade, aprendi outrora que
o vício é somente desregramento e falta de medida e, consequentemente, é
impossível ligar a ele a constância." (II, 1, 332/5) Não é por outra razão,
como vimos, que Montaigne concebe, a partir dos exemplos de Sócrates e Catão, a
virtude como um hábito (II, 29; II, 1, 336/10) e que "a irresolução me pareça o
vício mais comum e aparente de nossa natureza" (II, 1, 332/4). E, embora diga
não ser capaz dessa virtude e, no melhor dos casos, tem somente uma inclinação
natural para a bondade, Montaigne confessa uma aversão a essas flutuações e
mudanças incessantes. Ao examinar um homem, ao examinar a si mesmo, "é preciso
sondar até o interior e ver por quais molas ocorre o movimento" (II, 1, 338/
13). As variações não se dão somente ao sabor dos ventos, mas procedem
igualmente de algum princípio que cada um traz dentro de si.
Ao olhar atentamente para si mesmo, investigando-se, ao constatar suas
flutuações, identificando suas motivações, Montaigne evita que esses fatores
aleatórios lhe imponham um juízo instintivo (cf. mais acima). "Ora, do
conhecimento dessa minha volubilidade gerei em mim por acidente alguma
constância de opiniões" (II, 12, 569/355). Assim como não se segue, da variação
e contradição das opiniões, a mera adoção da última opinião (quando Montaigne
já se esqueceu das razões para opiniões anteriores), também não se segue a
suspensão do juízo. Como em muitas outras ocasiões, Montaigne aceita uma
opinião. Mas ele o faz sem "decidir" (pois não é mestre, e sim aprendiz):
"posto que não sou capaz de escolher, tomo a escolha de outro e fico no lugar
em que Deus me pôs. De outra forma, não poderia impedir de rolar sem cessar."
(II, 12, 569/355)
Poder-se-ia ler, nessas linhas, uma adesão cética à tradição e costumes e a
aceitação de uma crença sem julgar por si, seguindo o tutor como um menino. As
opiniões de Montaigne sobre o costume e a necessidade de obedecer às leis, o
seu assim chamado conservadorismo, parecem confirmar essa interpretação24.
Creio que, apesar dessa semelhança, a opinião de Montaigne tem um fundamento
diferente, pois Montaigne critica explicitamente a sugestão de que se devem
seguir as leis "de nosso país" (II, 12, 579/370). Seria interessante, diz
Montaigne, reunir a diversidade dos costumes, ordenando-a por divisões e
classes, numa única obra, mostrando que são produtos humanos. O que fazer
diante dessa diversidade toda? "Se é de nós que tiramos a organização de nossos
costumes, em que confusão nos metemos! Pois o que a razão nos aconselha de mais
verossímil é genericamente que cada qual obedeça às leis de seu país" (II, 12,
578/369; cf. II, 12, 579/370). Essa é a opinião de Sócrates, mas é também
certamente a dos pirrônicos, ainda que formulada no vocabulário acadêmico. No
entanto, Montaigne rejeitará claramente esse conselho da filosofia. Se a
filosofia tem razão, "nosso dever não tem outra regra que não fortuita" (II,
12, 578/369). As leis, no entender de Montaigne, estão sujeitas à mais contínua
agitação: "Desde que nasci, vi mudar três ou quatro vezes aquelas dos ingleses,
nossos vizinhos, não somente em assunto político, que é aquele em que se quer
mais constância, mas no mais importante assunto que possa existir, a saber a
religião." (II, 12, 579/369-370) Ora, a sugestão da filosofia lança-nos nesse
mar flutuante das opiniões. Tal sugestão não será acatada por Montaigne: "Não
posso ter o juízo tão flexível." (II, 12, 579/371) Dessa forma, Montaigne
rejeita explicitamente a posição da razão, que coincide com a dos pirrônicos,
de seguir as leis do país porque essa posição, não somente acaba com a ideia
mesma de justiça, mas também exige uma flexibilidade que ele próprio não tem25.