DISCRIMINAÇÃO PRIVADA E O SEGUNDO PRINCÍPIO DA JUSTIÇA DE RAWLS
Introdução
Enfrento neste trabalho a questão de saber se, e em que medida, o segundo
princípio da justiça de Rawls (a "justiça como equidade") é incompatível com a
discriminação privada. Defino como discriminação privada o ato de discriminação
praticado por um agente não estatal (por exemplo, um empresário, uma associação
recreativa ou o proprietário de um imóvel disponível para locação). Ato de
discriminação, por sua vez, é: a) o ato pelo qual se dispensa a uma pessoa X um
tratamento diverso do que lhe seria dado caso ela não possuísse uma (ou duas,
ou mais) certa característica; ou b) os atos pelos quais se dispensa diferente
tratamento a duas pessoas X e Y devido a uma (ou duas, ou mais) característica
que uma delas possui e a outra não. A característica em questão pode ou não ser
inata, involuntária e imodificável. Para os fins do trabalho, constitui
discriminação, portanto, o tratamento dispensado a alguém devido tanto à cor da
pele (uma característica inata, involuntária e imodificável) como ao uso de
boné (uma característica não inata, voluntária e modificável).
Muito embora a definição do parágrafo anterior possivelmente deixe de fora
alguns atos que constituem injusta discriminação, ela é abrangente o suficiente
para abarcar ao menos a maioria das práticas que em geral são tidas como
injustamente discriminatórias. Em contrapartida, essa abrangência também faz
com que se designem a seguir como de discriminação atos cuja reprovabilidade do
ponto de vista moral é altamente implausível. É pouco provável que haja algo
errado, por exemplo, com os atos de recusar a uma pessoa obesa um lugar como
atacante em uma equipe de futebol profissional ou a alguém com pouca
sensibilidade musical o posto de regente de uma orquestra, embora ambos se
classifiquem como tratamento discriminatório no sentido indicado acima. A ideia
do trabalho, portanto, é tomar como ponto de partida um conceito "neutro" de
discriminação (isto é, que não pressupõe a imoralidade do ato discriminatório)
a fim de verificar quais das práticas discriminatórias assim definidas se
mostram contrárias ao segundo princípio da justiça de Rawls.
Esse princípio possui duas partes, também costumeiramente referidas como
princípios. A primeira delas corresponde ao que Rawls_(1999) designa como
"equitativa igualdade de oportunidades" (fair equality of opportunity), e a
segunda ao princípio da diferença (difference principle). Depois de uma seção
contendo esclarecimentos preliminares, o trabalho segue dividido de acordo com
as duas partes desse princípio. A segunda seção discorre, assim, sobre o
princípio da equitativa igualdade de oportunidades, procurando averiguar se, e
sob que condições, a discriminação privada atenta contra esse princípio.
Similar questão é enfrentada na terceira e última seção tendo em vista o
princípio da diferença.
1 Esclarecimentos preliminares
Vale observar, em primeiro lugar, que a teoria de Rawls é entendida aqui
exclusivamente como uma teoria institucional da justiça. Isso significa que, em
vez de governar a ação individual, os princípios da justiça de Rawls aplicam-se
às instituições (ou, como ele diz, à "estrutura básica") da sociedade (Rawls,
1999, p. 6). Em "Uma Teoria da Justiça", Rawls também faz menção a princípios
de justiça aplicáveis diretamente aos cidadãos (1999, §§18 e 19). Esse ponto da
teoria, pouco referido em obras posteriores, é deixado de lado na presente
análise. Embora não a impeça, essa atenção exclusiva às instituições impõe
limites à análise da discriminação privada. Ao invés de indagar acerca do
status moral dos atos discriminatórios, a questão relevante para os meus
propósitos é saber qual tratamento deve ser dispensado a esses atos pela
estrutura básica (em particular, pela Constituição e leis) de uma sociedade que
atenda ao segundo princípio da justiça de Rawls.
Outro ponto a ter em vista é o da idealidade da teoria de Rawls. A afirmação de
que a teoria da justiça de Rawls é uma teoria ideal sobre a justiça pode ser
entendida em pelo menos dois sentidos. Primeiro, trata-se de uma teoria ideal
no sentido de uma teoria de "estado final", isto é, de uma teoria que descreve
um estado de coisas perfeitamente justo e que, como tal, não se ocupa de
sociedades imperfeitas (no caso de Rawls, sociedades cujas instituições não
satisfaçam aos princípios da justiça). Em um segundo sentido, a teoria de Rawls
seria classificada como ideal devido ao comportamento que atribui aos cidadãos
de uma sociedade perfeitamente justa. Uma teoria da justiça é tão mais ideal,
nesse sentido, quanto mais otimistas forem as suas pressuposições quanto ao
referido comportamento.
No segundo dos dois sentidos acima referidos, não é claro o quanto a teoria da
justiça de Rawls é, de fato, ideal. Essa questão é crucial para o tema da
discriminação privada, de modo que convém determo-nos nela. Uma das explicações
aventadas para que problemas como os da discriminação racial e de gênero
recebam pouca atenção de Rawls é que esses problemas, tão sérios em sociedades
atuais, seriam insignificantes para a sociedade ideal que ele tem em vista,
cujos cidadãos pautariam sua conduta cotidiana por um ethos avesso à
estratificação social (Shiffrin,_2004, pp. 1.654-1.656). Embora não entre em
detalhes a respeito, Rawls enseja uma interpretação como essa em "Uma Teoria da
Justiça" ao incluir entre os deveres dos cidadãos o de mútuo respeito (1999, p.
297).1 Uma vez que se defina como justa uma sociedade na qual não apenas as
instituições se conformam aos princípios da justiça, mas também os cidadãos
cumprem rotineiramente os seus deveres, entre eles o de mútuo respeito, pode-se
mesmo concluir (com ajuda de uma interpretação generosa do que "mútuo respeito"
implica) que os problemas de discriminação das sociedades em que vivemos não
afligiriam a sociedade ideal de Rawls.
O problema desse argumento, como observa Shiffrin_(2004,_pp._1.657-_1.658), é
que ele não se limita ao caso da discriminação, deixando sem explicação muitas
das preocupações institucionais de Rawls. Se os cidadãos da sociedade ideal
rawlsiana exibem um ethos consentâneo com os princípios da justiça, então não
são apenas as medidas institucionais contra a discriminação racial e de gênero
que se tornam dispensáveis. O mesmo vale, por exemplo, para as liberdades
básicas: se presumirmos que os cidadãos aceitam e atuam em conformidade com
essas liberdades, pode não haver razão para defender, como faz Rawls, que essas
liberdades sejam constitucionalmente asseguradas.
Por isso, a exemplo de Shiffrin, abrirei mão aqui de uma versão por demais
idealizada (no sentido comportamental) da teoria de Rawls, o que implica
reconhecer o risco de discriminação privada imoral (como quer que essa
imoralidade se defina) inclusive nas circunstâncias de uma sociedade justa à la
Rawls. A questão consiste então em saber o quanto as instituições requeridas
pelos princípios da equitativa igualdade de oportunidades e da diferença se
opõem a essa discriminação.
2 Discriminação privada e equitativa igualdade de oportunidades
Nesta seção, examino se o princípio da equitativa igualdade de oportunidades
(PEIO) implica alguma restrição à discriminação privada. Esse princípio suscita
controvérsia (Pogge,_1989, §14; Arneson,_1999) não apenas devido à prioridade
léxica que lhe é atribuída sobre o princípio da diferença (PD) (Rawls,_1999, p.
77), como no que se refere à sua validade mesma como princípio de justiça.2
Essa controvérsia será, todavia, deixada de lado aqui. Ao considerar suas
consequências para a discriminação privada, presumirei, pois, que o PEIO seja
um princípio válido. Esse princípio pode ser dividido em duas partes, uma
constituída pelo que Rawls_(1999,_p._57) designa como "carreiras abertas a
talentos" (careers open to talents) e a outra correspondente ao que chamarei,
como Arneson_(1999,_p._80), "equidade na origem" (fair background). Tratarei
delas a seguir.
2.1 Carreiras abertas a talentos (CAT)
Não parece haver dúvida de que CAT é, em alguma medida, incompatível com o fato
de as instituições que compõem a estrutura básica da sociedade restringirem o
acesso de grupos a certas posições. Ofende CAT, por exemplo, uma legislação que
proíba mulheres de atuar como professoras universitárias. A questão de
interesse aqui, no entanto, é saber se, para além do tratamento discriminatório
instituído em lei, CAT é também avessa à discriminação que agentes privados
pratiquem espontaneamente, isto é, sem que a lei o exija. Violaria CAT uma
política de exclusiva contratação de homens por uma escola superior privada?
Freeman_(2007,_p._89) pensa que sim. Para ele, CAT requer a abolição tanto de
restrições legais ao acesso a carreiras como da discriminação privada, sendo
incompatível com a discriminação no ensino e no recrutamento de trabalhadores.
Uma restrição geral à discriminação privada somente decorre de CAT, contudo, se
entendermos que a primeira parte do PEIO requer que todo posto de trabalho (ou
vaga escolar) esteja em certo sentido igualmente disponível para todos, ou,
para ser mais preciso, igualmente disponível para os igualmente talentosos. O
problema com essa interpretação é que ela bane instâncias aparentemente
inofensivas de discriminação, como a de um escritório de advocacia que somente
contrata gays sem que haja para tanto alguma razão relacionada ao sucesso do
empreendimento. Talvez se deva preferir, pois, uma interpretação mais branda de
CAT, segundo a qual é suficiente que uma ocupação, entendida como "atividade"
(e não cada posto de trabalho individualmente considerado) esteja igualmente
aberta aos igualmente talentosos. Aceita essa interpretação mais branda, uma
legislação não afrontaria CAT, por exemplo, ao permitir políticas de
contratação exclusiva de homens ou mulheres para trabalhar no ensino superior
privado, contanto que o efeito agregado dessas políticas não torne as chances
de homens e mulheres igualmente talentosos exercerem a docência superior
substancialmente desiguais.
Pode-se objetar contra essa interpretação mais branda de CAT que ela compactua
com casos de discriminação odiosa com potencial (ainda maior do que o da
discriminação entre homens e mulheres) para a cisão social. Se uma sociedade é
composta por diferentes grupos raciais, étnicos ou religiosos igualmente
populosos, a interpretação de CAT defendida acima abre caminho para uma estrita
segregação, por exemplo, com escolas admitindo apenas estudantes brancos a
serem futuramente selecionados para trabalhar em empresas brancas, contanto que
haja postos de trabalho em qualidade e quantidade similar para negros. Sobre
isso, observe-se, primeiro, que a eventual conclusão de que os princípios da
justiça de Rawls não se opõem a práticas de discriminação privada que mantenham
certos grupos em situação de quase total isolamento (contanto que preservadas
chances aproximadamente iguais de exercício das mais variadas ocupações para os
participantes de cada grupo) tem relação com o fato de não se fazer aqui
qualquer presunção mais ambiciosa acerca do comportamento dos cidadãos em uma
sociedade ideal governada pelos referidos princípios. Talvez os princípios da
justiça sejam de molde a incutir nos cidadãos um ethos fraternal incompatível
com certas práticas sectárias (ou talvez a sociedade ideal deva ser entendida
como uma na qual os cidadãos necessariamente atuam de acordo com esse ethos). A
verdade é que, no que se refere estritamente às instituições, a interpretação
segundo a qual CAT requer a proibição até de ocasionais atos de discriminação
privada cujo efeito agregado não desiguala substancialmente as chances de
cidadãos igualmente talentosos exercerem as mais diferentes ocupações parece
exagerada.
O que contraria CAT, portanto, não são atos de discriminação privada
isoladamente considerados, mas uma certa quantidade desses atos cujo efeito
cumulado desiguala as chances de exercer certas ocupações para cidadãos
igualmente talentosos. É irrelevante, a esse respeito, que a discriminação seja
praticada conscientemente, já que tanto a discriminação consciente quanto a
inconsciente, quando reiteradas em favor ou contra determinado grupo, têm como
resultado tornar as chances de exercício de ocupações desiguais. Se é ou não o
caso de proibir atos de discriminação privada, portanto, é algo que só é
possível saber com a posse de informações sobre as práticas de discriminação
comuns em uma sociedade.
Outra questão a examinar é a do que se devem considerar como "cidadãos
igualmente talentosos". Essa questão vem à baila quando se trata de dois casos
particulares de discriminação, a discriminação baseada em "qualidades de
reação" (reaction qualifications) e em "indicadores" (proxies). Uma qualidade
de reação é um atributo de um trabalhador que contribui para o sucesso da
empresa por causa da reação que provoca sobre terceiros, tais como, por
exemplo, consumidores ou potenciais investidores (Wertheimer,_1983, p. 100). Um
empregador pode decidir contratar apenas trabalhadores heterossexuais não
porque seja preconceituoso, mas porque a sua clientela o é. Se, ao invés de um
caso isolado, isso se verificar com uma frequência que reduza substancialmente
as chances de emprego de trabalhadores homossexuais, haveria uma violação a
CAT? A resposta a essa questão depende do que queiramos dizer exatamente com
"cidadãos igualmente talentosos". Caso se entenda que talento é qualquer
atributo útil para o desempenho de uma função e que a função de um trabalhador
é, em última instância, contribuir para o sucesso da empresa, então dois
trabalhadores iguais em todo o resto, mas com diferente orientação sexual não
são, na hipótese recém-descrita, igualmente talentosos. Devido à reação dos
consumidores e à importância dessa reação para a empresa, a heterossexualidade
é um "talento" que somente um dos trabalhadores em questão possui.
Não é fácil reinterpretar a expressão "igualmente talentosos" de maneira a
evitar conclusões tais como a do parágrafo anterior. Em uma sociedade de
mercado, os talentos que tornam alguém mais ou menos apto para uma ocupação são
atributos cujo valor não é dado, em última instância, por alguma característica
intrínseca, mas sim pela medida com que são socialmente apreciados. Nesse
sentido, a orientação sexual e a beleza (uma qualidade de reação aparentemente
comum) não são diferentes da força e da inteligência. Uma saída poderia ser
então estipular que um atributo não deva ser reputado como talento, para os
fins de CAT, caso seja importante para o exercício de uma função apenas em
virtude das preferências preconceituosas do público. Essa estipulação, no
entanto, afora parecer ad hoc, traz consigo a dificuldade de definir o que é
uma preferência preconceituosa. É preciso, para que uma preferência se designe
como tal, que aqueles que a possuem sejam movidos pela crença acerca do
desvalor inerente de certas pessoas, ou basta tratar-se de uma preferência
historicamente relacionada a uma crença assim, ainda que essa relação seja,
hoje, no mais das vezes despercebida? Muitas preferências quanto à beleza,
atualmente encaradas como inofensivas, não passariam por esse segundo teste.
Outro caso de discriminação cujo status sob CAT pode suscitar dúvida é o da
discriminação baseada em indicadores (Alexander,_1992, p. 167). Um indicador é
um atributo em si mesmo irrelevante, mas que está (ou que se acredita estar)
correlacionado a outro atributo, este sim importante para a ocupação e mais
difícil de ser observado. Suponha-se, por exemplo, que o empenho em uma
determinada atividade esteja correlacionado com o sexo, isto é, que, em média,
mulheres se empenhem significativamente mais do que homens. Como o empenho, que
é o atributo relevante, não pode ser observado por ocasião da contratação (e
talvez não possa ser observado sequer após), sabendo da correlação entre
empenho e sexo, o empregador decide pela contratação de mulheres em detrimento
de homens com atributos (observáveis) equivalentes. Em conformidade com o
afirmado acima, atos como esse são inofensivos sob o ponto de vista de CAT
quando considerados isoladamente, mas podem ter como efeito agregado (quando
reiterados e com direção coincidente) diminuir as chances de ocupação para
certas pessoas. A obesidade, por exemplo, pode ser um indicador de inaptidão
para um grande número de atividades (embora muitos obesos de fato possuam
atributos tão bons ou até superiores aos de não obesos pelos quais são
preteridos) e, ao ser usada como tal, reduzir substancialmente as chances de
ocupação de trabalhadores obesos.
À luz de CAT, o problema da discriminação baseada em indicadores pode ser
traduzido como o de saber se um atributo indicador deve ou não ser considerado,
ele próprio, um talento. Em caso afirmativo, dois cidadãos não contarão mais
como igualmente talentosos se, embora iguais no que respeita aos atributos
relevantes para uma ocupação, somente um deles possui um outro atributo
(indicador) correlacionado com os primeiros. O problema de rejeitar essa
sugestão e insistir com a ideia de que o importante para CAT são os atributos
de fato úteis para uma ocupação (e não outros atributos correlatos) é que
abolir a discriminação baseada em indicadores, ou mesmo apenas aquela cujos
efeitos reduzam as chances de ocupação de um grupo em particular, tem um alto
custo de eficiência. Abrir mão de atributos indicadores implica ou a
contratação aleatória, ou um alto investimento para a observação dos atributos
realmente importantes (um investimento tanto maior quanto mais difícil for a
observação desses atributos). As consequências danosas para a eficiência da
primeira solução são evidentes. Em relação à segunda, nem sempre, por óbvio, o
investimento para a observação dos atributos realmente importantes seria
compensado pelo ganho em produtividade obtido com o recrutamento dos
verdadeiramente mais aptos. Na verdade, o que explica o uso dos indicadores, ao
menos por empregadores interessados em maximizar seus lucros, é justamente o
fato de o investimento para a observação dos atributos relevantes para a função
não ser compensado pelos resultados de uma seleção mais cuidadosa do que a
baseada em indicadores. Embora talvez não seja decisivo, esse argumento de
eficiência ao menos deixa claro que insistir em uma interpretação de CAT avessa
à discriminação por indicadores eleva a tensão entre o PEIO e o PD (entendido
esse último como princípio que requer a maximização das expectativas dos
cidadãos em pior situação e que, como tal, condena toda e qualquer ineficiência
contrária a essa maximização).3
2.2 Equidade na origem (EO)
PEIO somente é satisfeito quando cidadãos com as mesmas aptidões inatas e
motivação possuem (aproximadamente) as mesmas chances de alcançar certos postos
ou ocupações (Rawls,_1999, p. 63). CAT não é suficiente para a realização de
PEIO, portanto, se as condições para transformar aptidões inatas em talentos
(entendidos como aptidões atuais para o exercício de uma função) forem
consideravelmente mais favoráveis para uns do que para outros. Por isso, além
de CAT, é preciso que as condições para o desenvolvimento de aptidões inatas (a
"equidade na origem") sejam aproximadamente as mesmas para todos.
Entre os requerimentos de EO estão uma educação que proporcione a cidadãos com
iguais aptidões inatas e motivação as mesmas chances de aprimoramento, bem como
uma cobertura médico-hospitalar destinada a minorar os efeitos de infortúnios
(muito embora a medida com que o PEIO exige que a estrutura básica da sociedade
se contraponha aos azares da doença constitua uma questão à parte). No que toca
à discriminação privada, EO impõe atenção a atos de discriminação nas áreas de
educação e saúde que, muito embora não digam respeito diretamente a postos de
trabalho, influem sobre a distribuição desses postos ao privilegiar o
desenvolvimento de talentos de pessoas pertencentes a um certo grupo.
A exemplo do que foi afirmado em relação a CAT, entretanto, isso não significa
que a lei tenha que se opor a quaisquer atos de discriminação com impacto sobre
a EO, como o do caso de uma escola que somente admita filhos de famílias que
professem determinada religião. A discriminação nas áreas da educação e da
saúde só contraria a EO quando seu efeito geral é oferecer condições para o
desenvolvimento de talentos consideravelmente mais favoráveis para uns do que
para outros. É lícito, em outras palavras, que haja segregação em escolas e
hospitais, contanto que os serviços prestados em um e outro lugar sejam de
similar qualidade.4
3 Discriminação privada e princípio da diferença
Na versão a seguir considerada, o PD requer que diferenças na distribuição
favoreçam os cidadãos em pior situação.5 Essas diferenças são verificadas
segundo um index de bens primários, que também serve para determinar o grupo
dos cidadãos em pior situação. Entre os bens primários que compõem esse index
estão a riqueza, a renda e as bases sociais do autorrespeito.6
O fato de o PD dizer respeito não apenas à riqueza e à renda, mas a esses bens
juntamente com as bases sociais do autorrespeito significa que uma estrutura
básica que eleve as expectativas dos cidadãos em desvantagem quanto à riqueza e
à renda, mas negligencie as bases do autorrespeito desses cidadãos, pode estar
em descompasso com o PD. Ela pode oferecer a um cidadão representativo do grupo
dos em pior situação um pacote de riqueza, renda e bases sociais do
autorrespeito inferior ao de uma estrutura alternativa na qual, embora a sua
riqueza e renda sejam menores, as bases sociais do autorrespeito para o cidadão
em questão sejam mais consistentes.
Nesta seção, pretendo demonstrar que a inclusão das bases sociais do
autorrespeito no index de bens primários sujeitos ao PD tem consequências para
a discriminação privada. Antes de continuar, entretanto, é necessário advertir
para o fato de que a análise de Rawls acerca das bases sociais do
autorrespeito, ainda que em mais de uma passagem referidas como "talvez o mais
importante bem primário" (Rawls,_1999, pp. 348, 386), suscita mais questões do
que as responde, e que os comentários acerca do tema são bastante divergentes.
No que segue, terei em vista a interpretação de autorrespeito que considero
mais plausível. Além disso, embora faça breves observações em favor dessa
interpretação, deve ficar claro que meu principal objetivo aqui não é defendê-
la, mas tratar das suas implicações para a discriminação privada.
O que é, então, o autorrespeito? Não parece haver dúvida de que, como afirma
Massey_(1983,_p._250), a noção de autorrespeito em Rawls é psicológica, e não
moral. Isso fica claro quando ele afirma que o autorrespeito compreende um
"senso acerca do próprio valor" ("a person's sense of his own value") e a
"confiança na própria capacidade, nos limites do possível, para realizar suas
intenções" ("confidence in one's ability, so far as it is within one's power,
to fulfill one's intentions") (Rawls,_1999, p. 386). Em contrapartida, é
importante ressaltar que, coerente com a preferência pela métrica objetiva dos
bens primários diante da utilidade, o que Rawls reputa como relevante para fins
distributivos não é a qualidade psicológica do autorrespeito como tal, mas sim
as suas bases sociais, isto é, as partes da estrutura básica da sociedade que
são mais ou menos conducentes a fazer surgir e preservar o estado psicológico
em questão.
Se o autorrespeito é uma propriedade psíquica, o passo seguinte consiste em
determinar que propriedade é essa. Em um trabalho recente sobre o autorrespeito
em Rawls, Brake_(2013), baseando-se na distinção feita por Darwall_(1977) entre
autorrespeito de apreciação (appraisal self-respect) e autorrespeito de
reconhecimento (recognition self-respect), argumenta que o papel reservado ao
autorrespeito pela justiça rawlsiana é mais consentâneo com a segunda concepção
do que com a primeira. De acordo com Darwall, o respeito de apreciação de um
agente (tanto quanto aos outros como quanto a si mesmo, isto é, o
autorrespeito) relaciona-se à excelência de caráter (1977, p. 43). Tenho tanto
mais respeito por mim mesmo, nesse sentido, quanto mais encontro em mim as
qualidades de caráter que julgo moralmente desejáveis. O respeito de
reconhecimento, em contrapartida, é (no sentido moralmente relevante) uma
disposição a tratar algo ou alguém (inclusive a si mesmo) com a consideração
que é devida pelo fato de o objeto em questão ser o que é (1977, p. 40).
Admitindo-se que todo ser humano seja, como tal, merecedor de igual
consideração em certo sentido, o respeito de reconhecimento quanto aos nossos
semelhantes corresponde, então, à disposição a tratar (em um certo sentido) os
interesses de cada um, incluindo os nossos mesmos, como tendo a mesma
importância. Para Darwall_(1977,_p._48), por fim, nem o autorrespeito de
apreciação nem o de reconhecimento se confundem com a autoestima (self-esteem),
a admiração que cada um tem por suas qualidades em geral, inclusive outras que
não as de caráter, como a força e a inteligência.
Como fica claro, é perfeitamente possível que uma pessoa tenha, em geral, baixa
autoestima (uma opinião negativa acerca das suas qualidades em geral, inclusive
outras que não as de caráter), pouco ou nenhum autorrespeito de apreciação (uma
opinião negativa acerca das suas qualidades de caráter) e, não obstante,
conserve em relação a si a disposição característica do autorrespeito de
reconhecimento. Esse será o caso se essa pessoa (presumida, uma vez mais, a
fundamental igualdade moral que faz com que cada ser humano seja merecedor de
consideração como tal) prosseguir fiel em suas deliberações ao seu igual
status, isto é, se continuar tratando seus interesses como não subordinados (de
maneira incompatível com esse igual status moral) aos dos demais.
Quais são as razões para afirmar que a noção de autorrespeito de reconhecimento
é a que melhor se conforma ao papel atribuído ao autorrespeito na justiça
rawlsiana? Em primeiro lugar, considerar o autorrespeito de reconhecimento como
aquilo que deve ser fomentado pelas instituições de uma sociedade justa evita
certos resultados contraintuitivos das concepções rivais do autorrespeito de
apreciação e, mais ainda, autoestima (Brake,_2013, posição 1.328). Para prover
as bases do autorrespeito entendido segundo as concepções por último
mencionadas, um governo poderia se valer da propaganda ufanista (destinada a
ressaltar as qualidades do povo) ou até da distribuição descriteriosa de
medicamentos antidepressivos. Para autorrespeitar-se no sentido do
autorrespeito de reconhecimento, em contrapartida, não é preciso que os
cidadãos tenham uma opinião favorável acerca das suas qualidades (de caráter e
outras). Não contam como bases sociais do autorrespeito, em consequência,
políticas que procurem incutir nos cidadãos essa opinião a qualquer custo.
Segundo, a noção de autorrespeito de reconhecimento se ajusta a argumentos
apresentados por Rawls para defender a prioridade do princípio das liberdades
básicas e a sua concepção de justiça de um modo geral. De acordo com Rawls, as
liberdades básicas devem ter prioridade sobre a distribuição de riqueza e renda
porque podem ser mais facilmente garantidas de maneira igual para todos, sendo
essa igualdade uma das bases do autorrespeito (1999, p. 478). O segundo
princípio constitui também uma expressão da igualdade e, como tal, fomenta o
autorrespeito ao definir a propriedade comum dos talentos e sujeitar diferenças
de riqueza e renda às condições da equitativa igualdade de oportunidades e da
vantagem para os cidadãos em pior situação (Rawls,_1999, p. 156; Penny,_2013,
pp. 343-344). Das concepções de autorrespeito referidas acima, aquela cuja
relação com a prioridade das liberdades básicas (iguais para todos) e com a
ideia geral de igualdade expressa pelos princípios da justiça de Rawls é mais
clara é, sem dúvida, a do autorrespeito de reconhecimento, o qual não é senão
um caso particular da disposição geral (o respeito de reconhecimento) a tratar
os interesses de cada um como dignos de igual consideração.
Por último, outra vantagem da concepção do autorrespeito como reconhecimento é
que, correspondendo o autorrespeito nesse sentido a um traço psicológico mais
estável, ele e a sua falta se tornam mais facilmente observáveis. A tendência é
que pessoas às quais falte o autorrespeito de reconhecimento exerçam de bom
grado um papel subalterno em muitas das suas interações ou, ao menos, nas
interações com aqueles em relação aos quais se consideram inferiorizadas. Que
os sinais da falta de autorrespeito sejam fáceis de perceber é importante tendo
em vista a preferência de Rawls por termos de comparação que (em contraste, por
exemplo, com a utilidade) não levantem maiores dificuldades epistêmicas.
De que maneira as instituições fomentam o autorrespeito? Em particular, o que
faz com que as bases sociais do autorrespeito estejam entre os bens primários
cuja distribuição é regulada pelo PD e qual é a importância disso para a
discriminação privada? Na mesma seção de "Uma Teoria da Justiça" em que defende
a prioridade das liberdades básicas, Rawls admite que essas liberdades podem
não ser suficientes para assegurar o autorrespeito dos cidadãos, o que
demandaria incluir as bases sociais do autorrespeito entre os bens primários
sujeitos ao princípio da diferença (Rawls,_1999, pp. 478-479). Pretendo
argumentar, agora, que uma implicação da inclusão das bases sociais do
autorrespeito no index de bens primários sujeitos ao PD é a proibição a certos
atos de discriminação privada.
Pois bem, em que casos se poderia dizer que a discriminação privada constitui
uma ameaça ao autorrespeito, de tal maneira que, se não requerida por outros
princípios, a proteção contra tal discriminação deva ser ao menos incluída
entre as bases sociais do autorrespeito que o PD deve proporcionar? Penso que a
ideia de Hellman_(2008) de discriminação imoral como discriminação degradante
(demeaning) tem aplicação aqui.7 Segundo Hellman, um ato de discriminação é
degradante quando o seu sentido expressivo é negar a certas pessoas o seu igual
status moral.8 O ato de obrigar negros a se sentarem na parte de trás dos
ônibus, por exemplo, tinha, nas circunstâncias da sociedade norte-americana de
algumas décadas atrás, o sentido expressivo de afirmar a inferioridade dos
negros em relação aos brancos.
Qual é a relação entre a discriminação degradante e o autorrespeito? Como
qualquer outro estado psicológico, o autorrespeito se sujeita à influência do
meio. Se alguém vive em uma sociedade na qual é repetidamente veiculada a
mensagem de que as pessoas de um grupo a que pertence são inferiores às demais,
pode acabar ele próprio pensando assim. Quando a discriminação degradante
reiterada leva as pessoas que dela são alvo a acreditarem na sua inferioridade
e a tratarem os próprios interesses como menos dignos de consideração do que os
dos demais, essa discriminação é destrutiva do autorrespeito. Tendo isso em
vista, instituições empenhadas em promover o autorrespeito dos cidadãos devem
não apenas ser avessas a atos públicos de discriminação degradante, como também
coibir essa discriminação quando praticada por agentes privados.
É importante observar como o potencial deletério da discriminação degradante
para o autorrespeito abre caminho para a proibição de outros atos de
discriminação privada além daqueles que se opõem ao PEIO. Dito de maneira
simples, a discriminação privada degradante não é apenas a que nega a
equitativa igualdade de oportunidades. Por exemplo, pode haver uma razão
baseada no PD (como princípio garantidor das bases sociais do autorrespeito)
para proibir que o proprietário de um imóvel disponível para locação ou uma
associação recreativa dispensem tratamento discriminatório devido à cor da pele
ou à orientação sexual, ainda que tanto a locação do imóvel quanto a
participação na associação sejam irrelevantes no que concerne às chances de
exercício de ocupações para cidadãos com iguais aptidões inatas e motivação.
Duas questões a examinar são, primeira, a de como se determina o sentido
expressivo de um ato de discriminação (em particular, como se determina se esse
sentido é degradante) e, segunda, a do alcance da proibição à discriminação
privada requerida pelo PD. Hellman_(2008) dedica um dos capítulos do seu livro
à primeira questão. Há uma diferença, entretanto, entre uma análise sobre a
interpretação de atos de discriminação cujo interesse é definir quais desses
atos são intrinsecamente imorais e outra com o intuito de saber quais deles são
potencialmente destrutivos do autorrespeito. A análise de Hellman é da primeira
espécie, e ela propõe resolver o problema da interpretação dos atos de
discriminação com uma concepção de "objetividade modesta" (modest objectivity),
segundo a qual a interpretação correta é a que se revelaria correta sob
condições epistêmicas ideais (2008, posição 995). Hellman rejeita, com isso,
tanto uma concepção de objetividade forte (strong objectivity), de acordo com a
qual uma interpretação pode ser correta ainda que ninguém a perceba como tal,
quanto uma mínima (minimal objectivity), para a qual a interpretação correta é
a tida como tal pela maioria. Quaisquer que sejam os méritos da concepção de
objetividade modesta defendida por Hellman, no entanto, o que parece mais
adequado, quando se trata de caracterizar a discriminação degradante como
ameaça ao autorrespeito, é valer-se de alguma versão da objetividade mínima.
Como a preocupação recai em tal caso sobre os efeitos do ato discriminatório, o
importante, para o fim de definir certo ato de discriminação como degradante, é
saber como aqueles que são alvo da discriminação a interpretam. As ocasiões em
que a discriminação expressa a considerável quantidade dessas pessoas o seu
status de cidadãs de segunda classe são as que importam para o PD, porque é
nelas que a discriminação ameaça o autorrespeito.9
Uma vez esclarecido como a discriminação atenta contra o autorrespeito, passo a
tratar das restrições à discriminação privada baseadas no PD. Como explicado
acima, esse princípio impõe como condição às diferenças na distribuição dos
bens primários da riqueza, da renda e do autorrespeito que essas diferenças
favoreçam os cidadãos em pior situação. Uma situação de distribuição S1 em que
os cidadãos possuem lotes desiguais dos referidos bens primários somente será
reputada como justa, em consequência, se não houver uma situação de
distribuição alternativa, S2, em que a desigualdade seja menor e o lote dos
cidadãos em pior situação se mostre ao menos igual ao de S1. A proibição à
discriminação privada é requerida pelo PD, portanto, se, todo o restante sendo
igual, com tal proibição se consiga reduzir a desigualdade na distribuição do
bem primário das bases sociais do autorrespeito sem piorar as expectativas dos
cidadãos em desvantagem.
Sobre isso, é importante entender o que leva a discriminação privada degradante
a frequentemente ter os cidadãos em pior situação entre as suas vítimas.
Observe, em primeiro lugar, que a definição do grupo dos cidadãos em pior
situação se baseia na própria métrica dos bens primários. Assim, os cidadãos
para os quais as bases sociais do autorrespeito se mostrem frágeis devido à
tolerância oficial a atos reiterados de discriminação degradante candidatam-se,
por essa razão mesma (e ainda que não pertençam ao mais baixo estrato de
riqueza e renda), a pertencer ao grupo dos cidadãos em pior situação. Além
disso, é provável que a falta do autorrespeito solape a motivação desses
cidadãos a competir por posições de vantagem, piorando, em consequência, suas
expectativas quanto a riqueza e renda. Em outras palavras, afora ser, em si
mesma, uma causa de desvantagem, a falta das adequadas bases sociais do
autorrespeito é propensa a levar suas vítimas a uma situação de desvantagem em
relação a outros bens primários.
O caso se complica, porém, quando a melhora nas bases sociais do autorrespeito
conseguida por meio da vedação à discriminação privada tem efeito negativo
sobre as expectativas dos cidadãos em pior situação quanto à riqueza e à renda.
Considere-se a hipótese de uma sociedade com práticas disseminadas de
discriminação racial, estando entre essas práticas a de vedar aos negros a
participação em certas irmandades ou clubes. O ingresso nessas associações é
restrito não apenas aos brancos como também aos mais ricos, o que desencadeia
uma sôfrega competição por renda entre os brancos interessados no prestígio
conferido pela participação nessas agremiações. Além disso, imagine que, devido
ao racismo, o fim da restrição à entrada de negros diminuiria bastante o
interesse pelas associações, não havendo também um substituto imediatamente
disponível para induzir à competição por status. Em consequência, com o fim da
segregação, a motivação dos brancos para acumular riqueza em boa medida
desapareceria, de modo que, ao menos em curto prazo, a proibição à
discriminação destinada a prover bases sociais adequadas de autorrespeito para
os cidadãos negros teria como efeito uma redução do ímpeto da população branca
para a produção e, com isso, uma redução geral (inclusive entre os negros) da
riqueza e da renda.
Em um cenário como o recém-descrito, surge a necessidade de comparar lotes de
bens primários entre os quais não se verifica uma relação de dominância de
Pareto. Existe uma relação como essa entre dois lotes compostos por diferentes
bens quando um deles é superior ao outro no que toca a ao menos um dos bens em
questão e não inferior quanto a nenhum dos demais. No caso do parágrafo acima,
não há relação de dominância de Pareto entre os lotes de bens dos negros antes
e depois do fim da discriminação nas associações, já que o lote final é
superior ao inicial no que se refere às bases sociais do autorrespeito, mas
inferior quanto à riqueza e à renda. É verdade que o fato de não haver
dominância de Pareto não impede que dois lotes sejam comparáveis. Admitindo-se,
entretanto, que as bases sociais do autorrespeito não sejam comensuráveis com a
riqueza e a renda (isto é, que elas não estejam sujeitas a uma quantificação
comum que permita a comparação invariavelmente),10 é possível haver casos em
que o PD nem favoreça nem contrarie uma vedação à discriminação privada com
efeitos positivos para autorrespeito dos cidadãos em pior situação mas
perniciosos em relação à riqueza e à renda.
Conclusão
Este trabalho apresentou alguns argumentos em favor de medidas legais de
restrição à discriminação privada com base nas duas partes do segundo princípio
da justiça de Rawls. A primeira dessas partes, o princípio da equitativa
igualdade de oportunidades (PEIO), divide-se, por sua vez, em carreiras abertas
a talentos (CAT) e equidade na origem (EO). Afirmei que CAT é compatível com
atos de discriminação no emprego isoladamente considerados (como, por exemplo,
o de um escritório de advocacia que se recusa a contratar heterossexuais). A
discriminação privada somente atenta contra CAT quando ocorre de maneira a
fazer com que as chances de exercício de certas ocupações sejam
substancialmente distintas para cidadãos igualmente talentosos pertencentes a
diferentes grupos. Argumentei, além disso, que, ainda que seu efeito seja de
largo alcance, nem a discriminação baseada em qualidade de reação (como a de um
restaurante que não contrata negros para não desagradar à sua clientela
racista) nem a discriminação por indicadores constituem uma patente violação de
CAT.
EO, por sua vez, é antagônica à discriminação privada em áreas importantes para
que os cidadãos desenvolvam suas aptidões inatas, como as da educação e da
saúde. Similarmente ao que foi dito em relação à CAT, no entanto, EO não se
opõe a todo e qualquer ato de discriminação privada relacionado ao
desenvolvimento das aptidões (como o de escola que só admita crianças judias),
mas apenas ao possível efeito agregado desses atos para as chances ocupacionais
de cidadãos com similares motivação e aptidões inatas.
Em relação, por fim, à segunda parte do segundo princípio, o princípio da
diferença (PD), afirmei que a discriminação privada é relevante devido ao fato
de a permissão legal (ainda que tácita) a essa discriminação constituir, sob
certas circunstâncias, uma ameaça ao autorrespeito dos cidadãos. Por um lado, a
preocupação que a discriminação privada suscita à luz do PD é mais ampla do que
a do PEIO, já que alcança atos de discriminação não relacionados ao
desenvolvimento das aptidões e ao trabalho (como a recusa de uma associação
recreativa à participação de negros ou a do proprietário de um imóvel a locá-lo
para um homossexual). Por outro, a importância do PD para a discriminação
privada é mais limitada do que a do PEIO, por se restringir aos atos de
discriminação que ponham em risco o autorrespeito, os quais foram acima
definidos, seguindo Hellman_(2008), como atos de discriminação que tenham como
sentido expressivo o de afirmar a inferioridade moral de certas pessoas.
Interpretando-se o PD como princípio segundo o qual diferenças na distribuição
de riqueza, renda e bases sociais do autorrespeito somente são admitidas caso
beneficiem os cidadãos em pior situação, chega-se então à conclusão de que há
uma incompatibilidade entre esse princípio e atos de discriminação privada com
efeito nocivo para o autorrespeito das pessoas discriminadas.
1 Rawls_(1999,_p._297) define o dever de mútuo respeito como o de "demonstrar a
uma pessoa o respeito que lhe é devido como ser moral, isto é, como um ser com
um senso de justiça e uma concepção do bem" ("to show a person the respect
which is due to him as a moral being, that is, as a being with a sense of
justice and a conception of the good").
2Rawls mantém o PEIO como princípio de justiça nas obras posteriores a "Uma
Teoria da Justiça", mas, em "Justiça como Equidade: uma Reformulação",
manifesta dúvida sobre a prioridade desse princípio em relação ao da diferença
(Rawls,_2001, p. 163, nota 44).
3Diferente, é claro, é o caso em que o uso do indicador é irracional, no
sentido de que falta uma correlação suficiente entre o atributo que serve como
indicador e o atributo verdadeiramente importante, e essa falta de correlação
poderia ser constatada pelo agente a um custo não demasiadamente elevado. Em
tal hipótese, não há qualquer razão de eficiência que se contraponha a uma
interpretação de CAT contrária à discriminação. Para um argumento
consequencialista em favor da imoralidade de uma discriminação irracional no
sentido recém-referido, ver Alexander_(1992,_p._169).
4Isso não significa que não haja nada moralmente errado com uma escola que
recusa alunos negros, ou que a promoção da diversidade (racial, étnica,
religiosa etc.) no ambiente escolar não seja um objetivo válido. Chamo a
atenção, uma vez mais, para o fato de a análise acima ser estritamente
institucional e limita ao segundo princípio da justiça de Rawls.
5Para diferentes versões do PD, ver Van_Parijs_(2003) e Williams_(2011).
6Como observa o próprio Rawls_(1996,_pp._181-182), é possível acrescentar
outros bens primários a esse rol. Acima, entretanto, considerarei uma versão
simples do PD limitada aos bens citados.
7Diferentemente de mim, Hellman está interessada em defender uma concepção
geral sobre o que torna a discriminação imoral, e não no papel da discriminação
em uma teoria da justiça em particular.
8 Hellman_(2008,_posição_437): "degradar é tratar outrem como se não fosse
humano por inteiro ou não igualmente valioso moralmente falando. O ato de
degradar é, portanto, em parte um ato expressivo. É uma ação que expressa que o
outro é menos digno de consideração ou respeito" ("to demean is to treat
another as not fully human or not equal of moral worth. To demean therefore is
partly an expressive act. One's action expresses that the other is less worthy
of concern or respect"). Hellman também reputa como condição do ato degradante
a de que o agente possua ascendência sobre aquele ou aqueles cujo igual status
é negado (2008, posição 441). Não me parece, contudo, que a referida posição de
ascendência, embora comumente observável, deva ser tida como condição
necessária à caracterização do ato degradante.
9Uma preocupação com a objetividade mínima é que essa concepção de objetividade
impeça tratar como degradante a discriminação que, graças a um longo passado de
opressão, a maioria das pessoas (inclusive as vítimas) tenha sido levada a
encarar com naturalidade. Afirmar que uma prática discriminatória é entendida
como expressão do inferior status moral de um certo grupo não significa,
entretanto, que as pessoas que assim interpretam tal prática tenham de reagir a
ela com indignação. O perigo para o autorrespeito reside, ao contrário,
justamente no fato de a discriminação ser entendida como expressão de
inferioridade e aceita, como tal, pelas pessoas que dela são alvo.
10Sobre a diferença entre comparabilidade e comensurabilidade, ver Chang_(1997,
pp._1-2).